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Artigo Original DOI:10.

5902/2179460X12973

Ciência e Natura, Santa Maria, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342–355


Revista do Centro de Ciências Naturais e Exatas - UFSM
ISSN impressa: 0100-8307 ISSN on-line: 2179-460X

O problema que tornou Euler famoso


The problem that has Euler famous

Jairo Gayo1 e Roy Wilhelm2


1,2
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Paraná, Brasil
jairogayo@yahoo.com.br, rwprobst@gmail.com

Resumo

Neste trabalho é apresentado o problema da Basileia cuja resposta tornou Leonhard Euler famoso. Apresenta a prova
de Euler que por muito tempo continha uma passagem tida como incorreta, mas que após o Teorema da Fatoração
de Weierstrass foi aceita. Aborda também outras resoluções para o problema, sua representação geométrica e uma
aplicação. Discute também, por meio deste problema, a importância da História da Matemática para o professor
desta disciplina.

Palavras-chave: Problema da Basileia. Leonhard Euler. História da Matemática

Abstract

In this study we present the Basel Problem whose answer has Leonhard Euler famous. Presents the Euler’s Proof
which long contained a passage regarded as incorrect, but that after the Weierstrass Factorization Theorem was
accepted. Also addresses other resolutions to the problem, its geometric representation and an application. It also
discusses, through this problem, the importance of the History of Mathematics for the teacher of this discipline

Keywords: Basel Problem. Leonhard Euler. History of Mathematics

Recebido: 21/02/2014 Aceito: 28/03/2014


Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 343
Ciência e Natura 2

1 Introdução Neste contexto, percebe-se que a Matemática é uma


das disciplinas mais importantes na formação de um
Atualmente nossa sociedade conquistou um nível de profissional da área tecnológica, pois é pré-requisito no
desenvolvimento tecnológico jamais visto. Além do desenvolvimento das demais ciências. Porém, as dificul-
conforto e facilidades que este desenvolvimento nos dades que alguns alunos têm com esta disciplina fazem
proporciona, o que mais impressiona é a velocidade com com que estes busquem profissões fora desta área. Em
que ele ocorreu no último século. Basta pensarmos que grande parte, esta dificuldade vem da falta de professo-
no início do século passado voar era um sonho e que res capacitados. Na tentativa de suprir esta demanda,
hoje jatos supersônicos dão a volta em torno da terra foi lançado em 2011 o PROFMAT, um programa de
em menos de 6 horas ou que já é possível enviar sondas Mestrado Profissional que busca melhorar o nível de
exploratórias para outros planetas. conhecimento dos professores de Matemática da rede
Quem pensa que esta evolução está perto de sofrer pública.
uma desaceleração está completamente enganado, a ten- Outras iniciativas também tomaram vulto, tais como
dência é de que cada vez mais a tecnologia se desenvolva. o Programa de Aperfeiçoamento para Professores de
A modernização de produtos já existentes, surgimento Matemática do Ensino Médio (PAPMEM) e a Olimpíada
de novos produtos, bem como a melhoria nos serviços Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP).
que geram conforto e segurança para humanidade, tais Em contrapartida, surgem diversas tendências que bus-
como meios de comunicação e de transportes, são o cam encontrar a melhor metodologia de ensino para a
retrato desta tendência. disciplina. A História da Matemática vem se destacando
Esta demanda por tecnologia exigirá que em nossa como ferramenta básica e indispensável para o ensino de
sociedade sejam formados profissionais com capacidade Matemática. Na referência (Cajori, 2007) encontramos
técnica para implementar este desenvolvimento. Estes célebre frase de J.W.L. Glaisher: “Estou certo de que ne-
profissionais, inevitavelmente, terão que possuir uma nhuma outra disciplina perde mais do que a Matemática
boa base de conhecimentos de Física, Química, Biologia, quando dissociada de sua história”.
Computação e como não poderia deixar de ser, Mate- Uma das principais propriedades da utilização da
mática. É necessário lembrar que a ciência é a base do História da Matemática no ensino é que o aluno passa
desenvolvimento tecnológico e que cientistas, através a entender a Matemática como um conhecimento dinâ-
de trabalho de pesquisa, criaram praticamente todas as mico, fruto de uma evolução, repleto de fatos curiosos.
maravilhas tecnológicas de hoje. O estudante, através desta percepção entende que a Ma-
É por isso que o currículo escolar está repleto de temática está aberta a avanços que se dão por meio de
disciplinas da área científica. Ávila (2011) aborda o estudo, dedicação e criatividade.
tema salientando a importância da matemática neste Geralmente quando lemos alguma revista ou assisti-
currículo: mos algum programa de televisão que tratam de avanços
científicos, logo imaginamos que se trata de algo sobre
“A Matemática deve ser ensinada nas escolas Química ou Biologia e esquecemos que tais avanços tam-
porque é parte substancial de todo o patrimô- bém estão ocorrendo na Matemática. Os avanços da
nio cognitivo da Humanidade. Se o currículo Matemática ocorrem em torno de processo e métodos
escolar deve levar a uma boa formação hu- de resolução de problemas, tais métodos quando encon-
manística, então o ensino da Matemática é tram dificuldades em superar desafios, são traduzidos
indispensável para que essa formação seja em problemas em abertos.
completa. Ao longo da História da Matemática, foram diver-
sos os problemas que permaneceram em aberto por
O ensino da Matemática se justifica ainda
anos, alguns por séculos, até que uma mente brilhante
pelos elementos enriquecedores do pensa-
conseguisse a solução final. Atualmente são muitos os
mento matemático na formação intelectual
problemas que permanecem em abertos à espera de al-
do aluno, seja pela exatidão do pensamento
guém que possa solucioná-los. Geralmente matemáticos
demonstrativo que ela exibe, seja pelo exercí-
que conseguem resolver um destes problemas garantem
cio criativo da intuição, da imaginação e dos
seu lugar na História da Matemática.
raciocínios por indução e analogia.
Um dos matemáticos que alcançou notoriedade após
O ensino da Matemática é também impor- resolver um problema em aberto foi Leonhard Euler,
tante para dotar o aluno do instrumental após encontrar a resposta para o famoso problema da
necessário no estudo das outras ciências e Basileia. Atualmente Euler é reconhecido como um dos
capacitá-lo no trato das atividades práticas mais importantes da História da Matemática, não só
que envolvem aspectos quantitativos da rea- por ter resolvido tal problema, mas principalmente por
lidade.” ter contribuído com a Matemática em diversas áreas
344 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
3 Autores: O problema que tornou Euler famoso

com mais de 850 trabalhos (Simmons, 2002), muitos de O que muitos especulam é que este fato ocorreu devido
extrema importância. a uma rotina intensa de trabalho, forçando a visão até
Neste trabalho apresentamos: tarde da noite (Boyer, 2003).
Permaneceu na Rússia até 1741 quando foi convi-
• Um pouco da vida e da obra do matemático Le- dado a ser professor de Matemática na Academia de
onhard Euler a fim de justificar sua importância Ciências de Berlim. Nesta cidade conquistou a admi-
para a Matemática. ração de alguns integrantes da corte do imperador da
Prússia, atual Alemanha e Polônia. No entanto, devido
• O problema da Basileia, que tornou Leonhard Eu-
a sua timidez, e por ter perdido um olho, tornou-se
ler famoso, e a solução apresentada por ele.
motivo de zombaria e em 1766 aceita um convite para
• Algumas de suas diversas soluções ao longo da retornar a Academia de Ciências de São Petersburgo
história, as aceitas atualmente. onde trabalhou até o último dia de sua vida (Cajori,
2007).
• A utilização da História da Matemática como fer- Ainda em 1766 percebeu que, devido à catarata, es-
ramenta de ensino. tava perdendo a visão do segundo olho e, para continuar
trabalhando treinou um de seus filhos para escrever en-
2 A Vida e Obra de Euler quanto ele ditava. Apesar destas condições, sua memória
admirável permitiu que continuasse trabalhando sem
Nesse capítulo mostraremos as principais obras de Euler, parar (Eves, 2004). Em 1783 morre enquanto tomava chá
nas diversas áreas em que ele atuou, e quão importante com um de seus netos, após ter passado o dia estudando
este homem foi para a Matemática. Você vai se surpre- a órbita do recém descoberto planeta Urano (Simmons,
ender com a personalidade e com o exemplo de vida 2002).
deste matemático que produziu muito, mesmo depois Sua vida acadêmica movimentada não o impediu
de ter ficado completamente cego. de formar com Katharina Gsell uma família numerosa:
tiveram ao todo 13 filhos. Segundo alguns autores, con-
seguia sem muitas dificuldades escrever seus artigos
2.1 A Vida de Euler
enquanto cuidava das crianças. “Um amigo que presen-
O matemático Leonhard Paul Euler nasceu em 1707 na ciava sua vida doméstica disse: Uma criança no colo,
Basileia, importante cidade suíça. Filho de uma família um gato sobre o ombro, assim escrevia ele suas obras
muito bem estruturada, desde cedo teve acesso a boas imortais” (Garbi, 1997) .
escolas e bons professores. Esta preocupação com os
estudos do garoto se devia principalmente ao fato de 2.2 A Obra de Euler
que Paul Euler, pai de Leonhard, era pastor da Igreja Cal-
vinista e sonhava que seu filho o seguisse na profissão Falar da obra de Euler é nada menos que falar de uma
(Boyer, 2003). Apesar de Leonhard não ter se tornado obra com mais de 850 títulos, entre livros e artigos. Na
um pastor como desejava seu pai, seguiu seus preceitos História da Matemática nenhum outro estudioso pro-
religiosos por toda a vida (Simmons, 2002). duziu tanto, somente no período que permaneceu em
A opção de Leonhard não foi tomada por seu pai Berlim produziu cerca de 275 trabalhos (Simmons, 2002).
como uma afronta, pois o mesmo também havia estu- Euler foi tão eficiente que viu apenas cerca de 500 destes
dado Matemática com Jakob Bernoulli (1654 - 1705), seu trabalhos serem publicados, a Academia de São Peters-
amigo pessoal. A proximidade da família de Euler com burgo levou meio século após sua morte para publicar
a família Bernoulli talvez seja o que mais influenciou completamente sua obra (Boyer, 2003).
interesse do jovem pela Matemática (Boyer, 2003). Todo seu magnífico trabalho está atualmente sendo
Aos 14 anos de idade ingressou na Universidade da condensado e publicado pela Sociedade Suíça de Ciên-
Basileia onde inicialmente estudou Medicina, Teologia e cias Naturais e apesar de ainda não ter sido completa-
Ciências Humanas. Dois anos mais tarde, nesta mesma mente organizado deverá atingir mais de 85 volumes
universidade, dedicou-se a Matemática (Simmons, 2002). (Eves, 2004). Suas obras eram bem variadas, entre elas
Após se formar atuou, ainda na Basileia, nas áreas de se poderiam encontrar temas de Cálculo, Álgebra, Ge-
Filosofia, Teologia e Matemática. Em 1727, por influência ometria além de Física e Astronomia. Muitas de suas
dos irmãos Daniel e Nicolas Bernoulli, filhos de Jakob obras tinham fins didáticos com o objetivo de tornar a
Bernoulli, Euler foi convidado a integrar a Academia de Matemática desenvolvida naquele tempo acessível para
Ciências São Petersburgo na Rússia, onde foi nomeado alunos de Engenharia, Arquitetura e outras áreas técni-
professor de Física em 1730 e de Matemática em 1733 cas (Boyer, 2003).
(Simmons, 2002). Aos 28 anos de idade, perdeu a visão São diversas áreas em que Euler deixou sua marca,
do olho direito o que não reduziu seu ritmo de trabalho. tanto que não é difícil para um estudante de Matemática
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Ciência e Natura 4

se deparar com expressões do tipo Fórmula de Euler, e a timidez jamais permitiriam a este matemático tal
Equação de Euler, Número de Euler, entre outras. Na auto homenagem.
Geometria, por exemplo, quem estuda sólidos geomé- A função ϕ(n) denominada função fi de Euler, deter-
tricos se depara com a Relação de Euler para poliedros mina a quantidade de números naturais menores que
convexos: V − A + F = 2, onde V é o número de vérti- n e que com ele são primos entre si (Baumgart, 1992).
ces, F o número de faces e A o número arestas (Lima Esta função foi desenvolvida por Euler para apresen-
et al., 2006). Perceba que apesar dos sólidos geométricos tar uma generalização do Pequeno Teorema de Fermat
terem sido estudados desde a antiguidade, tal relação (Hefez, 2011) e mais tarde se mostrou uma importante
só foi descoberta por Euler no século XVIII. ferramenta no desenvolvimento da Teoria dos Números.
Euler também provou que em um triângulo qualquer
os pontos baricentro, ortocentro e circuncentro são coli- As áreas da Matemática que mais evoluíram com
neares e, em sua homenagem a reta que contem os três Euler foram o Cálculo Diferencial e Integral e a Aná-
pontos é chamada de Reta de Euler. Atualmente sabe-se lise Matemática. Sua contribuição foi tão significativa
que outro matemático, o inglês Robert Simson, havia que Boyer (2003) afirma: “Pode ser dito com justiça que
provado anteriormente esta colinearidade, no entanto a Euler fez pela Análise de Newton e Leibniz o que Eu-
homenagem a Euler foi mantida (Eves, 1992). clides fez pela Geometria de Eudoxo e Teaetetus, ou
Em Trigonometria convencionou A, B, C como os que Viète fizera pela Álgebra de Al-Khowarizmi e Car-
vértices opostos aos lados a, b, c de um triângulo ABC dano. Euler tomou o Cálculo Diferencial e o Método
qualquer, convencionou ainda s como semiperímetro dos Fluxos e tornou-os parte de um ramo mais geral
deste triângulo e r como o raio de seu círculo inscrito da Matemática que a partir dai é chamado ‘Análise’ - o
(Boyer, 2003). estudo de processos infinitos. Se os antigos Os Elementos
Apesar destas contribuições a Geometria Clássica, constituem a pedra angular da Geometria e Al jabr wa’l
foi a Geometria Analítica que obteve grandes avanços muqabalah medieval a pedra fundamental da Álgebra,
com Euler. Apresentou no Volume II de Introduction então a Introductio in Analysin Infinitorum de Euler pode
uma extensa e eficaz abordagem ao uso de coordenadas ser considerada como chave de abóbada da Análise.”
no plano e no espaço. Sistematizou e popularizou o Deixou sua marca na notação do Cálculo sendo o
estudo de curvas e superfícies por meio de equações primeiro a utilizar f ( x ) para funções e por popularizar o
algébricas e transcendentes, em especial as quadráticas ∂ para representar derivadas parciais (Boyer, 1992). Não
e trigonométricas (Boyer, 2003). é por acaso que o físico e astrônomo François Arago,
Na Álgebra Euler introduziu a letra i para represen- amigo de Euler, disse (Eves, 2004): “Euler poderia muito
tar a raiz quadrada de -1 (Eves, 2004): bem ser chamado, quase sem metáfora, e certamente
√ sem hipérbole, a encarnação da Análise.”
i = −1
Além do já mencionado Introductio in Analysin In-
e deu aos números complexos a forma z = a + bi, com finitorum de 1748, são também relevantes Institutiones
a e b pertencentes ao conjunto dos números reais. Esta Calculi Differentialis de 1755 e Institutiones Calculi Integra-
notação impulsionou o estudo dos números complexos, lis publicado em três volumes de 1768 à 1774. Estas três
o próprio Euler observou que obras influenciaram o estilo, a notação e o desenvolvi-
mento do Cálculo e da Análise desde o século XVIII até
eix = cos x + i sen x os dias atuais (Eves, 2004). Inúmeras outras obras, entre
artigos, e livros, foram publicadas nesta área abordando
de onde, substituindo x por π concluiu que equações diferenciais, integrais indefinidas, séries con-
vergentes e divergentes, geometria diferencial e cálculo
eiπ = −1
das variações.
ou
eiπ + 1 = 0.
Assim Euler reuniu em uma só fórmula os 5 números
notáveis da Matemática: 1, 0, e, i e π, além das operações
3 O problema da Basileia
de adição, multiplicação e potenciação (Eves, 2004). Esta
fórmula atualmente é conhecida como Identidade de Nesse capítulo apresentaremos um breve histórico do
Euler. problema da Basileia, seu enunciado e a primeira resolu-
O número e também recebeu esta notação de Euler. ção, apresentada por Leonhard Euler, com suas peculia-
Acredita-se que a escolha se deve a inicial da palavra ridades. Esta resolução surpreendeu toda comunidade
expoente (Boyer, 2003). Não é correto creditar a escolha Matemática da época, e fez com que Euler passasse a
do e por ser a inicial do sobrenome de Euler, a modéstia figurar entre os maiores matemáticos de seu tempo.
346 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
5 Autores: O problema que tornou Euler famoso

3.1 Definição do Problema


O problema que tornou Leonhard Euler famoso foi pro-
posto inicialmente pelo matemático italiano Pietro Men-
goli (1625 - 1686) em 1644 (Szpiro, 2008). Após ter con-
sumido esforços dos maiores matemáticos do período,
a solução ainda não havia surgido. Criava-se em torno
deste problema um mistério semelhante ao que envol-
via o Último Teorema de Fermat. Entre os gênios que
tentaram resolvê-lo estavam Gottfried Wilhelm Leibniz
(1646-1716), John Wallis (1616 - 1703), Henry Oldenburg Figura 1: Teste da Integral
(1615? - 1677) e os matemáticos da família Bernoulli
(Boyer, 2003).
ou seja
Durante algum tempo Jakob Bernoulli (1654 - 1705) ∞
1
atacou o problema, sem sucesso, publicou algo sobre ∑ n 2
< 2.
o assunto em 1689. Com a morte de Jakob, seu irmão n =1
Johann Bernoulli (1667 - 1748) ocupou seu cargo de pro- Portanto, esta série é limitada superiormente e, como
fessor na Universidade da Basileia, onde teve entre seus ela também é crescente, pelo Teorema de Sequência
alunos Leonhard Euler (Boyer, 2003). Provavelmente foi Monótona (Stewart, 2011), conclui-se que é convergente.
Johann que apresentou este problema à Euler, até então Outra maneira de visualizar esta convergência é atra-
apenas um aluno brilhante. Após resolver o problema vés de um argumento geométrico (Stewart, 2011). A
passou a chamar a atenção não só de seus professores figura 1 mostra o gráfico da função
na Universidade da Basileia, mas de toda a comunidade
acadêmica da época. 1
f (x) = .
Este problema ficou conhecido como “problema da x2
Basileia”, pois Euler nasceu e se formou nesta cidade,
Abaixo da curva que define este gráfico aparecem re-
bem como resolveu o problema lá. Foi nela ainda que
tângulos cujas bases são intervalos de comprimento 1 e
outros matemáticos de renome, como os da família Ber-
alturas iguais aos valores da função f ( x ) nos extremos
noulli trabalharam e tentaram resolvê-lo (Szpiro, 2008).
direitos de cada intervalo.
O problema proposto por Mengoli consistia em apre-
Assim a soma das áreas dos retângulos é
sentar o resultado da soma dos inversos dos quadrados
perfeitos, ou seja, 1 1 1 1 ∞
1
12
+
2 2
+
32
+
42
+ . . . = ∑ 2
n =1 n

1 1 1 1 1
∑ 2
= 2 + 2 + 2 + 2 +...
1 2 3 4
n =1 n Excluindo o primeiro retângulo, a soma das áreas
Antes de Euler, os matemáticos já sabiam que esta dos retângulos restantes será menor que a área definida
série é convergente (Kalman, 1993). Basta notarmos que por uma integral imprópria:
 ∞
1 1 1 1 1 1 1
+ +···+ < + 2 + 2 +... < dx
2·2 3·3 k·k 22 3 4 1 x2
1 1 1 Mas note que esta integral é convergente:
+ +···+ =
1·2 2·3 ( k − 1) k  ∞
1 1 t
dx = lim − 
1 1 1 1 1 1 1 1 x2 t→∞ x 1
− + − +···+ − = 1− .
1 2 2 3 k−1 k k  
1
Quando k tende ao infinito, temos = lim 1 − = 1.
t→∞ t
 
1
lim 1 − =1 Assim
k→∞ k 1 1 1
+ 2 + 2 +... < 1
logo 22 3 4
1 1 portanto
2
+ 2 +··· < 1 1 1 1 1
2 3 + 2 + 2 + 2 +... < 2
e portanto 12 2 3 4
1 1 1 1 Esta é a mesma ideia do Teste da Integral para con-
2
+ 2 + 2 +··· < 2 +1 vergência de séries numéricas (Stewart, 2011):
1 2 3 1
Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 347
Ciência e Natura 6

Se f é uma função contínua, positiva e decrescente ou ainda


em [1,∞) e an = f (n), então a série a1 1 1 1
− = + +···+ . (1)
a0 r1 r2 rn

Assumindo que esta propriedade dos polinômios
∑ an continua valendo para séries de potências e aplicando à
n =1
função f ( x ), concluímos que
é convergente se, e somente se, a integral imprópria
 ∞ 1 1 1 1 1
= 2+ 2+ 2+ +···
f ( x ) dx 6 π 4π 9π 16π 2
1
e multiplicando ambos os lados desta equação por π 2
é convergente.
obtemos
Somente em 1735, mais de 90 anos após o lançamento
da questão, é que Leonhard Euler apresentou uma solu- π2 1 1 1 1
= 2 + 2 + 2 + 2 +···
ção aceita na época que surpreendeu a todos devido a 6 1 2 3 4
sua originalidade (Szpiro, 2008). O resultado obtido por Euler está correto e surpre-
endeu a todos, pois envolvia π como resposta de uma
3.2 A Prova de Euler série que aparentemente não estava relacionada com cir-
cunferências ou trigonometria. O próprio Euler, devido
Na solução apresentada por Euler (1740), inicialmente to-
a este fato, relutou em apresentar a prova por um breve
mamos a série de Maclaurin da função seno (Guidorizzi,
tempo (Szpiro, 2008).
2003)
x3 x5 x7 Assim que Johann Bernoulli soube do triunfo de
sen x = x − + − +··· Euler, escreveu (Boyer, 2003): “E assim está satisfeito o
3! 5! 7!
ardente desejo de meu irmão que, percebendo que a in-
Dividindo ambos os lados desta equação por x
vestigação da soma era mais difícil do que qualquer um
sen x x2 x4 x6 teria imaginado, abertamente confessou que todo seu
= 1− + − +··· zelo acabara em fracasso. Quem dera que meu irmão
x 3! 5! 7!
√ estivesse vivo agora.”
e substituindo x por x obtemos No entanto, apesar da resposta estar correta e da be-
√ líssima demonstração, existem alguns passos efetuados
sen x x x2 x3
√ = 1− + − +··· por ele que não estavam bem explicados.
x 3! 5! 7!

Seja então a função 3.3 A invalidade da prova de Euler


√ O problema com a prova de Euler é a utilização da
sen x
f (x) = √ . propriedade dos polinômios (1) em uma séries de potên-
x
cias, o que nem sempre é válido. Basta observarmos a
Os zeros desta função são π 2 , 4π 2 , 9π 2 , 16π 2 , . . . identidade
Já era conhecido na época de Euler que todo polinô- 1
mio = 1 + x + x2 + x3 + . . .
1−x
p ( x ) = x n + a n −1 x n −1 + . . . + a 2 x 2 + a 1 x + a 0 válida para todo x ∈ (−1, 1), e a função

com raízes r1 , r2 , . . . , rn pode ser escrito como um pro- 1 1


g( x ) = − .
duto envolvendo suas raízes 2 1−x
( x − r1 )( x − r2 )( x − r3 ) . . . ( x − rn ) = É fácil perceber que o único zero da função g( x ) é
x n + a n −1 x n −1 + . . . + a 2 x 2 + a 1 x + a 0 r1 = −1. Reescrevendo esta função temos

de onde obtemos 1
g( x ) = − − x − x2 − x3 − . . .
2
a0 = (−1)n r1 r2 . . . rn
a1 = (−1)n−1 r2 r3 . . . rn + (−1)n−1 r1 r3 . . . rn Note que a região de convergência da série é dife-
+ . . . + (−1)n−1 r1 r2 . . . rn−1 rente do domínio da função e que r1 não pertence à
região de convergência da série. Mas, assumindo que a
e dividindo a1 por a0 , obtemos propriedade (1) continua valendo para esta série, temos
a1 1 1 1 −1 1
= − − −···− , − = ,
a0 r1 r2 rn −1/2 −1
348 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
7 Autores: O problema que tornou Euler famoso

ou seja 1 = 2, o que deixava a prova de Euler inválida. consideramos 0 < x < π/2 e n ímpar inteiro positivo.
No ano de 1885, o matemático alemão Karl Theodor Dividimos os dois lados da igualdade por (sen x )n obte-
Wilhelm Weierstrass (1815 - 1897) provou um teorema mos
atualmente denominado Teorema da Fatoração de Wei-
erstrass. Neste teorema ele afirma (Knopp, 1996): cos(nx ) + i sen(nx ) (cos x + i sen x )n
=
Toda função analítica (aquelas que podem ser repre- (sen x )n (sen x )n
sentadas por uma série de potências) pode ser expressa  n
por um produto envolvendo suas raízes. cos x + i sen x (2)
=
Realmente, a função sen x

sen x = (cot x + i )n .
f (x) = √
x

é uma função analítica e pode ser representada por uma Em seguida desenvolvemos o binômio
série de potências em todo seu domínio, passo justi-
ficado pelo Teorema da Fatoração de Weierstrass. O (cot x + i )n
problema é que a resolução de Euler é anterior a este
   
teorema. A resolução de Euler é de 1735, ou seja, para n 0 n n 1 n −1
= i cot x + i cot x+...+
uma das passagens de sua resolução não havia justifica- 0 1
tiva por aproximadamente 150 anos. Foi neste período    
que outros matemáticos, ao mesmo tempo em que aplau- n n −1 n−(n−1) n n n−n
i cot x+ i cot x
diam o resultado obtido, chamavam a atenção para falta n−1 n
de rigor desta passagem. Muitos matemáticos, também    
brilhantes, conseguiram soluções contendo apenas pas- n n
= n
cot x + i cotn−1 x + . . . +
sagens válidas para o problema da Basileia. O trabalho 0 1
destes, com certeza de grande valia para a Matemática,    
foi de certa forma facilitado, uma vez que já conheciam n n −1 1 n n 0
i cot x + i cot x
o resultado numérico do problema. n−1 n
O Teorema da Fatoração de Weierstrass dificilmente é    
apresentado em livros de cálculo para iniciantes devido n n
= cotn x + i cotn−1 x + . . . +
sua complexidade. Apresentar a prova de Euler sem 0 1
mencionar o Teorema de Weierstrass incorre em falta de    
n n n
rigor matemático, invalidando a prova (Simmons, 1987). in−1 cot x + i
É por isto que autores de tais livros não consideram a n−1 n
prova de Euler válida neste nível.
como n é ímpar, n − 1 é par, portanto
   
4 Provas rigorosas do problema da n n
= n
cot x + i cotn−1 x + . . . +
Basileia 0 1
   
n n −1 n n
Após Euler chegar a resposta do problema da Basileia cot x (−1) 2 + i
muitos outros matemáticos também apresentaram suas n−1 n
resoluções (Giesy, 1972). Dentre as provas para o pro-    
n n
blema da Basileia estão algumas bem elementares e ou- = n
cot x − cotn−2 x + . . . +
0 2
tras um tanto quanto complexas. Neste capítulo vamos
   (3)
apresentar algumas de diferentes níveis.
n n −1
cot x (−1) 2
n−1
4.1 A prova de Cauchy    
n n
A primeira resolução que apresentaremos é a do mate- +i cotn−1 x − cotn−3 x + . . . +
1 3
mático francês Augustin-Louis Cauchy (1789-1857). Esta
prova se destaca por utilizar apenas conhecimentos de   
n n −1
Matemática Elementar. cot0 x (−1) 2 .
n
Inicialmente tomamos a fórmula de De Moivre

(cos x + i sen x )n = cos(nx ) + i sen(nx ) Como (2) e (3) são iguais, possuem a mesma parte
Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 349
Ciência e Natura 8

imaginária, com isto substituir qualquer xr no primeiro membro de (4) temos


 

sen (2m + 1)
sen[(2m + 1) x ] 2m + 1
sen(nx ) 2m+1
=  2m+1
(sen x ) rπ
(sen x )n sen
2m + 1
   
n n
= cotn−1 x − cotn−3 x + . . . + sen(rπ )
1 3 =  2m+1

    sen
n n −3 n n −1 2m + 1
cot2 x (−1) 2 + cot0 x (−1) 2 .
n−2 n
0
=  2m+1 = 0.

sen
2m + 1
Agora, já que n é ímpar e inteiro positivo, podemos
escrevê-lo como 2m + 1 para qual quer m inteiro positivo. Sendo assim todos os xr são raízes da equação (4).
   
2m + 1 2m 2m + 1
0= cot xr − cot2m−2 xr + . . . +
1 3
sen[(2m + 1) x ]
   
(sen x )2m+1 2m + 1 2
cot xr (−1) m −1
+
2m + 1
cot0 xr (−1)m .
  2m − 1 2m + 1
2m + 1
= cot2m+1−1 x − Para facilitar a compreensão e a manipulação da
1
equação nos passos seguintes, tomamos tr = cotg 2 xr ,
  de onde temos
2m + 1
cot2m+1−3 x + . . . +    
3 2m + 1 m 2m + 1 m−1
0= tr − tr +...+
  1 3
2m + 1 2m+1−3
cot2 x (−1) 2    
2m + 1 − 2 2m + 1 1 2m + 1 0
tr (−1)m−1 + t (−1)m .
  2m − 1 2m + 1 r
2m + 1 2m+1−1
+ cot0 x (−1) 2 (4) Portanto todos os tr são raízes do polinômio
2m + 1
   
  2m + 1 m 2m + 1 m−1
2m + 1 P(t) = t − t +...+
= cot2m x − 1 3
1
   
  2m + 1 1 2m + 1 0
2m + 1 tr (−1)m−1 + t (−1)m .
cot2m−2 x . . . 2m − 1 2m + 1 r
3
Fazendo uso da fórmula de Viète chegamos em
   
2m + 1 2m + 1
+ cot2 x (−1)m−1 +
2m − 1 −
3 
t1 + t2 + t3 + ... + tm = − 
  2m + 1
2m + 1
cot0 x (−1)m . 1
2m + 1
(2m + 1)(2m)(2m − 1)
= 6
2m + 1
Nesta equação x é a incógnita, então tomamos
(2m)(2m − 1)
=
6

xr = , e voltando a substituir tr por cot 2 xr obtemos
2m + 1
cot2 x1 + cot2 x2 + cot2 x3 + ... + cot2 xm

com r = 1, 2, 3,..., m, assim são definidos m valores xr (5)


(2m)(2m − 1)
que respeitam a condição inicial 0 < x < π/2. Ao = .
6
350 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
9 Autores: O problema que tornou Euler famoso

Em seguida lembramos que cotg2 x = csc2 x − 1 fa- ou ainda


zendo então π 2 (2m) (2m − 1)
<
6 (2m + 1) (2m + 1)
csc2 x1 − 1 + csc2 x2 − 1 + csc2 x3 − 1 + ... + csc2 xm − 1
1 1 1
(2m)(2m − 1) 2
+ 2 + ... + 2 <
= 1 2 m
6
obtemos π 2 (2m) (2m + 2)
.
6 (2m + 1) (2m + 1)
csc2 x1 + csc2 x2 + csc2 x3 + ... + csc2 xm
Agora fazendo m tendendo ao infinito chegamos na
(2m)(2m − 1) resposta que Euler obteve pois
= +m (6)
6
(2m) (2m − 1) (2m + 2)
lim = lim = lim = 1.
(2m)(2m + 2) m→∞ (2m + 1) m → ∞ (2m + 1) m → ∞ (2m + 1)
= .
6
Perceba que esta última passagem utiliza um resul-
Lembramos também que é válida a inequação (Gui-
tado mais avançado, porém intuitivo, conhecido como
dorizzi, 2003)
Teorema do Confronto (Guidorizzi, 2003):
1 Se f ( x ) ≤ g( x ) ≤ h( x ) e lim f ( x ) = L = lim h( x ),
cot2 x < < csc2 x x→ p x→ p
x2
então lim g( x ) = L.
portanto x→ p
Nas demais passagens, a prova de Cauchy utiliza
cot2 x1 + cot2 x2 + ... + cot2 xm < apenas conhecimentos de polinômios, trigonometria e
números complexos, conteúdos do currículo nacional
1 1 1 do ensino médio. Sendo assim, esta é uma das provas
2
+ 2 + ... + 2 <
x1 x2 x m válidas mais simples para o problema.
Outras formas de resolver o problema da Basileia
csc2 x1 + csc2 x2 + ... + csc2 xm foram apresentadas, geralmente associadas à Matemá-
rπ tica Avançada. Vamos agora apresentar a resolução que
utilizando (5), (6) e substituindo xr por obtemos utiliza séries de Fourier.
2m + 1
(2m)(2m − 1)
6
< 4.2 A prova de Fourier
1 1 1
Jean-Baptiste Joseph Fourier (1766-1830) nasceu na Fran-
 2 +  2 + ... + 
mπ 2 = ça (Eves, 2004) onde trabalhou na Escola Politécnica de
1π 2π
2m + 1 2m + 1 2m + 1 Paris e foi secretário da Academia de Ciências da França.
Por ser amigo e confidente de Napoleão (Zill e Cullen,
 2  2  2 2001) participou de sua campanha de “cilivização” do
2m + 1 2m + 1 2m + 1
+ + ... + = Egito, onde chegou a ser indicado Governador do Baixo
1π 2π mπ
Egito.
(2m + 1)2 (2m + 1)2 (2m + 1)2 Após a campanha retornou à França onde conciliou
+ + ... + < trabalhos na administração pública e o estudo do calor.
(1π ) 2 (2π ) 2 (mπ )2
Em 1822 publicou sua obra prima, Théorie Analytique de la
(2m)(2m + 2) Chaleur, (Teoria Analítica do Calor) que influenciou toda
6 a Física-Matemática Moderna (Eves, 2004). Nesta obra
Fourier aprofundou os estudos realizados por Daniel
π2 Bernoulli e Leonhard Euler sobre Séries Trigonométri-
e multiplicamos tudo por
(2m + 1)2 cas. A partir de então devido a suas vastas aplicações
(2m)(2m − 1) π2 principalmente na física, tais séries foram chamadas de
< séries de Fourier.
6 (2m + 1)2
A série de Fourier de uma função f seccionalmente
1 1 1 diferenciável e de período 2π é dada por (Figueiredo,
+ 2 + ... + 2 < 2009):
12 2 m

(2m)(2m + 2) π2 a0
f (x) = + ∑ ( an cos(nx ) + bn sen(nx ))
6 (2m + 1)2 2 n =1
Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 351
Ciência e Natura 10

onde  π
1
a0 = f ( x )dx
π −π

1
 π a0
an = f ( x )cos(nx )dx f (x) = + ∑ ( an cos(nx ) + bn sen(nx ))
π 2 n =1
−π
 π  
1 π2 ∞
4
bn = f ( x )sen(nx )dx x2 = +∑ (−1)n · cos(nx )
π −π 3 n =1 n2
A série converge para a função em todos os pontos
de continuidade da função e converge para a média dos
limites laterais nos pontos de descontinuidade.
Para resolver o problema da Basileia utilizando séries Pela igualdade obtida acima, e tomando x = π
de Fourier tomamos f ( x ) = x2 no intervalo (−π, π ). ocorre que

∞  
π2 4
π2 = +∑ (−1)n · cos(nπ )
3 n =1 n2

∞  
π2 1
π2 − = 4· ∑ (−1)n · (−1)n
3 n =1 n2

∞  
2π 2 1
3
= 4· ∑ n2
n =1

∞  
2π 2 1 1
Figura 2: f ( x ) = x2 , −π < x < π e f ( x + 2π ) = f ( x )
3
·
4
= ∑ n2
n =1
Basta agora determinarmos os coeficientes:
π2 1 1 1
 = + 2 + 2 + ...
1 π 1  x3 π 2π 2 6 12 2 3
a0 = x2 dx =  =
π −π π 3 −π 3
Para calcular an , utilizamos integração por partes
duas vezes:
 π
1
an = x2 cos(nx )dx 4.3 A prova de Apostol
π −π
 π  π 
1 2 sen( nx )  sen(nx )
= x  − 2x dx Outra resolução deste problema utiliza integrais duplas
π n −π −π n
e é atribuída a Apostol (1983).
 π
1 x2 sen(nx ) 2xcos(nx ) 2sen(nx ) Inicialmente analisaremos a integral
= + −
π n n2 n3 −π

Como n é um número natural, temos sen(nπ ) = 0 e  1 1


1
cos(nπ ) = (−1)n , portanto dx dy.
0 0 1 − xy
1 4π 4
an = 2
(−1)n = 2 (−1)n
πn n
Para calcular bn , observamos que x2 sen(nx ) é uma Como | xy| < 1, exceto quando ( x,y) = (1,1), e to-
função ímpar e os limites de integração são simétricos, mando a série geométrica de razão xy e primeiro termo
logo: 1, podemos afirmar que

1 π 2
bn = x sen(nx )dx = 0
π −π

Definidos os coeficientes já podemos escrever a fun- 1
ção como uma série de Fourier ∑ (xy)n = 1 − xy
n =0
352 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
11 Autores: O problema que tornou Euler famoso

portanto
 1 1  1 1 ∞
1
0 0 1 − xy
dx dy =
0 0 n =0
∑ (xy)n dx dy
∞  1 1
= ∑ ( xy)n dx dy
n =0 0 0

∞  1
  1

n n
= ∑ 0
x dx
0
y dy
n =0

∞ ∞
1 1 1
= ∑ n + 1
·
n + 1
= ∑
( n + 1)2
n =0 n =0

(a) Plano xy
1 1 1
= + 2 + 2 +...
12 2 3

1
= ∑ 2
.
n =1 n

Em seguida calcularemos o valor numérico da inte-


gral. Para calcular
 1 1
1
I= dx dy,
0 0 1 − xy

vamos rotacionar os eixos coordenados no sentido horá-


rio em torno da origem de um ângulo de π/4 radianos
fazendo a mudança de variável
u−v u+v
x= √ ey= √ , (b) Plano uv
2 2
Figura 3: Região de integração
de modo que

2 − u2 + v2 e
1 − xy = .
2  √2− u √
dv 1 2−u
A nova região de integração no plano = √ arctan √ ,
√ uv é um qua- 0 2 − u2 + v2 2 − u2 2 − u2
drado com vértices opostos em (0,0) e ( 2,0), conforme
figura 3. logo
Fazendo uso da simetria desse quadrado em torno  √2/2
u du
do eixo u, temos I = 4 arctan √ √
0 2 − u2 2 − u2
 √2/2  u 
dv √
 √2
I = 4 du+ 2−u du
0 0 2 − u2 + v2 +4 √ arctan √ √ .
2/2 2−u 2 2 − u2
 √2
 √ 
2− u dv Para calcular
4 √ du.
2/2 0 2 − u2 + v2  √2/2
u du
I1 = 4 arctan √ √
Como 0 2 − u2 2 − u2
 x
dt 1 x
= arctan , seja √
0 a +t
2 2 a a
u= 2sen θ,
temos
de forma que
 u
dv 1 u √ 
= √ arctan √ du = 2 cos θdθ = 2 − u2 dθ
0 2−u +v
2 2
2 − u2 2 − u2
Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 353
Ciência e Natura 12

e  5 Curiosidades do problema da Ba-


tan θ = u/ 2 − u2 .
sileia
Assim
 π/6  π 2 Não poderíamos finalizar este trabalho sem apresentar
I1 = 4 θ dθ = 2 . a representação geométrica e uma aplicação da série.
0 6 Estas duas curiosidades mostram que, apesar de antiga,
Para calcular esta série ainda é um tema atual.

 √2 √
I2 = 4 √ arctan √
2−u

du 5.1 Representação geométrica
2/2 2−u 2 2 − u2
O fato de estarmos trabalhando com uma série de qua-
seja drados, nos faz pensar inicialmente em Teorema de Pitá-
√ goras (Maor, 2007). Tomamos então as duas primeiras
u= 2 cos 2θ,
parcelas da soma e montamos um triângulo retângulo
de forma que de vértices nos pontos A, P1 e P2 , de forma que AP1 = 1,
√ P1 P2 = 1/2 e que o ângulo em p1 seja reto conforme
du = −2 2sen 2θdθ figura 4. Para facilitar a representação fazemos r1 = AP1
√ √ e r2 = AP2 . Com o Teorema de Pitágoras obtemos
= −2 2 1 − cos2 2θdθ  2
2 2 1 1
√ √ r2 = 1 + = 1+ 2.
= −2 2 1 − u2 /2dθ 2 2
√ Marcamos agora o ponto P3 de forma que P2 P3 = 1/3
= −2 2 − u2 dθ 
e que o ângulo AP 2 P3 seja reto. Assim o triângulo AP2 P3
e √ √ é retângulo e considerando AP3 = r3 temos
2−u 2(1 − cos 2θ )  2
√ = √ 2 2 1 1 1
2 − u2 2 − 2 cos2 2θ r3 = r2 + = 1+ 2 + 2.
3 2 3

1 − cos 2θ
=
1 + cos 2θ

2sen2 θ
=
2 cos2 θ

= tan θ.
Assim
 π/6  π 2
I2 = 8 θ dθ = 4 .
0 6

Portanto
 π 2 π2
I = I1 + I2 = 6 = .
6 6
Além das provas aqui apresentadas, existem diver- Figura 4: Teorema de Pitágoras e problema da Basileia
sas outras, cada uma com suas características próprias.
As três provas apresentadas mostram que tal problema Continuando a marcar pontos desta forma, ao mar-
pode ser resolvido tanto utilizando conteúdos de Mate- carmos o ponto Pn , conforme a figura 4 temos um seg-
mática Elementar quanto conteúdos de Cálculo e Aná- mento rn onde vale a seguinte igualdade
lise. 1 1 1
A prova de Apostol é do século XX, a de Fourier é do rn2 = 1 + 2
+ 2 + ... + 2 .
2 3 n
século XIX e do século XVIII temos as provas de Cauchy
e Euler. A prova de cada período traz características da Assim, pelo problema da Basileia é verdade que
Matemática desenvolvida até seu tempo, mostrando que π2
um assunto dentro da Matemática nunca está finalizado. rn2 <
6
354 Gayo e Wilhelm: O problema que tornou Euler famoso.
13 Autores: O problema que tornou Euler famoso

ou ainda os professores desta disciplina. O objetivo não é contar


π
rn < √ . a História da Matemática por meio de uma maçante
6 biografia, ou por meio de fatos pitorescos ocorridos com
Desta forma, continuando com a sequência, teremos a matemáticos, mas sim contar esta história mostrando
certeza que todos os pontos
√ Pn estarão contidos dentro como um assunto surge, se desenvolve e ganha impor-
do círculo de raio π/ 6 e centro em A. tância ao longo do tempo.
Percebemos que os segmentos AP1 , P1 P2 , P2 P3 , ... , Pietro Mengoli era professor universitário de Mate-
Pn Pn+1 , ... formam uma espiral. Realmente, somando a mática na Itália em uma época em que o Cálculo ainda
medida de cada segmento temos a série harmônica não havia sido inventado por Newton e Leibniz, porém
já se estudava a convergência de séries. Provavelmente
1 1 1
1+ + + + ... foi estudando este assunto que Mengoli teve a ideia
2 3 4 de sugerir o problema. Não há evidências de que ele
que pelo fato de ser divergente (Simmons, 1987) gera propôs esta questão com o objetivo de resolver um pro-
uma espiral infinita. Esta espiral por sua vez, se afasta blema aplicado a uma situação real. Este fato mostra
cada vez mais do ponto A, se aproximando cada vez que nem todo conhecimento matemático surge de uma
mais da circunferência sem ultrapassá-la. necessidade prática da humanidade.
Este problema circulou entre os melhores matemá-
ticos da época, sua convergência foi provada de uma
5.2 Probabilidade
forma tão simples que hoje em dia um aluno do ensino
Agora vamos mostrar uma aplicação do problema da médio compreenderia sem muito esforço. No entanto,
Basileia. Esta série será utilizada para calcular a probabi- na busca do valor exato da soma infinita, muitos mate-
lidade de dois números serem primos entre si, conforme máticos se desdobraram e muitas ideias surgiram, uma
(Abrams e Paris, 1992). Mais precisamente, calcular a delas foi o teste da integral para séries convergentes. Isto
probabilidade de dois números menores que n serem mostra mais uma curiosidade da Matemática por meio
primos entre si, quando n tende ao infinito. de sua história: ao se procurar uma coisa, encontra-se
Seja g o máximo divisor comum de dois inteiros outra.
positivos a e b, isto é g = ( a,b) e seja p a probabilidade de Então chegou a vez de Euler, ele produziu tanto que
que g = 1. Primeiro vamos mostrar que a probabilidade alcançou notoriedade por muitas outras contribuições à
de que g = n para n = 1, 2, 3, . . . é p/n2 . Matemática, mas foi resolvendo o problema da Basileia
A probabilidade de que n divide tanto a quanto b é que se destacou pela primeira vez. Sua prova tinha um
1/n2 . Para que, além de dividir a e b, n seja o máximo di- equívoco, o que não tirava sua beleza haja visto que
visor comum entre a e b, é necessário que ( a/n, b/n) = 1, o resultado estava certo. Neste ponto a história nos
o que ocorre com probabilidade p. Portanto a probabili- mostra que o raciocínio, a criatividade e o conhecimento
dade de que g = n é p/n2 . são tão importantes na Matemática quanto seu rigor e
Como a soma das probabilidades de que g = n para formalismo.
n = 1, 2, 3, . . . deve ser igual a 1, temos Na verdade o equívoco ocorre na utilização de uma
propriedade dos polinômios em uma série de potências,

p que como vimos, caso Euler quisesse justificá-la correta-
∑ n 2
= 1.
n =1 mente hoje seria perfeitamente possível com o Teorema
de Weierstrass. Aqui percebemos que no desenvolvi-
Isolando p, obtemos mento da Matemática, a intuição e o pensamento vem a
1 1 6 frente do formalismo e dos teoremas. Percebemos ainda
p= ∞ =  2  = 2. que a Matemática não se desenvolve linearmente, tal
1 π π
∑ n 2 6
como está em um livro didático, sua evolução é dinâ-
n =1 mica, partes que compõem um mesmo tema surgiram e
Como uma consequência interessante deste resul- se desenvolveram em tempos, lugares e com finalidades
tado, a probabilidade de uma fração gerada aleatoria- diferentes.
mente ser irredutível é 6/π 2 ∼ Enquanto não surgia o Teorema de Weierstrass, mui-
= 60,8% (Kalman, 1993).
tos matemáticos se mobilizaram para apresentarem suas
provas para o problema. Diversas provas surgiram, to-
6 Conclusões das com suas peculiaridades, isso nos mostra que apesar
da Matemática ser exata, um problema pode ser resol-
A ideia deste trabalho é mostrar, através do problema vido de diversas maneiras, basta observarmos as provas
que tornou Leonhard Euler famoso, a interessante fer- apresentadas no texto, que com certeza não são as únicas
ramenta didática que é a História da Matemática para (Giesy, 1972).
Ciência e Natura, v. 37 Ed. Especial PROFMAT, 2015, p. 342-355 355
Ciência e Natura 14

A representação geométrica da série mostra que as Figueiredo, D. G. d., 2009. Análise de Fourier e Equações
áreas da Matemática se relacionam. Estas relações tam- Diferenciais Parciais. Projeto Euclides, Rio de Janeiro.
bém podem ser percebidas na aplicação encontrada para
a série. Perceba que nosso problema está ligado ao Garbi, G. G., 1997. O Romance das Equações Algébricas.
Teorema de Pitágoras, limites, circunferências, probabi- Makron Books, São Paulo.
lidade, frações e divisibilidade. Isto nos leva a refletir Giesy, D. P., 1972. Still another elementary proof that
que a aplicação de um conhecimento pode vir através ∑ 1/k2 = π 2 /6. Mathematics Magazine 45.
da relação entre conteúdos.
Quando se passa no quadro para os alunos apenas Guidorizzi, H. L., 2003. Um Curso de Cálculo Vol. I. LTC,
um exemplo e uma lista de exercícios semelhantes, esta- Rio de Janeiro.
mos privando-os do prazeroso e necessário exercício de
Hefez, A., 2011. Elementos de Aritmética. SBM, Rio de
intuir e conjecturar sobre um assunto. Na verdade este
Janeiro.
deveria ser o principal objetivo das aulas de Matemática.
Na História da Matemática, os grandes matemáticos se Kalman, D., 1993. Six ways to sum a series. The College
tornaram grandes por terem intuído, conjecturado, es- Mathematics Journal 24.
tudado e resolvido e não apenas decorando fórmulas e
repetido exercícios já resolvidos. Knopp, K., 1996. Theory of Functions, Part II. Dover,
Estas considerações nos levam a concluir que a Histó- New York.
ria da Matemática é de extrema importância para a visão
Lima, E. L., Carvalho, P. C. P., Wagner, E., Morgado,
que o professor tem da Matemática, o que vai refletir no
A. C., 2006. A Matemática do Ensino Médio - Volume
interesse dos alunos pela disciplina.
2. SBM, Rio de Janeiro.

Maor, E., 2007. The Pythagorean Theorem: A 4,000-Year


Referências History. Princeton University Press, Princeton.
Abrams, A. D., Paris, M. J., 1992. The probability that Simmons, G. F., 1987. Cálculo com Geometria Analítica
( a,b) = 1. College Mathematics Journal 23. Vol. II. McGraw-Hill, São Paulo.
Apostol, T. M., 1983. A proof that Euler missed: evalua- Simmons, J. C., 2002. Os 100 maiores cientistas da His-
ting ζ (2) the easy way. The Mathematical Intelligencer tória: Uma classificação dos cientistas mais influentes
5. do passado e do presente. DIFEL, Rio de Janeiro.
Ávila, G., 2011. Várias faces de Matemática. Blucher, São Stewart, J., 2011. Cálculo Vol. II. Cengage Learning, São
Paulo. Paulo.
Baumgart, J. K., 1992. História da Álgebra - Tópicos de Szpiro, G. G., 2008. A vida secreta dos números. DIFEL,
História da Matemática para uso em sala de aula; v. 4. Rio de Janeiro.
Atual, São Paulo.
Zill, D. G., Cullen, M. R., 2001. Equações Diferenciais
Boyer, C. B., 1992. História do Cálculo - Tópicos de Vol. II. Makron Books Ltda, São Paulo.
História da Matemática para uso em sala de aula; v. 6.
Atual, São Paulo.

Boyer, C. B., 2003. História da Matemática. Editora Ed-


gard Blücher, São Paulo.

Cajori, F., 2007. Uma História da Matemática. Editora


Ciência Moderna Ltda, Rio de Janeiro.

Euler, L., 1740. De Summis Serierum Reciprocarum.


Commentarii Academiae Scientiarum Petropolitanae
Opera Omnia.

Eves, H., 2004. Introdução à História da Matemática.


Editora da UNICAMP, Campinas.

Eves, H. W., 1992. História da Geometria - Tópicos de


História da Matemática para uso em sala de aula; v. 1.
Atual, São Paulo.

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