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11/05/2019 Folha de S.

Paulo - + saúde - Gilberto Vasconcellos: A medicina descolonizada do doutor Silva Mello - 16/04/2000

São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000

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+ saúde
Entre todos os médicos escritores da cultura brasileira, o
que singulariza Silva Mello é que exerceu a literatura a
partir de suas observações clínicas
A medicina descolonizada do doutor
Silva Mello
por Gilberto Vasconcellos

Juiz-forano nato, formou-se médico no ano de 1914 em


Berlim, Alemanha, exerceu clínica na Suíça e no Rio de
Janeiro, onde foi professor na Universidade Federal, tido
pelo seu amigo poeta Carlos Drummond de Andrade como a
"imagem da sabedoria". O doutor Antônio da Silva Mello
escreveu dezenas de livros notáveis, versando assuntos os
mais variados, a exemplo das peculiaridades do Nordeste, da
condição social do negro, da "filosofia do parto", da
alimentação, da psicanálise, da superstição, da religião, da
geografia dos trópicos, da hegemonia norte-americana
depois das duas guerras mundiais. Foi traduzido em inglês e
alemão durante as décadas de 50 e 60. Morreu na década de
70, enterrado no Rio de Janeiro. Provavelmente não existirá
outro na cultura brasileira em que o médico e o escritor
estejam orgânica e indissoluvelmente ligados. O clínico é um
pensador, e vice-versa. Escreveu livros exclusivamente sobre
assuntos científicos, focalizando questões de medicina, de
saúde e de higiene, diferenciando-se nesse aspecto do
também médico e mineiro Pedro Nava, cuja atividade
literária não teve como matéria-prima os assuntos
relacionados à medicina. É por isso que considero Silva
Mello o pensador brasileiro da medicina.

Menino da roça
Estréia em meados da década de 30 com um livro intitulado
"Problemas do Ensino Médico e de Educação". O ensino do
saber médico permeia todos os seus livros direta ou
indiretamente, um excepcional "médico prático" que se
ocupou do aspecto epistemológico da medicina e sua
influência na vida social e cultural. Um gigante do
humanismo. Entre todos os médicos escritores que têm
aparecido na cultura brasileira -de Afrânio Peixoto a João
Guimarães Rosa-, o que singulariza Silva Mello é que ele

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exerceu a atividade literária a partir de suas observações e


experiências clínicas, sempre por dentro da bibliografia
médica publicada nos grandes centros do mundo, Alemanha,
Estados Unidos, França, Espanha, Suíça, Inglaterra, Itália,
México, Argentina, União Soviética. Essa preocupação
científica de atualização bibliográfica está vinculada à
circunstância de sua biografia, que lhe permitiu aprender
muitos idiomas estrangeiros, tendo conhecido e vivido em
vários países da Europa. Curiosamente se autodefinia como
um "menino da roça", apaixonado pelas camadas da
população menos cultas e afastadas dos centros citadinos. É
visível seu interesse em conhecer e analisar os aspectos
regionais particulares da cultura brasileira, inteirando-se
profundamente das questões folclóricas e etnológicas,
citando amiúde sua vivência familiar na Zona da Mata
mineira, opinando a favor do coentro, do fubá, da farinha de
mandioca, da rapadura, do berço, da cadeira de balanço e da
rede de dormir. Presunções civilizadas Insurgindo-se contra
as "presunções do homem civilizado", criticando
severamente a industrialização moderna do açúcar refinado,
dos pães de padaria, do arroz descorticado, do liquidificador
e da privada com água dentro, que respiga até o ânus no
momento da defecação. Em suas viagens pelos Estados
Unidos, ficou apavorado com o desaparecimento puritano do
bidê nos quartos dos hotéis e a extinção do alfaiate, assim
como da cadeira de balanço. Através de uma abordagem
farmacológica, denunciou a Coca-Cola, refrigerante
venenoso cujo segredo comercial é devido ao seu alto teor de
cafeína, ao qual as crianças são muito sensíveis.
Amigo e médico de Assis Chateaubriand, a quem dedicou
um livro, companheiro de viagem de Gilberto Freyre em
torno da tropicologia, recebido por Câmara Cascudo no Rio
Grande do Norte, prefaciado por Roquete Pinto, Carlos
Heitor Cony e o folclorista marxista Edison Carneiro.
Considera o pícnico Assis Chateaubriand "um Siegfried
wagneriano" e Cascudo um "gentleman". Quanto aos corpos
grandes e pequenos, confessa: "Eu próprio nunca tive muito
entusiasmo pelas mulheres grandes, aquele tipo chamado
literariamente de Valquíria, cheio de carnes e gorduras,
talvez lindo na primeira mocidade, mas que envelhece e
desmorona precocemente". A altura do corpo não representa
prova de melhoria do organismo. Os gênios frequentemente
são pessoas de pequena estatura. É engano supor que os tipos
grandalhões, repletos de carne e gordura, suecos,
noruegueses, escandinavos, alemães, sejam dotados de
cérebro mais desenvolvido. Segundo Silva Mello, o aparelho
sexual deles é de pequenas dimensões (microgenitalismo) e
também é pequeno o interesse que eles têm portal função.
"Isso não é desconhecido", escreve Silva Mello, "e são as
mulheres que o sabem melhor".

Vantagem sexual
Roquete Pinto alude à evocação memorialística feita por
Silva Mello: "Quando estudante, e depois jovem médico em
hospitais europeus, surpreendi-me muitas vezes vendo a
vantagem que, relativamente aos órgãos sexuais, levava um
pequeno homem do mediterrâneo a um gigante escandinavo.
Depois, soube que a diferença não era só anatômica, mas
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principalmente funcional. Também no Instituto Anatômico


havia uma relação de membros viris de negros africanos, em
ereção devido à substância injetada para a conservação, que
eram objeto de admiração e inveja por parte de meus colegas
alemães. Os próprios latinos e outros povos do sul da
Europa, de pele morena ou mesmo mais escura, de estatura
não avantajada, parecem gozar as regalias de uma tal
superioridade, que provavelmente deve ter contribuído para
criar a condição excepcional dos nordestinos". Em sua longa
estada pelas cortes européias, privou com alguns dos mais
célebres psicanalistas da primeira geração freudiana, sendo
íntimo amigo de Stekel, hospedando-o no Rio de janeiro
durante a década de 20, trabalhando juntos na condução
clínica de seus pacientes. Em seu livro "As Ilusões da
Psicanálise" ironiza o traumatismo do nascimento, a idéia do
castigo originário como absurdo biológico, defendendo a
necessidade de um verbo analgésico em que a dor não seja
obrigatória no ato do parto. Silva Mello vivia na Alemanha
estudando medicina quando o saber psicanalítico estava
sendo elaborado na Europa, de modo que um dos vetores
fundamentais de sua obra é a presença das teorias de Freud,
ressaltando, porém, o fato de que o médico juiz-forano não
aceitou a hipótese do criador da psicanálise sobre o mal-estar
na cultura. Reconheceu, no entanto, que o homem moderno,
sujeito a placebos e ilusões medicamentosas, é um oxímoro
nervoso no meio de tranquilizantes e alucinógenos.

Confiança nos instintos


Sabendo dos segredos e manhas do movimento psicanalítico
que nascia em Viena, Berlim e Paris, Silva Mello (irritado
com Hitler e Stálin por banirem a psicanálise), lembra que o
Brasil foi um dos primeiros países a aceitar a ciência do
inconsciente. Bastante curioso o fato de Freud ter se
interessado em arrumar uma gramática do português para
aprender a "última flor do Lácio", como poetou Olavo Bilac.
Em seu último livro, "Superioridade do Homem Tropical",
no qual se observam muitas afinidades com a sociologia de
Gilberto Freyre, elabora Antônio da Silva Mello uma crítica
cultural em que aparece a confiança nos instintos, ou seja, a
formulação de que os instintos devem comandar a ciência e a
vida social. Com isso ele se afasta da afirmativa de Freud
segundo a qual a civilização deixaria de existir caso o
homem fizesse tudo aquilo que lhe agrada. Eis o que ele
condenou no criador da psicanálise: o menosprezo dos
instintos. "O homem", escreve Antônio da Silva Mello, "não
é um criminoso que só procura o mal e a destruição. Esse
pensamento é por demais consciente, havendo sido
explorado até como direção filosófica. Mas deve estar
completamente errado, porque o que comanda os instintos é
muito diferente, sendo eles que têm permitido a vida e a
felicidade dos homens e dos animais. São os instintos que
devem ser levados em consideração, devendo ser calcados
sobre eles as exigências da nossa existência". Silva Mello foi
o crítico da ideologia do colonialismo na esfera da medicina,
ideologia essa que calunia o sol, o trópico e o homem
mestiço. Ele negou peremptoriamente a tese equivocada de
que o calor ou o clima quente seja um fator desfavorável à
cultura e ao desenvolvimento da inteligência.
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Gene tropical
Interessante reparar que a descolonização do saber médico
mantém um caráter simbiótico com a sua biografia, pois ele
assinala que, sexto filho de uma família de nove irmãos,
filho de pai e avô analfabetos, foi o "gene tropical" que o
dominou biologicamente: "Devo repetir que me julgo um
autêntico produto tropical, tão autêntico quanto é possível
sê-lo ainda dentro das normas da nossa civilização".
Em seu livro de 1958, "Estudo sobre o Negro", Silva Mello
levanta a hipótese de que Beethoven e Goethe, gênios da
humanidade, eram do tipo essencialmente tropical, com
pigmentação acentuada e de tipo físico negróide.
Uma das cabeças mais livres que este país já teve, o médico
Silva Mello defende a tese, provocante e logicamente
irrefutável, de que o primeiro homem adâmico criado por
Deus era um ser tropical. O maravilhoso jardim deveria ter
sido de clima quente, pois Adão e Eva viveram pelados no
paraíso terrestre e só passaram a usar roupas quando
cometeram o pecado original.
Em Silva Mello a noção de trópico é essencialmente
geográfica, determinada por dois círculos terrestres: ao norte,
câncer, e ao sul, capricórnio. E se o deserto do Saara já
esteve coberto por águas dos oceanos? E se a Suíça teve
clima tropical? A idade da terra e a do homem, eis o objeto
de todos os seus livros, mostrando quão grave erro na
antropologia é o de admitir que as migrações humanas
desceram das regiões frias para as quentes. Em seu
consultório médico, constatou várias vezes que os homens
eunucos nunca se tornam carecas.
Sempre atento à realidade física dos trópicos úmidos,
condenou o moderno abandono da botânica pela medicina
química, porém não embarcou na viagem psicodélica, tipo
"cientista maluco", místico, esotérico, macrobiótico. Ópio.
Casca de quina. Digitalis. De olho na riqueza calórica e
energética dos vegetais, ele sugere que a descoberta da
América foi devida menos à procura de especiarias do que à
de plantas medicinais. Aos niilistas crônicos e profissionais,
manda um recado engraçado, à Oswald de Andrade: muitas
vezes o indivíduo é pessimista porque não foi amamentado
no seio da mãe, mas sim com mamadeira! Impossível não
evocar aqui o exemplo do badalado filósofo Nietzsche,
dispéptico, estômago sensível, atormentado com
permanentes dietas, sem provar do vinho e da cerveja,
nenhum álcool, tampouco um bom charutão depois do rango.
Um infeliz. De resto, Câmara Cascudo, o Brillat-Savarin
potiguar, assegurava que uma boa feijoada é mais importante
do que a posse da lua. Discípulo de Silva Mello na crítica
literária, o polígrafo belo-horizontino Eduardo Frieiro, outro
brasileiro injustamente esquecido, autor do clássico "Feijão,
Angu e Couve", percebeu a importância transcendental da
boca: o mal é quando o paladar já não distingue os sabores.
"Toda a natureza é uma conjugação do verbo comer no ativo
e no passivo. Comer e ser comido, eis a lei da vida. Panfagia
universal."

Resgate no mar
Ao dizer-se ateu, relata sua conduta calma, serena,
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consciente e tranquila diante da própria morte, quando, logo


depois de formado em medicina na Alemanha, voltando ao
Brasil durante a Primeira Guerra, o navio em que se
encontrava a bordo foi torpedeado. Foi salvo por um barco,
depois colocado em um cargueiro de volta ao cais de
Amsterdã. "Achei que era estúpido acabar devorado pelos
peixes, depois de uma vida de extremo labor, de uma
dedicação inexcedível ao estudo. Tive pena dos meus
parentes que me haviam auxiliado e esperavam tudo de
mim." Aí está a bela e plena justificação do talento e da
vocação realizadas por aquele que se tornaria o maior
médico brasileiro e que conseguiu a proeza de descolonizar-
se de corpo e alma.

Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade


Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "As Ruínas do Pós-Real" e "O
Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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