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Paulo - + saúde - Gilberto Vasconcellos: A medicina descolonizada do doutor Silva Mello - 16/04/2000
+ saúde
Entre todos os médicos escritores da cultura brasileira, o
que singulariza Silva Mello é que exerceu a literatura a
partir de suas observações clínicas
A medicina descolonizada do doutor
Silva Mello
por Gilberto Vasconcellos
Menino da roça
Estréia em meados da década de 30 com um livro intitulado
"Problemas do Ensino Médico e de Educação". O ensino do
saber médico permeia todos os seus livros direta ou
indiretamente, um excepcional "médico prático" que se
ocupou do aspecto epistemológico da medicina e sua
influência na vida social e cultural. Um gigante do
humanismo. Entre todos os médicos escritores que têm
aparecido na cultura brasileira -de Afrânio Peixoto a João
Guimarães Rosa-, o que singulariza Silva Mello é que ele
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Vantagem sexual
Roquete Pinto alude à evocação memorialística feita por
Silva Mello: "Quando estudante, e depois jovem médico em
hospitais europeus, surpreendi-me muitas vezes vendo a
vantagem que, relativamente aos órgãos sexuais, levava um
pequeno homem do mediterrâneo a um gigante escandinavo.
Depois, soube que a diferença não era só anatômica, mas
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Gene tropical
Interessante reparar que a descolonização do saber médico
mantém um caráter simbiótico com a sua biografia, pois ele
assinala que, sexto filho de uma família de nove irmãos,
filho de pai e avô analfabetos, foi o "gene tropical" que o
dominou biologicamente: "Devo repetir que me julgo um
autêntico produto tropical, tão autêntico quanto é possível
sê-lo ainda dentro das normas da nossa civilização".
Em seu livro de 1958, "Estudo sobre o Negro", Silva Mello
levanta a hipótese de que Beethoven e Goethe, gênios da
humanidade, eram do tipo essencialmente tropical, com
pigmentação acentuada e de tipo físico negróide.
Uma das cabeças mais livres que este país já teve, o médico
Silva Mello defende a tese, provocante e logicamente
irrefutável, de que o primeiro homem adâmico criado por
Deus era um ser tropical. O maravilhoso jardim deveria ter
sido de clima quente, pois Adão e Eva viveram pelados no
paraíso terrestre e só passaram a usar roupas quando
cometeram o pecado original.
Em Silva Mello a noção de trópico é essencialmente
geográfica, determinada por dois círculos terrestres: ao norte,
câncer, e ao sul, capricórnio. E se o deserto do Saara já
esteve coberto por águas dos oceanos? E se a Suíça teve
clima tropical? A idade da terra e a do homem, eis o objeto
de todos os seus livros, mostrando quão grave erro na
antropologia é o de admitir que as migrações humanas
desceram das regiões frias para as quentes. Em seu
consultório médico, constatou várias vezes que os homens
eunucos nunca se tornam carecas.
Sempre atento à realidade física dos trópicos úmidos,
condenou o moderno abandono da botânica pela medicina
química, porém não embarcou na viagem psicodélica, tipo
"cientista maluco", místico, esotérico, macrobiótico. Ópio.
Casca de quina. Digitalis. De olho na riqueza calórica e
energética dos vegetais, ele sugere que a descoberta da
América foi devida menos à procura de especiarias do que à
de plantas medicinais. Aos niilistas crônicos e profissionais,
manda um recado engraçado, à Oswald de Andrade: muitas
vezes o indivíduo é pessimista porque não foi amamentado
no seio da mãe, mas sim com mamadeira! Impossível não
evocar aqui o exemplo do badalado filósofo Nietzsche,
dispéptico, estômago sensível, atormentado com
permanentes dietas, sem provar do vinho e da cerveja,
nenhum álcool, tampouco um bom charutão depois do rango.
Um infeliz. De resto, Câmara Cascudo, o Brillat-Savarin
potiguar, assegurava que uma boa feijoada é mais importante
do que a posse da lua. Discípulo de Silva Mello na crítica
literária, o polígrafo belo-horizontino Eduardo Frieiro, outro
brasileiro injustamente esquecido, autor do clássico "Feijão,
Angu e Couve", percebeu a importância transcendental da
boca: o mal é quando o paladar já não distingue os sabores.
"Toda a natureza é uma conjugação do verbo comer no ativo
e no passivo. Comer e ser comido, eis a lei da vida. Panfagia
universal."
Resgate no mar
Ao dizer-se ateu, relata sua conduta calma, serena,
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