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PREGAÇÃO PARA

ACONSELHAMENTO
PAC 413 / PPR 406

Instituto Presbiteriano Mackenzie


CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER
Rua Maria Borba, 15 – Vila Buarque – 01221-040 São Paulo – SP
Fone (011) 3236-8644 – Email: pos.teo@mackenzie.br
http://www.mackenzie.com.br/tologia

.
Wadislau Martins Gomes.

Outubro, 2009
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PREGAÇÃO PARA ACONSELHAMENTO

ABORDAGEM, PROPÓSITO E LIMITES


PREGAÇÃO PARA ACONSELHAMENTO é uma implementação das disciplinas relativas à
hermenêutica e aconselhamento cristão, considerando que ambas se referem à pregação da
Palavra, uma dirigida a grupos maiores e, a outra, ao indivíduo ou a pequenos grupos com
vistas à exposição dos motivos do coração. Pretende dar ao aluno uma visão geral do
preparo e entrega da pregação bíblica dirigida à ajuda para a vida cristã em termos da
soberania, providência e centralidade de Deus, da obra completa, consumada e aplicada de
redenção em Jesus Cristo, da instrução e orientação na Palavra, da ação consoladora do
Espírito Santo e das disposições habilitadoras da comunhão no corpo de Cristo. Dado que a
matéria pressupõe conhecimento da homilética e do aconselhamento bíblico, o estudo se
limitará a um breve tratamento do conteúdo bíblico teológico da Pregação para
Aconselhamento, enfatizando as habilidades para a hermenêutica da Palavra e da pessoa,
personalidade centrada em e derivada de Deus, características comuns e individuais,
motivação pessoal nas categorias da criação, queda e redenção, e dinâmica da mudança.

OBJETIVO
O objetivo geral da matéria é familiarizar o aluno com a idéia da mensagem redentiva, no
sentido de aplicar os conceitos bíblicos de como lidar com os percalços da presente vida, à
pregação. O objetivo específico é fornecer ao aluno uma linha de pensamento que lhe
possibilite aprofundar e ampliar o conceito de pregação para aconselhamento.

REQUISITOS E AVALIAÇÃO
A avaliação não visa coibir o aluno, mas, sim, fornecer parâmetros para melhor
aproveitamento da matéria, fixação do aprendizado e justa recompensa pelo bom esforço. A
avaliação leva em conta:
• Freqüência regular às aulas segundo o padrão da escola.
• Participação adequada e pertinente nas aberturas para discussão com o instrutor e
com os colegas, buscando compreensão ou demonstrando entendimento da matéria
dada. (Valor: 20 por cento da gradação final.)
• Leituras de, pelo menos, 900 páginas (PAC 413) e 1200 páginas (PPR 406),
selecionadas entre as obras recomendadas. A leitura de 1200 páginas (PAC 413) ou
1800 páginas (PPR 406) acrescenta, respectivamente, 1 ponto na nota final. A
declaração de leitura deverá ser entregue até três meses depois da finalização do
módulo. (Valor: 30 por cento da gradação final.)
• Esboço detalhado e sermão escrito, abordando um problema, causas e solução
bíblica, com cerca de 15 páginas (PAC 413) ou 20 (PPR 406) a ser entregue até três
meses depois da conclusão do módulo.

Pregação para aconselhamento – © 2009, Wadislau Martins Gomes


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LEITURA RECOMENDADA:

Gomes, Wadislau Martins. Aconselhamento Redentivo. São Paulo: Editora


Cultura Cristã, 2004. (252 pp.)
Muller, Richard A. The Study of Theology. Grand Rapids: Zondervan, 1991. (235
pp.)
Murray, John. Redenção Consumada e Aplicada. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 1993. (200 pp.)
Poytress, Vern S. God Centered Biblical Interpretation (Presbyterian and
Reformed Publishing Co., Phillipsburg, NJ, 1999. (222 pp.)
______________ Synphonic Theology: The Validity of Multiple Perspectives in
Theology. Grand Rapids: Academic Books/Zondervan, 1987 ( pp.)
Schaeffer Francis A. The Great Evangelical Disaster. Westchester, Ill.:
Crossway, 1984. (192 pp.)

Pregação para aconselhamento – © 2009, Wadislau Martins Gomes


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CONTEÚDO

Introdução

Existe algo como “pregação para aconselhamento”?


Homilética
Teologia
Tríades de teoria teológica à prática de aconselhamento
Doutrinas definitivas e termos elásticos
Existe algo como pregação para aconselhamento?
Como não pregar para aconselhamento?

A Pregação e culto
Evangelismo implosivo
Quatro tipos de evangelismo
Evangelização implosiva

Psicologização do Púlpito e Relevância na Pregação


A história da redenção e a pregação na história
Pregação antitética e importante versus pregação pragmática e relevante
Linguagem e comunicação
Comunicação da Palavra
Desenvolvimento da mente secular e possibilidades de pregação
Um termo da psicologia corresponde a um termo da Bíblia?
Pregação Importante e Temas Relevantes
Conclusão

Interpretando a Palavra e interpretando a pessoa


O uso da Escritura para aconselhamento
A Palavra de Deus é viva e eficaz
Como, então, interpretar a Escritura em relação ao aconselhamento?
A Palavra de Deus Usa Perspectivas, Temas e Termos Elásticos
A Palavra de Deus é Teórica Prática

A Escritura, o pregador e o ouvinte


A Escritura: o pregador é o meio entre a hermenêutica e a pregação
Um exemplo bíblico: a Epístola de Paulo aos Coríntios
Divisão e dispersão
União e propósito
Divisão e dispersão
Princípio, aplicação e implementação
O uso que Paulo fez de termos, expressões e metáforas

O modelo redentivo

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PREGAÇÃO PARA ACONSELHAMENTO

INTRODUÇÃO
Em meu livro, Aconselhamento Redentivo, escrevi que “o aconselhamento
cristão não deveria ser considerado como uma especialidade separada do aspecto
pastoral e da comunhão cristã na igreja. Para o pastor, as habilidades para o
aconselhamento são tanto parte do preparo e da entrega de sermões quanto da
prontidão para responder aos ouvintes após a mensagem. É preciso que o pastor seja
hábil interprete da Palavra e hábil interprete de pessoas, se ele quiser ser efetivo no
ministério”.1 Creio que este é um bom começo nosso estudo sobre pregação e
aconselhamento pastoral.

Existe algo como “pregação para aconselhamento”?


Certamente, a declaração é redundante. A natureza da própria pregação é de
aconselhamento. Entretanto, dado que muitos pregadores têm perspectivas
particulares a respeito da pregação, faz-se necessário explanar sobre o conceito de
pregação para aconselhamento no contexto do nosso estudo.

Homilética
Para ilustrar o que quero dizer por “perspectivas particulares”, veja, por
exemplo, a questão de tipos de sermões. Para fins didáticos, é costume dividir os
tipos de sermões em categorias: textuais, tópicos e expositivos. O problema é que
professores e alunos passaram a considerar tais divisões didáticas como sendo
categorias estanques e preferenciais. A esse respeito, levanto algumas questões. Um
sermão poderá ser tópico sem considerar textos específicos? Poderá ser textual sem
considerar tópicos relacionados? E poderá ser expositivo sem levar em conta o texto
e os tópicos relacionados?
Jay E. Adams, cuja formação em pregação e em aconselhamento o autorizam
a mais do que somente comentar, escreve:

Por muito tempo temos recebido a informação de que há três tipos de pregação:
expositiva, tópica (ou doutrinária) e textual. Mais do que indicadores de ênfases, tais
distinções são ingenuidades sem sentido e servem mais para criar confusões que
causam mais mal do que bem. Em toda boa pregação, essas três perspectivas jamais
poderão ser separadas; somente em pregações pobres você encontrará tais
separações. Por exemplo, “pregadores expositivos” fracos acham que a exposição
implica meros comentários sobre uma passagem da Escritura durante um período de
tempo, cobrindo um número de áreas com aplicações interpessoais, e concluindo
quanto o relógio avisa que terminou o tempo. “Pregadores tópicos” fracos tomam um
tópico ou tema à parte da Escritura (ou usando a Escritura como pano de fundo), e

1
Wadislau Martins Gomes, Aconselhamento Redentivo (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004), 8.

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declama trivialidades piedosas e verdades sem nenhuma consideração quanto à


exposição da Palavra. Agem como se toda a congregação fosse crer somente naquilo
ele estaria dizendo. “Pregadores textuais” fracos tomam um verso ou dois, ou uma
palavra, e discorrem sobre isso totalmente (ou quase totalmente) fora de contexto...
A verdade é que em todo bom sermão, todos esses aspectos estarão presentes. Terá
sempre de haver um texto ou (como já tenho dito) “uma porção pregável”. Esta é a
passagem (ou passagens) que forma a base dada por Deus para tudo o que é dito na
pregação. O texto poderá ser curto ou longo... Terá de haver um tópico. Como
alguém poderia pregar sem um assunto (ou tópico) sobre o qual pregar? ... A ênfase
tópica (doutrinária) talvez tenha de incluir outras passagens bíblicas ... Mas o uso da
passagem base e das demais passagens exigirá exposição (de cada passagem, com
sua ênfase télica ou proposicional)...2

(Adams introduz o artigo seguinte ao seu: “A Lei Escrita no Coração”,


sermão “para aconselhamento”, de Charles Spurgeon,3 e o guia de estudo de tal
sermão, elaborado por David Powlison.4)

Teologia
Igualmente, quando falamos sobre teologia, saímos com uma carta da manga e
exclamamos conspicuamente: “Prefiro teologia bíblica à teologia sistemática”. A meu ver, a
Bíblia é a base proposicional da tarefa do pregador, a teologia bíblica é seu método
organizacional, e a teologia sistemática, seu plano funcional de abstração prática. O que é
que eu quis dizer? Que a Bíblia é a fonte da água viva, a teologia bíblica o vasilhame em
que são guardadas as porções de água, e a teologia sistemática, o ato examinar a água para
servi-la às diversas necessidades.
Richard A. Muller, escrevendo sobre a unidade do discurso teológico, especialmente
sobre objetividade e subjetividade no seu estudo, argumenta que a divisão usual em teologia
bíblica, histórica, sistemática e prática é justificada. “Para afirmar o caso ainda mais
teologicamente”, ele diz, “o princípio escritural da Reforma requer uma distinção inicial
entre teologia bíblica e histórica, enquanto que os mandamentos bíblicos para crer e
obedecer, criam a distinção entre as disciplinas do pensamento e ação, sistema e prática”.
Contudo, se não considerarmos a unidade do discurso teológico, perderemos a relação
conseqüente entre os aspectos do estudo, especialmente da prática final. Muller escreve:

O estudo da teologia, então, através de grande parte da tradição cristã, foi um estudo
do material relevante para a vida da igreja e para a espiritualidade do indivíduo. Mais
do que isso, a meditação sobre o material da teologia era tão espiritual quanto uma
disciplina acadêmica. A disciplina da teologia – de fato, a disciplina do estudo da
teologia – deveria criar na mente dos estudantes uma série de padrões de idéias e
interpretações que podem influência a mente e a vontade, pensamento e ação.5

Os Guinness e John Seel, no preâmbulo exortativo feito aos evangélicos, no livro No


2
Jay E. Adams, “What Kinds of Preaching Are There?”, Journal of Bíblical Counseling, 1994, Vol. XII, No.
2, 24.
3
Ibid., 25.
4
Ibid., 32.
5
Richard A. Muller, The Study of Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1991), 175.

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Gods But God, escrevem:

Com magníficas exceções, os evangélicos refletem uma decadência da verdade e a


reforçam de muitas maneiras, desprezando a teologia. Repelida a guisa de “teologia
de seminário”, como se fosse especializada, profissionalizada e seca, essa decadência
permite que os evangélicos sejam atraídos por movimentos que substituem a teologia
por ênfases relacionais, terapêuticas, carismáticas e empresariais (movimento de
crescimento da igreja). Quaisquer virtudes que contenham, nenhuma dessas ênfases
dão à verdade e [ao seu estudo na teologia] o lugar que ela requer na vida e no
pensamento do verdadeiro discípulo.6

Calvino tece, em diversos escritos, alguns comentários sobre doutrina, pregação e


aconselhamento:

...não basta ensinar, se você não insta... Pois a doutrina do evangelho é ajudada por
exortações, para que não fique sem efeito... é responsabilidade do embaixador
reforçar com argumentos... Eles [os pregadores] não apenas “oferecem” ...a graça de
Deus, mas se esforçam ...para que ela não seja oferecida em vão.7
Uma exortação não exclui a doutrina... este é o ofício do que ensina: não proferir
palavras de seu próprio pensamento, mas da Escritura...8
Mas sabemos que o uso do ensino é duplo; primeiro, que aqueles que sejam
totalmente ignorantes aprendam os elementos primários, e segundo, que aqueles que
são iniciados, progridam.9

Tríades de teoria teológica à prática de aconselhamento

6
Os Guinness e John Seel, org., No Gods But God (Chicago: Moody Press, 1992), 18.
7
João Calvino, Commentaries, Vol. 20, 244.
8
Ibid., Vol. 18, 514.
9
Ibid., Vol. 22, 230.

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Doutrinas definitivas e termos elásticos


Havemos de reconhecer que a Palavra de Deus é definitiva sobre muitas coisas em
termos de conhecimento de Deus e de sua vontade (visto que Deus é perfeito e imutável),
mas, também, que ela é menos definitiva e mais descritiva com respeito às coisas dos
homens (visto que somos imperfeitos e mutáveis). Deus usa palavras de homens para
revelar a si mesmo e sobre si mesmo a fim de que os homens usufruam o processo e para o
louvor da glória de sua graça. Palavras são fluidas, dinâmicas e elásticas; elas se justapõem,
opõem-se e cobrem umas as outras numa sintopia (tópicos em sintonia).
Despendo tempo e espaço preciosos para explicar tais coisas porque reconheço que
o assunto está tão incrustado na pedra da mente que é de difícil mudança de perspectiva.
Contudo, temos a promessa do Senhor Jesus Cristo de que o Espírito Santo nos guiará a
toda verdade.

Existe algo como pregação para aconselhamento?


Agora, sim, estamos preparados para uma resposta à pergunta levantada nesta seção:
Existe algo como pregação para aconselhamento? Não e sim. Não, no sentido de que todas
as mensagens deveriam cumprir seu papel profético: “Mas o que profetiza fala aos homens,
edificando, exortando e consolando” (1 Coríntios 14.3). Sim, no sentido de que algumas
mensagens, mais do que outras, objetivam a preparação para enfrentar problemas e para a
redenção do caráter em face dos problemas: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil
para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o
homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Timóteo
3.16-17).
James Lansberry, membro da Redeemer Presbyterian Church (PCA) em Peoria, Ill.,
vice-presidente operacional de Samaritam Ministries, escreveu um artigo sobre pregação de
uma perspectiva do ouvinte, dando sua impressão sobre como muitas pregações são e como
poderiam ser. Na conclusão do artigo, ele escreve:

Deus quer usar sua pregação para mudar as vidas das pessoas [alvo do
aconselhamento]. Entretanto, negligenciando os três fatores: simplicidade,
autoridade e praticidade, você estará retirando o âmago do poder transformador da

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palavra pregada. Nós [os ouvintes] somos ovelhas estultas; precisamos de sermões
de estrutura simples. Somos rebeldes, pecadores de surdos ouvidos; precisamos de
mensagens entregues com autoridade. Somos confusos, vagantes; precisamos de
algo que mudem as nossas vidas de maneiras práticas. Oro, pedindo a Deus que nos
dê isto: que a cada Dia do Senhor ele nos alimente com boa comida temperada com
estes três ingredientes.10

Como não pregar para aconselhamento?


A pergunta: “Como pregar para aconselhamento?” deveria ser substituída
por: “Como não pregar para aconselhamento?” É simples! Em 1 Co 14 está escrito:
Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, exortando e consolando. De fato,
se a tarefa do pregador é a do profeta, não haverá outra forma de pregar senão para
aconselhamento. Muitos de nós adquirimos o vício frustrante de procurar textos que
ofereçam boa possibilidade para se fazer um sermão. Quinta-feira, geralmente, é o
dia em que a procura começa. Como um compositor de escola de samba, o pastor se
agonia em busca de um texto que “dê sermão”. Isso não deveria ser assim. Na
verdade, o sermão flui do estudo bíblico pessoal, em humilde oração, processado no
culto individual e no culto familiar, e experimentado no dia a dia na comunhão dos
irmãos.
A dificuldade que muitos temos com o preparo e a entrega de sermões
procede, em primeiro lugar, da formação de deficiências de nossa comunhão
pessoal com Deus e com Sua Palavra, e em segundo lugar, das deficiências de nossa
formação básica dos hábitos de leitura e de estruturação do pensamento. Uma boa
compreensão sobre a integração de conceitos de instrução, comunhão, adoração e
serviço (cf. At 2.42-47) auxiliará o pregador a aumentar sua habilidade de falar aos
homens, edificando, exortando e consolando. O contacto do pregador com Deus e
com a Sua Palavra deveria prefigurar o contato do pregador e da sua palavra Deus e
com os seus ouvintes.
Uma das dificuldades advindas da nossa formação é a de que aprendemos a
ler as palavras sem prestar muita atenção aos sentido delas. O tempo gasto para ler
sílabas, palavras e frases, geralmente, distrai nossa atenção do sentido das palavras.
Da mesma forma, aprendemos disciplinas escolares sem prestar atenção à sua
integração prática.
Um exemplo disso é a confusão levantada tanto pelos defensores quanto
pelos oponentes da teologia sistemática. Por que existe essa confusão? Uma das
razões é a que já tratamos acima, de que há pessoas que não atentam à integração
circular crescente do estudo da Palavra: a Escritura é a proposição de Deus para a fé
e a prática de vida; a teologia bíblica é a organização dessas proposições em
categorias de pensamento bíblico; e a teologia sistemática é a fundamentação e
categorização dessas proposições em termos de abstrações práticas.
Essa integração é circular e progressiva porque existe num ambiente
espiritual / material cujo ponto de partida habita em Deus para conhecimento e cujo
ponto de fuga retorna para Deus em obediência. A mesma integração deveria ser
10
James Lansberry, “A View from the Pew”, The Journal of Modern Ministry, 2005, Vol. 2, Issue 1, 139-43..

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feita em relação a homilética: a revelação escrita de Deus é a hermenêutica da


hermenêutica da criação, da qual, o pregador, em comunhão com Deus, deveria
fazer a hermenêutica a fim de construir sua homilética.
Difícil de entender? Deus fez uma hermenêutica daquilo que iria criar; depois
da criação e da queda, produziu uma hermenêutica que possibilita o conhecimento
das dinâmicas da Criação, da Queda e da Redenção. A tarefa do pregador é a de
produzir a hermenêutica da Palavra a fim de “revelar” aos seus ouvintes o
conhecimento de Deus, e as dinâmicas do conhecimento do homem e do mundo.
Muller diz que a contextualização deveria ser uma prática consciente do
exercício da hermenêutica historicamente controlado.

A doutrina da expiação fornece uma excelente série de exemplos para discussão. O


Novo Testamento fornece não uma, mas várias maneiras para descrever a obra
expiatória de Cristo: é um resgate pago pelo pecado, uma reparação sacrifical pelo
pecado, um ato substitutivo que coloca Jesus em nosso lugar sob a punição divina
por causa do pecado; é a vitória de Cristo sobre o poder do mal; é a manifestação
redentiva do amor de Deus; é o ato de o segundo homem ou segundo Adão se tornar
cabeça da humanidade no lugar de Adão. Todas essas aproximações à expiação são
achadas no Novo Testamento e podem ser ligadas exegeticamente à necessidade de
situações particulares da vida para interpretação e pregação do evangelho.11

John MacArthur, num sermão “para aconselhamento” baseado em Judas 24-


25,12 pergunta sobre qual seria, na visão do leitor, a verdade mais importante na
esfera da salvação. Sem desprezar cada uma das doutrinas da salvação (conversão,
adoção, reconciliação, remissão, redenção, etc.), ele elege a doutrina da
perseverança com a mais importante, a seu ver.

...todas essas doutrinas serão diminuídas se a salvação não fosse para sempre. Retire
tal doutrina [perseverança dos salvos], e toda alegria consumada, confiança.
segurança, descanso, conforto e esperança serão significantemente degradados e
justificadamente substituídos por dúvidas, medos, ansiedades e preocupação .... Qual
seria a garantia? .... A bendição de Judas 24.25 responde à questão.13

A pregação para aconselhamento não é diferente de qualquer outra, senão


que requer um trabalho hermenêutico da Palavra e da audiência para uma exposição
calorosa e autêntica cujo objetivo é edificar, exortar e consolar. Ela se mostrará
efetiva quando exibir a relação entre a unidade multi-perspectiva da mensagem e a
coerência do ato-estrutura (atividade interna e externa da palavra e da vida) do
pregador com o objetivo de transformar o caráter dos ouvintes e de produzir
mudança de comportamento.
11
Richard. A. Muller, The Study of Theology, 205.
12
“Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados
diante da sua glória, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade,
império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos. Amém!”
13
John MacArthur, “Sermon on Jude 24-25”, The Journal of Modern Ministry, 2005, Vol. 2, Issue 1, 117-34.

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A Pregação e culto
O apóstolo Paulo, discorrendo sobre a luta pelo poder e o uso da
comunicação, em Coríntios 12-14, encerra a argumentação estabelecendo ligação
entre a evangelização e o aconselhamento. De uma maneira clara, ele apresenta uma
ligação entre tal pregação e o próprio culto: “Porém, se todos profetizarem, e entrar
algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido e por todos julgado;
tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a
face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de
vós” (1 Co 14.24-25).
A fim de entender a dinâmica da pregação para aconselhamento para
edificação da igreja, será preciso ter uma visão geral do aconselhamento para
evangelização. Tal é o caso da proposta de um evangelismo implosivo.

Evangelismo implosivo
Suponha que você esteja voltando de um estudo bíblico sobre evangelização,
sentindo-se desafiado a falar do evangelho à primeira que pessoa que dê tal
oportunidade. Num banco de praça perto de sua casa, um vizinho, professor de
ciências do grupo escolar do bairro, cumprimenta-o e, gentil, convida-o a sentar. Ao
lado, um raro pau-brasil domina a área; um cão pequinês fareja um rato no gramado
úmido; o ambiente está pleno de claridade e calor amainado pelo pela brisa.
Deixe fazer uma pergunta daquelas que a gente fica olhando com ar de quem
não se localizou ainda: Qual seria o ponto de contacto entre você e seu vizinho, que
lhe permitira uma conversa evangelizadora efetiva? A árvore, o cão, o sol, o vento?
Como poderia ser, se para o seu vizinho toda a natureza é produto do acaso ao longo
do tempo? Seria você mesmo? Como, ainda, poderia ser, se, além do antagonismo
anticristão (a despeito de toda gentileza) domina o não-cristão? Seria ele mesmo?
Como, também, poderia ser, se ele se encontra perdido? A única resposta seria:
Deus mesmo é o ponto de contacto entre o crente e o incrédulo; e a ausência de
Deus, o ponto de contacto entre o incrédulo e Deus.
De posse desse conceito, há mais uma questão: Como é possível falar de
coisas espirituais a alguém que se encontra morto em delitos e pecados? Como disse
o Senhor Jesus a Nicodemos: “Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como
crereis, se vos falar das celestiais?” (João 3). Falar do evangelho a um incrédulo é
com um estrangeiro sem que os interlocutores falem a língua um do outro.O
pensamento pós-moderno (caracterizado pela ausência de absolutos e de obrigação
moral e pelo conceito de que tudo no mundo é construção linguística), agrava a
situação. Seu vizinho poderá até concordar que você tem o direito de crer como crê,
mas você terá de concordar que ele também tem tal direito. Sequer será
politicamente correto tentar uma aproximação proselitista. O que fazer?
A proposta de um evangelismo implosivo segue o padrão da Grande
Comissão: “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi

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dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-
os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as
coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século” (Mateus 28.18-20). Em meu livro Em Terras dos Brasis,
ilustrei esse texto, dizendo que, indo, sob a autoridade de Cristo, apontamos para
Jesus andando sobre as águas para que outros o sigam; empurramo-los para que,
além de segui-lo, nadem com ele; e, finalmente, pulamos nas águas junto com eles
para gozar da presença de Jesus. Essa ação envolve realismo com esperança. Não
apontamos para um ideal romântico nem falamos de subir aos céus, mas apontamos
para o Deus conosco e falamos de Cristo em nós.

Quatro tipos de evangelismo


Quatro tipos (pelo menos) de evangelismo (sistema baseado no evangelho)
podem ser usados por Deus para a obra da evangelização (ação de evangelizar).
Entretanto, aplicados isoladamente, tais tipos de evangelismo refletem apenas parte
da verdade evangélica e, por isso mesmo, falham com respeito a atingir o objetivo
de Deus.
O primeiro é o mais conhecido e dominou as grandes campanhas
evangelísticas dos últimos séculos até recentemente. É a evangelização de massas.
Hoje, a tentativa continua sendo feita, mas, devido a migração do grande público
das salas de espetáculo para a TV, a evangelização de massas tomou jeito de
audiência de sofá (o fenômeno das novas igrejas é outro).
O segundo tipo o evangelismo intensivo, caracterizado por uma apresentação
do método da salvação. Um grande homem de Deus, excelente evangelista, enviou
uma carta a um amigo. O amigo recebeu a carta do amigo, o que sempre é mais que
uma carta, como disse Paulo na carta a Filemom, quando enviou Onésimo e, junto
dele, o seu próprio coração: “eu te escrevo, sabendo que farás mais do que estou
pedindo” (1.21). Mais tarde, a carta foi transformada num folheto, cujo uso
implicava treinamento especial, decoração do texto, etc.
O terceiro tipo é o evangelismo religioso, muito usado nas igrejas
tradicionais, especialmente no século passado. Lembra-se do “convidar para ir à
igreja”. Tal modelo é baseado em modelação (testemunhos públicos, testemunho
pessoal, “olhe como sou abençoado”, etc.) expectação (“Olhe só o que Deus pode
fazer em sua vida”) e experiência espiritual social (“sinta-se bem no nosso meio”).
O quarto tipo é o já fora-de-moda evangelismo místico, “de sinais e
maravilhas”. Certamente, eu acredito que sinais e maravilhas comprovaram a
origem divina do evangelho e que Deus ainda age supranaturalmente para
corroborar a pregação das boas novas de Cristo. Mas o fato de que a história mostra
como ocorreu o processo de desvio desse tipo moderno de evangelização, é preciso
agir criticamente em relação a esse tipo em especial. Antes, era a Palavra de Deus
experimentada, depois veio a Palavra de Deus mais experiência; depois disso,
experiência mais Palavra de Deus; finalmente, está aí a experiência sem a Palavra
de Deus. É um grande desvio.

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Correta e juntamente aplicados, os quatro tipos poderão ser bons


instrumentos de evangelização. Pregação de massas com apresentação de métodos e
com exibição de modelos e de poder espiritual pode ser efetiva na proclamação do
evangelho, se tiver conteúdo bíblico suficiente. Isoladamente, porém, tais tipos de
evangelismo apresentam uma mensagem impessoal, mecânica, religiosa e mística
que foge das características da Grande Comissão.

O grande problema é que tais tipos de evangelismo não atingem os ídolos do


coração, os quais são tentativas de substitutivos para a soberania, a verdade e o
amor de Deus. Temos de manter em mente que a função da evangelização é pregar a
bondade de Deus para arrependimento e fé a um mundo decaído cuja natureza é
rebelde contra Deus, reversa em termos de pensar o contrário dos pensamentos de
Deus, e inversa no sentido de pensar em referência a si mesmo em vez de em Deus
primeiro e depois no próximo como em si mesmo.
Enquanto os evangelistas não estiverem plenamente convencidos pelo
Espírito de Deus pela instrução da Palavra, sobre a altura da santidade de Deus e da
profundidade do pecado humano, não serão bons evangelizadores; e enquanto os
humanos sem Deus não estiverem convencidos pelo Espírito Santo pela pregação da
Palavra, sobre a profundidade do pecado, da justiça e do juízo, e da altura da
santidade e da bondade de Deus não poderão ouvir e crer e arrepender para serem
salvos.

Evangelização implosiva
Por que implosiva? Estou pensando em uma comunicação efetiva que, para
bem da economia do pensamento, preencha três solicitações:

• Um evangelismo (sistema baseado no evangelho) que fale da obra completa


de Cristo ao homem completo, de modo substancial.
• Uma evangelização (ação de evangelizar) aconselhadora que responda às
questões das pessoas sobre a razão da esperança contra a desesperança de
sofismas e idéias opostas a Deus.
• Um evangelho (boas novas da salvação) que proponha transformação de

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caráter à semelhança de Cristo em termos individuais e corporativos.

O apóstolo Paulo, em Colossenses 1.15-28, fornece uma mostra do conteúdo


evangelístico que tenho em mente. Dado o fato de que a fé contempla o invisível, a
existência, o poder criado e a bondade de Deus (Hebreus 11.3, 6), Paulo começa
localizando Jesus Cristo nesse contexto: ele é a imagem do Deus invisível, ponto
referencial da criação, o qual se fez carne, habitou entre os homens, morreu,
ressuscitou e ascendeu aos céus, de onde enviou seu Espírito para vir habitar em
nós, individualmente e na igreja. E conclui: “Cristo em vós, a esperança da glória; o
qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda
a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; para isso é
que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia
que opera eficientemente em mim” (vv. 27b-29).
A isso eu chamo de evangelismo implosivo. Com o que ele se parece? De
todas as situações de evangelismo, na Bíblia, a mais descritiva do processo em
termos da natureza e estratégia é o caso de Filipe e o oficial etíope (At 8.26-40). O
relato apresenta aspectos supranaturais e naturais da experiência do evangelismo
implosivo (“uma anjo falou a Filipe: Dispõe-te e vai... Então, disse o Espírito a
Filipe: Aproxima-te desse carro e acompanha-o”). O etíope, de volta de adorar a
Deus em Jerusalém, vinha lendo as Escrituras, sobre o profeta Isaías. Indagado se
entendia o texto, o oficial da rainha etíope respondeu: “Como poderei entender se
ninguém me explicar?”. Para encurtar a história, Felipe discorreu sobre a passagem,
apontando para o Cordeiro de Deus. Implodidas as idéias religiosas através das
quais tentada entender as coisas, o etíope certamente teve sua vida transformada (o
texto deixa transparecer isso na ação do Espírito) e, finalmente, quis ser batizado.
“Eis aqui água; que impede que seja eu batizado? Filipe respondeu: É lícito, se crês
de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de
Deus.Então, mandou parar o carro, ambos desceram à água, e Filipe batizou o
eunuco” (vv. 36a-39).

A evangelização implosiva propõe uma base evangelística na igreja


caracterizada pelo culto teo-referente racional e vivo. O culto de adoração pública é
o ponto maior do significado da vida e prepara a pessoa para o culto do dia-a-dia. A

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15

Palavra lida e pregada, a Santa Ceia e o Batismo são elementos poderosos,


argumentos audíveis e visíveis para edificação da igreja e para evangelização dos
não-cristãos. Especialmente quando são atos conscientes e sinceros, seguidos da
prática necessária: se alguém ouve a Palavra e na a pratica é com um homem
natural; quem participa das Ceia da Senhor em pecado ou deixa de participar por
causa do pecado não-confessado, é réu do corpo de do sangue de Cristo; e quem é
batizado, mas rejeita a fé, rejeitou o corpo de Cristo. Contudo, quem guarda a
Palavra, observa a comunhão com Deus e com os homens, e permanece na fé, este é
vitrioso – e ouvido quando evangeliza o amigo, o conhecido e o estranho.
Assim, a proposta da evangelização implosiva é esta:

• Em vez de evangelismo extensivo, culto teocêntrico.


• Em vez de evangelismo intensivo, exibição da unidade da igreja em verdade
e amor.
• Em vez de evangelismo religioso, pregação é prática da Palavra.
• Em vez de evangelismo místico, fé no poder de Deus (e não nosso poder para
convencer Deus e os homens).

Esse tipo de evangelização implode o coração das pessoas como um dia


implodiu o nosso com a convicção do nosso pecado sobreposta pela imensa graça
de Deus.

Quando Deus o indivíduo e a igreja vivem e pregam coerentemente, exibem


ao mundo que Deus está no controle da verdade, presente em amor e com
autoridade sobre todas as suas obras. “Por esta causa, me ponho de joelhos diante
do Pai, de quem toma o nome toda família, tanto no céu como sobre a terra, para
que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder,
mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso
coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes
compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a

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profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que
sejais tomados de toda a plenitude de Deus. Ora, àquele que é poderoso para fazer
infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder
que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as
gerações, para todo o sempre. Amém!” (Efésios 3.14-21).
Não importando as tendências da mídia nem as “necessidades” relevantes do
povo, a igreja tem de continuar a pregar o que Deus quer e sabe que é o melhor para
nós. Deus sabe o que são estratégias, lucros e perdas e propaganda efetiva. Quando
a nós: “Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça, bem-aventurados sois.
Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados; antes,
santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para
responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o,
todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que
falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom
procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais
por praticardes o que é bom do que praticando o mal” (1 Pedro 3.14-17).
Precisamos compreender – entender, abarcar e abraçar – a certeza de que
Deus levará a cabo seu propósito de proclamar o evangelho por meio de sua igreja,
na unidade fé (não na unidade da programação ou da paz entre os homens, que
inimiga de Deus, o pluralismo teológico). Quando a igreja vivencia a verdade em
amor, a fidelidade à Palavra de Deus, e a sabedoria de Deus em pensamento e em
comportamentos, o mundo vê, o mundo ouve: “para que, pela igreja, a multiforme
sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos
lugares celestiais, segundo o eterno propósito que estabeleceu em Cristo Jesus,
nosso Senhor, pelo qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele”
(Efésios 3.10-12).
Só assim cumpriremos a tarefa que o Senhor delegou: “Jesus, aproximando-
se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide,
portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho
ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século”
(Mateus 22.18-20).
O aspecto distintivo é que a evangelização implosiva é, ao mesmo tempo,
proclamação das boas novas, aconselhamento e discipulado. É o poder de Deus para
implodir corações, vencer rebeliões, trazer arrependimento às reversões dos
pensamentos, e fé em Deus para abandono de ídolos e paixões – para o reino do
Filho do seu amor.

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Psicologização do Púlpito e Relevância na Pregação*

Introdução
Certamente nossos púlpitos estão precisando de mais referências sobre Nietzsche,
Darwin, Freud, e outros. Criticamente. De fato, os sermões, não raro contêm pensamentos e
até frases, dos pensadores “que regem o mundo a partir do túmulo”,14 sem citação de fonte.
Vêm embrenhados na cultura geral, formativa, da sociedade moderna e pós-moderna − não
só dos pregadores. O fenômeno não é particular da igreja, mas foi “importado” para o novo
mundo cristão como especiarias de consumo para agradar o paladar de um novo tipo de
fome.
A última pulsão histórica do pensamento secular − no bojo dos séculos XVIII e XIX
− trouxe aos portos da cristandade o seu grito de independência e morte. “Deus não pode ser
tocado”, bradaria Kant. “Deus sequer pode ser contatado”, ressoaria Schleiermacher. “Deus
não fala”, diria Wellhausen à meia-voz. “Deus morreu”, afirmaria Nietzsche, peremptório.
“Deus é o mal”, determinaria Freud. Súbito, a igreja viu minguar os peixes de suas praias.
Viu se erguerem ondas de autonomia, espumadas de critica e indução, e da independência
da consciência humana lançando na areia móbil a mornidão de uma religião científica.15
Grande número de pregadores abandonou suas redes em busca de alimentos
sintéticos para as necessidades de uma nova sociedade. Faltos de uma epistemologia bíblica
e de uma metafísica transcendental, não poucos pastores − alimentadores do rebanho, curas
de almas, educadores da fé, e pregadores do evangelho − se encontraram reduzidos da
autoridade da Palavra e desejosos do poder da persuasão. O povo estava ali, mendigando à
porta do templo, esperando o favor de Pedro, porém, com novos olhos, ouvidos, e mente.
Onde a relevância do evangelho? Onde o poder e a autoridade nos céus e na terra? Onde a
experiência religiosa? Certamente, o alimento da Palavra, a água do batismo, e o pão e o
vinho da Ceia eram ainda bons memoriais para a fé e, talvez, até mesmo excelentes
metáforas para as grandes descobertas das psicologias. Estaria aí uma nova bênção de Deus?
Novo composto vitamínico cultural para uma população de baixa renda espiritual?
Armand M. Nicholi, professor da Harvard University, escreveu:

Historiadores, hoje, comparam as contribuições científicas de Freud com as de Plank e


Eistein. Ele aparece na maioria das listas dos grandes médicos da história, Esteve
recentemente na capa de Times (com Albert Eistein) numa edição dedicada às maiores
mentes científicas do século, em sexto lugar num rol de cem dos cientistas mais influentes...
Usamos expressões tais como ego, repressão, complexo, projeção, inibição, neuroses,
psicose, rivalidade fraterna, e lapso freudiano, sem sequer citar a fonte.16

*
Wadislau Martins Gomes, Psicologização do Púlpito e Relevância na Pregação, em Fides Reformata, vol. X,
No. 1, 2005, 11-29.
14
Parte do título do livro de Breese, Dave. Seven Men Who Rule the World from the Grave. Chicago: Moody
Press, 1990.
15
Ver o acurado tratamento que Van Til dá ao assunto. Van Til, Cornelius. In Defense of the Faith: Psichology
of Religion Phillipsburg, N.J.: PRPC, 1971, ps. 1-7.
16
Nicholi, Armand M. The Question of God. New York: Free Press, 2002, p. 2.

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Pretendemos, aqui, considerar a necessidade de um retorno de nossos púlpitos à


prática de uma epistemologia bíblica e sua conseqüente apologética cristã. Para isso será
necessária uma avaliação da finalidade do homem e da sociedade, e do propósito da
pregação. Será preciso também um exame da importância da pregação expositiva (que só
será realmente expositiva se for também ao mesmo tempo textual e tópica). E será ainda
valiosa uma ponderação sobre a relevância da psicologia bíblica redentiva (que bons autores
relutam em considerar por causa da possibilidade de mistura e confusão).

A história da redenção e a pregação na história


Reações de pregadores religiosos às tragédias do 11 de setembro de 2002 e do
tsunami de 2004 ilustram algumas das fraquezas teológicas do púlpito moderno. Numa
reunião de solidariedade da comunidade americana em São Paulo, um sacerdote romano
concluiu que Deus não estava presente no ataque terrorista às torres gêmeas de New York.
Deus chegou atrasado, anuiu um rabino. Só o pastor reformado pode dizer que Deus esteve
lá, morrendo antes da fundação do mundo por causa do pecado. No outro caso, o desastre
natural (talvez a gota d’água em forma de uma grande onda) fez um pastor evangélico
decidir: Deus não conseguiu evitar a catástrofe.
Eventos ainda mais terríveis foram relatados na imprensa divina, juntamente com o
registro de diferentes reações. Depois da expulsão da humanidade da terra natal, mudando
radicalmente o mundo e a sociedade, a natureza e os relacionamentos, Adão e Eva
coabitaram e tiveram um filho, do qual Adão disse: “Adquiri um varão com o auxílio do
Senhor” (Gn 4.1). Mais tarde, esse filho, referendando a Queda por meio do culto
autodeterminado, encheu-se de ira e de inveja do culto redentivo de seu irmão Abel, e o
matou. Sendo aconselhado por Deus quanto ao problema da depressão e da ira, impenitente,
disse: “É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo” (Gn 4.13).
Depois da hecatombe universal do Dilúvio, Noé levantou “um altar ao Senhor e...
ofereceu holocaustos... E o Senhor aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não
tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem” (Gn 8.20-21) − e fez com ele uma aliança
eterna. Mais tarde na história, os homens se esqueceram do pacto do Senhor, e disseram:
“Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e
tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra” (Gn
11.3-4).
O acontecimento mais terrível de toda a história, a cruz do Gólgota (alguém se
escandaliza com os lanhos da Paixão de Cristo, do Mel Gibson?), também apresentou
reações opostas, as quais já tinham sido profetizadas por Simeão: “Eis que este menino está
destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de
contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os
pensamentos de muitos corações” (Lc 2.29-35). Herodes, por sua vez, “enfureceu-se...
grandemente e mandou matar todos os meninos de Belém” (Mt 2.16).
O fato é que a história é feita sob controle, autoridade e presença do único Deus que
criou o tempo, a matéria e o espaço (Gn 1.1). Deus é o ponto referencial da história, o
princípio e o fim e, sem essa referência para a fé, não há como conhecer ao próprio Deus

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nem conhecer e entender o homem e o mundo (Hb 11. 3, 6).


Não é fácil, para os pastores, enfrentar o problema da dor em suas congregações.
Pequenas grandes tragédias assolam os rebanhos. Leões, ursos e goliases ameaçam os
campos de pasto e de guerra. Lobos vorazes causam temores por dentro e por fora, e nós só
temos para dar as palavras de um livro antigo e desprezado pelo século. “O Senhor é meu
pastor”, mas sentimos que falta alguma coisa de verdejante e de descanso. Não é importante
que feridas sejam curadas e que felicidade seja posta ao alcance daqueles pelos quais,
“afinal”, Jesus deu a própria vida? E a “santidade da vida”? E a “dignidade do homem”? E a
“justiça” e os “direitos” humanos?
Entretanto, o problema do sofrimento não é argumento para se acrescentar à Palavra
de Deus. Ele não deu seu Filho amado para valorizar a vida humana. Antes, Jesus morreu
por causa do pecado. Deus reivindicou no seu Filho a sua própria santidade, a justiça partida
e o direito quebrado. Nicholi, comparando o pensamento de Freud e a contraposição de C. S.
Lewis, um ex-freudiano, disse que para o analista a reconciliação do problema da dor e do
sofrimento era um obstáculo para a noção de uma cosmovisão cristã. Os cristãos, ao longo
da história, têm relacionado dor e sofrimento à Queda. Freud e Lewis perguntam: como um
Deus de amor permitiria o sofrimento? Freud usou o problema para atacar a promessa
judaico-cristã de que Deus abençoa aqueles que o obedecem. Lewis disse que a dor procede
do mal, mas que Deus a usa para produzir o bem. Claro, diz, Lewis, a proclamação da dor
pode afastar as pessoas de Deus e conduzir à rebelião.17 Porém, pensemos, onde estavam os
rebeldes antes do sofrimento e da dor? No culto autocentrado de Caim, na rebelião do
mundo caído, na expectativa do mal dos construtores de Babel? Certamente, com a
multidão, gritando: “Barrabás”! A dor, não raro, é uma desculpa para não enfrentar a
realidade de que fomos criados para Deus e só nele temos finalidade e propósito: “feciste
nos ad Te et inquietum est cor nostrum,donec requiescat in Te”.18
Sem uma noção teo-referente do Criador, da criatura e da criação, só nos restam
ídolos de substituição. Daí a ênfase tão grande no tema “Deus versus ídolos” na Escritura.
Sem uma noção da autoridade da Escritura como revelação proposicional de Deus, resta-nos
a observação “científica” de um mundo decaído, feita por observadores decaídos − rebeldes
contra Deus, reversos aos seus pensamentos, e inversos quanto à Fonte referencial da vida e
da identidade.
A Palavra de Deus pregada segundo a vontade de Deus não pode considerar a
Escritura em termos de comparação com a observação humana. A Bíblia não é um livro para
ser comparado com outros livros de arte, ciência ou tecnologia. Ela é desvalorizada tanto
quando tomada em isolação (Bíblia só) quanto para produzir “sintetização” (integração).
Antes, deve ser usada para o conhecimento de Deus e da criação a fim de que o homem seja
salvo em união com Cristo e cresça na salvação em união com demais salvos em Cristo −
recebendo a sua glória e espelhando sua glória para o mundo. Para satisfação deste último
mister, a Bíblia é a lente de análise crítica da realidade externa e do homem interior.
Assim, o pregador da história da redenção revelada na Escritura aos homens que
vivem a história faz bem quando conhece a Palavra de Deus como elemento crítico de outros

17
Nicholi, The Question of God, 183-215.
18
Agostinho, Confissões. I: 1.

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20

pensamentos redentores oferecidos por não-cristãos e cristãos enganados. Haverá sempre


elementos preciosos que Deus, pela graça comum, permite à humanidade decaída. Haverá
também boas críticas de anticristãos quanto aos nossos próprios erros, e que deveriam nos
desafiar. E há também uma razão imediata para que os pregadores se apliquem ao estudo
crítico dos pensadores anticristãos: a cosmovisão das nossas congregações é secular e mais
propensa a aceitar as mensagens “psicologizadas” apresentadas nos nossos púlpitos em
conteúdo e forma.

Pregação antitética e importante versus pregação pragmática e relevante


Edward Welch, do Christian Counseling and Educational Foudation, em
Philadelphia, teólogo e neuropsicólogo, elabora quatro proposições com respeito à terapia
secular19. Primeiro, diz ele, há a questão da identidade do terapeuta. A despeito de as
psicologias se colocarem no campo do desenvolvimento científico, a missão do terapeuta se
mostra mais ligada às áreas da teologia e do pastoreio. Ambos, terapeuta e pastor, atuam
com base na fé. Todos os fatos observáveis são fatos interpretados e, especialmente quanto à
pessoa, tais interpretações são providenciadas pela metafísica e pela religião, e não pela
observação científica. Por exemplo, o fato de que o homem tem um cérebro que atua no
comportamento é uma observação científica; entretanto, que problemas emocionais possam
ser causados por um complexo de Édipo, não é uma declaração científica.
Segundo, diz ainda, as cosmovisões das psicologias não são verificáveis. Antes de
ver um cliente, o terapeuta tem teorias e modelos que influenciam o modo de observar a
pessoa: teorias da personalidade, normal e anormal, bem e mal, certo e errado, motivação,
epistemologia − e Deus. Essas teorias não surgem de investigação científica mas de
movimentos internos e reações externas quanto às questões transcendentais, à realidade
observável, e às pessoas − tudo dentro de uma estrutura cultural, familiar, educacional,
política, etc. Elas não são testadas e provadas, mas vão sendo “autocomprovadas” de cliente
a cliente sob a hermenêutica do observador.
Terceiro, terapeutas raramente examinam seus compromissos de fé. Por razões
claramente políticas e históricas, psicólogos têm enfatizado sua relação com a ciência e não
com o cuidado pastoral (apesar de Freud ter usado o termo “cura de almas” em seus escritos
originais). Quando existe a tentativa de acomodar os dois opostos (integração ou síntese), o
mais comum é que o cuidado pastoral seja submetido às psicologias. São inegáveis os
fundamentos religiosos dos mais conhecidos iniciadores de escolas de psicologia, sem que,
no entanto, pastores e estudiosos cristãos, na maioria das vezes, levem em conta a premissa
de fé de seu anticristianismo.20
Quarto, terapeutas buscam conversões. As psicologias estão envolvidas na tarefa de
redenção (de problemas, de pessoas) por meio de redentores outros que não Jesus Cristo. É
certo que muitos crentes tornam artigos da fé cristã em ídolos (oração como meio de
controle de Deus e não como meio de dependência de Deus, decisão e não cruz como

19
Welch, Edward. The Journal of Biblical Counseling, “A discussion Among Clergy: Pastoral Counseling
Talks with Secular Psichology”, Vol. 13, Number 2, Winter. 1995.
20
Uma discussão mais extensa da relação entre nomes importantes das psicologias modernas, suas raízes
cristãs e seu anticristianismo, será oferecida em meu livro “Personalidade Centrada em Deus”, em preparo.

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referencial da salvação, missões como ponto central da Grande Comissão e não a Palavra de
Cristo, etc. − mas tudo isso é também psicologização).
Welch propõe quatro proposições para a consideração da fé na prática do gabinete e
do púlpito. A primeira é que a cosmovisão cristã é singular. Ela começa e termina com Deus
revelado na Escritura. A segunda é que a cosmovisão cristã bíblica fala com profundidade às
observações da psicologia moderna. A terceira, é que a cosmovisão bíblica fala criticamente
a fenômenos psicológicos sequer tratados nas psicologias seculares. A quarta é que o
mundo, o indivíduo, e a sociedade, não têm sentido fora da cosmovisão cristã.
Para o pregador, a importância de uma cosmovisão bíblica clara − uma hermenêutica
da Palavra para o estabelecimento de uma hermenêutica do mundo − têm razões maiores do
que a relevância da mensagem para o mundo. Na verdade, a simples idéia de que alguém
precise relevar a palavra de Deus − como se ela não fosse mar de bela simplicidade e
profundidade temerosa, voz de tempestade e rumor das águas − é um rebaixamento do seu
valor. A mensagem do evangelho já é relevante! Importante e relevante para atingir o
homem interior e o homem exterior (1 Co 14.24-25).
A grande razão para a construção de uma cosmovisão que reflita o pensamento
segundo os pensamentos de Deus é o próprio púlpito. De modo muito grave, pastores que
procuram a relevância da mensagem para a audiência sem considerar a importância da
Palavra, tornam-se medíocres, posto que “descem ao povo” para alcançar a média cultural.
Na tentativa de proferir mensagens “pop”, acabam sendo superados pela audiência. Neste
mundo “virtual”, homens, mulheres, adultos, jovens, e crianças, vêm às igrejas permeados
de “conhecimentos” filosóficos e psicológicos − mais do que seus pregadores. Novelas,
filmes, desenhos animados, noticiários político e esportivo, programas culturais, tudo tem
forte conteúdo filosófico e psicológico. A característica do “faz-de-conta”, ou mimese, do
teatro é a força da televisão. Na “caixinha”, pastores de sucesso dirigem “cultos” com a
preciosidade exigida pelo marketing moderno. Comédias, dramas e propagandas usam
requintados artifícios e argumentos vindos da cultura acadêmica. É inegável a influência de
autores versados em filosofia e psicologia na TV. Desde conteúdo romântico, realista,
social, do absurdo e outros, às técnicas derivadas das idéias, tudo está ali para ser aprendido
de modo não-formal. O estilo de documentário do “efeito de alienação” (técnicas
antiilusórias mostrando à audiência que ela presencia uma representação da realidade) cria
filósofos e psicólogos caseiros. Vez por outra uma expressão de Nietzsche espoca de
Zaratustra para a novela ou letra de música. Darwin é autoridade sobre a finalidade e o
propósito da vida. Ditos de Freud são contrabandeados para em filmes, novelas, e
propagandas − fora de contexto, analisando menos e formando mais o telespectador passivo.
Nomes influentes se tornam letras minúsculas na mente confusa do sambista: diderot, freud,
brecht, marx, etc.
A fim de alcançar essa audiência com a ajuda cristã, o pregador terá de conhecer o
mal que a acomete e não apenas, repetir o rótulo do problema. Terá de entender no coração a
extensão e profundidade do pecado e a extensão e profundidade da redenção. Por exemplo:
existem “mecanismos de defesa”? Sim, mas sua gênese não é freudiana. Freud os
identificou, como excelente observador do homem pecador, mas prisioneiro desses mesmos
mecanismos de defesa. A Palavra de Deus diz que nossa defesa e ataque se referem
primeiramente ao próprio Deus e, depois, às pessoas (Rm 1.18−2.15). Ela estabelece, de

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22

diferente perspectiva e corrigidos, esses e muitos outros “mecanismos”. O que deve ficar
claro, é que não se trata de cooperação entre psicologia e pregação bíblica, mas de uma
pregação importante para pessoas com problemas relevantes que devem ser tratados de
maneira evangélica, redentiva. “Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos
profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles
procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós
somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não
nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro” (1 Jo 4.4-6).

Linguagem e comunicação
O uso de termos das psicologias na pregação poderá dar a idéia de atualização e
erudição, ou de popularidade quando, principalmente, tais termos pertencem à psicologia
“pop”. Na verdade, pessoas influenciam pessoas e palavras influenciam pessoas.
Primeiramente a Pessoa e a Palavra de Deus e secundariamente pessoas e palavras humanas.
Mais do que nunca, a linguagem adquire hoje uma importância vital. É o coração da
comunicação. O alvo onde miram o pregador e o mundo com as armas da verdade e da
supressão da verdade. Especialmente o mundo pós-moderno muda e valoriza o conceito de
linguagem e expressão − atingindo a própria natureza da epistemologia e da metafísica.
A expressão “pós-modernismo” só poderá ser entendida de modo “pós-moderno”. O
que isso quer dizer? James W. Sire diz que o termo pós-moderno é usado por diferentes
pessoas para caracterizar diferentes facetas da vida cultural e intelectual. Trata-se de um
termo nebuloso que pretende definir não apenas aquilo que é periférico, mas também o
centro de uma cosmovisão − “como se um termo que define uma cosmovisão sem um centro
pudesse ter um centro”.21 O problema do desentendimento do termo reside no fato de que
não foram mudados apenas os termos da cosmovisão, mas a própria hermenêutica.
Sire diz que o termo pós-moderno foi cunhado, inicialmente, para se referir ao
distanciamento arquitetônico entre as formas simples impessoais do traçado moderno e as
formas mais complexas, utilizando motivos do passado, mas sem seu significado original.
Jean-Fraçois Lyotard foi quem primeiro usou o termo como uma mudança de legitimação
cultural, “a incredulidade voltada às metanarrativas”.22 A proposta geral foi a de partir da
descrença quanto à epistemologia e à centralidade metafísica, para uma opção pelo
pluralismo de perspectivas. Criar a verdade por meio da construção da linguagem em função
de propósitos particulares, coloca o aspecto modal da estética no lugar, primeiramente, do
aspecto pístico e, depois, dos aspectos éticos e jurídicos.
O mundo de hoje está imerso nesse pluralismo. O perigo existe sempre que as
perspectivas incorporam pressuposições não-cristãs, as quais, subseqüentemente
condicionam a totalidade da investigação. “Por exemplo, os comportamentistas ou os
teóricos da personalidade talvez presumam que a religião seja apenas um meio humano de
se lidar com o cosmos, e que Deus poderia ser efetivamente eliminado dos estudos.

21
Sire, James W. O Universo ao Lado. S.Paulo: Editorial Press, 2001, p. 214.
22
Lyotard , Jean-Fraçois. The Post-Modern Condition: Report on Knowledge. (Minneapolis: University of
Minissota Press, 1984), 10: xxiv. cit. Ibid., ibid.

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23

Dificilmente os resultados de suas investigações confirmarão a presença de Deus”.23 Além


disso, lidar com perspectivas na teologia poderá conduzir a um pluralismo, o qual tende a se
afastar da teologia teocêntrica.
O ser humano interage com aspectos modais da realidade. Esses modos colocados
em termos de importância e prioridade quanto à sua capacidade de encasular uns aos outros,
não seguindo, entretanto, uma seqüência absoluta e contendo encasulamentos que ocorrem
fora dessa ordem. 24 Um bebê, no berço ainda, já tem uma forma organizacional de atividade
mental afetiva, tanto motora quanto intelectual. Sem palavras com as quais possa elaborar
sobre suas percepções, ele as processa no conjunto mais geral das emoções (as quais são
expressões dos afetos em seus dados movimentos). Não tem ainda habilidades críticas para
lidar com o conhecimento − nem poderia ter, por causa da estultícia ingênua que caracteriza,
nessa idade, o ser humano decaído. Por isso, a partir de suas observações, ele poderá derivar
fixações afetivas que o acompanharão pela vida se não houver uma conversão. Assim,
observando os aspectos modais mais primários da realidade na observação das coisas da
vida, num crescendo até onde lhe permite o desenvolvimento físico mental próprio de cada
idade, a pessoa conhece parte de si mesmo e parte do mundo ao seu redor.
Quando usa termos psicológicos para explanar temas bíblicos, o pregador induz a
audiência a formar crenças calcadas em conceitos anticristãos sobre a da realidade interna e
externa da pessoa. É a água caindo na forma dos copos mentais da cultura de cada indivíduo
e da sociedade em geral. A habitação da fé é deslocada da Palavra criadora de Deus para a
imaginação humana que, por sua vez, é deslocada para as operações mentais do erro
esposadas por pensadores anticristãos.
Para evitar esse erro fundamental, o pregador deverá − além de conhecer a Palavra de
Deus de uma perspectiva da história da redenção, além de fazer uma hermenêutica correta
da Palavra de Deus e baseado nela uma hermenêutica da pessoa e do mundo, e além de
cuidar que sua linguagem expresse o pensamento de Deus e não do mundo − expor a Palavra
de Deus de modo redentivo.

Comunicação da Palavra
Muitos dos nossos ouvintes estão nos bancos da igreja para apreciar a estética do
culto, e às vezes, do sermão (mais ou menos por trinta minutos), ou para entregar a vida a
uma narrativa de entusiasmo ou de sucesso. Para eles, o passado não é fixo, mas poderá ser
mudado por perspectivas criadas à luz do presente. O profeta é um historiador com poderes
para recriar o passado e criar o futuro. Sua linguagem é compreendida porque suas
perspectivas, seus termos e suas imagens são adequados à mentalidade moderna. Por que?
Porque os púlpitos já compraram a idéia do horário nobre, da linguagem “religiosa” secular,
usadas nos filmes, nas novelas e nas propagandas. O ensino bíblico foi substituído pela
educação nas escolas públicas e particulares sem a crítica necessária da luz da Palavra de
Deus.

23
Poythress, Vernon S. Symphonic Theology: the Validity of Multiple Perspectives in Theology. Grand
Rapids: Academic Books/Zondervan, 1987, ps. 12-13.
24
Cf. Kalsbeek L. Contours of a Christian Philosophy: An introduction to Herman Dooyeweerd´s thought.
Org. por Bernard e Josina Zylstra. Toronto: Wedge Publishing Foundation, 1975, ps. 95-103.

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24

Qual o significado secular de termos tais como Deus, verdade, redenção, fé, amor,
esperança, e espiritualidade? Seriam os significados bíblico-teológicos? Ou seriam os de
algo superior, de livramento da opressão, de intuição ou salto místico, de sentimento de
bem-estar exigente e solitário, de boa-fortuna ou desejo ardente, de controle sobre o
invisível e sobre o futuro? Na verdade, uma nova religião prega um novo controle
desordenado, uma nova presença etérea e uma nova autoridade incerta em vez de pregar os
antigos e sempre novos princípios do controle, presença e autoridade de Deus.
Além disso, a troca de referencial da linguagem, do ponto focal (Deus) para o ponto
subsidiário (homem), aumenta o abismo entre a pregação das verdades bíblicas e a
compreensão popular. Não apenas os ouvintes, mas, até mesmo, muitos pregadores, adotam
as novas conotações dos termos e a troca do referencial. O novo pensamento passa a ser
coram omnibus em vez de coram Deo, como é o caso das diversas “teologias” naturalistas
ou antropocêntricas (Deus considerado do ponto de vista do homem: teologia do pobre, do
oprimido, da mulher, da prosperidade, do sucesso, do crescimento da igreja, do processo
etc.) O poder se desloca da graça para a fé, do Deus que responde a oração para a própria
oração, e do propósito final de glorificar a Deus para o gozo que deveria ser conseqüencial.

Desenvolvimento da mente secular e possibilidades de pregação


Tim Keller25 localiza a era pré-moderna nos anos anteriores aos do meio do século
XVIII. Muitos pensadores, diz ele, criam que a razão e a revelação divina nos ofereceriam a
verdade objetiva. Na era moderna, de meados do século XVIII ao século XX, os pensadores
seculares propuseram a eliminação de Deus − somente a razão, por meio do método
empírico, ofereceria acesso à verdade objetiva. Finalmente, na era pós-moderna, fins do
século XX até agora, muitos pensadores têm concluído que nem a razão nem a revelação
poderão oferecer o conhecimento da verdade objetiva.

Os pós-modernistas dirão que todos as reivindicações de aspectos da verdade são


socialmente construídas e surgem quando grupos de pessoas e comunidades tecem
histórias e narrativas que lhes oferecem significado e identidade. Desse modo, todas
os reclames da verdade seriam histórias ficcionais que “funcionariam” para esses
grupos. Assim, a “verdade” seria sempre grafada entre aspas. As verdades reinantes
em qualquer sociedade seriam aquelas criadas pelas pessoas detentoras do poder. As
verdades seriam múltiplas e mutáveis. Não haveria nenhum princípio essencial, mas,
apenas, conceitos contextuais. Não haveria essência interior, mas, apenas, superfícies
e imagens. Não haveria limites, mas, apenas, combinações e conexões. Não haveria
uma grande narrativa (nem meta-narrativa) mas, apenas, múltiplas linhas de história.
Em suma, não haveria realidade, mas, apenas, verdade “virtual”.26

Keller prossegue dizendo que poucas pessoas estão cônscias e são consistentes em
seu secularismo. O pregador cristão, especialmente, deveria manter em mente que há uma

25
Keller Timothy, Journal of Bíblical Counseling, “Preaching to the Secular Mind”. Laverock, Penn.: CCEF.
Vol. 1, N.o 1, 1995, ps. 54-64.
26
Ibid., p. 54.

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25

continuação entre o pensamento moderno e o pós-moderno, cuja mistura incluiria os


seguintes conceitos:27 Deus pessoal e Deus impessoal (Deus pessoal mas impessoal);
perfectibilidade humana e superficialidade humana (nota-se o cinismo); universalismo e
particularismo (unidade externa e fragmentação interna); Lei e acaso (liberdade individual e
controle social); individualismo e “comunitarismo” (identidade: homem à imagem do
homem); racionalismo e misticismo (além do homem significando aquém do homem).
Quais são as implicações dessa integração sintética para a pregação hoje? Keller
ressalta alguns pontos básicos:28 Temas de relevância − temas bíblicos importantes terão de
ser dirigidos a temas atuais relevantes. Isso acrescenta valor à introdução do sermão, requer
uma argumentação exploratória da linguagem atual, e importa uma aplicação que conecte a
experiência bíblica à experiência atual. Veja alguns exemplos. Conhecimento de Deus
(como falar do conhecimento de Deus para quem tem a mente estruturada para pensar no
conhecimento em termos pragmáticos, e para quem a fé é um salto experimental místico?).
Salvação (como falar da salvação em Cristo para quem pensa sobre a salvação em termos de
idolatria universal e de salvação universal?). Satisfação (como falar de provisão divina para
quem pensa em suprimentos das próprias necessidades aparentes em termos de abastança,
conforto, direito pessoal, etc.?). Esperança (como falar de esperança para quem pensa em
esperança em termos de “sorte”?). Significado (como falar de significado para quem pensa
em significado em termos de existência sem qualquer consideração sobre origem e
finalidade?). Certo e errado (como falar de aspectos morais e éticos para quem pensa em
termos de moralidade social relativa e de direitos individuais?). Culpa (como falar de culpa
para quem pensa sobre ela em termos de deficiência ou de enfermidade?). Morte (como falar
de morte quem não tem idéia da continuidade da vida ou da morte após a morte?). Verdade
(como falar da verdade absoluta para quem pensa nela em termos relativos?).
Para tanto, há a proposta de uma nova maneira apologética.29 Lembre-se de que a
nova mente não pensa em termos concretos, mas místicos (em Peter Pan, o homem não foi
feito para envelhecer mas para voar; em A Bela e a Fera, o amor é redentor em si mesmo;
em Macunaíma, nada é mas transforma-se de acordo com a necessidade, capacidade, etc.).
Uma boa apologética para os nossos dias deveria ser trinitariana (centrada no Pai, baseada
no Filho e dinamizada pelo Espírito), analógica (conforme Deus), pré-evangelista
(preparatória), dialógica (prevendo a argumentação), aconselhadora (redenção consumada e
aplicada), e estética (beleza da verdade e beleza do amor, segundo Francis Schaeffer).
Os Guinness e John Seel, em No God but God,30 dizem que o caráter e o sistema do
mundo moderno foram produzidos por forças de desenvolvimento e atualização,
especialmente economia, tecnologia, comunicação, e globalização (uma falsificação do
reino de Deus). Significou um dos maiores avanços na história humana e um dos maiores
assaltos à humanidade em termos das crises de individualidade e da família. Do mesmo
modo, abriu as portas para a pregação do evangelho a todas as partes do mundo com as
chaves do desenvolvimento e fechou as portas dos ouvidos do mundo com as chaves da
perseguição (do pensamento secular movido contra a fé bíblica). Forneceu uma aura de
unidade externa com amálgama de fragmentação interna tanto na esfera de povos e culturas

27
Ibid., ps. 55-56.
28
Ibid., p. 57.
29
Para um tratamento completo do assunto, ver Edgar, William. Razões do Coração. Brasília: Refúgio, 2001.
30
Guinness, Os & Seel, John. No Gods But God. Chicago: Moody Press, 1992, ps. 9-10.

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26

quanto de indivíduos e grupos. Como isso nos afeta no século XXI? O (pós)modernismo
representa os pensamentos descendentes/dissidentes do modernismo. A nova hermenêutica,
o deslocamento do foco das palavras e dos conceitos produzindo novos significados, e a
ausência de elementos críticos em função do pluralismo, requerem uma adaptação na
comunicação evangélica.
Vern S. Poythress, em God Centered Biblical Interpretation,31 propõe uma base
hermenêutica de unidade e diversidade, segundo o arquétipo trinitariano, para a pregação
hoje. A Palavra de Deus tem muitos propósitos e muitas funções (2 Tm 3.16). Contudo, o
propósito de Deus para revelar sua Palavra é único: revelar a si mesmo. Há muitos
propósitos numa só unidade interna e externa. A pregação expositiva deverá ter essa base: a
exposição da revelação de Deus sobre si mesmo. Tomando o texto de João 17, Poythress
trata sobre a exposição da verdade.
João 17 fala da obra de Deus e da sua Palavra. A Bíblia inicia revelando a Deus em
sua obra e prossegue confirmando essa obra (Gn 1.1; Jo 5.17). Isso não quer dizer que toda
pregação deverá conter uma menção desse fato, mas que deverá estar, primeiro, baseada no
fato de que Deus está no controle. Qualquer outro ponto de controle que não seja Deus e sua
graça como revelado na Escritura será manifestação de idolatria. Nada há nem na terra nem
nos céus que tenha esse controle, quer seja nome quer seja doutrina quer seja esforço
humano. A Bíblia fala da obra do Pai, da Obra do Filho e da obra do Espírito Santo.
A Palavra de Deus envolve dar e receber a verdade. Essa verdade é pessoal − Jesus
Cristo! Quem vê Jesus vê o Pai em ação! Tal verdade tem significado e é comunicada para o
conhecimento. Novamente, nem toda mensagem deverá citar isso, mas toda mensagem
bíblica se baseia nesse fato. Deus fala e o homem ouve. Deus nos falou de muitas maneiras e
hoje nos fala por meio da sua Palavra, e especialmente pelo Filho encarnado. Os ouvintes da
pregação evangélica deverão ouvir que Jesus é Deus e que suas palavras são espírito e vida.
Não será a experiência religiosa nem a mensagem que lhes falará ao espírito, mas o Espírito
de Jesus de Nazaré.
Deus está presente por meio da habitação do Espírito Santo. A Palavra de Deus lida
e pregada é efetivada pelo poder do Espírito, tanto no pregador quanto no ouvinte; e a
Palavra de Deus é suficiente para estabelecer a verdade em amor. A beleza da verdade e a
beleza do amor serão vistas por aqueles que ouvirem o evangelho da boca do verdadeiro
praticante da Palavra. Nem toda pregação deverá declarar isso, mas toda pregação deverá se
basear na presença de Deus. Uma presença patente na criação, patente na habitação do seu
povo e patente na proclamação da Palavra.
Poythress aponta para as implicações desses três propósitos em um, isto é, Deus em
ação (controle), Deus em comunicação (verdade) e Deus em comunhão (presença): “Por um
lado, Deus tem uma pluralidade e riqueza de propósito para a Bíblia. Não podemos reduzi-la
a um propósito monolítico. Não podemos reduzir a Bíblia a um simples encontro pessoal...
sem a presença da verdade conceitual... Não deveríamos ser intelectualistas, esticando a
verdade sem prestar atenção ao encontro com Deus ou à prática da Palavra na vida. Nem
deveríamos ser pragmatistas, cuidando apenas 'do que é relevante’ quando aos efeitos

31
Poythress, Vernon S. God Centered Biblical Interpretation. Phillipsburg, N.J.: Presbyterian & Reformed
Publishing, 1999, ps. 52-24.

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27

visíveis sem atentar à verdade ou ao Deus que fala".32 “João 17.4 diz algo definitivo”,
continua Poythress. “Outros versos não apenas repetem esse, mas dizem outras coisas. Ao
mesmo tempo, todos os versos de João, e todos os versos da Bíblia, se concatenam para
ensinar uma verdade coerente”.33
Temos declarações singulares e plurais, diz Poythress. podemos entender a unidade e
diversidade da revelação de Deus por meio de uma tríade de categorias. Classificação ou o
tipo de coisa é, por exemplo, ‘que Deus é e sempre será um e o mesmo Deus ao longo da
história’... Momento, ou o aspecto particular, expressa a diversidade da revelação de Deus,
‘cada ato de Deus tem sua própria individualidade’. Por exemplo: “A Palavra que se fez
carne (Jo 1.14) é uma instantaneidade de Deus”.34 Associação ou relação é o aspecto que
expressa os diversos atos instantâneos de Deus de modo coerente: “Era o Verbo... estava
com Deus... era Deus...” (João 1.1).
Há um sentido estável naquilo que Deus fala. O sentido da passagem bíblica poderá
ser expresso de muitos modos: poderemos parafraseá-la, explicá-la com outros termos,
ilustrá-la, mas seu conteúdo, unidade e diversidade deverão permanecer os mesmos,
fundados sobre a base do Deus que fala. A aplicação desse sentido deverá ser feita num
particular momento levando-se em conta tanto a singularidade do seu sentido quando a
diversidade de momentos particulares. Veja, por exemplo, a ordem de Jesus para que os
discípulos portassem espadas e a censura a Pedro por havê-la usado contra Malco (Jo 22.36
e 18.10, 11). A aplicação correta deverá ser feita por meio da importação de outras
passagens a fim de estabelecer as conexões entre seu sentido estável e as diversas aplicações
instantâneas.35
A prática hoje é importar valores seculares para os sermões. Inadvertida ou
maliciosamente, pregadores vão introduzindo nos púlpitos expressões e conceitos
consagrados principalmente pela psicologia “pop”, em detrimento da doutrina e da
linguagem bíblicas. Por exemplo: “auto-estima” (amar primeiro a si mesmo para poder amar
o próximo, em vez de receber o amor de Deus que implica o amor próprio e dar amor ao
próximo). “Sentimento de culpa” psicológica como origem do problema em vez de culpa
moral resultante do pecado. “Disfunção” em vez de pecado ou de peso (Hb 12.1). “Auto-
realização” em vez de realização dos propósitos graciosos de Deus para conosco.
“Centralização na pessoa” em vez de referência a Deus. “Eu estou OK, você está OK” em
vez de paz com Deus e paz entre os homens; “adulto/criança” em vez de Pai-Filho-Espírito
Santo e filhos-irmãos-servos (Ef 4−6).
Alguém poderá perguntar: Não são essas boas metáforas para as doutrinas bíblicas,
suprindo para necessidades a que a Bíblia não se refere? Certamente, não! A Palavra de
Deus é o livro da Redenção. Ela faz as analogias da redenção − e qualquer outro discurso
psicológico que seja anticristão é formulado com valores usurpados do evangelho mas sem o
devido poder.

32
Ibid., 56.
33
Ibid., p. 70.
34
Ibid., p. 71.
35
Confissão de fé de Westminster, I.IX.

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28

Um termo da psicologia corresponde a um termo da Bíblia?


Para entender a proposta, será preciso compreender o uso de perspectivas na Bíblia e
na teologia por meio de analogias e metáforas, temas e palavras. Poythress escreveu que
qualquer analogia é um tipo de perspectiva e que a Bíblia, usando-as, provê perspectivas
sobre todos os tipos de assuntos de que trata. Contudo, diz ele, uma simples analogia ou
metáfora não formula um sofisticado modelo científico nem provê uma maneira consistente
e penetrante de olhar o mundo. Assim, devemos distinguir uma segunda maneira em que as
pessoas usam perspectivas, isto é, “como uma maneira consistentemente desenvolvida para
atender a apresentações particulares de um objeto de estudo” − uma “cosmovisão”. Esse é o
tipo de perspectiva usado pelos cientistas da psicologia, os quais formulam explicações
sobre natureza, finalidade, motivações e comportamentos humanos – em termos dos seus
paradigmas: impulso biológico, padrões de condicionamento, atualização etc.
A pergunta, aqui, é: “Teria a Bíblia modelos perpassáveis, ou perspectivas, nesse
sentido?” Nenhuma analogia conta a história toda. “A Bíblia não usa uma única perspectiva
dominante de maneira exclusiva”. Muitas perspectivas são utilizadas de diferentes formas
(note o uso dos temas: luz, glória, amor, habitação e fé,). Algumas das diferenças nos
diversos livros da Bíblia, residem no uso das analogias. “Creio que, em princípio, todas as
diferenças sejam harmônicas (ainda que não vejamos prontamente como se harmonizam).
Sob inspiração do Espírito Santo, [os autores] selecionaram aspectos diferentes que trataram
de modos diferentes, porque estavam focalizando ou enfatizando diferentes verdades ou
aspectos da mesma verdade” A Bíblia usa muitas perspectivas para fornecer uma
cosmovisão. “A Bíblia apresenta uma visão de Deus, de nós mesmos e do mundo .... explica
as origens e propósitos das coisas, diz quem somos, fala sobre como lidar com os pecados, e
mostra as nossas responsabilidades básicas em relação a Deus e ao nosso próximo”.36
As razões apresentadas para defender o valor de expandir perspectivas para cobrir as
áreas da nossa experiência são pertinentes: primeiro, “muitos dos campos de estudo e áreas
da vida que são, freqüentemente, compartimentados na mente das pessoas, na verdade,
deveriam estar juntos, especialmente no uso da Bíblia”; segundo, “os limites que colocamos
entre esses compartimentos são muitas vezes arbitrários e artificiais; e terceiro, observando a
totalidade da Bíblia ou de uma doutrina [ou pessoas] de outra perspectiva, talvez notemos
coisas que haviam escapado à nossa atenção”.37
Da mesma forma, o uso de perspectivas em temas e palavras e a sua expansão para
cobrir grandes campos de estudo e áreas da vida é importantes para a formulação de
modelos mais efetivos e adequados. Contudo, como Poythress coloca, há algumas restrições:
primeiro, deveríamos nos conscientizar de que nenhum sistema é maior do que a própria
Bíblia; segundo, se usamos uma categoria para agrupar uma série de textos em nossa mente,
deveríamos preservar como pano de fundo “as diferenças entre os textos e as ligações que
alguns, mas não todos, possam ter com um grupo de categoria alternativo”.38 Poythress
oferece doze máximas de uma teologia sinfônica que poderão auxiliar nosso trabalho:

36
Poytress. Symphonic Theology, ps. 15-17.
37
Ibid., ps. 26-28.
38
Ibid., p. 63.

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29

(1) A linguagem não é transparente para o mundo;


(2) Nenhum termo na Bíblia é igual a um termo técnico na teologia
sistemática [nem em qualquer modelo funcional em qualquer área da
vida];
(3) Termos técnicos na teologia sistemática (e em modelos funcionais) podem
ser, quase sempre, definidos de mais de uma só maneira. Todo termo
técnico é seletivo nas apresentações que inclui;
(4) Os limites são indistintos;
(5) nenhuma categoria ou sistema oferece a realidade última;
(6) Diferentes escritores humanos da Bíblia trouxeram diferentes perspectivas
para suportar uma dada doutrina ou evento;
(7) As diferenças entre os escritos bíblicos por diferentes autores humanos
são, também, diferenças divinas;
(8) Qualquer tema da Bíblia pode ser usado como tema organizado singular;
(9) Usamos diferentes temas não para tornar relativa a verdade, mas para
atingir a verdade;
(10) Nós vemos aquilo que os nossos instrumentos nos habilitam a ver;
(11) O erro é um parasita da verdade;
(12) Nos debates teológicos, deveríamos esvaziar os pontos fortes dos
oponentes.39

Pregação Importante e Temas Relevantes


A fim de proceder a esse tipo de pregação, o pregador terá de ser mais descritivo do
que definitivo na escolha do seu método de pregação. A diferenciação entre pregação
expositiva, textual e temática tem suas vantagens mas tem também desvantagens. Poderá
servir a um biblicismo incongruente com o propósito crítico da profecia, a um literalismo
legalista que subverte o pacto, ou a divagações sobre temas “relevantes” para um mundo
crítico anticristão ou superficial.
Poythress diz que “a linguagem humana espelha a linguagem divina”.40 Assim como
a Bíblia mostra a Trindade comunicante (o orador, a mensagem e o ouvinte; ver Jo 14−15),
entre os homens existe essa mesma comunicação. A expressão humana não será exaustiva,
mas poderá ser substancial. De modo especial, quando a Palavra é pregada, além do seu
poder intrínseco e do poder de efetivação do Espírito Santo, há a promessa de
esclarecimento do orador e dos receptores humanos. Contudo, aquilo que o pregador
expressa é seu pensamento, suas visão, seu sentimento.41 Ainda, há o elemento de
informação, o qual envolve a honestidade e fidelidade do orador em relação às proposições

39
Ibid., ps. 69-71.
40
Ibid., p. 102.
41
Ibid., p. 103.

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30

da Palavra, e está à disposição para a análise do receptor, também dependente de sua


fidelidade à Palavra de Deus. E então, há o aspecto produtivo que diz respeito ao efeito que
causa no receptor (Cl 1.28).
Timothy Keller, em três artigos seqüenciais,42 oferece um caminho para o estudo da
exposição da Palavra para o mundo pós-moderno que evita a psicologização do púlpito e
facilita a abordagem de temas relevantes para a audiência, com a importância do evangelho.
. Ele estabelece três perspectivas para a pregação: a bíblica, a situacional e a pessoal.
Keller diz que esses três aspectos não são “partes”, mas elementos integrantes e
interagentes da pregação. O sermão expositivo-textual-temático dirigido à audiência do
século XXI dominada pelo pensamento pós-moderno deverá ser avaliado de modo
diferenciado. Primeiro, é exegeticamente sadio? Como os termos deverão ser entendidos em
termos de uma teologia bíblica? Por exemplo, o que significam: “libertação”, “oração”,
“amor”, “esperança”, “fé” e “poder da palavra”, “bênção”, “graça”, “glória”, etc.? A
hermenêutica é clara? Como os conteúdos das passagens deverão ser compreendidos? Por
exemplo: “salto de fé”, “experiência”, “novo homem”, “ética”, “liberdades aos cativos”,
“sinais e maravilhas”, “teoria e prática”, “corpo e coração”, etc. Segundo, qual a avaliação
do aspecto situacional? É vívido, tem “insight” (discernimento, descrição). Por exemplo:
“Será que já existia uma entropia antes da Queda?” É prático, criativo? Por exemplo, a
Palavra de Deus tem uma mensagem a priori ou a posteriori? É ilustrativo? Se uma verdade
não puder ser ilustrada, ou não foi entendida ou não é verdade. Terceiro, qual a avaliação do
aspecto pessoal? É ardoroso, compassivo e humilde? As pessoas às quais pregamos são
seres criados à imagem de Deus, são pensantes e sensíveis − e as pessoas sabem menos do
que acham e sabem mais do que pensam saber. Nossos ouvintes percebem antes de escutar.
É perspicaz? Lembre-se de que as pessoas são decaídas. Os efeitos noéticos do pecado
exigem visão espiritual (Rm 1−2; I Co 1−2). Tem autoridade e coragem com amor?

Conclusão
Tem autoridade e coragem com amor? Essa é a pergunta conclusiva. Nos púlpitos,
uns apelam para o conteúdo das psicologias porque não confiam que a Palavra de Deus
cumpra aquilo que promete. Não crêem realmente que a palavra de Deus não volte vazia,
mas prospere segundo o desígnio de Deus (Is 55.11). Outros, não crêem nos recursos
inspirados da Escritura para o ensino, aprendizado, disciplina, reorientação e formação (2
Tm 3.16-17). Uns e outros não vêem a extensão e profundidade do pecado nem a altura,
largura e profundidade da palavra da redenção para penetrar, entender, expor e resgatar
“pensamentos e propósitos do coração” (Hb 4.12). Inadvertida ou deliberadamente,
escolhem a sabedoria desde século, envergonhados do evangelho que não nos envergonha
(Rm 1:16).43 Para estes, a nossa pregação apela para a autoridade divina da Escritura para
desconstruir sofismas e reconstruir o pensamento segundo o pensamento bíblico redentivo,
“levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2 Co 4.10).

42
Keller, Timothy. Journal of Biblical Counseling, A Model for Preaching (I, II, III). Laverock, Penn.: CCEF,
Vol. 12, n.o 3 - 1994, ps. 36-42; Vol. 13, n.o 1 – 1995, ps. 39-48 e Vol. 13, n.o 2, ps. 51-60.
43
Francis Schaeffer, A Missão da Igreja. (São Paulo: ABU/VM, 1983), 207-208: “O Cristianismo é um corpo
específico de verdades. è um sistema. Não temos por que nos envergonhar disso.”

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31

Interpretando a Palavra e interpretando a pessoa


Ainda que a minha tentação, aqui, seja a de entrar pelos caminhos da
hermenêutica, devo resistir e abordar apenas os aspectos mais significantes em
relação ao nosso estudo.
Primeiro, consideremos como a própria Escritura fornece o entendimento
sobre pregação e aconselhamento. Em 2 Pedro 1.3-4, o apóstolo descreve o uso da
Palavra de Deus em relação à vida cristã. “Visto como, pelo seu divino poder, nos
têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo
conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude,
pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para
que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da
corrupção das paixões que há no mundo, por isso mesmo, vós, reunindo toda a
vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento;
com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança;
com a perseverança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o
amor.”
Todas as coisas é uma expressão que quer dizer todas as coisas. Não quer
dizer que devamos dispensar outras coisas nobres e boas, mas que aquilo que Deus
nos dá em forma de mandamentos e promessas é suficiente para analisarmos todas
as coisas. E tais coisas nos conduzem à vida e à piedade. Conduzem-nos a viver a
vida para a qual fomos criados, isto é, para refletir a glória do conhecimento de
Deus, segundo a vontade de Deus, isto é, gozando do processo de participar da
natureza de Deus. Como? Pedro continua: para a realização de tal processo
redentivo (ou seja, a aplicação da redenção consumada em Cristo), é preciso associa
a fé à virtude. Noutras palavras, é preciso assegurar que fé, a crença básica da
pessoa, seja a crença fornecida pela Palavra de Deus – e isto, a ponto de transformar
o caráter da pessoa.
O evangelicalismo moderno repete o erro antigo de permitir que a religião
seja apenas mais um departamento da vida, uma associação com um grupo, uma
série de regras humanas para a boa vida. Entretanto, o evangelho anuncia a
transformação do caráter da pessoa, da própria identidade. Você já considerou que o
termo identidade está ligado ao termo “idêntico”? Fomos criados à imagem de Deus
e só refletindo tal identidade seremos quem Deus planejou que fôssemos. Associa a
fé e virtude implica a crença na realidade da existência de Deus44 a ponto de
transformar sua virtude, isto é, caráter.
Tal transformação só pode ocorrer pelo conhecimento completo daquele que
nos chamou para sua própria glória e virtude, a saber, para refletir seu conhecimento
praticando a fé (crenças básicas). A prática do conhecimento de Deus em comunhão
com ele confere à pessoa o domínio próprio necessário para deixar as paixões que
há no mundo e passar a viver piedosamente, isto é segundo os pensamentos de
Deus, em comunhão e em adoração. Uma vez exercitados na fé segundo a virtude

44
Hebreus 11.3, 6: “Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o
visível veio a existir das coisas que não aparecem ... De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é
necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o
buscam”.

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32

de Deus (poder) e de posse do conhecimento revelado na Palavra de Deus,


viveremos a verdadeira piedade (espiritualidade) que se traduz na perseverança.
Perseverança não significa apenas a continuação da caminhada, mas inclui a
permanência na fé virtuosa, no aumento e aprofundamento do conhecimento de
Deus e de sua vontade, na vivência da piedade verdadeira em que a vida é uma
expressão de culto a Deus em cada pensamento, sentimento e ação, e no domínio
próprio gerado em termos dessa submissão a Deus e sua Palavra, a qual passa a ser
uma nova natureza que persevera em todo o caminho e em cada passo. E em todo o
caminho e a cada passo, a pessoa de Deus sabe que não está só; e que não é bom
que esteja só. Deus, que é Um, não está, contudo, só; ele é Um e Três. E para que
gozássemos e refletíssemos sua unidade e diversidade, criou-nos para ter comunhão
com ele mesmo e com suas outras criaturas. Vem daí que no caminho e a cada passo
desenvolvemos o amor fraternal em relação aos que tem a mesma fé e virtude, que
conhecem a Deus e prosseguem em conhecê-lo, que zelam conosco quanto à
piedade e que conosco perseveram. Finalmente, diz Pedro, alcançamos o objetivo
maior do amor a Deus e aos homens.
Dessa maneira, seja por leitura da Palavra seja por pregação seja por
doutrina, o evangelho que anunciamos objetiva essa transformação de caráter.
Encher a igreja, ser bem quisto e bem ouvido, enfim, ser pastor bem-sucedido, tudo
isso é decorrência da fé e da virtude que em nós vêem e de nós ouvem.
Para que estas coisas estejam em nó, e nós nelas, e para que saibamos
interpretar a Palavra e as pessoas segundo a Palavra, como convém, há algumas
coisas a serem lembradas.

(1) A motivação flui da Palavra e não da “psicologia” do pregador.


(2) A pregação para o aconselhamento é fundada nas pressuposições da Palavra
de Deus e não na linguagem das psicologias.
(3) A estruturação e os objetivos decorrem da Escritura e não da habilidade de
diagnóstico do pregador.
(4) As mensagens são as mesmas mensagens de consolação, exortação e
edificação por meio de ensino, de doutrina, etc., com a diferença importante
de que a aplicação é dirigida aplicação da redenção de Cristo para a
transformação do caráter, segundo a necessidade do indivíduo e do corpo de
Cristo.45

Esta parte significante da aplicação envolve entendimento claro dos


problemas das pessoas segundo categorias bíblicas de pensamento, em termos dos
seguintes aspectos.

(1) A origem dos problemas.


(2) Os propósitos do tratamento e solução dos problemas.

45
Sou grato ao Dr. Jay Edward Adams por estes insights proporcionados em classe (CCEF, 1987). Ver J.
Adams, Lectures on Counseling (Grand Rapids: Baker, 1978), 181.

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33

(3) Como usar a Palavra de Deus para ajuda e autoconfrontação.


(4) Como usar os dons da igreja para ajuda mútua em relação a problemas e
encorajamento mútuo para enfrentar adversidades e alegrias.

O uso da Escritura para aconselhamento


Os cristãos mais velhos devem se lembrar das “caixinhas de promessas” que
muitos lares cristãos tinham à mostra em suas salas. Guardada a beleza da idéia, tal
uso da Bíblia deixava muito a desejar. Primeiro havia apenas promessas seletas,
sem as orientações e admoestações necessárias para a vida cristã; segundo, as
promessas eram “tiradas” como elemento de sorte.
Igualmente, o uso indiscriminado da Escritura em qualquer circunstância
poderá apresentar distorções prejudiciais para a vida cristã, especialmente no caso
do aconselhamento. Geralmente a pessoa necessidade de aconselhamento se
encontra física, mental e espiritualmente frágil, inábil para discernir e tendente a
interpretar mal a Palavra . Assim, a fim de produzir um aconselhamento bíblico
eficaz, o conselheiro deverá ter uma compreensão do uso da Escritura que seja
correto quanto à hermenêutica (interpretação), sadio quanto à doutrina (ensino
douto) e sábio quanto à aplicação (fé mais virtude). 46
David Powlison escreveu sobre o poder da Escritura para transformar
pessoas, para transformar pessoas destrutivas em construtivas, pessoas
descontrolada em controladas, pessoas inflexíveis em flexíveis, pessoas sem
esperança em realistas com esperança, pessoas iradas em pacificadoras. Como? E
ele responde:

Na sociedade moderna, a maneira da Escritura para explanar e engajar pessoas tem


sido largamente mal colocada. O que teria de ser feito para recuperar a centralidade
da Escritura para ajudar pessoas a crescer até a plenitude da imagem de Cristo?
Como a relação face a face poderá ser re-configurada para servir como instrumento
da única sabedoria duradoura e da única humanidade verdadeira?
A recuperação da centralidade da Escritura requer duas coisas: convicção suportada
por conteúdo. A convicção? A Escritura é a mensagem sobre entendimento e ajuda
de pessoas. O escopo suficiência da Escritura inclui as relações face-a-face que nossa
cultura chama de “aconselhamento” e de “psicoterapia”. O conteúdo? Os problemas,
necessidades e tribulações de pessoas reais – até os mínimos detalhes – terão de ser
racionalmente explorados pelas categorias com as quais a Bíblia nos ensina a
entender a vida humana.47

Nesse artigo, Powlison discorre sobre o poder da Escritura para tratar do


problema central dos “desejos da carne”, depois do que, conclui:

46
“Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste e
que, desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo
Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a
educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa
obra” (2 Timóteo 3.14-17).
47
David Powlison, “The Sufficience of Scripture to Diagnose and Cure Souls”, Journal of Biblical
Counseling, 2005, Vol. 23, No. 2, 2.

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34

Sondamos apenas um dos muitos termos por meios dos quais a Bíblia explana as
obras do coração humana em detalhes específicos. Este é um tema cujas riquezas são
inexauríveis. O coração humano é um verbo ativo. Não “temos necessidades”;
“desejamos” da maneira como amamos, tememos, esperamos, confiamos, etc. Neste
artigo, examinamos os termos do desejo. Poderíamos ter examinado quaisquer temas
e termos que capturam as atividades fundamentais do coração humano. E
deveríamos fazê-lo seguros disto: o evangelho de Jesus Cristo é tão abrangente como
a diversidade humana e tão profundo como a complexidade humana.48

A Palavra de Deus é viva e eficaz


O aconselhamento bíblico é algo vivo, fluido, dinâmico, e não pode ser
tratado como um conserto de carro numa oficina mecânica. Você jamais poderá
desmontar uma pessoa, retificar ou trocar suas partes ou regular seu funcionamento.
Além disso, pessoas são frágeis, como Pedro disse, repetindo o salmista: temos de
purificar nossa alma pela obediência à verdade e amar sincera e ardentemente as
pessoas, sabendo que a palavra de Deus é eterna e que as pessoas são frágeis.49 A
Palavra de Deus penetra fundo e discerne o interior do coração, e nessa confiança, o
conselheiro deverá cuidar para não invadir e violentar o coração do próximo.
Ás vezes, o conselheiro poderá ser tentado a impor sua própria visão, sem
conduzir o aconselhado a autoconfrontação. Pense no aconselhamento bíblico como
uma situação em que conselheiro e aconselhado têm à sua frente um espelho no qual
vêem a própria imagem refletida. Não adiantará, para o aconselhado, que o
conselheiro veja a sua própria imagem nem que veja a imagem do aconselhado; será
preciso motivar o aconselhado a olhar seu próprio rosto refletido segundo a imagem
de Cristo em toda a glória de sua obra salvadora.
Como Calvino diz, comentando Tiago,50 o ensino das coisas celestiais é um
espelho no qual Deus permite que tenhamos uma visão de si mesmo, de tal maneira
que, por meio da obediência prática, sejamos transformados à sua imagem (compare
com 2 Coríntios 3.1851).52 Quem não pratica a palavra de Deus é como alguém que
contempla a si mesmo no espelho da Palavra e logo se esquece de como era em
comparação com o que Deus é. Daí a necessidade de implementação da Palavra
com passos práticos para que a autoconfrontação induza o ouvinte à transformação
que o Espírito opera.
Tremper Longman III menciona João Calvino comentando sobre o livro dos
Salmos: “... uma anatomia de todas as partes da alma; pois não há nenhuma emoção

48
Ibid., 13.
49
“Tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não
fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente, pois fostes regenerados não de semente
corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente. Pois toda carne é
como a erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; seca-se a erva, e cai a sua flor; a palavra do Senhor,
porém, permanece eternamente. Ora, esta é a palavra que vos foi evangelizada” (1 Pedro 1.23-25).
50
Tiago 1.23-24: “Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que
contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece
de como era a sua aparência”.
51
2 Coríntios 3.18: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do
Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito”.
52
João Calvino, Commentaries, Vol. 3, 273.

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da qual alguém possa estar consciente que não esteja ali representada como que
num espelho”. Longman então diz:

Calvino, em outro lugar, aplica a metáfora do espelho não somente para o livro dos
Salmos, mas para a Bíblia inteira. O que ele quer dizer? Corretamente, ele crê que,
quando lemos a Bíblia, algo de reflexivo ocorre tal como quando nos colocamos
diante do espelho pela manhã e temos uma visão de nós mesmos. Na Bíblia,
entretanto, em vez de termos uma visão de nosso corpo, temos um vislumbre daquilo
que vai dentro de nós. Deixados ao nosso próprio engenho, estaremos perdidos,
buscando nosso “verdadeiro eu” em lugares em que jamais poderíamos nos
encontrar. Mas a Bíblia articula o que vai dentro de nós − conta-nos a história de
nossa vida − e ministra às nossas necessidades, nossa culpa e nossa alienação.53

Adiante, Longman ainda diz que a Bíblia nos faz entender a nós mesmos em
meio a toda essa confusão que sentimos dentro de nós (e eu acrescento: e em meio a
toda a confusão de nossas relações interpessoais); fornece estrutura para nosso
pensamento (e para as nossas conversas); e aponta-nos para Deus. “Lemos as
Escrituras e vemos dentro de nós”.54 Sobretudo, vemos Deus e vemos o nosso
semelhante, segundo a lei maior de amar a Deus primeiro, e depois, ao próximo
como a nós mesmos.

Como, então, interpretar a Escritura em relação ao aconselhamento?


Michael Horton, em Um Melhor Caminho,55 ilustra a tendência atual da
pregação com a figura de Proteus, uma deidade da mitologia grega dotado do dom
de profetizar o futuro. Quando os encantadores tentavam arrancar de seus lábios
profecias sobre seus próprios destinos Proteus frustrava seus intentos
transformando-se em “dragão, fogo ou torrente de água, segundo seu querer”.
Somente uma coisa poderia forçar Proteus a satisfazer suas exigências: ele teria de
estar preso de correntes. O que estamos fazendo hoje, entende Horton é uma
tentativa proteana para acorrentar Deus é arrancar dele a bênção retida. Ele escreve:

Indo nessa direção, o propósito da pregação não é, primariamente, informar ou


instruir (ainda que isso esteja, claramente, envolvido) nem exortar e conduzir o povo
a fazer algo (ainda que isso não esteja ausente), e certamente, não é oferecer “dicas”
de ajuda com o fim de usar Deus tornar nossas vidas menos miseráveis. Deus não se
incorpora em nossa trama, mas nós na dele. Essa narrativa não está aí para nos
oferecer ajuda adicional na construção de nossa própria vida, mas para julgar a
própria narrativa e nós com ela, de maneira que, finalmente, abramos mão dela e nos
tornemos personagens do drama da redenção. Nosso propósito na pregação é o de
acorrentar Proteus e de profetizar sua morte e ressurreição em Cristo. Nosso ponto
de referência não será mais o de infindáveis escolhas, mas Jesus Cristo, em cuja
imagem estamos sendo conformados. O objetivo é o de re-escrever nossos corações,
dar-lhes outro enredo que junte as histórias pessoais e do mundo, numa totalidade
significante que transforme as partes. Nosso objetivo não é adaptar o enredo cristão
aos enredos superficiais e destrutivos do “contexto contemporâneo”, mas o de

53
Tremper Longman, Reading the Bible with Heart & Mind, (Colorado Springs: NavPress, 1997), 29.
54
Ibid., 31.
55
Michael Horton, Um Melhor Caminho, (São Paulo: Editora Cultura Cristã, a ser lançado), cap. 3.

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conformar-nos e a nossos ouvintes ao drama real da história. Jesus Cristo e o drama


da redenção (que nele começa, alcança o clímax e é consumado) compõem o mundo
real, o cenário real da peça de nossa vida. E porque o ato final está firmemente
assentado no propósito de Deus, não estamos apenas interpretando. Essa peça é real.
Nossa identidade muda, inevitavelmente, no curso da vida, ainda assim, não há
intermináveis escolhas, mudanças sem sentido. Em Adão, “mudança” significa
escolhas intermináveis feitas com liberdade ao acaso. Em Cristo, “mudança”
significa crescimento em Cristo à medida que somos transformados por meio da
perpétua imersão na Escritura que dirige a história de nossa vida. É por meio da
verdade e da habitação na verdade que somos feitos, realmente, livres.56

J. Douma57 ilustra a interpretação da Bíblia de quatro maneiras: como guia


(quando houver instruções diretas), como guardiã (quando houver instruções
indiretas), como bússola (quando houver direções gerais) e como farol (quando não
houver instruções).
A Escritura como guia. Lucas 18.18-24 relata o aconselhamento de Jesus
com um homem de posição a quem o Senhor citou diretamente as Escrituras.
Veja Jo 16.13.58
A Escritura como guardiã. Paulo, aconselhando aos coríntios sobre o
casamento (1 Coríntios 7) faz uma aplicação da Escritura como guardiã. Ver
Provérbios 6.20-23.59
A Escritura como bússola. Tiago, aconselhando os cristãos sobre a
perseverança em tempos de crise, admoestou-nos a pedir sabedoria a Deus,
terminando com um apelo à prática da Palavra.60
A Escritura como farol. Paulo, escreve aos efésios sobre como andar na
sabedoria e na prudência do conhecimento da vontade de Deus. Sl 119.105. 61

56
Ibid.
57
Citado em W. M. Gomes, Aconselhamento Redentivo (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004), p. 10. Ver
J. Douma, Os Dez Mandamentos (São Paulo: Os Puritanos, 2003).
58
“Certo homem de posição perguntou-lhe: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Respondeu-lhe
Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um, que é Deus. Sabes os mandamentos: Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe. Replicou ele:
Tudo isso tenho observado desde a minha juventude. Ouvindo-o Jesus, disse-lhe: Uma coisa ainda te falta:
vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me. Mas, ouvindo ele
estas palavras, ficou muito triste, porque era riquíssimo. E Jesus, vendo-o assim triste, disse: Quão dificilmente
entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lucas 18.18-24). “...Quando vier, porém, o Espírito da
verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e
vos anunciará as coisas que hão de vir” (João 16.13).
59
“Aos mais digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem mulher incrédula, e esta consente em morar com ele,
não a abandone” (1 Coríntios 7.12). “Filho meu, guarda o mandamento de teu pai e não deixes a instrução de
tua mãe; ata-os perpetuamente ao teu coração, pendura-os ao pescoço. Quando caminhares, isso te guiará;
quando te deitares, te guardará; quando acordares, falará contigo. Porque o mandamento é lâmpada, e a
instrução, luz; e as repreensões da disciplina são o caminho da vida” (Pv. 3.20-23).
60
“Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação
da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que
sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes. Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus,
que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida ... acolhei, com mansidão, a palavra
em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma” (Tiago 1.2-5, 21).
61
“Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará. Portanto, vede
prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus.

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A Palavra de Deus Usa Perspectivas, Temas e Termos Elásticos


O Senhor Jesus pregou ensinando e aconselhando as pessoas por meio de
perspectivas, temas e palavras. Marcos escreveu que Jesus expunha a palavra por
parábolas conforme o entendimento das pessoas, e que as explicava aos seus
discípulos.62 O próprio Senhor disse a Nicodemos que ele não poderia entender as
coisas terrenas, quanto menos as celestiais.63
Além disso, a Bíblia não define, como os homens, coisas que são tão
complexas, preferindo descrevê-las, usando perspectivas diferentes a fim de que
haja compreensão das coisas em diferentes situações.64
Expressões e termos também são tratados de maneira elástica, isto é,
descritivas em vez de definitivas, a fim de que não sejam limitantes, mas, sim,
abrangentes e aplicáveis. Alguns exemplos são os diversos usos das palavras
verdade, fé, obras, amor, esperança, etc.
Tais expressões e termos se prestam a aplicação da Escritura à nossa vida,
envolvendo os diversos aspectos do conhecimento humano: normativo, descritivo,
situacional e existencial.65

A perspectiva normativa focaliza na autoridade de Deus expressa nos seus


mandamentos e promessas. John Frame diz: “Tal autoridade atesta a si mesma, não
havendo critério mais elevado. O homem foi feito para pensar em concordância com
Deus, mas rebelou-se; ainda que procure suprimir o conhecimento da lei de Deus, o
homem continua a conhecê-la e a usá-la para sobreviver no mundo de Deus. O
redimido vê a aceitá-la e a se deliciar nela. Ela se torna a sua pressuposição

Por esta razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor” (Efésios 5.14-
17). “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos” (Salmo 119.105).
62
“E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a palavra, conforme o permitia a capacidade dos
ouvintes. E sem parábolas não lhes falava; tudo, porém, explicava em particular aos seus próprios discípulos”
(Marcos 4.33-34).
63
“Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” (João 3.12).
64
“Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos
dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo”
(Hebreus 1.1.-2).
65
John Frame em The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg, N.J.: Presbyterian and Reformed,
1987), 75. Adaptei a tríade sobre o conhecimento humano proposta por John Frame para fins de aplicação na
pregação.

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fundamental, ainda que não a manterão com consistência absoluta até a sua
glorificação no dia final”.66 É significante o fato de que os mandamentos e
promessas de Deus fazem paralelo com seu caráter justo e bom, com sua verdade
em amor.
A perspectiva descritiva significa a exposição circunstanciada da Palavra
escrita por meio da palavra pregada,67 refletindo a sabedoria de Deus.68 Existem
duas linguagens, dois discursos correntes no mundo. Um é o da palavra verdadeira e
amorosa de Deus, e outro, o da palavra falsificada e autocentrada dos homens
rebeldes contra Deus.69
A perspectiva situacional focaliza no controle de Deus sobre a totalidade da
sua obra e das circunstâncias, compreendendo, como Frame ainda diz, “tanto a lei
revelada na escritura quando a revelação geral na natureza criada. Deus ordena que
entendamos a criação bem bastante para aplicar a Escritura a todas as áreas da
vida... Cada fato posta uma questão ética... e sugere respostas...”70 A perspectiva
situacional, portanto, analisa o que sabemos do mundo à luz da Escritura e sugere o
conhecimento bíblico em diferentes situações.
A perspectiva existencial focaliza o poder de Deus na lei revelada ao homem
criado à imagem de Deus. Como Frame diz também: “Chegamos a conhecer melhor
a lei à medida que melhor conhecemos a nós mesmos. Além disso, aprendemos
como a regeneração e a santificação (isto é, obediência) são essenciais para o
conhecimento, em seu sentido pleno, e como estes interagem com a lei e com a
situação a fim de conduzir-nos à verdade”.71
Assim, a pregação para aconselhamento terá de prestar atenção a tais
perspectivas a fim de proceder a uma hermenêutica correta da Palavra, uma
hermenêutica correta da pessoa e uma hermenêutica correta do mundo a fim de
produzir uma aplicação adequada.

A Palavra de Deus é Teórica Prática


Não há teoria sem prática nem prática sem teoria. Pense nisto: agir sem

66
Ibid.
67
Romanos 10.17: “E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo”.
68
1 Coríntios 1.21: “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria,
aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação”; Gálatas 3.2: “Quero apenas saber isto de vós:
recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?”
69
Romanos 1.18-25: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que
detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus
lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria
divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que
foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios,
obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do
Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e
répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para
desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a
criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!”
70
John Frame, The Doctrine of the Knowledge of God, 75.
71
Ibid.

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pensar é pecado, pois cede à natureza decaída; pensar sem agir também é pecado,
pois falha em alcançar o padrão de Deus. Uma das razões pelas quais muitos
aconselhamentos e aconselhados falham é exatamente porque não sabem como
concluir a teoria em termos de sua aplicação, às vezes, interpretando mal o texto
bíblico, às vezes, deixando de considerar perspectivas e elasticidade de termos e
temas e, às vezes, de fornecer passos facilmente identificáveis e aplicáveis.
Lembre-se do que tratamos sobre o caráter reflexivo da pregação. Tiago diz
que, quando a Palavra de Deus não é praticada, é como o que ocorre com
aconselhado que olha seu rosto no espelho e sai para logo se esquecer da própria
feiúra.72 Para que a prática seja completa, será preciso que o princípio bíblico seja
implementado.Uma mensagem sem implementação prática será um vidro sem prata
que a faça reflexo da glória de Deus e da alma do homem. (“E todos nós, com o
rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos
transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o
Espírito” − 2 Coríntios 3.18.)
Veja o seguinte exemplo. Às vezes, o conselheiro cita Efésios 4.25 (“Por
isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo”), esperando
que este seja o conselho bíblico para o mentiroso. No entanto, nesse caso, o
aconselhamento poderá se perder numa artimanha comportamentista. De fato, não
basta tirar a mentira e por a verdade. Paulo diz que é preciso, antes, conhecer e ser
instruído na verdade de Jesus, despojando do velho homem, renovando o
entendimento e revestindo de Cristo. Daí, diz o apóstolo, tire a mentira e ponha a
verdade – atentando para a motivação certa, a qual é ser membro de Cristo e uns dos
outros. A chave para a transformação é ser membro do corpo do qual Cristo é a
cabeça.

Princípio Aplicação Implementação


Base da mudança Processo de mudança Motivação para a mudança
Efésios 4.22-24: Efésios 4.25a:
Efésios 4.25b:
... no sentido de que, quanto “Por isso, deixando a mentira, fale
“...porque somos membros uns
ao trato passado, vos cada um a verdade com o seu
dos outros”
despojeis do velho homem, próximo...”
que se corrompe segundo as
Efésios 4.26:
concupiscências do engano, e Efésios 4.27
vos renoveis no espírito do “Irai-vos e não pequeis; não se
“...nem deis lugar ao diabo”.
ponha o sol sobre a vossa ira...”

72
“Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em
vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não
somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante,
assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se contempla, e se
retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera, atentamente, na lei
perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será
bem-aventurado no que realizar” (Tiago 1.21-25).

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40

vosso entendimento, e vos Efésios 4.28a:


revistais do novo homem, Efésios 4.28b:
Aquele que furtava não furte
criado segundo Deus, em ...para que tenha com que acudir
mais; antes, trabalhe, fazendo com
justiça e retidão procedentes ao necessitado.
as próprias mãos o que é bom...
da verdade.”
Efésios 4.29:
Não saia da vossa boca nenhuma Efésios 4.29b:
palavra torpe, e sim unicamente a ...e, assim, transmita graça aos
que for boa para edificação, que ouvem.
conforme a necessidade...

Efésios 4.30-31
Efésios 4.32
E não entristeçais o Espírito de
Antes, sede uns para com os
Deus, no qual fostes selados para
outros benignos, compassivos,
o dia da redenção. Longe de vós,
perdoando-vos uns aos outros,
toda amargura, e cólera, e ira, e
como também Deus, em Cristo,
gritaria, e blasfêmias, e bem assim
vos perdoou.
toda malícia.

Jack Hughes, pastor em Burbank, California, diz que “os pastores de hoje
deixaram de considerar a diferença entre princípios, aplicação e implementação”.
Aplicação, diz ele, é como os princípios bíblicos deveriam ser obedecidos. Por
exemplo, escreve Hughes, “no caso de Salmo 19.7-14,73 uma das aplicações é:
“Leia sua Bíblia”. Mas não basta o princípio nem a aplicação; falta a
implementação.

“Leia a sua Bíblia” é o que tem de ser feito. As pessoas sabem o que significa ler e
sabem o que a Bíblia é, e entendem o conceito de ler a Bíblia. Até aqui, não há
problema. Para muitos, porém, a simples exortação: “Leia a sua Bíblia”, será como
dizer: “Vá reformar o motor do seu carro”. Reformar o motor de um carro é um
conceito fácil de ser compreendido. O problema não é com o conceito; o problema é
com a implementação do conceito. Como alguém reforma um motor de carro? Se
você nada souber sobre mecânica de motores, como poderia encontrar os meios e
habilidades para fazê-lo?74

Tremper Longman III fornece alguns conselhos:

73
Salmo 19.7-14: “A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel e dá sabedoria
aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro e
ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do Senhor são verdadeiros
e todos igualmente, justos. São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais
doces do que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há
grande recompensa. Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas.
Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de
grande transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua
presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!”.
74
Jack Hughes, “Implementation: the Missing Ingredient”, Journal of Modern Ministry, 2004, Vol. 1, Issue 1,
89-93.

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Fale para a totalidade da pessoa


O termo alma é entendido hoje com diversos sentidos que não correspondem
aos sentidos usados na Bíblia. O mercado não-religioso usa o termo alma para os
desejos do corpo: “Refresco para a alma”. As psicologias falam da alma como
sendo apenas a estrutura da psique. As filosofias usam o termo para descrever
processos mentais. O uso do termo alma, na Bíblia, refere-se à totalidade da pessoa.
A Bíblia, como espelho da alma, se refere à totalidade do ser, penetrando além das
realidades superficiais para chegar ao coração daquilo que pensamos, sentimos,
desejamos e decidimos. Entender tal ênfase é crucial, ou abriremos a Bíblia
esperando que seu propósito principal seja apenas o de informar nosso intelecto,
dizer-nos quem Deus é e o que implica nossa relação com ele. Não entenda isso
errado. A Bíblia alimenta nosso intelecto; mas vai além disso. A Bíblia provoca
nossas emoções, estimula nossa imaginação e apela à nossa vontade. A Bíblia fala à
totalidade da pessoa, e é por isso que tem de chegar ao coração − a fim de que a
experimentemos.75
Por exemplo, diz Longman, a Bíblia fala sobre a sexualidade humana. As
pessoas, geralmente, têm uma visão distorcida da sexualidade, considerando o sexo
como um mal necessário, pecaminoso e relacionado à “carne”. No entanto, a
verdadeira espiritualidade, informada pela Palavra de Deus, orienta a alma para o
prazer apropriado do sexo dentro da relação conjugal.76 Fomos criados com anseios
profundos, entre os quais o desejo sexual que nos ensina, entre humanos, o desejo
por Deus. O desejo sexual serve aos propósitos de |Deus quando experimentado da
maneira como pretendida por Deus.77
Apreenda a imaginação
Como a palavra de Deus penetra a alma até o coração? Longman propõe
despertar a imaginação com imagens da verdade em espelhos de beleza.
“Considere”, diz ele, “a forma pela qual Deus escolheu nos dar a sua Palavra. Você
já notou que a Bíblia não é apresentada com um tratado de filosofia nem de teologia
sistemática [ainda que contenha tais aspectos]? Deus, certamente poderia ter
escolhido tais formas para falar de si mesmo .... A Bíblia não tem a forma de uma
confissão de fé... excelentes meios para resumir e expressar o que cremos... Nossa
fé é baseada em fatos históricos (veja 1 Coríntios 15.14)78 e Deus poderia ter
escolhido escrever um texto de história para nos falar da salvação, mas não o fez.
Ele, compassivamente, escolheu nos falar com histórias e poemas”.79
A imaginação é a maneira como entendemos a crença em relação às
realidades do nosso mundo interior e exterior. A imaginação é o nosso
entendimento das crenças sobre Deus, o mundo e o homem. Como Longman
também escreve, dizer que Deus nos fala na Bíblia por meio de história e poemas
não quer dizer que os eventos bíblicos sejam mitos ou histórias inverídicas. “Não;
tais histórias dizem com precisão o que realmente aconteceu . Mas fazem isso de

75
Tremper Longman III, Heart & Soul, 31.
76
Veja Wadislau Martins Gomes, Coração e Sexualidade (Brasília: Refúgio 1999).
77
Longman, Heart & Soul, 32.
78
1 Coríntios 15.14: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé”.
79
Longman, Heart & Soul, 32-33.

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maneira cativante e com estilo vívido que nos deixa assentados na beirada dos
nossos bancos”80 − prontos para experimentar a Palavra.
Conectando nossa história à história de Deus
Longman propõe ainda que a leitura e exposição da Palavra deveriam fazer
“soar os sinos” de nossa experiência. “Deus quer nos transformar por meio da sua
Palavra. Assim, ele nos fala de maneira a capturar o nosso coração e levar-nos para
junto do seu coração”. E nos deixa com algumas questões:
• Como a Bíblia lança luz sobre minha história? Quais as histórias e
poesias na Bíblia que mais diretamente refletem sobre aquilo que é a
minha vida [e dos meus ouvintes]?
• Como tenho[e os meus ouvintes] reagido às perdas? Alegrias?
Sucessos? Quais os insights que vêm à mente em tempos difíceis? Em
bons tempos?
• Quais têm sido as minhas [e dos meus ouvintes] orientações e os
propósitos do coração ao considerar o passado e o futuro? Quando
tenho [e meus ouvintes] visto Deus operando? Quando Deus parece
mais próximo e real? Quando ele parece mais distante e enigmático?
• Como a minha vida [e dos meus ouvintes] faz sentido até agora? Quais
são os aspectos mais confusos da vida até então? De que maneiras a
Bíblia espelha o que ocorreu e o que está ocorrendo?
• Quais as “grandes questões” que tenho [e meus ouvintes] feito ao
longo de minha vida? Até que ponto tais questões têm sido
respondidas? Como eu [e meus ouvintes] avalio o processo e a
qualidade das decisões que têm sido feitas? Até que ponto a Bíblia
influenciou tais decisões?
• Quais têm sido meus [e dos meus ouvintes] desejos mais profundos?
Como têm sido satisfeitos? O que mais falta? Que papel Deus e sua
Palavra têm desempenhado nessa busca?81

80
Ibid.
81
Ibid., 34-35.

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A Escritura, o pregador e o ouvinte

A Escritura: o pregador é o meio entre a Hermenêutica e a pregação

A Escritura fala ao coração por meio de palavras, conceitos e figuras


O movimento circular crescente da revelação escriturística, por meio de
autores múltiplos e diversos, de representações culturais diversas, ao longo da
história, se presta a atingir todas as áreas e variáveis da compreensão humana. Os
usos da palavra na revelação e na proclamação não significam apenas uma opção,
mas implicam a própria formação e transmissão das idéias teórico / práticas. Deus
criou o mundo por meio da Sua palavra e revelou a Si mesmo e ao mundo por meio
de palavras. Para que todo o conhecimento revelado pudesse cobrir e se estender às
inúmeras variações das realidades internas e externas do ser humano, Ele não a
revelou em forma de um “dicionário de vida”, mas “de muitas maneiras“ (Hb 1.1).
O conhecimento bíblico não é apresentado de forma definitiva, mas
descritiva, tanto para falar a todas as pessoas de todos os tempos e culturas, quanto
para cobrir todas as áreas necessárias “ à vida e à piedade, pelo conhecimento
completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude” (2 Pe 1.2).

Um exemplo bíblico: a Epístola de Paulo aos Coríntios

Introdução e proposição
Foi isso que Paulo fez quando escreveu aos coríntios. Ele começou a sua
carta com a afirmação de sua própria vocação e a confirmação do chamado dos
coríntios (1.1-3), ressaltando a centralidade do Deus triuno tanto quanto à eleição,
consumação e perseverança da salvação (1.4-8). O propósito da carta é claro: A
unidade de Deus deveria estar sendo refletida na comunhão do corpo de Cristo
(1.9-10).

Divisão e dispersão
A partir daí, Paulo argumenta sobre diversas questões que causam divisão no
corpo de Cristo e suas soluções: (1) contendas sobre pessoas e posições (1.11-17);
(2) discussões sobre poder e sabedoria (1.18−2.16); (3) obras da carne versus obras
de Deus (3.1−4.21); (4) pecado e disciplina redentiva (5.1−6.20); (5) sexualidade e
compromisso conjugal (7.1-40); (6) escravidão a ídolos e liberdade do jugo de
Cristo (8.1−9.27).

União e propósito
Neste ponto, então, Paulo adverte: todas essas coisas que causam divisão na
comunhão do corpo de Cristo são sintomas de um problema maior: os coríntios
estavam centrados em si mesmos, na própria estultícia, e conseqüentemente, em

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ídolos (pois ninguém é deus suficiente para si mesmo), agindo por necessidade e
não por expressão, sendo conduzidos à dissolução interna (individualismo) e à
desintegração externa (luta pelo poder) (10.1-33). Todas as questões morais que
causavam divisões entre os coríntios em nada refletiam a ética de Deus. A questão
principal não seria a de como se vive para “subir a Deus”, mas como Deus “veio ao
homem”, em Cristo, para trazer-lhe a luz de sua glória. Comer, beber, casar, enfim,
viver, só tem sentido se for para a glória de Deus (11.1-34). Tudo mais, continua
Paulo, é jogo de palavras (línguas) e luta por poder (dons) − a qual poderá parecer
que sejam lutas autênticas, mas que desviam o crente do caminho (12.1-31).

Comunhão interior e exterior


Paulo passa, então, a descrever os princípios chaves da verdadeira vida.
Jogos de palavras nada significam; jogos de poder nada significam; obras da carne
na significam. Pessoas e palavras só têm sentido vívido quando operadas pelo amor,
e o amor só poderá ser operado por uma esperança imaginada segundo a habitação
da fé. Destes, o amor é o maior não porque é exclusivo. O amor é uma palavra que
se torna maior quando a fé e a esperança encontram expressão na glória de Deus,
pela graça e mediante a fé (13.1-13).

Princípio, aplicação e implementação


Havendo fixado os princípios do conhecimento de Deus e de sua Palavra
(habitação da fé) na glória revelada de Deus, segundo uma imaginação que
apreende o conhecimento da história de Deus segundo a sua própria história e a
história dos coríntios, Paulo aplica a mensagem ao coração, demonstrando como a
palavra deve ser usada para a edificação, como o poder dever usado para o serviço e
como a verdadeira comunhão de pessoas e palavras (segundo o senhorio e a
providência de Deus) promove a glória de Deus (14.1-40). Finalmente, o apóstolo
implementa a fé, a esperança e o amor, fornecendo os passos norteadores do
caminho. Ele mostra aos coríntios como importa viver agora para a eternidade
(15.1−16.24).

O uso que Paulo fez de termos, expressões e metáforas Princípio,


aplicação e implementação Comunhão interior e exterior União e
propósito
Todos os termos descritivos que a Escritura usa são, também, elásticos e
abrangentes. Tome, por exemplo, o termo glória. Tão vazio hoje em dia, o termo
glória abrange toda uma teo-visão. A glória de Deus (honra, reputação, peso, beleza,
esplendor, brilho, dignidade, louvor etc) é a expressão de seu caráter e tem um
sentido em que é aquilo que temos de refletir em nosso próprio caráter.
O termo graça também carece de conteúdo. Geralmente, definido como um
dom imerecido, esse termo descreve muito mais do que isso. É o caráter justo e
bondoso de Deus movendo-se na direção do homem que criou para habitar com ele.
Nesse sentido, a graça é a dação da glória de Deus ao homem para refleti-lo e
participar, assim, de Sua própria natureza e virtude (2 Pe 1). Do meio das trevas do

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nosso pecado, tudo o que podemos vislumbrar de Sua glória são os rasgos de luz de
um dom imerecido.
O mesmo ocorre com o termo fé. Ele descreve a crença, a confiança e a
esperança que regulam as relações do homem com Deus, com o homem e com o
mundo. Mas significa muito mais que isso. É a habitação do homem com Deus (ou,
no âmbito da Queda, com os ídolos). A fé é um movimento do homem, primeiro,
para cima, para o transcendental; segundo e decorrente, um movimento para fora,
para a realidade criada; e terceiro, um movimento para dentro, de retroalimentação.
Por sua vez, o termo amor, mais conhecido pela sua conseqüência, o sentimento do
amor, na verdade, como causa, é o ato responsável de fazer o bem. Como tal, é um
movimento operacional, primeiro em relação a Deus e, segundo, para fora, na
direção do outro.
Será preciso, sempre, ler a Bíblia com a mente e com o coração. A leitura da
Palavra deveria ser feita sob o entendimento da dinâmica da tríade
habitação/imaginação/operação. Primeiro, o leitor habita com Deus na Palavra. Ele
lê o texto em humilde oração até que seu entendimento seja esclarecido pelo
Espírito Santo, conforme a promessa, acerca das verdades ali contidas. Segundo, ele
refaz tudo aquilo que imagina em seu coração sobre a realidade da vida, com base
na crença, esperança e confiança nas verdades ali expostas; terceiro, o leitor conduz
seu coração a planejar, segundo Deus, novos objetivos de vida segundo os caminhos
de Deus (“entrega teu caminho ao Senhor”), novas e santas estratégias (“o coração
... pode fazer planos, mas a resposta certa vem dos lábios do Senhor”) e cria novos
desejos virtuosos e frutíferos (“ele satisfará os desejos do teu coração”). Uma fez
feita essa “leitura”, é chegada a hora de “ler” a possível assistência, os ouvintes:
Onde habitam? Como imaginam? O que esperam? Qual o desejo do coração:
espiritual, carnal, autárquico, autônomo? É preciso que o pregador leia a Palavra e
as pessoas, que fale delas a Deus tanto quanto pretende falar de Deus a elas. Isso
significa fazer a hermenêutica da Palavra e a hermenêutica da pessoa.

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O modelo redentivo

1. O modelo de aconselhamento redentivo parte da soberania de Deus − controle,


presença e autoridade − segundo a revelação especial na Escritura (a hermenêutica
de Deus) para a hermenêutica da revelação geral, especialmente do homem.
Considera a graça divina como um movimento na direção do homem a fim de
conceder o usufruto de sua própria natureza (2 Pd 1.4).
2. O homem é um ser “religioso teo-referente, receptivamente criativo e ativamente
redentivo”. Foi criado por Deus para glorificá-lo (imagem e semelhança) por meio
da adoração e da obediência (cultuar e guardar), recebendo a graça divina e
respondendo em fé em todos os segmentos da vida.
3. O modelo de aconselhamento bíblico observa a presente realidade segundo as
categorias bíblicas da Criação, Queda e Redenção. Entende o movimento humano
como teo-referente, isto é, como uma reação positiva ou negativa ao fato do
controle, presença e autoridade de Deus.
4. Toma o tema da tríade fé-esperança-amor, segundo usada por Paulo em 1
Coríntios 13, como uma das muitas descrições das afeições básicas do coração. A
diversidade bíblica permite muitos outros modelos igualmente verdadeiros.
a. Fé, no sentido mais lato do termo, inclui: o dom especial da fé em Deus e o
dom geral da fé tácita (Hb 11, 1, 3, 6; 2 Co 5.7; 1 Co 2.5); é um movimento
afetivo, primeiro para cima (transcendental), e depois, para dentro e para fora da
pessoa.
b. Esperança, no sentido de esperar, expectar (Rm 8.19-24), é um movimento
afetivo, primeiro para dentro (perceptual), e depois, para cima e para fora da
pessoa.
c. Amor, no sentido geral de movimento gracioso (1 Jo 2.5, 15; 4.7-11; 2 Jo 1.6;
Gl 5.6) na direção do outro (atual), primeiro para fora, e depois, para cima e de
para dentro da pessoa.
5. As afeições da tríade fé-esperança-amor se manifestam na tríade subseqüente de
afetos respectivos e interagentes: habitação-imaginação-operação.
a. Habitação, nos diversos e elásticos sentidos utilizados na Escritura, como
sendo o encontro do movimento da graça de Deus, especial e comum, e da fé
humana, arrependida ou rebelde (Rm 1.15-25).
b. Imaginação, como o processo por meio do qual a pessoa organiza suas
estruturas mentais a fim de fazer senso do mundo percebido (At 17.29; Pv 23.7;
Ez 38.10; Sl 2.1; 38.12; Mq 2.1).
c. Operação, o ato projetado antes da ação (Tg 1.25; 2 Ts 1.3; 2.11, 12; Rm 7.5).
6. As afeições da fé/esperança/amor, processadas nos afetos da habitação/
imaginação/operação, manifestam-se nos afeitos dos desejos-objetivos-estratégias
que se finalizam em emoções e comportamentos no ato-estrutura do corpo
(movimentos sensíveis e atuações da totalidade da pessoa). (Pv 4.18-27; Rm 6.12-

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14; Ef 4.17−5.21; Tg 3.1-6; 1 Pe 3;2.)


a. Objetivos ou alvos (finalidade − qual o fim principal do homem?);
b. Estratégias (estruturas mentais; fé-arrependida vs. auto-engano − como
descrever a experiência de prosseguir para o alvo final?)
c. Desejos ou anseios (alvos e desejos; desejos desordenados, poderes
desordenados, iras [senso de justiça] desordenadas).

Utilização do modelo

1. A utilização do modelo aconselhamento redentivo consiste na discriminação da


ordem inversa dos movimentos ato estruturais da pessoa:– isto é, dos movimentos
emocionais e comportamentais, dos afeitos dos desejos-objetivos-estratégias, dos
afetos da habitação-imaginação-operação, e das afeições da fé-esperança-amor−
por meio da revelação da Palavra de Deus e da ação do Espírito Santo no
conhecimento e insights do conselheiro e do aconselhado.
2. O símbolo indica um movimento de → para que possui uma dinâmica de
retroalimentação positiva ou negativa.

a. Na dinâmica positiva, as afeições da fé/esperança/amor são


capitaneadas pela fé, e habitam em Deus e sua Palavra.
Consequentemente, a pessoa imagina a realidade criada segundo a
perspectiva de Deus, e opera no mundo segundo a vontade de Deus (a
qual é a nossa melhor vontade).
Derivado do que crê (fé/habitação) e do que recria em seu coração
(esperança/imaginação), a pessoa forma os objetivos de vida segundo

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a finalidade para a qual foi criada (refletir o caráter de Deus). Derivado


do que crê (fé/habitação) e daquilo a que entrega o coração
(amor/operação), a pessoa adota estratégias de ação conforme o
propósito de Deus (usufruir o processo). Derivado daquilo a que se
entrega (amor/operação) e daquilo que recria (esperança-imaginação),
a pessoa gera desejos espirituais em relação a Deus e seus benefícios.

b. Na dinâmica negativa, rebelde, incrédula e infiel, as afeições da


fé/esperança/amor são capitaneadas pelo amor em busca de uma
habitação impossível nos desejos da carne. (“E não vos embriagueis
com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito” – Ef
5.18.) A incredulidade desesperada e a vã imaginação geram ídolos de
reposição para uma “redenção” da existência (de Deus para os ídolos).
Conseqüentemente, a infidelidade e o amor por si mesmo operam
estratégias humanas como ritos cultuais em função do suprimento para
as necessidades percebidas. O resultado é a finalização no círculo
vicioso dos desejos da carne: desejos insatisfeito + esperança frustrada
+ ídolos mudos e perversos + mais desejos da carne...

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Noutras palavras, em última instância, o coração habita em Deus ou nos


desejos da carne. Sem Deus, o único que pode suprir os desejos do coração
(“Agrada-te do Senhor, e ele satisfará os desejos do teu coração” – Sl 37.4), o
homem coloca suas afeições nos desejos idólatras da carne. Os resultado disso é o
desequilíbrio emocional e a desordem comportamental.
3. O aconselhamento redentivo visa conduzir o aconselhado a colocar fé, esperança
e amor em Cristo, pela graça mediante a fé, restaurando a habitação de Deus nele e
dele em Deus, levando a imaginação à obediência à Palavra pela ação do Espírito, e
operando alvos bíblicos transcendentais, estratégias temporais bíblicas, e desejos
ordenados – “até ser Cristo formado” em nós (Gl 4.19).

Conclusão
A pregação para aconselhamento se mostra efetiva quando exibe a relação
entre a unidade multi-perspectiva da mensagem (A Escritura: o pregador é o meio
entre a exegese e a estrutura do sermão) e a coerência da ato-estrutura do pregador
(O pregador é o meio entre a mensagem e o recipiente da mensagem) com o
objetivo de transformar o caráter dos ouvintes e de produzir mudança de
comportamento (A mensagem deverá se viva para apresentar a Vida à vida).

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Portas Estreitas

Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz
para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a
porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que
acertam com ela (Mateus 7.13-14).

Alguns ministros pregam abrindo largas as portas do evangelho, mas uma vez
que alguém adentre pelas portas escancaradas, nada há para ser alcançado. Dizem-
me, às vezes, que faço estreitas as minhas portas. Tal não é verdadeiro, pois eu prego
o evangelho a toda criatura debaixo dos céus com todo meu poder; e, se forem
estreitas, sempre há algo de valor além das portas. Mesmo que o caminho seja
estreito, se você chegar lá, e entrar, terá encontrado vida eterna, e jamais perecerá – e
ninguém o arrebatará das mãos de Cristo.
Pecador: venha e receba uma bênção eterna! Vale a pena; venha obtê-la! Se você
crer, será salvo. “Quem crer e for batizado será salvo” – salvo do pecado para não
mais voltar a viver nele outra vez; salvo para ser preservado em santidade. E
santidade será o fluxo principal da corrente da vida, até que um dia, feito plena e
82
perfeitamente santo, você habite no alto com Deus.

82
C. H. Spurgeon (“Drifted Leaves” em The King’s Own, fevereiro de 1890, 159).

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