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RESENHA: O ESPÍRITO DAS LEIS DE MONTESQUIEU

O presente trabalho trata de apresentar alguns conceitos estruturais da obra


denominada O Espírito das Leis, escrita por Charles-Louis de Secondat, barão de La
Brède e de Montesquieu, conhecido como Montesquieu. Para tanto, focar-se-á,
especificamente, o modo como Montesquieu entende o estado de natureza, as formas de
governo possíveis e os princípios relativos a cada forma de governo.

1. Objetivo principal de O Espírito das Leis

Para apresentar o objeto que será tratado em seu livro, Montesquieu apresenta,
nos capítulos iniciais de obra, o mapa de intenções de sua empresa, da seguinte maneira:

“A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as leis políticas
e civis de cada nação devem ser apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana.
Devem ser tão próprias ao povo para o qual foram feitas que seria um acaso muito grande se as
leis de uma nação pudessem servir para outra.
[...]
Devem ser relativas ao físico do país, ao clima gélido, escaldante ou temperado, à qualidade do
terreno, sua situação e grandeza, ao gênero de vida dos povos, lavradores, caçadores ou pastores; devem
estar em relação com o grau de liberdade que sua constituição pode suportar, com a religião de seus
habitantes, com suas inclinações, com suas riquezas, com seu número, com seu comércio, com seus
costumes, com seus modos. Enfim, elas possuem relações entre si; possuem também relações com sua
origem, com o objetivo do legislador, com a ordem das coisas sobre as quais foram estabelecidas. É de
todos estes pontos de vista que elas devem ser consideradas.
É o que tento fazer nesta obra. Examinarei todas estas relações: elas formam juntas o que
chamamos o Espírito das Leis.” (Montesquieu 1996, p. 16,17)

Ou seja, Montesquieu procurará mostrar como as leis organizam racionalmente


sociedades e governos e também como a produção legislativa é influenciada por
inúmeros fatores do meio no interior do qual é realizada.

2. Estado de natureza e leis naturais

Primeiramente, o filósofo francês irá dissertar acerca do estado pré-social


denominado de estado de natureza. Ele define este estado com as seguintes palavras:

Antes de todas estas leis, estão as leis da natureza, assim, chamadas porque derivam unicamente
da constituição de nosso ser. Para bem conhecê-las, deve-se considerar um homem antes do
estabelecimento das sociedades. As leis da natureza serão aquelas que receberia em tal estado.
(Montesquieu 1996, p. 13,14)

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Ou seja, a partir da realização de uma abstração cognitiva, Montesquieu
procurará mostrar as leis naturais que regulariam o comportamento dos homens no
estado de natureza.

Para tanto, ele se contrapõe à teoria do estado de natureza enquanto estado de


guerra generalizada de todos contra todos, elaborada pelo filósofo inglês Thomas
Hobbes.

Com efeito, o escritor francês observa diligentemente que Hobbes parece


apontar em indivíduos em uma situação pré-social comportamentos e disposições
anímicas caracteristicamente pertencentes a sociedades avançadas, sustentando, por
conseguinte, que o estado de natureza é marcadamente um estado de paz, nos seguintes
termos:

Neste estado, todos se sentem inferiores; no limite, cada um se sente igual aos outros. Não se
procurariam então, atacar, e a paz seria a primeira lei natural. (Montesquieu 1996, p. 14)

Ou seja, o autor de O Espírito das Leis assevera que todos são iguais no estado
de natureza, em virtude da fraqueza individual de cada um. E, em razão de que cada um
se reconhece fraco em relação aos demais, o comportamento comum seria pacífico.
Desse modo, a paz seria a primeira lei da natureza.

Além da paz, Montesquieu indica três regras comportamentais que poderia


também ser definidas como leis naturais, a saber: a alimentação, a satisfação sexual e o
desejo de viver em sociedade, sendo esta última capaz de ensejar a vida social do
homem.

3. A natureza dos governos e as leis que deles derivam

Após a análise do estado de natureza, Montesquieu procura observar como se


regulamenta as sociedades após a instauração do vínculo social. Para tanto, o filósofo
francês irá apresentar como se caracterizam a natureza do governo e as leis derivadas
deste.

Em primeiro lugar, o autor de O Espírito das Leis apresenta as espécies de as


definições de governo da seguinte forma:

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Existem três espécies de governo: o REPUBLICANO, o MONÁRQUICO e o DESPÓTICO. [...]
Suponho três definições, ou melhor, três fatos:” o governo republicano é aquele no qual o povo em seu
conjunto, ou apenas uma parte do povo possui o poder soberano; o monárquico, aquele onde um só
governa, mas através de leis fixas e estabelecidas; ao passo que, no despótico, um só, sem lei e sem regra,
impõe tudo por força de sua vontade e de seus caprichos”. (Montesquieu 1996, p. 20)

Ou seja, à diferença da tradição do pensamento político iniciada por Aristóteles,


em que se separa as formas virtuosas e viciosas dos regimes de governo1 a partir da
quantidade de elementos constituintes do poder soberano, Montesquieu sintetiza essas
espécies de governo em apenas três, distinguindo-as pelo quantitativo depositário do
poder soberano, por um lado, e, por outro lado, pela forma depurada ou deturpada do
exercício do poder.

Com efeito, Montesquieu apreende a espécie republicana de governo como


aquela no qual o poder soberano pode ser exercido por todo o povo, sendo, nesse
sentido, denominada por ele de democracia, ou pode ser exercido por uma parte do
povo, a qual é designada pelo filósofo francês de aristocracia. Contudo, essa divisão
baseada na quantidade de indivíduos detentores da soberania não é distinguida por
Montesquieu como bom ou mau governo.

Ao contrário do que acontece com a Monarquia e o Regime Despótico. Pois,


embora eles se identifiquem por serem regimes nos quais apenas um indivíduo detém o
poder soberano, para Montesquieu, somente pode ser chamada de Monarquia o regime
de governo caracterizado como Monarquia Constitucional, isto é, aquele no qual o rei
governa segundo os ditames definidos pela carta magna do país. O Regime Despótico
seria, ao contrário, o governo de somente um indivíduo que rege o país segundo o seu
próprio alvedrio e fantasia.

4. Dos princípios dos três governos

Após a definição da natureza específica de cada governo, Montesquieu procura


identificar os princípios fundamentais que contribuem para a manutenção da existência
de cada espécie de governo.

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Na obra denominada “Política”, Aristóteles irá distinguir regimes políticos e formas de governo. O
filósofo de Estagira define regime político como o critério que separa quem governa e o número de
governantes. Nesse sentido, haverá três regimes políticos: a monarquia (poder de um só), a oligarquia
(poder de alguns poucos) e a democracia (poder de todos). Entretanto, formas de governo são definas por
Aristóteles em virtude da finalidade em vista da qual se governa, sendo que, para o filósofo, os governos
devem governar em vista do que é justo, de interesse geral, o bem comum. Sendo assim, são classificadas
seis formas de governo: aquele que é um só para todos (realeza), de alguns para todos (aristocracia) e de
todos para todos (regime constitucional). As outras três formas (tirania, oligarquia e democracia) são
deturpações, degenerações dos anteriores, ou seja, não governam em vista do bem comum.

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Contudo, ele determina o sentido daquilo que define como princípio, nos
seguintes termos:

Existe a diferença seguinte entre a natureza do governo e seu princípio: sua natureza é o que faz
ser como é, e seu princípio o que o faz agir. Uma é sua estrutura particular, o outro, as paixões humanas
que o fazem mover-se. (Montesquieu 1996, p. 31)

Nesse sentido, pode-se dizer que a natureza do governo seria a essência interna
de cada regime, isto é, o número de detentores do poder soberano, enquanto o princípio
seria a disposição anímica manifestada especificamente pelos indivíduos existentes em
cada regime.

i. A virtude da democracia

No intuito de apresentar o princípio de cada espécie de governo, Montesquieu irá


identificar na democracia a virtude como princípio precípuo, fundamentando-se, psra
tanto, no seguinte argumento:

O que estou dizendo é confirmado por todo o conjunto da história e está bem conforme à
natureza das coisas. Pois fica claro que numa monarquia, onde aquele que faz executar as leis julga estar
acima das leis, precisa-se de menos virtude do que num governo popular, onde aquele que faz executar as
leis sente que está a elas submetido e que suportará seu peso. (Montesquieu 1996, p. 52)

Ou seja, o que o filósofo francês alude é que a democracia, em virtude de ser


caracterizada como a espécie de governo em que todos detém o poder e todos a ele está
submetido, somente perdura se os indivíduos que o constituem detiverem a disposição
anímica de compreender a importância desta elaboração legislativa conjunta e da
subsunção de todos a essas mesmas leis. Caso contrário, a nervura governamental se
desfaz.

ii. A virtude moderada da aristocracia

Já em relação à espécie de governo denominada de aristocracia, Montesquieu


assevera que o princípio norteador se caracteriza pela moderação. Para tanto, o escritor
francês fundamenta o seu raciocínio na seguinte tese:
O governo aristocrático tem por si mesmo certa força que a democracia não possui. Nele, os
nobres formam um corpo que, por sua prerrogativa e pelo seu interesse particular, reprime o povo: basta
que existam leis neste sentido, para que elas sejam executadas.

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Mas tanto quanto é fácil para este corpo reprimir os outros, é difícil que ele reprima a si mesmo.
A natureza deste regime é tal que parece que ela coloca as pessoas sob o poder das leis, e ela mesma as
subtrai a este poder.
Ora, tal corpo só pode ser reprimido de duas maneiras: com uma grande virtude, que faz com que
os nobres se tornem de alguma forma iguais a seu povo, o que pode vir a formar uma grande república; ou
com uma virtude menor, que é certa moderação que torna os nobres pelo menos iguais entre si, o que
promove sua conservação.
Assim, a moderação é a alma destes governos. Refiro-me àquela baseada na virtude, e não à que
vem de uma covardia ou de uma preguiça da alma. (Montesquieu 1996, p. 34)

Ou seja, Montesquieu caracteriza, primeiramente, o que distingue a aristocracia


das demais espécies de governo, a saber: parte do povo enquanto depositário do poder
soberano. Com efeito, à diferença da democracia, onde não há distinção entre o corpo
político que exerce o poder e o corpo político sobre o qual esse poder é exercido,
observa-se na aristocracia uma cisão social, na medida em que a nobreza exerce o poder
soberano sobre o restante da população. Como consequência dessa cisão, surge uma
dificuldade: em que medida o corpo político depositário do poder soberano poderia
produzir leis com o objetivo de restringir sua própria conduta? Pois, na medida em que
a nobreza elabora, promulga e publica leis que regulamentam o comportamento de
qualquer individuo pertencente a própria nobreza, ela estará, por conseguinte, limitando
o seu próprio comportamento. Em face desse impasse, Montesquieu apresenta duas
soluções possíveis: 1ª) a suposição de uma virtude ainda maior do que a existente na
democracia, a qual permitiria, no limite, a transformação da forma de governo em uma
democracia e 2ª) a hipótese da existência de uma virtude menor, menos idealizada, que,
na medida em que iria moderar os comportamentos, permitiria à nobreza a concepção da
existência de certa igualdade entre os elementos constituintes desse corpo político.

Dessa forma, em virtude de seu olhar menos idealista do que empirista acerca da
história universal, o filósofo francês assevera que o princípio norteador da aristocracia é
a presença dessa virtude mais moderada, a qual possibilita o surgimento da noção de
igualdade entre os nobres, advento da qual implica que qualquer inovação legislativa no
sentido de restrição comportamental afetaria como um todo o corpo político
aristocrático.

iii. A honra e a monarquia

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Com relação à monarquia, especificamente à monarquia constitucional, cujo
paradigma é a existente na Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688-1689,
Montesquieu se preocupa em mostrar que a virtude necessária nas demais formas de
governo é substituída, nela, pelas leis, visto que:

Nas monarquias, a política promove as grandes coisas com a menor virtude possível; assim como
nas mais belas máquinas, a arte usa tão poucos movimentos, tão poucas forças e tão poucas rodas quanto
possível.
O Estado subsiste independentemente do amor à pátria, do desejo da verdadeira glória, da
renúncia de si mesmo, do sacrifício de seus interesses mais caros e de todas as virtudes heroicas que
encontramos nos antigos e das quais só ouvimos falar.
As leis ocupam aí o lugar de todas estas virtudes, das quais não se precisa; O Estado nos
dispensa delas: uma ação que se conclui sem alarde é nele como que sem consequência. (Montesquieu
1996, p. 35).

Ou seja, Montesquieu observa que na espécie de governo onde somente um


indivíduo detém o poder soberano, submetendo-se, contudo, aos ditames legais
aprovados pelo parlamento, não é necessário que haja virtude no mesmo sentido que
deve haver em democracias ou aristocracias. Ao contrário, em razão de haver um
regramento legal aprovado e o monarca, bem como todo o conjunto de cidadãos,
observa fielmente seus preceitos, o Estado consegue existir independente dos sacrifícios
individuais tão característicos da antiguidade clássica.

Nesse sentido, será, para Montesquieu, outro o princípio definidor da monarquia


o qual ele apresenta na seguinte passagem:

Dir-se-ia que é como o sistema do universo, onde há uma força que afasta continuamente do
centro todos os corpos, e uma força de gravidade que os traz de volta. A honra move todas as partes do
corpo político; liga-as com sua própria ação; e assim todos caminham no sentido de o bem comum,
pensando ir em direção a seus interesses particulares. (Montesquieu 1996, p. 37)

Com efeito, o princípio que põe em movimento, para o autor de O Espírito das
Leis, o governo monárquico é a honra. Pois, a honra parece ter duas dimensões
características: a individual e a coletiva, em virtude de, ao buscarem o reconhecimento
pessoal, os indivíduos subsumidos por essa espécie de governo acabam contribuindo
para o bem coletivo.
Desse modo, a honra consegue verter os esforços individuais em contribuição
para o adequado funcionamento do Estado.

iv. O temor e o governo despótico

Contudo, Montesquieu observa que, em um governo despótico, não é a honra


que tem lugar enquanto princípio diretivo, e sim o temor, da seguinte forma:

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Assim como é preciso virtude numa república, e, numa monarquia, honra, precisa-se de TEMOR
num governo despótico: quanto à virtude, não lhe é necessária, e a honra seria perigosa.
Nele, o imenso poder do príncipe passa inteiramente para aqueles aos quais o confia. Pessoas
capazes de estimarem muito a si mesmas seriam capazes de promover revoluções. Logo, é preciso que o
temor acabe com todas as coragens e apague o menor sentimento de ambição. (Montesquieu 1996, p. 38)

Ou seja, em virtude de o governo despótico seguir apenas os ditames de seu


alvedrio e fantasia, a designação e atribuições por parte do déspota recaem somente
sobre aqueles nos quais este confia. Nesse sentido, o esforço individual cujo escopo
consiste no reconhecimento real, esforço esse que contribui para o desenvolvimento da
máquina estatal já não tem lugar. O que se percebe é a existência de toda sorte de
conchavos para se adquirir a preferência e a retribuição do déspota no sentido de receber
alguma atribuição distintiva no interior de tal sociedade.
Por outro lado, em virtude de não haver norma de conduta anteriormente posta, o
corpo social não tem onde fundamentar suas ações presentes e futuras. O que acaba por
gera o medo de que as fantasias e devaneios do governo acabem por causar algum dano
físico ou patrimonial a alguém. Neste cenário, somente impera a obediência cega às
vontades do governante.
Dessa forma, o termor é visto por Montesquieu como a força catalizadora da
máquina despótica.
Portanto, ao concluir o presente trabalho, observou-se que Montesquieu
apresenta uma teoria acerca do estado de natureza, à contracorrente da teoria
jusnaturalista vigente à época, a saber: Teoria do estado de guerra generalizada de
Thomas Hobbes, ressaltou-se que o filósofo francês apresenta quatro espécies de
governo, caracterizados pelo número de indivíduos depositários do poder soberano, e,
ainda, o autor de O Espírito das Leis indica os princípios que definem e movimentam a
máquina estatal dessas quatro formas de governo.

v. Bibliografia

Montesquieu. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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