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Entre o pioneirismo e o impasse: a reforma paulista de 1920

Ana Maria Cavaliere


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Partindo das atuais preocupações com a melhoria da qualidade


das escolas brasileiras de educação fundamental, o texto
reexamina a reforma do ensino paulista de 1920, a qual explicitou
o dilema político que atravessaria todo o século XX entre expan-
são e qualidade nos sistemas educacionais. Sua importância his-
tórica tem sido registrada devido a seu pioneirismo na tentativa
de inovar métodos de ensino e de racionalizar procedimentos
administrativos.
Neste trabalho, aponta-se o conflito entre a proposta curricular
da reforma em questão e sua prioridade declarada de alfabetizar
em massa as crianças do estado em um curso primário por ela
reduzido a dois anos de duração e duas horas e meia diárias de
aula. A reforma inaugura de forma tecnicamente justificada a
“solução” da redução do tempo de permanência das crianças na
escola como condição para a ampliação da oferta de vagas, o
que veio a se tornar uma prática generalizada nos sistemas edu-
cacionais de todo o país. São analisadas também as contradi-
ções nela reveladas entre as primeiras apropriações da pedagogia
escolanovista e as tendências à simplificação e empobrecimento
da escola pública brasileira
No momento atual em que a universalização do atendimento
parece configurar um outro patamar a exigir novas soluções
políticas para a obtenção da qualidade educacional, o texto
enfoca retrospectivamente o tipo de solução política utilizada
pela reforma paulista de 1920, destacando seus resultados im-
previstos e indesejados, com vistas a um bom equacionamento
dos desafios ora presentes.

Palavras-chave

Escola fundamental — Políticas educacionais — Jornada escolar –


Reformas do ensino.

Correspondência:
Ana Maria Cavaliere
Rua Delgado de Carvalho, 58/304
20260-280 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail:anacavaliere@yahoo.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 27-44, jan./jun. 2003 27


Between the pioneering spirit and impasse:
the 1920 São Paulo State reform
Ana Maria Cavaliere
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Abstract

Taking as a starting point the current concerns with the improve-


ment of the quality of brazilian primary education schools, the
text re-examines the reform of 1920 in São Paulo State, which
made explicit the political dilemma that would last for the whole
of the 20 th century between the expansion and the quality of
school systems. The historical importance of that reform has been
recognized in view of its pioneering attempts at innovating
teaching methods and rationalizing management procedures.
The conflict is pointed out here between the curriculum proposals
of the reform and its proclaimed priority of achieving widespread
children literacy in the State of São Paulo when the first four years
of primary education had been shortened by the same reform to a
period of two years with two and a half hours daily attendance.
The reform brings about in a technically justifiable way the
“solution” of reducing daily attendance as a condition to increase
places at school. Such measures then became generalized prac-
tices in education systems throughout the country. The present
work also investigates the contradictions evidenced in that reform
between the first assimilations of the New School pedagogy and
the tendency to simplification and impoverishment of the Brazilian
state school.
In the present moment when the universalization of education in
Brazil seems to configure a new level of demand, requiring new
political solutions to achieve high quality in education, the text
focuses in retrospect the kind of political solution employed by
the 1920 reform in São Paulo, highlighting its unanticipated and
undesirable results, in the hope of contributing to a better
resolution of the challenges faced today.

Keywords

Primary school – Educational policies – School daily attendance


– School reforms.
Contact:
Ana Maria Cavaliere
Rua Delgado de Carvalho, 58/304
20260-280 — Rio de Janeiro — RJ
E-mail:anacavaliere@yahoo.com.br

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Dentro do contexto dos estudos sobre ma se esboçou ainda no início daquele século,
tempo e escola julgamos importante buscar, no aos primeiros sinais de que a ampliação dos sis-
processo de formação do sistema escolar bra- temas educacionais nos diversos estados brasilei-
sileiro, os momentos em que se constituiu a ros configurava-se como um fato inexorável.
tendência, que prevaleceu durante toda a se- A preocupação com a qualidade do
gunda metade do século XX, de uma escola trabalho pedagógico realizado nas escolas en-
pública mínima, isto é, freqüentemente com contrava-se pressionada pela necessidade e
cerca de apenas três horas diárias de aula em urgência da quantidade. Nosso modelo econô-
cinco dias semanais. mico-social nunca permitiu um bom equacio-
A escola mínima é, antes de tudo, o namento do problema e transformou em dile-
resultado de uma disposição latente em se as- ma o que poderia ter sido um programa gradual
sociar à necessária massificação da Educação de ampliação da escolarização. Até mesmo
fundamental a redução de seu tempo e de sua Anísio Teixeira, defensor da jornada diária com-
qualidade. O resultado dessa disposição foi o pleta e da educação primária de cunho forma-
atraso do poder público em acompanhar, tan- tivo amplo, foi obrigado a contemporizar, quan-
to nos aspectos infra-estruturais como pedagó- do Secretário de Educação e Cultura do Distrito
gicos, o crescimento da população escolarizada Federal, nos anos 1930, com os três turnos diários
no país, criando-se um quadro de falta de ins- da escola elementar, afirmando:
talações e professores bem como de desarran-
jos provocados pelos altos índices de evasão e O primeiro problema é, pois, o de oferecer
repetência. Quando e como se esboça essa mais educação. Ao administrador compete
tendência de solucionar pela escola mínima as advertir se esse aumento de quantidade se
demandas crescentes e inevitáveis por educação faz com prejuízo substancial da qualidade.
escolar? Que tipo de política foi a ela condu- Desde que tal não se dê, só lhe cabe con-
zindo? Estaremos no limiar de uma mudança ceder o aumento pedido. É o que sucede
em relação a esse quadro? hoje no Rio, com o regime de três turnos
Na busca dessas respostas, revisitamos instalado em menos de um terço de suas
as reformas dos sistemas educacionais esta- escolas elementares. (Teixeira, 1997, p.198)
duais, realizadas na década de 1920 e, entre
elas, a reforma paulista de 1920, que nos trou- No momento presente, dados oficiais
xe diversos elementos pertinentes às questões anunciam o fato de que a maioria das crianças
que hoje nos interessam: primeiramente a ten- brasileiras tem acesso à escola, ainda que nela
são entre qualidade e quantidade sob a qual foi permaneçam, em média, menos de seis anos,
se moldando, em nossa sociedade, o referido abaixo portanto da obrigatoriedade legal, sa-
modelo de escola mínima, tão eficiente na cri- bendo-se ainda que, consideradas as desigual-
ação do valor escola quanto ineficiente na dades sociais e regionais, muitas delas perma-
consecução de suas tarefas básicas. Em segun- necem tempo bem inferior a esse.
do lugar, a relação entre educação de qualida- Para além dos dados estatísticos, um
de e modelo de jornada escolar, um ainda fra- indicador de que há uma mudança no quadro
co objeto de reflexões político-pedagógicas. de forças “quantidade x qualidade” parece ser
A reforma do ensino paulista de 1920, a natureza das políticas públicas que vêm ob-
objeto deste artigo, foi emblemática e prenun- tendo prioridade, bem como a repercussão que
ciadora de um conjunto de problemas que vi- alcançam: são políticas voltadas para os proble-
eram a enfrentar administradores e sistemas mas da evasão e repetência, tais como a orga-
educacionais do país durante todo o século XX. nização dos “ciclos de aprendizagem” e a “bol-
Ela demonstra que a tendência à escola míni- sa-escola” — ambas procurando garantir a

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permanência das crianças na escola. A própria Conforme poderemos constatar, os confli-
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tos entre a educação de qualidade para todos e as
(9394/96) indica políticas que pretendem rever- “soluções” de redução do tempo de escola para
ter a baixa qualidade educacional tais como a cada criança ou de prêmios visando o aumento da
formação em nível superior dos professores do “produtividade” escolar já apareciam, guardadas as
primeiro segmento da Educação fundamental e o diferenças históricas, na reforma do ensino do es-
progressivo aumento da jornada escolar. tado de São Paulo de 1920. Ao recolocá-la em
Quanto a esta última, vêm sendo reali- foco, analisaremos a concepção então vigente
zadas experiências no país, não apenas de seu acerca dessa relação entre expansão quantitativa e
aumento progressivo mas também de implanta- qualidade, destacando as medidas ali tomadas com
ção do horário integral. Além de algumas ocor- vistas à criação das vagas necessárias ao atendi-
rências pontuais em redes municipais de peque- mento das crianças paulistas que, em sua maioria,
no porte, dois programas de maior alcance se ainda se encontravam fora da escola.
destacam: no Rio de Janeiro, o Programa Espe- Outro aspecto também analisado é o con-
cial de Educação, responsável pela implantação, traste entre a proposta curricular da reforma e sua in-
nas gestões estaduais de 1983/1986 e 1991/ tenção prioritária de rápida alfabetização em massa,
1994, de 500 Centros Integrados de Educação mostrando o conflito ali prenunciado entre as apro-
Pública (CIEPs). 1 Em 2001, segundo levanta- priações das concepções escolanovistas e as tendên-
mento do Inep,2 19,4% dos alunos de Ensino cias ao que estamos aqui chamando de “escola mí-
fundamental público e privado do Rio de Janei- nima” na educação elementar pública brasileira.
ro estudavam em horário integral, sendo de 10% Além dos textos da lei nº 1.750 de 8 de
a percentagem da capital.3 No Paraná, a prefei- dezembro de 1920 e do decreto nº 3.356 de 31
tura de Curitiba mantém em funcionamento 37 de março de 1921 que regulamentam a reforma,
CEIs — Centros de Educação Integrada — que utilizamos como material básico de análise uma
atendem em sistema de dia completo as crian- série de artigos de Sampaio Dória, autor da refor-
ças do primeiro segmento da Educação Funda- ma, escritos entre os anos de 1918 e 1923 e pu-
mental. Os CEIs absorvem hoje cerca de 35% blicados no livro Questões de ensino.
dos alunos matriculados na rede municipal.
Apesar de desativados, outros programas 1. Ao final de 1994 havia 507 CIEPs em funcionamento: 410 na rede
de grande porte como o Profic,4 em São Paulo, estadual e 97 sob a responsabilidade do município do Rio de Janeiro (Ri-
beiro, 1995).
e os CAICs,5 em nível nacional, também aponta-
2. EC/INEP/SEEC — Censo educacional/2001.
vam nessa direção da busca da qualidade pelo 3. Em 1999 o município do Rio de Janeiro possuía 60.170 alunos ma-
aumento da jornada e das responsabilidades triculados em regime de horário integral, o que correspondia a 10% dos
alunos da rede e a 164 unidades escolares com regime de horário integral,
educativas da escola. correspondendo a 15% dos estabelecimentos da rede (Planilhas do E/DGED
O surgimento desse conjunto de políticas — 1999, não atualizada até fins de 2002).
que pretendem um novo enfoque para a questão 4. Por meio de convênio com as prefeituras, o Profic, instituído no estado
em 1986, garantia recursos para a oferta de atividades às crianças nos
da qualidade na Educação fundamental dá-se no horários em que não estivessem em aulas. O programa foi desativado em
mesmo momento em que adquirem força política 1992.
certas visões que transferem abusivamente lógicas 5.Criados em 1991, e reestruturados em 1993, os CAICs (Centros de
Atenção Integral à Criança) continham, entre outras atividades, uma escola
de mercado para uma prática social — a educação de dia completo.
pública obrigatória — que, por sua própria nature- 6.No Rio de Janeiro, o projeto Nova Escola, iniciado em 2000, oferece
za (direito de todos, obrigação dos pais, da soci- gratificação mensal aos professores que varia de acordo com o nível que
suas escolas alcancem num processo avaliativo conduzido por instituição
edade e do Estado), a elas não se adequa. Expres- contratada. Em São Paulo, o sistema de bônus anuais aos professores e
sam essa visão, entre outras medidas, as políticas diretores, inaugurado em 2001, baseia-se no desempenho dos alunos de
cada escola no exame oficial da rede estadual de ensino (Saresp), associ-
de premiação a professores ou escolas que vêm ado à assiduidade de seus professores e, inversamente, às taxas de eva-
sendo implantadas em alguns estados.6 são que a escola apresente.

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Nesse movimento que vai do presente revés. Iniciou-se um gradativo processo de
ao passado, a intenção principal é fazer a ava- centralização do poder e de fortalecimento do
liação sociopolítica do fato ocorrido no passado presidencialismo que culminaria com a revolu-
a partir das preocupações e temáticas do pre- ção de 1930.
sente. O interesse sociológico em analisar os Paralelamente a esse processo políti-
processos que levam à exclusão escolar de parte co verificava-se uma maior diversificação da
importante da infância e adolescência brasilei- estrutura social. O crescimento e fortaleci-
ras conduziu-nos ao tema do tempo escolar mento das classes médias e do proletariado
como elemento fundamental na compreensão geraram uma fase de conflitos e dificuldades
desses processos. A presença, na reforma em para os governos das oligarquias. Uma suces-
questão, de proposições radicais e originais são de greves, entre elas a greve geral de
relacionadas justamente ao tempo escolar, nos 1917, em São Paulo, demonstrava que o
chamou a atenção e nos levou à reflexão aqui movimento operário, então sob a forma de
apresentada. Na reconsideração da reforma anarco-sindicalismo, tornara-se relevante.
paulista de 1920, nos concentramos em sua Somente no período de 1917 a 1920, ocorre-
concepção estratégica, em suas decisões polí- ram, no Rio de Janeiro e em São Paulo, mais
ticas concretas e em seus efeitos práticos ime- de 200 greves operárias envolvendo cerca de
diatos e de longo prazo, valendo-nos para isso 300 mil operários industriais (Fausto,1976).
de pesquisas históricas já realizadas sobre ela, A revolução socialista na Rússia e os
tendo sempre como horizonte as ações políti- movimentos operários em toda a Europa aqui
cas da atualidade na área educacional. Dessa repercutiam. Além disso, o agravamento das
forma, não empreendemos um estudo histórico condições de vida da população, advindo dos
original sobre a referida reforma mas tentamos problemas econômicos gerados pela Primeira
aqui reproduzir o sempre fecundo encontro Guerra Mundial, estimulava os movimentos e a
entre abordagens sociológicas e históricas. organização da classe trabalhadora. Surgiram
iniciativas operárias inclusive no campo escolar
O contexto histórico da e educacional. Edgar Rodrigues (1972) chegou
reforma a levantar a existência de 25 escolas, até 1920,
mantidas por associações sindicais ou por mi-
A eleição do paraibano Epitácio Pes- litantes anarquistas em todo o país.
soa, em 1919, à Presidência da República sig- Associando-se o grande afluxo de imi-
nificou uma mudança, ainda que relativa, no grantes europeus verificado na época a este
cenário político do país. A momentânea quebra crescente movimento social, pode-se ter a me-
no monopólio do poder político detido por São dida da preocupação das elites com a questão
Paulo e Minas Gerais não chegou a romper a do controle social e da afirmação da naciona-
estrutura oligárquica de poder vigente mas lidade brasileira. O estrangeiro, além de todas
provocou uma renovação em seu sistema de as ameaças que trazia, pelo simples fato de
sustentação. Em outras palavras, modificaram- ser um “diferente”, trazia o “perigo” suplemen-
se os métodos de manutenção do conservadorismo. tar das ideologias revolucionárias. Era preciso,
As oligarquias dissidentes e os pequenos estados portanto, abrasileirar a todos, homogeneizar a
passaram a se articular, o que tornou o processo nação.
político eleitoral mais complexo. A prática co- É nesse contexto de imposição de mu-
nhecida como “política dos governadores”, que danças à política tradicional que, em 1920,
consistia no mútuo e incondicional apoio en- Washington Luís, eleito presidente do estado de
tre poder central e governos estaduais, sofreu, São Paulo, escolhe como meta importante de
com a eleição de Epitácio Pessoa, um primeiro sua gestão o combate ao analfabetismo.

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A definição dessa meta respaldava-se, por 1.000 habitantes) e 1920 (298 alfabetizados
conforme exposto acima, em pelo menos dois por 1.000 habitantes), mas o percentual de po-
aspectos daquele momento político e social do pulação alfabetizada, como se vê, alcançou ape-
país e especialmente do estado de São Paulo: nas cerca de 30% (Silva, 1988).
O carro chefe da reforma foi a reestru-
— o momento de instabilidade na políti- turação do ensino elementar de modo a garan-
ca nacional, que poderia abalar a posição hege- tir vagas para as crianças paulistas que ainda se
mônica de São Paulo na Federação, levando esse encontravam fora da escola. Surpreendia a esco-
estado a se preocupar com o colégio eleitoral – lha de Sampaio Dória, um reformador, por Wa-
formado apenas por cidadãos alfabetizados – para shington Luís, um homem do status quo. É de
as eleições vindouras; Lourenço Filho a explicação de que tal escolha
— a preocupação com a unidade nacio- deveu-se justamente ao fato de o educador ter
nal e com o controle social, devido à imigração defendido, à época, a possibilidade de uma so-
que se verificava de maneira intensiva em São lução técnica salvadora. A simplificação que
Paulo associada ao processo de industrialização. Sampaio Dória dera ao problema da extensão
escolar necessária, mediante uma escola de dois
Para a direção geral da Instrução Pública anos, parecia sedutora aos governantes pelo as-
do Estado, Washington Luís convida, em abril de pecto de eficácia com pouca despesa, ou pe-
1920, o professor Sampaio Dória, que passa a queno acréscimo de despesa (Antunha,1976,
elaborar a reforma do ensino, a qual se efetiva- p.183). Em mensagem ao legislativo, em 1920,
ria na lei nº1.750 acima referida. o presidente do estado afirmava que para criar
Sampaio Dória representava à época a as escolas necessárias às crianças paulistas que
corrente liberal, a qual defendia a igualdade de não as tinham, nos moldes então vigentes, se-
oportunidades e a evolução pela educação. Era ria necessário ampliar as despesas com educação
vinculado à Liga Nacionalista de São Paulo e de 17% para 40% dos gastos públicos gerais
via o analfabetismo como incompatível com a (Egas, E. apud Nagle, 1974, p. 207). O presiden-
civilização. Ademais temia – como boa parte da te considerava impraticável tal ampliação e en-
elite intelectual e política dos anos 1920 – pela contrava um intelectual liberal, reformador, que
integridade da Pátria, afirmando que afirmava a possibilidade da façanha otimizadora.
A convicção de Sampaio Dória no pa-
(...) a alfabetização do povo é, na paz, a pel social da escola parecia vir ao encontro das
questão nacional por excelência. Só pela necessidades e intenções do governo paulista.
solução dela o Brasil poderá assimilar o estran- Essa identificação, entretanto, como ficou pro-
geiro que aqui se instala em busca de fortuna vado mais tarde, era bastante superficial. Os
esquiva. Do contrário, é o nacional que desa- liberais de então, engajados num projeto anti-
parecerá absorvido pela inteligência mais oligárquico de fortalecimento da nacionalidade
culta dos imigrantes. (Dória, 1923, p.16) e modernização da sociedade brasileira, esta-
vam marcados pela proposta autoritária de
O analfabetismo, encarado como “doen- higienização e regeneração física, moral e so-
ça”, pela intelectualidade da época, como o “mai- cial da população brasileira, por meio da qual
or inimigo da Pátria”, nas palavras de Sampaio poderia ser alcançada a disciplina social neces-
Dória, deveria ser combatido heroicamente. Tra- sária ao mundo moderno em construção. Para
tava-se de uma cruzada moral. eles, a escola seria o elemento chave desse
Em São Paulo, após a República, consta- processo. Apesar do viés autoritário, o sentido
tou-se um crescimento proporcional de alfabeti- geral de suas ações era reformista e progressista,
zados entre os anos de 1890 (191 alfabetizados ao contrário das forças oligárquicas no poder.

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As dificuldades que se sucederam eram No período, crescia no pensamento social
previsíveis. Menos de um ano após ter assumi- reformador a expectativa de racionalização admi-
do o cargo, o autor da reforma deixa a Secre- nistrativa e de consolidação da responsabilidade
taria de Instrução Pública. Segundo afirmou, público-estatal frente à educação primária. Reno-
foram as interpretações errôneas do governo vadores como Sampaio Dória encarnavam as
sobre suas propostas de reestruturação que o preocupações com a organização, a adequação de
levaram à exoneração. A reforma continuou critérios às necessidades reais, enfim, com a busca
sendo implementada por seu substituto, Gui- de um melhor aproveitamento de recursos, em
lherme Kuhlmann, até 1925, quando então foi contrapartida aos antigos métodos baseados na
substituída pelo decreto nº 3.858 de 11 de ju- influência política e na improvisação. A reforma
nho de 1925. incorporou esse espírito e, se isso a distingue
como representante dos primeiros movimentos de
Distribuindo a escassez: a afirmação e sistematização das idéias de mudança
reforma em seus aspectos em educação, é, ao mesmo tempo, a origem de
administrativos sua fragilidade política intrínseca: uma espécie de
tecnicismo, estrategicamente ingênuo, tomou
A primeira iniciativa da gestão Sam- conta de suas propostas.
paio Dória foi a realização do recenseamen- Do ponto de vista político mais imedia-
to escolar. Revelou-se então um percentual to, essa busca por um novo modo de atuação
de crianças sem escola bem maior do que os administrativa estava subordinada às metas polí-
50% imaginados, chegando a cerca de 70% ticas do governo oligárquico e, mais diretamen-
(Antunha, 1976, p. 185). Além de orientar te, àquelas metas inspiradas pelos interesses elei-
tecnicamente a reforma, o recenseamento ser- torais do estado. Havia ainda a motivação patrió-
viu como respaldo à obrigatoriedade e pa- tica decorrente do resultado de pesquisa interna-
dronização escolares que compunham o pro- cional realizada em 1920 e que colocava o Bra-
jeto republicano de homogeneização cultural sil em penúltimo lugar, em índice de alfabetiza-
da população. Além do combate ao analfabe- ção, entre as nações “civilizadas”.
tismo, reagia-se ao surgimento de outros ti- Assim, a reforma expressa em suas con-
pos de escola na sociedade paulista, tais tradições a condição de estar ao mesmo tempo a
como escolas privadas estrangeiras, escolas serviço de um governo conservador, de um pro-
ligadas ao movimento anarquista e a entida- jeto de mudança nacionalista republicano e de
des de cultura negra (Mate, 1991) com vistas um nascente movimento renovador em educação
à implantação de um determinado projeto de que buscava legitimar-se através da imagem da
mudança. competência técnica, da eficiência e da moder-
Em meio às disputas políticas entre nidade, tendo como pano de fundo a direção
as visões oligárquica, liberal e das classes tra- histórica geral rumo à sociedade capitalista de
balhadoras emergentes as forças de expansão massas.
da escolarização no estado e no país se im- A solução para a ampliação rápida do
punham. Entretanto, as forças da tradição número de vagas nas escolas e para o pretendi-
pré-capitalista subsistiam. A quantidade de do combate ao analfabetismo foi a uniformização
crianças efetivamente fora da escola era gran- do ensino primário caracterizada pela redução de
de, mas, como veremos adiante, o problema sua duração de 4 para 2 anos. Pretendia-se com
não se resumia à carência de vagas, abrangia isso a compatibilização e otimização da relação
também uma dimensão cultural relacionada à entre o número existente de professores e esco-
ainda frágil adesão de parcelas da população las e a quantidade de crianças escolarizadas e
à escola. alfabetizadas anualmente.

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Após a implantação da reforma, a es- e espaços distintos. A promoção entre os níveis
trutura de ensino passou a compreender os passaria a ser automática e a repetência vedada. O
seguintes níveis: ensino primário de dois anos aluno que ao final dos dois anos de estudos não
(9 e 10 anos, o único obrigatório e gratuito); obtivesse o rendimento esperado estaria automa-
ensino médio de dois anos; ensino complemen- ticamente excluído do sistema. No caso das esco-
tar de três anos (acoplado aos ginásios e esco- las isoladas, havendo alunos suficientes, o professor
las normais); ensino secundário especial (giná- responsável passaria a trabalhar em dois turnos de
sios e escolas normais); ensino profissional; duas horas e meia diárias de aula, cada qual com
ensino superior. um nível de adiantamento. A seriação e a separa-
Até essa época, não se podia falar pro- ção das turmas representavam um avanço na qua-
priamente da existência de um sistema padro- lidade. A diferenciação dos programas e idades,
nizado pois as variações e a falta de coordena- isto é, a especialização do trabalho escolar forta-
ção eram grandes, mas, grosso modo, a estru- lecia a identidade profissional do professor e tor-
tura anterior à reforma era composta de um nava a escola uma instituição mais forte.
nível primário de quatro anos gratuito e obri- O percurso histórico cumpriu, ao longo
gatório, um nível pós-primário desmembrado desses 80 anos, uma espécie de retorno cíclico.
em ginasial, normal e complementar, além dos A seriação anual rígida, que na época significou
níveis superior e profissional (Antunha, 1976). um avanço importante, tornou-se, na atualida-
As modificações no ensino primário pre- de, um limite à realização de projetos pedagó-
tendiam adequar à realidade o sistema anterior gicos inclusivos. Observa-se que, hoje, a se-
que era, segundo Dória, pretensioso e ineficaz: riação vem sendo questionada e paulatinamente
substituída, em vários estados brasileiros, pelo
(...) a escola urbana de quatro anos tal sistema de ciclos de aprendizagem. A turma
como tínhamos antes da Reforma, é a mais heterogênea, que à época representava a pre-
pura, a mais acabada ideologia delirante. É cariedade e indiferenciação do trabalho peda-
um aparelhamento que não alcança, nem gógico, reaparece, hoje, em meio a novas prá-
pode jamais alcançar os fins que visava. ticas pedagógicas, com outros significados. Os
(Dória, 1923, p. 299) avanços dos estudos psicopedagógicos e a
incorporação ao pensamento educacional de
Antes da reforma, três tipos de escola autores como Piaget e Vigotsky deram ênfase
compunham o sistema escolar público paulista: aos processos sócio-interativos da aprendiza-
as escolas isoladas, de classe única multisse- gem escolar os quais não só admitem como se
riada (em 1919 existiam 134 escolas isoladas na tornam mais ricos com o encontro entre dife-
capital e 1.408 no interior); as escolas reunidas, rentes níveis de aprendizagem.
compostas de agrupamento de classes multis- Quanto à duração da jornada escolar
seriadas, sem direção geral (em 1919 existiam — a possibilidade trazida pela reforma de
39 escolas reunidas, todas no interior); os gru- 1920 de desdobramento do horário, anterior-
pos escolares, no topo do sistema, com quatro mente de 4 a 5 horas diárias, em dois turnos
classes seriadas, com professores e salas de diários de duas horas e meia —, esta já era
aula específicas para cada uma delas, direção defendida por Sampaio Dória em 1918. Em
geral e infra-estrutura de apoio (em 1919 exis- carta aberta a Oscar Thompson, diretor da Ins-
tiam 31 grupos na capital e 154 no interior) trução Pública de São Paulo, afirmava ser
(Antunha, 1976).
Pela reforma exigia-se de todas essas es- (...) o tempo da eficiência. Ensinar, com
colas a seriação, ou seja, a separação dos alunos proveito, 4 ou 5 horas a fio, é coisa dificí-
em duas classes, de 1º e 2º anos , com programas lima, só possível, se for, em organizações

34 Ana Maria CAVALIERE. Entre o pioneirismo e o impasse:...


vigorosas. Não se deve contar com a efi- Quanto à questão nacional, a lei foi
ciência da terceira ou quarta hora seguida, clara e minuciosa: as escolas particulares deve-
sobretudo em se tratando de mulheres. riam submeter-se às determinações da Direto-
(Dória,1923, p.21) ria de Instrução Pública. Deveriam assumir com-
promisso por escrito relativo a diversos pontos,
A redução do tempo de escola tornou- tais como: respeito aos feriados nacionais,
se admissível visto que, apesar de a preocupa- ensino do português (por professor brasileiro
ção com a qualidade estar presente na reforma, ou português nato), ensino de geografia e his-
o pensamento nela predominante foi ainda o tória do Brasil (por professor brasileiro nato),
da alfabetização como panacéia. Carvalho ensino dos cantos nacionais, proibição do en-
(1988) mostra que só a partir de meados da sino de língua estrangeira para crianças meno-
década de 1920 o “fetichismo da alfabetização” res de 10 anos, abertura do estabelecimento às
cedeu lugar aos movimentos em favor de uma autoridades do ensino. As medidas acima visa-
concepção de educação integral. A solução da vam especificamente às escolas estrangeiras,
redução do tempo foi tecnicamente justificada implantadas em quantidade nas colônias de
por seu autor, com base na melhor qualidade do imigrantes, e não embutiam qualquer rejeição à
trabalho desenvolvido em tempo compacto e escola privada em si.7
em turmas seriadas. A nova lei previa também a reorganiza-
Merece ainda destaque, nessa linha da ção dos concursos públicos para professores, a
busca de uma racionalidade organizacional e da criação de 2 mil novas escolas isoladas primá-
melhoria da qualidade do trabalho pedagógico, rias (omitida no decreto de regulamentação), a
a proposta de gratificação às professoras em criação de 15 delegacias regionais de ensino, o
função do número de alunos que conseguissem aumento do número de inspetores escolares, a
alfabetizar por ano. Até então a média anual era unificação curricular das escolas normais, a
de 12 crianças alfabetizadas por professor. A criação de escolas maternais junto às fábricas,
intenção era de, com a gratificação, duplicar ou a instalação de jardins de infância anexos às
mesmo triplicar essa média. escolas normais, a criação de inspeção médico-
Ainda que o movimento renovador ex- escolar e a criação da Faculdade de Educação.
presse o industrialismo e o estabelecimento da Essas e outras medidas, se realizadas a conten-
cultura urbana, as práticas educativas de inspira- to, levariam obviamente a um grande aumen-
ção “taylorista” tiveram, no início dos anos 1920, to das despesas com educação.
poucas chances de progresso. A pretensão de Cedo começaram as atribulações de
extensão, para todas as esferas da vida social, de Sampaio Dória. O governo definiu, à sua reve-
minucioso controle técnico das pessoas e dos lia, que apenas as duas séries do ensino primário
processos, encontrou muitos entraves. A distância seriam gratuitas. Seus planos iniciais, entretan-
entre a concepção ideal dos projetos reformadores to, mantinham a gratuidade dos 4 anos, no
que incluíam esse aspecto regulamentador da vida caso dos grupos escolares, que ministrariam 2
dos indivíduos e das instituições e o que de fato anos de ensino primário e 2 de ensino médio,
chegou a ser realizado nos sistemas educacionais e até mesmo dos 3 anos das escolas complemen-
revela essa dificuldade. Entretanto, as tentações tares, posteriores ao médio, o que somaria 7 anos
behavioristas, intrínsecas à sociedade industrial de
7. A necessidade de ampliação do ensino privado era praticamente um
massas, já lá faziam uma aparição precoce. Hoje, consenso à época, defendida pelo próprio Sampaio Dória, e por inúmeros
80 anos depois, associadas à lógica de mercado, educadores, desde que esse ensino fosse supervisionado pelo Estado. No
tais tentações se fortalecem, sendo uma de suas Inquérito promovido em 1926, pelo jornal O Estado de S. Paulo , sobre a
educação pública, três dos seis depoentes, além do próprio Fernando de
expressões as já citadas políticas de prêmios a pro- Azevedo, que organizou e orientou o trabalho, apontavam a necessidade e
fessores e escolas. urgência de expansão da escola privada. (Azevedo,1926)

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 27-44, jan./jun. 2003 35


de gratuidade. Dória conseguiu superar o proble- originalmente por Dória, mostrava-se contradi-
ma garantindo gratuidade aos que comprovassem tória para fins de otimização de recursos. Como
a impossibilidade de pagar as taxas e defendeu a ela não previra, inicialmente, a redução conco-
solução afirmando que mitante do período de gratuidade e obrigato-
riedade escolar, o resultado prático da redução
O dever do Estado em ministrar a educação do tempo se tornava duvidoso. O que poderia
popular é supletivo. Aos pais incumbe, pre- justificar a manutenção do mesmo período de
ferencialmente, a educação aos seus filhos. qutro anos para a obrigatoriedade escolar e de
Porque não o fazem, e tanto quanto baste, até sete para a gratuidade, se a premência era
é que o Estado lhe supre falhas. Não se garantir espaço nas escolas para o grande con-
compreende democracia em povo analfabe- tingente de crianças paulistas que ainda se
to, ignorante, incapaz. Logo, contribuir os encontravam fora delas? Já que se tratava de
que puderem, com uma taxa escolar pelos criar vagas para todos, sem acréscimo de cus-
benefícios que os seus filhos recebem, não tos, a manutenção da obrigatoriedade e gra-
é um desses males tão graves que solape tuidade para além dedois anos era, de fato,
os fundamentos sociais, ou, mesmo preju- incoerente. A estratégia adotada pela concep-
dique a prosperidade geral. (Dória, 1923, ção original da reforma de uniformização do
p. 333) sistema mostrava-se precária devido às profun-
das ambigüidades do pensamento reformador à
O trecho revela que apesar da convicção época. Não por acaso, a reforma foi usurpada de
na importância do papel da educação escolar seu autor e devidamente “reformada”.
pública para a formação democrática e nacional,
o pensamento reformador da época ainda com- Os efeitos práticos e políticos
portava o entendimento de que era “supletivo” da reforma
o dever do Estado em ministrar a educação pri-
mária. Ou seja, a responsabilidade última pela Entre o grupo de profissionais da edu-
garantia dos direitos do indivíduo permanecia na cação que despontava nas primeiras décadas
esfera familiar e, portanto, privada. À época, a do século, a solução de redução do ensino
Constituição paulista já afirmava a obrigato- primário gerou inúmeras críticas e foi entendi-
riedade e gratuidade do ensino primário, mas a da por muitos como um retrocesso para o en-
realidade do sistema instalado encontrava-se sino paulista da época.
muito distante da afirmação legal. Já em 1923, o autor da reforma, ao
O segundo conflito com o governo, comentar sua medida de maior repercussão, afir-
entretanto, levou Sampaio Dória à demissão. mava:
Tratava-se do estabelecimento, também à sua
revelia, da obrigatoriedade escolar somente mas não se conclui daí que dois anos bastem
para as crianças de 9 e 10 anos, o que signi- ao preparo razoável do homem para a vida.
ficava, na prática, a impossibilidade de esco- Dois anos se aceitam, como recurso provisó-
larização para as de 7 e 8 anos. Transforma- rio, nas aperturas financeiras e retrações do
va-se assim a solução da redução do ensino crédito público. (Dória, 1923, p.77)
elementar para dois anos, que o autor da re-
forma redefiniu, posteriormente, como provi- Dois anos após sua exoneração, o pró-
sória e não generalizável, em solução defini- prio Sampaio Dória já apresenta um discurso
tiva e generalizada. menos convicto perante a opção adotada.
A proposta de redução do ensino pri- Esse foi o aspecto mais controverso da
mário de 4 para 2 anos, tal como apresentada reforma. A questão das vagas em São Paulo não

36 Ana Maria CAVALIERE. Entre o pioneirismo e o impasse:...


se resumia ao problema da oferta mas, sim, e, tização. A racionalização administrativa tenta-
talvez principalmente, conforme afirma Louren- va impor-se às determinações de ordem políti-
ço Filho em entrevista a Antunha (1976), ao ca, histórica e ideológica mas, na prática, era re-
problema da demanda. Mesmo considerando-se interpretada por estas.
que determinados segmentos da sociedade já Sampaio Dória afirmou posteriormente
desenvolviam lutas por mais escolas públicas e que nem a regulamentação da lei, feita em
mesmo por concepções diferentes de escola 1921, após sua demissão, nem a aplicação
(Mate, 1991), numa sociedade ainda em fase de desta respeitaram suas propostas. Ficou a re-
industrialização a universalização da alfabetiza- forma pressionada pelas críticas de educado-
ção e da escola era uma expectativa pretensio- res e políticos que a acusavam de promover a
sa. Ainda que, num passe de mágica, se pudes- simplificação do ensino e retroceder em rela-
se contar com vagas para todos, não era prová- ção às conquistas da educação pública da
vel, a despeito da obrigatoriedade, que essas época, pela impopularidade da redução drás-
fossem preenchidas. É possível que Sampaio tica da gratuidade, pela exclusão escolar das
Dória tivesse essa compreensão e que nisso es- crianças de 7 e 8 anos e pelo descontenta-
teja a origem de sua contrariedade com a redu- mento do professorado com os deslocamentos
ção da obrigatoriedade de 4 para 2 anos de es- dos postos de trabalho advindos da reorgani-
colaridade. O cumprimento da obrigatoriedade zação do sistema.
estava longe de ser alcançado. Reduzi-la à fai- A reforma vigorou de março de 1921 a
xa de 9 e 10 anos significava, na prática, excluir dezembro de 1925. Seu resultado negativo mais
da escola crianças de 7 e 8 anos que tinham evidente foi o enfraquecimento dos grupos
condições de ser por ela captadas. Ao mesmo escolares, que eram consideradas as melhores
tempo, não era possível garantir que a totalidade organizações do sistema e que tiveram reduzi-
das crianças de 9 e 10 anos seria escolarizada. do seu número de classes e de alunos. As es-
Segundo Antunha, as medidas de con- colas isoladas também tiveram uma redução em
trole e a aplicação de multas aos pais que não seu número de unidades, ocasionada pela trans-
colocassem seus filhos de 9 e 10 anos na es- formação de muitas delas em escolas reunidas.
cola se intensificaram na vigência da reforma O tipo de escola que mais cresceu no período
pela ação da inspeção escolar. Embora as exce- foi justamente a escola reunida. Segundo afir-
ções previstas em lei fossem muitas, houve mava Guilherme Kuhlmann, substituto de Sam-
nesse momento um esforço de inculcar hábitos paio Dória, aqueles estabelecimentos eram cô-
escolares na população. O problema surge em modos, de fácil administração e de baixo cus-
relação às crianças que, aos 9 ou 10 anos, já to, e deveriam, na medida do possível, substi-
estavam alfabetizadas, portanto, sem necessi- tuir os onerosos e complexos grupos escolares.
dade de freqüentar classes de alfabetização, e Tais escolas mantiveram, no entanto, sua ca-
que não mais conseguiam vagas nas poucas racterística de escolas de segunda linha, extin-
classes remanescentes de 3o e 4o anos transfor- guiram os 3 o e 4 o anos e, segundo Antunha
madas em “ensino médio”. (1976), foram a base, na década seguinte, para
A redução do ensino primário de 4 para a aplicação das fórmulas de desdobramento,
2 anos foi o “calcanhar de Aquiles” da reforma. não apenas em dois mas em três ou mais tur-
Posteriormente justificada como uma necessi- nos diários. A padronização, que pretendia vir
dade circunstancial de reorganização das esco- acompanhada de uma maior especialização e
las e classes, sua implementação prática estabe- profissionalização do sistema, acabou gerando
leceu a idéia de que 2 anos de escolarização um nivelamento “por baixo”, trazendo proble-
eram suficientes para a massa da população, na mas de desorganização e perda das referências
medida em que eram suficientes para a alfabe- de qualidade.

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Comparativamente aos outros estados O tempo mostrou que a força do es-
que também realizaram reformas nos anos 1920, quema oligárquico-elitista apropriou-se como
o crescimento do número de alunos matricula- quis da reforma. O governo interpretou e apli-
dos no estado de São Paulo foi pequeno. Em- cou a reforma que, segundo Nagle (1974,
bora estudos comparativos mais criteriosos p.192), introduziu “as primeiras e mais radicais
sobre as diversas reformas e seus respectivos alterações feitas nos sistemas escolares esta-
resultados em termos do crescimento de matrí- duais de todo o decênio dos vinte”, da maneira
culas precisassem ser feitos, os dados em esta- que melhor lhe convinha. Interesses políticos
do bruto formam o seguinte quadro: imediatos tentaram reduzi-la, com a demissão
de Sampaio Dória, aos marcos de uma estraté-
— Ceará (reforma de 1922 – Lourenço gia político-eleitoral da elite conservadora
Filho): entre 1921 e 1923 o crescimento das paulista.
matrículas no ensino primário foi de 65% O conflito com o poder instituído e a
(Nagle,1974); exoneração precoce de Sampaio Dória, seguidos
— Bahia (reforma de 1925 – Anísio de seu alinhamento crescente com o pensamen-
Teixeira): entre 1926 e 1929 o crescimento das to escolanovista, que aprofundava suas discus-
matrículas no ensino primário foi de 44% sões sobre a qualidade do ensino, possibilitou
(Nagle,1974); uma releitura, dele próprio e de outros educa-
— Minas Gerais (reforma de 1926 – dores, a qual valorizou os aspectos técnicos
Francisco Campos): entre 1926 e 1929 o cres- inovadores do projeto original. Apesar dos re-
cimento das matrículas no ensino primário foi sultados concretos pouco expressivos, a refor-
de 39% (Peixoto,1983); ma de 1920 teve grande importância como
— São Paulo (reforma de 1920 – Sampaio uma referência, um modelo para os refor-
Dória): entre 1921 e 1924 o crescimento das madores de outros estados, seja pelos avanços,
matrículas foi de 16% (Nagle,1974). seja pelos equívocos que apresentou. A refor-
ma de 1925, que a substituiu, foi considerada
Em 1926, a liderança paulista na área um retrocesso, recebendo de Lourenço Filho a
educacional estava abalada. No inquérito reali- designação irônica de um movimento “rumo ao
zado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Fernando passado”.
de Azevedo afirma que essa unidade da federa- Resumidamente, as ambigüidades e fra-
ção encontrava-se em 5º lugar no país em rela- gilidades políticas da reforma assentavam-se
ção às despesas proporcionais com educação. nos seguintes pontos:
Fernando Azzi, um dos ouvidos, afirma que o
estado perdeu não só a liderança organizativa a) A superestimação da possibilidade de supe-
mas também a teórica. (Azzi, F., apud Azevedo, rar, num espaço curto de tempo, fatores socio-
s/d) O consenso entre os entrevistados do inqué- culturais como a ainda fraca demanda da po-
rito quanto à precariedade da educação públi- pulação pela escolarização e a dispersão da po-
ca paulista em 1926, isto é, após a vigência de pulação rural.
cinco anos da reforma parece contraditório com b) O mau dimensionamento do tamanho do dé-
o reconhecimento de todos de que a mesma ficit, que tornou a solução de remanejar os re-
representou um esforço modernizador e de ali- cursos existentes absolutamente insuficiente.
nhamento político com os ideais republicanos e c) A proposição de redução do ensino primário,
democráticos. Se, num primeiro momento, a que criou a possibilidade, bem-vinda à mentali-
reforma foi criticada por aligeirar o ensino, cin- dade oligárquico-aristocrática, de aligeirar a edu-
co anos adiante, suas qualidade renovadoras e cação popular enfraquecendo o que de melhor
seu sentido democrático eram ressaltados. existia no sistema, isto é, os grupos escolares.

38 Ana Maria CAVALIERE. Entre o pioneirismo e o impasse:...


d) A associação da escolarização à simples O programa das escolas elementares de
alfabetização tornando a escola ainda mais 2 anos incluía as seguintes matérias: linguagem
inadequada à camada popular que a ela che- oral, leitura analítica, linguagem escrita, aritmé-
gava e que, por estar distanciada da cultura le- tica, geometria, geografia e história, ciências
trada, necessitava de uma escola com concep- físicas e naturais, higiene, instrução moral e
ção mais ampla de educação. cívica, desenho, trabalhos manuais, música e
ginástica.
Escolanovismo e aligeiramento: Quanto à leitura, o programa proíbe a
direções incompatíveis silabação e diz que a criança somente lerá sen-
tenças e nunca sílabas ou palavras isoladas.
Conforme fica claro no artigo 103 do Para história e geografia o programa inclui um
decreto de regulamentação, a base pedagógi- trabalho baseado na experiência de vida do
ca da reforma é o método intuitivo, até então aluno, que deveria explorar a localidade em que
a mais avançada concepção educacional: mora, a localidade da escola e a vida de seus
familiares. Em desenho, os trabalhos seriam
Nas escolas primárias, o método natural do feitos livremente, sem modelo, com temas da
ensino é a intuição, a lição de coisas, o con- vida cotidiana.
tato da inteligência com as realidades que Contraditoriamente, o programa traça-
se ensinam, mediante a observação e a ex- do para os dois anos da escola elementar ain-
perimentação, feitas pelos alunos e orienta- da é imenso aos olhos de hoje. Inclui análise
das pelo professor. São expressamente bani- sintática, números decimais, ângulos, área e
das da escola as tarefas de mera decoração, volume, e todo um arsenal de informações de
os processos que apelem exclusivamente história e geografia que somente poderiam ser
para a memória verbal, a substituição das “adquiridas”, nesse período de tempo, por meio
coisas e fatos pelos livros que se devem da mais sistemática memorização.
apenas usar como auxiliares de ensino. Três anos após sua passagem pela Ins-
trução Pública de São Paulo, Sampaio Dória, ao
Entretanto, segundo Carvalho (2000), avaliar os resultados da reforma, já se mostra-
o currículo da reforma de 1920 subverte o va mais familiarizado com as idéias propria-
método intuitivo em vigor ao adotar o cha- mente escolanovistas. Ao fazer críticas à im-
mado “método de intuição analítica” enfa- plantação da reforma aproveita para acentuar
tizando o desenvolvimento da “capacidade de aspectos da lei de 1920 que lhe eram caros.
conhecer” em detrimento do modelo de en- Relembra a autonomia didática, a prática da
sino intuitivo que vinha sendo desenvolvido logicidade (excluída do decreto de regulamen-
desde a Reforma Caetano de Campos e que tação), a nova concepção em educação cívica
consistia em um percurso longo e enciclopé- e a prática pedagógica nas escolas normais. Re-
dico, capaz de fazer com que o aluno, ao tomando o tema da autonomia didática, Dória
aprender, reproduzisse o processo de evolu- afirma que
ção do conhecimento.
Essa nova interpretação do método (...) com todas as cautelas de uma provi-
intuitivo tinha como base a urgência em alfa- dência continuada e sistemática, a auto-
betizar e escolarizar a massa da população, nomia didática será o maior propulsor da
além das já presentes “novas idéias em educa- grandeza e eficiência do ensino. Não é
ção” ou idéias escolanovistas, que viriam a nunca o arbítrio da incompetência. É a li-
explodir, como um conjunto sistematizado, no berdade de ação profissional dos compe-
decorrer da década de 1920. tentes.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 27-44, jan./jun. 2003 39


A autonomia didática e a reestruturação deveria ser feita par a par com a matemática
das escolas normais levariam ao progresso a fim de garantir “a sagacidade, o espírito de
da instrução pública, já que “a imposição finura, o poder de atinar a verdade em meios
do método contra a convicção íntima do de circunstâncias complexas que a obscure-
profissional só pode gerar maus frutos”. çam e a perturbem”, já que a matemática ga-
(Dória, 1923, p.303) rantiria apenas o raciocínio silogístico. A
logicidade seria praticada em exercícios típi-
Ao diretor da instrução pública, inspe- cos, progressivos, que levariam os alunos à au-
tores e delegados regionais caberia a responsa- tonomia intelectual. Revela-se aqui a preocu-
bilidade para que nesse espaço de liberdade pação com aspectos metodológicos, com o
acadêmica a “verdade científica” fosse respei- “como aprender”, com a diferenciação entre
tada. Ainda segundo Dória, por falta de orien- atividade intelectual mecânica e atividade in-
tação e definição de linhas gerais sobre as telectual compreensiva. Seu “método de intui-
quais o professor deveria trabalhar, a autono- ção analítica”, reforçando o aspecto da “capa-
mia didática teria degenerado e se transforma- cidade de aprender”, antecipava um dos pon-
do em anarquia. tos centrais do escolanovismo.
A preocupação com a autonomia didá- O currículo da reforma, em suas ambigüi-
tica e com a formação dos professores estava dades constitutivas, já apresentava a tentativa de
no cerne da questão da qualidade do ensino. responder às necessidades reais percebidas pelos
Expressava uma ambiciosa pretensão em rela- educadores relativas à escolarização popular. A
ção ao ensino público e a seus professores que incompatibilidade entre o tipo de ensino vigente
ultrapassava em muito a mera montagem de e a proposta de democratização da educação era
uma engrenagem alfabetizadora. evidente e as idéias escolanovistas emergentes
Sobre a proposta de educação cívica, ofereciam apoio teórico e estímulo para a ação
Sampaio Dória explica que pretendeu substituir concreta.
o ensino teórico, por ele definido como “aqui
e ali, um curso prático de hipocrisia e o cul- Crises, reformas e mudanças
to formal das aparências”, pela aquisição de
hábitos por meio da criação das associações A reforma paulista de 1920 vinha aten-
de educandos. Para defender suas idéias, der, por um lado, às necessidades do momen-
Sampaio Dória invoca as “repúblicas escolares” to político que diziam respeito à implantação
americanas fundadas por Wilson Gill, que de- de novas formas de controle social e domínio
fendia a “escola-cidade” como o remédio con- político-partidário e, por outro, às necessidades
tra a apatia e a corrupção políticas. Aparecem históricas mais amplas que esboçavam uma
aqui as idéias educacionais baseadas no estu- reviravolta em direção à democracia burguesa
do da psicologia humana, na co-participação moderna.
do educando no processo educativo e na Coexistiam e se complementavam, em
aprendizagem pela experiência. Da mesma for- suas orientações político-administrativas e
ma, ao defender sua proposta de inclusão da metodológicas, tanto influências positivistas
prática pedagógica nos cursos normais, reve- quanto liberal-democráticas. O positivismo, ain-
la, mais uma vez, sua desconfiança em relação da muito presente no país à época, corres-
aos procedimentos didáticos discursivos e te- pondia à incorporação das regras da produção
óricos. industrial ascendente à prática social. Nos as-
Ao defender a prática da logicidade, pectos administrativos da reforma essa influên-
lamentando o fato do decreto-lei tê-la des- cia aparece de modo muito claro em sua cren-
considerado, Sampaio Dória afirma que esta ça no planejamento, na neutralidade adminis-

40 Ana Maria CAVALIERE. Entre o pioneirismo e o impasse:...


trativa e nas metas de eficiência. Também apa- O currículo da reforma revelava um
rece, no currículo, na ênfase dada à “verdade pensamento especializado sobre as questões
científica”, todos aspectos inseridos na visão metodológicas da educação. A visão “salvadora”
mais geral de construção da nacionalidade. Já da alfabetização em massa encontrava-se mina-
o liberalismo democrático se fazia presente pelo da pelas demais propostas que compunham o
foco dado à democracia social e à formação da próprio texto da lei. Nesse caso, a forte poli-
cidadania e cooperação por intermédio da es- tização que a envolve, não exclui uma desen-
cola, de acordo com o pensamento renovador volvida preocupação técnico-pedagógica.8
europeu e norte-americano, como demonstra a A incorporação das grandes massas da
invocação às repúblicas escolares de Wilson Gill. população à escola exigia modificações profun-
Em síntese, a reforma de 1920 mesclava das desta. Ou seja, as disparidades culturais, a
um conjunto de influências intelectuais e ideoló- permanência, especialmente no interior do esta-
gicas da época que incluía tanto o ideário nacio- do, de modos de vida pré-capitalistas, não ime-
nalista de viés autoritário vinculado às idéias de diatamente dependentes da instrução escolar,
“regeneração” das massas da população como o requeriam uma escola formadora em sentido
ideário liberal democrático nascente. amplo. O aligeiramento era incompatível com a
O pensamento de cunho positivista ampliação, a não ser do ponto de vista mera-
bem como as idéias liberais em educação res- mente contábil. Levava a uma escola ineficaz
pondiam, por diferentes caminhos, à necessida- embora pudesse cumprir a função de valorizar o
de brasileira de racionalização dos processos conhecimento escolar como moeda de ascensão
sociais. Vinham ao encontro da tentativa de social. Isso porque, a escola para todos, mesmo
superação do modelo tradicional de nossa or- quando não atua efetivamente na formação e
ganização social e da construção de um Esta- ampliação de horizontes e oportunidades para
do racional moderno. os indivíduos, atua socialmente na criação de
A reforma paulista de 1920 é represen- uma “moralidade” escolar, que põe em jogo
tante do que Nagle (1974) denomina de “entu- valores simbólicos pelos quais se passa a excluir
siasmo pedagógico”, típico das primeiras déca- socialmente os que nela fracassam.
das do século. Um momento marcadamente Coube à reforma de 1920 o ônus his-
político, cuja principal característica, segundo tórico de ter inaugurado a prática, muitas ve-
esse autor, era a preocupação quantitativista, de zes reproduzida, da redução do tempo/qualida-
ampliação horizontal dos sistemas de ensino, de escolar a que cada criança teria direito.
ligada aos anseios da nova força política emer- Anísio Teixeira, trinta anos depois, por ocasião
gente, representativa do crescimento urbano da inauguração do Centro Educacional Carneiro
industrial. Somente mais adiante, ainda segundo Ribeiro, em Salvador, citaria a reforma paulista
Nagle, na fase do chamado “otimismo pedagó- como modelo desta concessão:
gico”, as preocupações com a qualidade do
ensino se tornariam predominantes, levando a Foi, com efeito, nessa época que começou
uma despolitização do campo educacional. Di- a lavrar, como idéia aceitável, o princípio de
vergindo em parte do quadro desenhado por que, se não tínhamos recursos para dar a
Nagle, as preocupações da reforma de 1920 não todos a educação primária essencial, deve-
se restringiam aos aspectos quantitativos e de
fortalecimento institucional do sistema. É verda-
de que suas medidas de maior impacto tinham 8. A clivagem politização/quantidade e despolitização/qualidade dese-
esse sentido mas, inúmeras outras, tanto admi- nhada por Nagle vem sendo questionada por Carvalho (1988, 2000b) ao
defender a idéia de que no período do chamado otimismo pedagógico deu-
nistrativas como curriculares, apontavam em se uma repolitização em novos termos, a partir da substituição da alfabe-
direção à busca da qualidade do ensino. tização “salvadora” pelas concepções de educação escolar integral.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 27-44, jan./jun. 2003 41


ríamos simplificá-la até o máximo, até a anos após a reforma, Almeida Júnior, José Escobar
pura e simples alfabetização e generalizá-la e Lourenço Filho questionaram, no já citado in-
ao maior número. A idéia tinha a sedução quérito do Estado de S. Paulo, os próprios termos
de todas as simplificações. Em meio como em que estava formulada uma de suas questões:
o nosso produziu verdadeiro arrebatamen- “Educação integral para poucos ou educação
to. São Paulo deu início ao que se chamou simplificada para muitos? É válida a solução da
de democratização do ensino primário. Re- redução do ensino primário?”. Lourenço Filho
sistiram à idéia muitos educadores. Resistiu responde afirmando que “a melhor solução pro-
a Bahia antes de 30. Resistiu o Rio, ainda visória será, evidentemente, aquela que tornar
depois da revolução. Mas a simplificação mais fácil a execução posterior da solução defi-
teve forças para congestionar as escolas nitiva, sem perda de nenhum elemento emprega-
primárias com os turnos sucessivos de alu- do ou conflito com os resultados já obtidos”
nos, reduzindo a educação primária não só (Lourenço Filho, apud Azevedo, s/d).
aos três anos escolares de Washington Luís, O tipo de solução preconizada por Lou-
mas aos três anos de “meios-dias”, ou seja, renço Filho não foi o que se generalizou. A
ano e meio, até na Grande São Paulo, aos dicotomia contida na questão se instalou. Os
três anos de “terços de dia”, o que equivale ideais da modernidade, que relacionam estreita-
realmente a um ano de vida escolar. Ao lado mente educação das camadas populares e demo-
dessa simplificação na quantidade, segui- cracia, eram reelaborados naquele momento no
ram-se, como não podia deixar de ser, to- país e adquiriam o perfil concreto, que ainda
das as demais simplificações de qualidade. hoje predomina, de coexistência pacífica entre o
(Teixeira, 1994, p.173) direito formal pleno à educação de todos os
cidadãos e a renitente inoperância e ineficácia
Só esse aspecto, embora ela contenha dos sistemas educacionais implantados.
outros de grande relevância, faz da reforma Crises e reformas educacionais são te-
paulista de 1920 um marco e justifica, nos pa- mas permanentes no Brasil e no mundo. Parecem
rece, seu re-exame visando a uma contribuição fazer parte da natureza social da educação es-
ao entendimento dos processos que, na prática, colar. Elas evidenciam que nem sempre bastam
foram conduzindo e constituindo o quadro presen- ações racionais e competência técnica para se
te da educação pública brasileira. produzirem os resultados esperados. As inevitá-
Tais processos, muitas vezes, são o resul- veis tendências ou inércias da sociedade reque-
tado não previsto, pelos agentes sociais da mu- rem imaginação e engenho político para que
dança, de injunções políticas que terminam por sejam vencidas.
reconduzir a realidade ao leito maior da estrutu- A reforma paulista de 1920 pretendeu
ra social estabelecida. Mesmo quando percebidos que a redução do tempo de escola de cada cri-
e denunciados, nem por isso deixam de seguir ança garantisse a expansão do sistema mas
esses caminhos “inesperados”. Para além da per- obteve, como resultado mais importante do que
cepção e denúncia, é o engenho político que, a própria expansão, a aceitação da redução do
algumas vezes, consegue alterar esses rumos. tempo e a perda da qualidade ali onde ela exis-
Sobre a reforma de 1920, por exemplo, tia — nos grupos escolares. Na origem da
intelectuais e educadores enxergaram a fragilida- distorção talvez esteja a concepção de educação
de da pretensão de alcançar os objetivos pro- ainda marcada, no pensamento mais progressista
postos apenas com a reorganização dos recur- da época, pela pretensão de conformar a popu-
sos existentes, ou de ampliar a oferta de ensino lação a um tipo de sociedade almejada e, ape-
a partir da redução do tempo de escola para cada nas secundariamente, pelo direito do indivíduo
criança. O tema adquiriu relevância e, poucos à cultura e à cidadania.

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Hoje, o aumento do tempo de escola Para além das contradições entre edu-
com vistas à melhor qualidade pode, da mesma cação e emancipação, que revelam o caráter
forma, obter, como resultado principal, a cristali- conflituoso dos interesses dos diferentes seg-
zação da prática educativa de baixa qualidade. Se mentos sociais na ampliação da escolarização,
a ampliação do tempo for entendida como algo criou-se um consenso, já estabelecido e regis-
passível de uniformização e essencialmente ou trado em lei, em relação ao período de obri-
necessariamente positivo, o resultado poderá ser gatoriedade e aos tempos diário e anual míni-
o inverso do pretendido. A ampliação do tempo mos necessários à escolarização fundamental.
de escola só será parte da busca pela qualidade Já um consenso mais amplo quanto ao signi-
se trouxer à pauta a discussão das formas de ficado e aos componentes da “qualidade” em
utilização do tempo, dos objetivos e possibilida- educação está longe de ser alcançado. Um dos
des reais de um uso efetivamente enriquecedor poucos pontos consensuais evidentes con-
desse tempo escolar. O aumento do tempo de cerne à percepção da baixa qualidade. Mesmo
escola sem o respectivo aumento da qualidade eliminando-se preconceitos e desinformação
pode prestar um serviço às visões assistencialistas em relação ao sistema público, prevalece a
e/ou repressivas, que apenas incrementam o con- avaliação de que falta qualidade à atual esco-
trole social sem garantir a formação da cidadania la fundamental pública brasileira.
e a ampliação de horizontes culturais. Isso nos mostra que o impasse políti-
Na presente realidade educacional bra- co explicitado pela reforma paulista de 1920,
sileira, a fórmula da escola mínima parece com- que viria a atravessar todo o século XX, ou
pletamente esgotada. A expansão não pode seja, o processo de antagonização entre a pos-
mais justificá-la. Além da definição dos 200 dias sibilidade da ampliação quantitativa e a garan-
letivos com carga horária mínima de 4 horas, a tia da qualidade, chegou a termo exatamente
atual LDB, como já vimos, trouxe a indicação da forma como foi esboçado: a expansão se
de aumento progressivo da jornada escolar no deu e a qualidade não veio. A partir daqui,
ensino fundamental, bem como de implantação ações políticas visando a qualidade, caso in-
do tempo integral. Estados e municípios já corporem o legado que a história nos deixou,
implementam políticas nessa direção. terão que discutir a questão do tempo esco-
Entretanto, como nos mostrou a expe- lar, sua ampliação e ordenação, levando em
riência histórica aqui estudada, o tempo, em sua consideração, primordialmente, os direitos e
dimensão pedagógica, não é passível de padro- necessidades das crianças e jovens em relação
nização. A oferta de diferentes regimes de jorna- ao aprendizado em seu sentido amplo. Outras
da escolar — parcial, integral, ampliada (ativida- motivações relacionadas seja à contenção da
des complementares no outro turno em alguns transgressão juvenil, seja aos interesses do
dias da semana) — dependerá sempre das de- mercado de trabalho ou ao conforto das famí-
mandas de cada realidade particular. A descentra- lias, embora relevantes, precisam subordinar-
lização e multiplicidade de tipos de oferta pare- se àquela, sob pena de, mais uma vez, produ-
cem compor uma tendência a ser fortalecida. zirem-se efeitos indesejados.

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Recebido em 27.06.02
Aprovado em 29.10.02

Ana Maria Cavaliere é professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Socióloga e doutora em Educação pela FE/UFRJ.
Participa do Núcleo de Estudos Escola Pública de Horário Integral UNIRIO/UFRJ. Recebeu o Prêmio Jovem Cientista Faperj/
2000. É autora e co-organizadora do livro Educação Brasileira em Tempo Integral, Ed.Vozes, 2002. Última publicação:
“Educação integral: uma nova identidade para a escola brasileira”, Educação e Sociedade, n.81, dez 2002.

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