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2004
RESUMO: Quando aprender é perder tempo.... compondo relações entre linguagem, aprendizagem e
sentido. O artigo tece considerações acerca de relações entre concepções de aprendizagem e concepções
de linguagem na escola. A um concepção de aprendizagem como transmissão de informações/
conhecimentos, articula-se uma concepção naturalizada de linguagem, como código transparente e
neutro, pretendendo representar as coisas. Uma concepção de aprendizagem como construção/
desconstrução, por sua vez, teria como correlato uma concepção de linguagem como produção, tomada
em sua natureza polissêmica. A argumentação é realizada a partir da obra de Gilles Deleuze que propõe
que, para além das dimensões clássicas da linguagem - manifestação, designação e significação - que,
em última instância, contribuem para que a linguagem seja tomada somente em sua função comunicativa,
há que se levar em conta também a dimensão do sentido/acontecimento.
PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem – linguagem – sentido
ABSTRACT: This text interlaces considerations about the relations between learning conceptions and
learning conceptions in the school. Into a conception of learning as the transmission of information/
knowledge, it is articulated a conception naturalized in language as a transparent and neuter code that
intends to represent things. A conception of learning as construction/deconstruction would have, in its
turn, as a correlate, a conception of learning as production of the world taken in its polysemous nature.
The argumentation is based on the work of Gilles Deleuze who proposes that beyond the classic dimensions
of language – manifestation, designation and signification – which ultimately contribute to language to
be taken in its communicative function -, it has also to be considered the dimension of meaning/event.
KEY WORDS: learning – language – meaning
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Elias, C.R.; Axt, M “Quando aprender é perder tempo... compondo relações entre linguagem, aprendizagem e sentido”
representadas por uma palavra, torna-se necessá- conceitual de nosso pensamento. Tomadas como
rio selecionar aquela que melhor se adapta, que categorias inatas, a cognição e a percepção defini-
corresponde à proposição manifesta. riam, a priori, estruturações objetivas e universais
A designação relaciona-se com o verdadei- da realidade e que, por esse motivo, não precisari-
ro e o falso: são verdadeiras as proposições preen- am ser questionadas.
chidas por um estado de coisas, as imagens que Ainda segundo o mesmo autor, é somente
correspondem às coisas e, por oposição, são falsos por um caminho tortuoso, a partir de Greimas e
os designantes que não efetuarem tal correspon- Coseriu, que o referente começa a ser tomado como
dência, seja por defeito ou por impossibilidade de construção perceptivo-cognitiva o que, por sua vez,
seleção da imagem (op.cit., p.13). cria a necessidade de incluí-lo nos estudos da sig-
Ela diz respeito àquilo de que se fala, ao nificação não mais como estruturas objetivas da
objeto, remetendo, assim, ao extralingüístico. Se- realidade mas como estruturações impostas à rea-
gundo Blikstein (1999, p.23), a questão do refe- lidade pela interpretação humana. Assim, a afir-
rente2 , das relações com o extralingüístico, vem mação: “a língua recorta a realidade” é substituí-
sendo discutida não somente pelas variadas cor- da por uma outra que diz “ela não recorta a reali-
rentes lingüísticas e semiológicas, mas também pela dade propriamente, mas o referente ou a realidade
antropologia, pelas teorias do conhecimento e ou- ‘fabricada’” (BLIKSTEIN, 1999, p. 47).
tras áreas do conhecimento interessadas nas rela- Na esteira dessa ruptura com a neutralida-
ções entre linguagem, pensamento, conhecimento de do ver, sentir, olhar, ouvir, pensar, encontram-
e realidade. Já nos estóicos era possível encontrar se, entre outros, autores como Deleuze e Guattari
a relação triádica envolvendo o signo, o significa- (1987, p.27)
do e o referente (a coisa). No entanto, à medida Ser sensível aos signos, considerar o
que o significado já era concebido como produto mundo como coisa a ser decifrada é,
de um contrato ou código social, durante muito sem dúvida, um dom. Mas esse dom
tempo as relações entre significado e significante correria o risco de permanecer oculto
foram eleitas como as mais importantes, em detri- em nós mesmos se não tivéssemos os
mento das relações entre coisa extralingüística e encontros necessários; e esses encon-
significado, tomadas como mais ou menos diretas. tros ficariam sem efeito se não conse-
As dimensões social e cultural estariam, desse guíssemos vencer certas crenças.
modo, sendo contempladas. No entanto, para Assim, para que possamos entender a
Blikstein (1999, p.24) linguagem como produtora do mundo, a primeira
em que pese a longa tradição de uma crença que deve ser destruída, para Deleuze, é o
teoria ternária do signo, a situação da objetivismo, ou seja, atribuir ao objeto os signos
coisa ou objeto extralingüístico tem de que é portador. “Pensamos que o próprio objeto
sido uma questão nebulosa: na ver- traz o segredo do signo que emite e sobre ele nos
dade, a inclusão do referente não im- fixamos, dele nos ocupamos para decifrar o signo”
plicou a captura da realidade extra- (DELEUZE, 1987, p.27). Não queria com isso, o
lingüística. Pelo contrário, paradoxal- autor, reivindicar a supressão da dimensão
mente, foi até um modo de descartá- designadora da linguagem. Mas participar de uma
la da lingüística e da semiologia, crítica à sua compreensão como operação
afrouxando ou rompendo eventuais e naturalizada, que leva à crença de que a realidade
promissores laços entre estas e a psi- é algo dado a ser descoberto, desvelado - o que
cologia, a antropologia e a teoria do impediria de pensar o mundo como invenção
conhecimento. maquínica social.
Assim, o referente, o extralingüístico (ob- Blikstein (1999) denominou “óculos
jeto mental ou unidade cultural) continuou, por sociais” ao que faltava a Kaspar Hauser para
longo tempo, à margem dos estudos lingüísticos conseguir enxergar o mundo civilizado. Apesar da
na explicação dos mecanismos de produção do sig- aquisição da linguagem, Kaspar Hauser continuava
nificado, ainda que sempre mostrando sua presen- descodificando de modo aberrante a significação
ça. Para Blikstein (op.cit.), a exclusão deve-se, prin- do mundo, vendo-o como um amálgama de
cipalmente, à consideração dos mecanismos manchas. Em Deleuze e Guattari (1992), esses
perceptivos-cognitivos como inatos ao funcionamen- “óculos sociais” podem ser entendidos como
to humano o que, por sua vez, levou a uma negli- imagem de pensamento. A imagem que se dá do
gência dos estudos em relação à função e ao papel pensar, do fazer uso do pensamento, ou seja, os
destes na configuração do real e da arquitetura pressupostos implícitos, subjetivos, pré-conceituais
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Elias, C.R.; Axt, M “Quando aprender é perder tempo... compondo relações entre linguagem, aprendizagem e sentido”
que formam uma imagem do pensamento, que to que ele designa. Passamos ao largo
traçam o plano de consistência (ou de imanência) dos mais belos encontros, nos esqui-
no movimento de fabricação do mundo. vando dos imperativos que eles ema-
Assim, colar a palavra à coisa constitui uma nam: ao aprofundamento dos encon-
crença de um tipo de imagem de pensamento que tros, preferimos a facilidade das
se expressa por uma visão do mundo como repre- recognições (...) (DELEUZE, 1987,
sentação. Ao contrário, para Deleuze e Guattari, o p.27)
mundo é produção maquínica. Sob esse ponto de A dimensão da designação tomada como
vista, a linguagem não representa as coisas, mas operação de representação do real pode ser ampli-
as produz ao mesmo tempo que é por elas produzi- ada para a busca da objetividade científica no cam-
da. po escolar. Segundo Latour, o trabalho da
No campo escolar, tal crença se atualiza modernidade envolve uma relação complexa entre
como concepção de aprendizagem pela recognição, dois conjuntos de práticas separadas: um que cria,
pelo reconhecimento. Fala-se, oficialmente, do por purificação, a divisão entre humanos e não-
mundo (designado) a partir de um discurso cientí- humanos - é o trabalho da crítica de separação e
fico que tem o poder, e só ele o tem, de desvendá- classificação do mundo; e o segundo que “cria,
lo. por tradução, misturas entre gêneros de seres com-
A linguagem, nesse contexto de designa- pletamente novos, híbridos de natureza e cultura”
ção, concebida a partir de uma natureza transpa- (LATOUR, 2000, p.16). As duas práticas são com-
rente, de um código neutro e explícito, funciona plementares. Sem o trabalho de purificação, de se-
como instrumento de descrição de uma realidade paração, não haveria cada vez mais híbridos a se-
que é por ela representada. Fazendo crer que a pa- rem enfrentados e, sem o trabalho de representa-
lavra relaciona-se diretamente às coisas, desde o ção, a classificação seria inútil, “as práticas de tra-
século XIX, o discurso pedagógico, legitimado pelo dução seriam vazias e supérfluas” (op.cit., p.16).
discurso científico, como manifestante, assume um
tom de veracidade inquestionável. Latour (2000, APRENDIZAGEM E MANIFESTAÇÃO
p.33-34), referindo-se à constituição do mundo Diferente da designação, a manifestação é
moderno e a seus vínculos com a representação, a dimensão da proposição que se reporta ao sujei-
diz: to que fala ou que se exprime. É ela que marca a
cabe à ciência a representação dos não existência de manifestantes na proposição, como
humanos, mas lhe é proibida qualquer partículas especiais: eu, tu; amanhã, sempre, alhu-
possibilidade de apelo à política; cabe res, em toda parte, etc. Constitui, assim, o domí-
à política a representação dos cida- nio do pessoal e serve de princípio a toda designa-
dãos, mas lhe é proibida qualquer re- ção possível. “Eu é o manifestante de base”
lação com os não-humanos produzi- (DELEUZE, 2000, p.14).
dos e mobilizados pela ciência e pela Ao se referir às dimensões da proposição,
tecnologia. Deleuze faz menção a uma possível articulação
Essa relação também é produzida pela di- entre a dimensão da manifestação e o advento da
visão em disciplinas das áreas humanas e das áre- subjetividade moderna cartesiana do ponto de vis-
as exatas nos currículos escolares. Divisão entre ta do deslocamento que propicia o surgimento do
ciências falsas e ciências verdadeiras. As primei- sujeito consciente. O “eu penso”, como manifes-
ras, proscritas, ligadas ao contexto social. “Quan- tante, funda a concordância de todas as faculda-
to às ciências sancionadas, apenas se tornam ci- des (interiores ao sujeito) e seu acordo na forma
entíficas porque se separam de qualquer contexto, de um mesmo suposto objeto considerado o mes-
qualquer traço de contaminação, qualquer evidên- mo. Daí seus critérios de julgamento serem a vera-
cia primeira, chegando mesmo a escapar de seu cidade e o engano, em relação a uma consciência.
próprio passado” (LATOUR, 2000, p.92). Por outro lado, também faz referência a
Desse modo, a representação científica, em última uma suposta articulação entre a dimensão da de-
instância, marcaria a própria fala do designado, à signação e a filosofia grega que, ao contrário da
medida que seus procedimentos funcionam por um moderna, buscava desvelar um mundo exterior já
processo objetivo de desvelamento do mundo, de dado, que se manifestava por sua própria força in-
busca e de descoberta da verdade do objeto. terna e possuía em si mesmo a inteligibilidade. Daí
Reconhecemos as coisas sem jamais os critérios da designação serem o verdadeiro ou o
as conhecermos. Confundimos o sig- falso, em relação ao mundo/objeto externos. “En-
nificado do signo com o ser ou o obje- fim, da designação à manifestação se produz um
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deslocamento de valores lógicos representado pelo aluno aprende que deve reconhecer e repetir o que
Cogito: não mais o verdadeiro e o falso, mas a é dito por um discurso científico que se expressa
veracidade e o engano” (DELEUZE, 2000, p.14). através da voz do professor. Seu lugar na relação
Desse modo, na proposição, “do lado do com o saber é o do não-saber. O caminho a ser
estado de coisas, tem-se a crença de que os obje- trilhado é o do (re)conhecimento dos saberes que
tos estão à espera de articulações que lhes confi- lhe são transmitidos como verdadeiros. Compõe-
ram existência; do lado dos sujeitos, tem-se o de- se, assim, a cadeia de um modo de conceber o
sejo de produção de um signo que corresponda a aprender pelo (re)conhecimento, na articulação
um determinado estado de coisas” (SILVA, 2003, entre as três dimensões da proposição: o aluno
p.75). (re)conhece o saber do professor que fala pela voz
A manifestação, portanto, diz respeito a do cientista (manifestantes) que, por sua vez,
quem diz. No campo escolar, a fala oficial é a do (re)conhece o saber de uma ciência (significação)
professor. Segundo Orlandi, uma das característi- que, por sua vez, também (re)conhece o saber de
cas do discurso pedagógico é que ele se pretende uma natureza que deve ser decifrada (designação).
científico e o estabelecimento dessa cientificidade A indissociabilidade das três dimensões da propo-
pode ser observado especialmente em dois pontos, sição confere, então, um status de verdade
na metalinguagem e na apropriação do cientista inquestionável ao modo de aprender como
feita pelo professor (tanto em nome de quem ele (re)conhecimento do saber, do lugar do manifes-
fala quanto nos livros didáticos que utiliza). tante, da voz do objeto.
O professor apropria-se do cientista e Em relação à dimensão da manifestação,
se confunde com ele sem que se a problematização passa pelos deslocamentos que
explicite sua voz de mediador. Há aí a concepção de sujeito vem sofrendo desde o fim
um apagamento, isto é, apaga-se o do século XIX, na esteira de Friedrich Nietzsche
modo pelo qual o professor apropria- que anuncia a morte de Deus e a passagem à forma-
se do conhecimento do cientista, tor- homem como uma forma a ser ultrapassada. Desde
nando-se ele próprio possuidor daquele então, a noção de sujeito veio sendo desestabilizada
conhecimento. (ORLANDI, 1996, através de rupturas provocadas na cultura
p.21) ocidental.
Conforme a autora, o processo de apropri- Com Copérnico, o homem deixou de
ação da voz do cientista pelo professor é feito atra- estar no centro do universo. Com
vés de um apagamento da mediação. Latour Darwin, o homem deixou de ser o
(2000), no entanto, vai além, ao propor que a pró- centro do reino animal. Com Marx, o
pria voz do cientista é apagada em favor da voz do homem deixou de ser o centro da
objeto (que é desvelado e, portanto, se revela). É história (que aliás não possui centro).
possível encontrar aqui, novamente, as mesmas Com Freud, o homem deixou de ser o
operações das práticas de tradução, mediação, re- centro de si mesmo (que também não
feridas anteriormente. Em última instância, é o existe, é apenas um lugar vazio, uma
objeto que fala pela voz do cientista e, portanto, brecha, uma voragem). (Coelho, s/d,
por extensão, pela voz do professor. p. XXXVIII )
Os cientistas são representantes escru- Também Deleuze alia-se a essa imagem de
pulosos dos fatos. Quem fala quando pensamento que apresenta um homem descentrado,
eles falam? Os próprios fatos, sem dú- dominado por forças que desconhece e que o
vida nenhuma, mas também seus por- constituem como forma (SILVA, 1997). Nessa
ta-vozes autorizados. Quem fala, en- perspectiva, tanto a dimensão da designação como
tão: a natureza ou os homens? (...) da manifestação marcam o atravessamento de
Os cientistas, porém, afirmam não fa- concepções filosóficas na linguagem. Assim como
lar nada: os fatos falam por si mes- a crítica à designação não se fazia em uma
mos. (LATOUR, op.cit., p.34) perspectiva de aniquilamento, mas se dirigia a uma
Ao professor cabe falar e, na sua fala, repe- certa crença cega na sua capacidade de referência,
tir um discurso científico. É sob este ponto de vis- ou seja, no objetivismo, também a crítica à
ta que ele cala, porque representa. É a voz do sa- manifestação não se constrói em si mesma. O que
ber que fala no professor e, ao mesmo tempo, o Deleuze nega é a relação entre o “eu” manifestante
legitima em seu lugar de suposto saber – ele já e um sujeito consciente que seria a origem do seu
passou pelo (re)conhecimento. dizer. O “eu” marca, antes, uma enunciação
Como manifestante de segunda ordem, o individuada, prisioneira de significações
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dominantes, porque colada a fluxos/cortes dos ções são a identificação e o reconhecimento. Sub-
funcionamentos maquínicos coletivos de jetivamente, é operação do senso comum organi-
enunciação. Com Guattari (1995b, p.13), escrevem: zar o “eu” em uma identidade, em uma unidade:
“Existem muitas paixões em uma paixão, e todos “é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lem-
os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, bra-se, sabe, etc.; e que respira, que dorme, que
glossolalia: isso porque todo o discurso é indireto, anda, que come...” (DELEUZE, 2000, p.80) e, obje-
e a translação própria à linguagem é o discurso tivamente, é ele que “subsume a diversidade dada
indireto”. e a refere à unidade de uma forma particular de
objeto ou de uma forma individualizada de mun-
APRENDIZAGEM E SIGNIFICAÇÃO do: é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio,
A terceira relação da proposição é a signi- toco, o mesmo que percebo, imagino e do qual me
ficação ou demonstração. A significação é respon- lembro (...)” (op.cit., p.80). Dito de outro modo, a
sável pela articulação entre o plano da expressão uma ordem das idéias corresponde uma ordem das
e o plano do conteúdo, os quais, como signos, po- coisas.
dem remeter sempre a outras proposições, capazes Nessa perspectiva, poderíamos dizer que a
de servir de premissas à primeira. “Tal cadeia não escola, ancorada por esse modo de pensar, contri-
estabelece, como a designação, uma relação dire- bui para ‘ensinar’ o aluno a mergulhar neste mun-
ta entre a proposição e o estado de coisas, mas age do de reconhecimento do que é dito pelo outro
por procedimentos indiretos, referindo-se, sempre, (professor/ciência). Ensinar é transmitir/inculcar,
a outras proposições das quais ela é concluída ou, aprender é (re)conhecer. No entanto, diz Deleuze
inversamente, cuja conclusão ela torna possível” (1988, p.223): “A forma da recognição nunca san-
(SILVA, 2003, 77). tificou outra coisa que não o reconhecível e o reco-
De tal mecanismo não se podem inferir ver- nhecido, a forma nunca inspirou outra coisa que
dades ou falsidades. É possível somente estabele- não fossem conformidades”.
cer as condições de produção dos discursos verda- Este modelo de aprendizagem como
deiros. Condições essas que não têm como oposi- recognição, segundo o autor, está compreendido
ção a falsidade, mas o absurdo, ou seja, o que não na imagem que temos do pensamento. É ele que
pode ser nem verdadeiro nem falso. tem orientado o nosso modo de pensar o que é o
Do ponto de vista da linguagem, o plano pensar, a partir de uma “faculdade de identifica-
de conteúdo se configura na crítica à autonomia ção, que relaciona uma diversidade qualquer à for-
dos objetos (referente), opondo-se a uma tradição ma do Mesmo” (DELEUZE, 2000, p.80).
segundo a qual o signo é, antes de mais nada, À operação do senso comum, das identi-
signo de alguma coisa. É contra essa crença no dades fixas, articula-se a do bom senso como sen-
objetivismo, na representação, que Deleuze e tido único a ser seguido. “O senso comum identifi-
Guattari (1995b) se voltam, propondo o conceito ca, reconhece não menos que o bom senso prevê”
de agenciamento maquínico do desejo (ampliação (op.cit. p.80). Contribui, assim, para organizar a
do plano do conteúdo hjelmsleviano) que remete diversidade em um grande todo coerente, previsí-
à construção cultural/social do significado. Ou vel e para fazer crer em uma única direção a ser
seja, a linguagem não representa um objeto natu- seguida.
ral. Ela se refere a um estado de coisas, a corpos A dimensão da significação poderia, nessa
que são, desde sempre, culturalmente produzidos. perspectiva e de certa forma, como resultado da
Paralelamente, o plano de expressão surge articulação entre plano de conteúdo e plano de
da crítica do sujeito consciente que cognitivamente expressão, contribuir para a crítica da representa-
produz o mundo a partir de uma identidade, de ção. No entanto, segundo Deleuze e Guattari, ela
uma interioridade que se exterioriza. Contra este mesma tem seus limites. Ou seja, ela torna-se auto-
subjetivismo, Deleuze e Guattari (1995b) propõem referencial. Se uma significação sempre se baseia
o conceito de agenciamento coletivo de enunciação em outra já constituída, então acaba ela mesma
(ampliação do plano de expressão hjlelmsleviano). sendo responsável pela produção das condições de
É desse modo que o “eu” da enunciação não diz verdade. E, desse modo, acaba fazendo a proposi-
respeito a um sujeito que se manifesta, mas a uma ção dobrar-se sobre si mesma, enclausurando-a
forma individuada, prisioneira das significações novamente nas significações dominantes.
dominantes. Segundo os autores, essa seria a face
As crenças no objetivismo e no subjetivismo estratificada, o aspecto de território dos agen-
fornecem os princípios de um modo de pensar que ciamentos maquínicos. “Enquanto os agencia-
Deleuze denomina de senso comum, cujas opera- mentos permanecem submetidos à distinção do
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conteúdo e da expressão, continuam pertencendo seja nas relações interpessoais, seja no processo de
aos estratos, e pode-se considerar que os regimes apreensão dos conteúdos, das normas. Uma apren-
de signos, os sistemas pragmáticos constituem, por dizagem lógica das significações dominantes: re-
sua vez, estratos (...)” (DELEUZE; GUATTARI, petir o que foi descoberto, reproduzir experiências
1995c, p.219), linhas de integração que se colam já feitas, estudar regras e postulados, evidenciar
às significações dominantes na tendência de repetí- certezas.
las. A dimensão da significação fecharia, des-
A articulação entre as significações domi- se modo, o círculo da proposição a partir de uma
nantes e a lógica da proposição através dos articulação entre mundo (objeto), sujeito que se
significantes lingüísticos logo e implica produzem manifesta e regras que lhe conferem organização e
um efeito de demonstração. Recupera-se a certe- coerência. Tal circunscrição se liga ao modelo
za/verdade através do procedimento indireto vali- comunicacional emissor-mensagem-receptor que
dado pelas condições de verdade, ou seja, pelo con- compõe, articulado à concepção de aprendizagem
junto das condições sob as quais uma proposição como transmissão de informação/conhecimento, a
seria verdadeira (na seqüência lógica na qual uma hipótese de um modo de aprender homogêneo, li-
remete à outra como premissa ou conclusão). É o near, previsível.
argumento lógico que fornece aqui o testemunho No entanto, segundo Deleuze e Guattari
da verdade ou falsidade, em contraposição ao ab- (1995c, p.219), os agenciamentos maquínicos não
surdo, que é o que não pode ser nem verdadeiro se compõem somente de uma face estratificada,
nem falso. ou seja, um território é sempre inseparável dos
Do ponto de vista da aprendizagem, a sig- movimentos de desterritorialização. Segundo es-
nificação forja a certeza como modo de funciona- sas linhas de desterritorialização, “o agenciamento
mento comprovado (pela demonstração). A já não apresenta expressão nem conteúdos distin-
processualidade como constitutiva da aprendiza- tos, porém, apenas matérias não formadas, forças
gem não pode ser mantida, já que o objetivo é che- e funções desestratificadas”. Portanto, para os au-
gar a um ponto. Descarta-se a categoria do proble- tores, também nas significações dominantes algo
mático, a possibilidade de experimentação, a dú- vaza, desloca-se permanentemente.
vida, os conflitos como elementos do próprio pro-
cesso. A aprendizagem vai de um ponto a outro, PROBLEMATIZANDO A
transmitida por uma linguagem/mensagem. O pon- APRENDIZAGEM E O SENTIDO
to a se chegar são os conceitos científicos fecha- Por quais mundos andariam nossos alunos
dos, universalizantes, comprovados pelos sistemas enquanto falamos (excessivamente)? Quais deles
de significação, contrapondo-se a uma aprendiza- escutam e em quais momentos se dispersam? O
gem que, concebida como construção/ que entendem? No que pensam? Quando são afe-
desconstrução conceitual, implica a compreensão tados e instigados a pensar? Quais relações esta-
do conceito como campo híbrido, como todo frag- belecem? Quando estariam reproduzindo modelos
mentário e aberto. através de memorização? Quando estariam apren-
Nessa perspectiva, Demo (1999), chega a dendo? De quais modos? Quais suas questões?
opor práticas pedagógicas centradas no ensino, que Não se pretende aqui que essas perguntas
se esforçam por passar certezas que devem ser sejam respondidas. Formuladas nesses termos, nem
reconfirmadas nas provas, a práticas que tendem a parece possível. Apenas busca-se compor uma cena
valorizar a aprendizagem buscando “a necessária escolar cotidiana para trazer a idéia da
flexibilidade diante de uma realidade apenas rela- aprendizagem como multiplicidade, movimento
tivamente formalizável, valorizando o contexto do permanente, e assim, construir um caminho para
erro e da dúvida. Pois, quem não erra e nem duvi- tratar do sentido, na direção de uma perspectiva
da, não pode aprender”. de Deleuze, como criação/invenção no processo do
Assim, ainda no ambiente escolar, a dimen- aprender.
são da significação poderia ser tomada como as Ao analisar a obra de Proust, o autor assim
regras que regem a prática pedagógica, direcionadas se refere ao aprendizado:
a ensinar aos sujeitos, professores e alunos, como Nada aprendemos com aquele que nos
ensinar e aprender. Comportamentos, atos corre- diz: faça como eu. Nossos únicos mes-
tos, metodologias, currículos pré-determinados, tres são aqueles que nos dizem ‘faça
conhecimentos sistematizados e transmitidos numa comigo’ e que, em vez de nos propo-
ordem crescente e verticalizada. Regras que inclu- rem gestos a serem reproduzidos, sa-
em também a premissa do dever evitar o conflito, bem emitir signos a serem desenvolvi-
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der. É o movimento que produz questionamentos ção do pensamento que não é homogênea, mas se
a partir de arranjos muitas vezes inusitados. As constitui através da produção de caminhos dife-
questões são fabricadas como qualquer outra coi- renciados para cada aprendiz (ainda que tomados
sa, diz Deleuze (1998, p.9): “Se não deixam que por imagens de pensamento de determinadas épo-
você fabrique suas questões, com elementos vin- cas). É este movimento de organização sempre pro-
dos de toda parte, de qualquer lugar, se as colo- visória e instável, atual/virtual que se constitui em
cam a você, não tem muito o que dizer”. criação. Nessa perspectiva se poderia pensar um
Não há uma linguagem transparente que movimento da arte no aprender como processo, que
coordene e dirija estes caminhos, indo do emis- se contrapõe ao aprender como reconhecimento.
sor/professor ao receptor/aluno. O processo do Preferir o aprofundamento dos encontros à facili-
aprender é atravessado pelo movimento violento dade das recognições, diz Deleuze
do sentido que irrompe, foge, vaza. Daí a necessi- De fato, uma revelação parcial apare-
dade de considerá-lo em sua imprevisibilidade. Se, ce em determinado campo de signos,
por um lado, os conceitos/conhecimentos tendem mas é acompanhada às vezes de re-
a um fechamento, como territórios formando um gressões em outros campos, mergulha
todo, todo território é inseparável dos movimentos numa decepção mais geral, pronta
de desterritorialização, assim como o conceito é para reaparecer em outros campos,
inseparável do devir à medida que constitui sem- sempre frágil enquanto a revelação da
pre um todo fragmentário (DELEUZE, 1992). arte ainda não sistematizou o conjun-
É nessa perspectiva que se entende que uma to. E, a cada instante, também pode
concepção de aprendizagem como processualidade acontecer que uma decepção particu-
exige partida, abandono do território, encontro com lar faça surgir a preguiça e compro-
os híbridos, com as misturas, com a desorganiza- meta o todo. (DELEUZE, 1987, p. 27)
ção. É a aprendizagem como desafio. Marcada, Quais implicações teriam estas considera-
muitas vezes, pela dor, pelo sofrimento, por dúvi- ções nas práticas pedagógicas? Por um lado, uma
das e incertezas. São as linhas de fuga que vão se concepção de aprendizagem como transmissão de
produzindo, sem eira nem beira, como rizomas. informações implicaria práticas pedagógicas
Buscando aqui e ali um território (teórico) em meio formalistas, que desconsideram a criação como
a desterritorializações. Qualquer ponto pode se constitutiva do processo de aprendizagem.
conectar a outro, qualquer linha pode ser rompi- Mas, por outro lado, práticas que levassem
da, quebrada em algum lugar e também retomada somente em conta a criação, o trabalho do senti-
segundo uma ou outra de suas linhas e mesmo do, poderiam cair em um relativismo absoluto: to-
segundo outras linhas (DELEUZE; GUATTARI, das as formalizações são válidas, todos os pontos
1995a, p.18). Qualquer linha pode também se trans- de vista são possíveis. Se a homogeneidade tende
formar em arborescência, ser estratificada. a criar espaços estriados, que tentam enclausurar
A aprendizagem, nessa perspectiva, pode os movimentos de criação, também as práticas de
ser pensada como um pensar que não se movimen- respeito a toda e qualquer possibilidade de inter-
ta espontaneamente e nem sequer é dirigido pelo pretação, no caso da aprendizagem escolar, ten-
que deve ser dito a partir do reconhecimento. Não dem a criar espaços lisos que correm o risco de
há boa vontade em pensar, diz Deleuze. O pensa- perderem-se em si mesmos, tornando-se improdu-
mento é violentado por encontros imprevisíveis, por tivos porque “(...) quanto menos as pessoas leva-
intensidades diferenciadas. “(...) o que nos violen- rem a sério o pensamento, tanto mais pensarão
ta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa conforme o quer um Estado” (DELEUZE;
vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais im- GUATTARI, 1995c, p.46).
portante do que o pensamento é ‘aquilo que faz Desse modo, o que constituiriam práticas
pensar’” (DELEUZE, 1987, p.30). pedagógicas que procurassem “cuidar do sentido”
Mas o autor também salienta a decepção e suas relações com a ética, conforme expressão
como elemento do aprender. A decepção pode ser utilizada por Deleuze em Lógica do Sentido?
tomada por uma espécie de preguiça, que aciona- Fazer do sentido o objeto de uma nova
ria a resistência e impediria, assim, a atualização proposição, é isto ‘cuidar bem do sen-
de outra dimensão do aprender que é a do tido’, em condições tais que as pro-
enfrentamento do medo do caos, da desorganiza- posições proliferam, ‘os sons tomam
ção. É da relação entre essas duas faces que se conta de si mesmos’. Confirma-se a
constitui o movimento do aprender. Por sua vez, o possibilidade de um laço profundo
enfrentamento do caos exige uma certa organiza- entre a lógica do sentido e a ética (...).
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Psicologia & Sociedade; 16 (3): 17-28; set/dez.2004
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