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CURSO DE PSICOLOGIA
São Leopoldo
2019
Alexandre Henrique de Almeida
SÃO LEOPOLDO
2019
Agradecimentos
QAP Código Fonético internacional - Significa está pronto para receber mensagens.
PE Polícia do Exército
(...)E a primeira coisa que fez foi limpar umas armas que tinham sido
dos seus bisavós, e que, desgastadas de ferrugem, jaziam para um canto
esquecidas havia séculos. Limpou-as e consertou-as o melhor que pôde;
porém viu que tinham uma grande falta, que era não terem celada de encaixe,
senão só morrião simples. A isto porém remediou a sua habilidade: arranjou
com papelões uma espécie de meia celada, que encaixava com o morrião,
representando celada inteira.(...)Foi-se logo a ver o seu rocim; e dado tivesse
mais quartos que um real, e mais tachas que o próprio cavalo de Gonela, que
tantum pellis et ossa fuit, pareceu- lhe que nem o Bucéfalo de Alexandre
nem o Babieca do Cid tinham que ver com ele. Quatro dias levou a cismar
que nome lhe poria, porque (segundo ele a si próprio se dizia) não era razão
que um cavalo de tão famoso cavaleiro, e ele mesmo de si tão bom, ficasse
sem nome aparatoso. Barafustava por lhe dar um, que declarasse o que fora
antes de pertencer a cavaleiro andante; pois era coisa muito de razão que,
mudando o seu senhor de estado, mudasse ele também de nome,(...) até que
acertou em o apelidar: Rocinante,(...) significativo do que havia sido quando
não passava de rocim, antes do que ao presente era, como quem dissera que
era o primeiro de todos os rocins do mundo.
Posto a seu cavalo nome tanto a contento, quis também arranjar outro
para si; nisso gastou mais oito dias; e ao cabo disparou em chamar-se Dom.
Quixote;(...). Recordando-se porém de que o valoroso Amadis, não contente
com chamar-se Amadis(...) acrescentou o nome com o do seu reino e pátria,
para a tornar famosa, e se nomeou Amadis de Gaula, assim quis também ele,
como bom cavaleiro, acrescentar ao seu nome o da sua terra, e chamar-se
D. Quixote de la Mancha; (...) assim limpas as suas armas, feita do morrião
celada, posto o nome ao rocim, e confirmando-se a si próprio, julgou-se
inteirado de que nada mais lhe faltava, senão buscar uma dama de quem se
enamorar; que andante cavaleiro sem amores era árvore sem folhas nem
frutos, e corpo sem alma.
Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa
moça lavradora de muito bom parecer(...). Chamava-se Aldonça Lourenço; a
esta é que a ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus
pensamentos;(...) veio a chamá-la Dulcinéia del Toboso, por ser Toboso a
aldeia da sua naturalidade; nome este (em seu entender) músico, peregrino,
e significativo, como todos os mais que a si e às suas coisas já havia posto.
De início é necessário situar o leitor que chega a que percursos convido a trilhar
e por que tomarei estes caminhos, dentre tantos menos tortuosos e propensos à
queda. Escolho esta estrada como percurso da jornada, pelo muito que ela me
inquieta e atravessa a todo instante, seja como campo de trabalho, de produção e de
subjetivação, reconhecendo também que: Ao caminharmos, construímos o caminho
por que passamos e modificamos suas paisagens através dos encontros que por ele
venham a se dar. Este trabalho surgiu de uma inquietação, com raízes nas
experiências e acontecimentos que marcaram meu encontro com o campo da
segurança pública. Estou neste percurso há aproximadamente dez anos. Trata-se de
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1.1. CENA UM: COM QUEM A SEGURANÇA PÚBLICA PENSA QUE ESTÁ
FALANDO? OU DE QUANDO DOM QUIXOTE ENCONTRA O GIGANTE.
Estavam eles por dias a seguirem suas sinas de serem cavaleiros andantes,
ele montado em seu fiel cavalo Rocinante. Nestes últimos dias parecia mais
desvairado do que de costume. Sancho que a ele acompanhava já se via a muito
preocupado com a saúde da cachola de seu senhor, principalmente depois daquele
confronto com os moinhos de vento e que ele insistia que eram gigantes e dizia mais:
-Verás meu caro Sancho, jamais na história da Cavalaria Andante se verão
façanhas como as nossas, principalmente depois de derrotar tão grande número de
Gigantes.
Sancho retrucava novamente:
-Mas meu senhor...eram moinhos…
Ele nem deixava a frase de Sancho terminar e seguia seus desvarios.
-Há! quem dera encontrar mais uma vez um daqueles gigantes a sós, que por
nenhuma magia, seja a do feiticeiro Roldão hei de perder a batalha e sair lesado como
fora em nossa última.
-Sancho só ouvia aquelas loucuras e nem para o lado de Dom Quixote se
atrevia olhar.
Quando do Alto d’uma coxilha Dom Quixote vê uma bela e grande carruagem
transitar por cima das pastagens, não tem dúvidas dê lá surgirão grandes aventuras.
Dom Quixote esporeia Rocinante que até tenta correr como um possante, mas o que
faz mesmo é pinotear e derrubar Dom Quixote de um solapão.
- Sancho lhe adverte:
- Deixe-o senhor, não devemos procurar mais encrencas...
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A Faca Embainhada...
Ainda enquanto “moleque” corria nas ruas do bairro Restinga em Porto Alegre,
brincava com arma de espoleta sempre alertado por minha mãe:
- Olha se a polícia te pegar tu vais preso, ou até morto, porque eles pensam
que é arma de verdade(...)
Um dia correndo na rua com uma faca de minha mãe na bainha, ela
pergunta...o que é isto guri?
- Isto aqui é porque eu sou polícia!
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Está é uma das cantigas que se escuta pela manhã, nos altos do morro Santa
Teresa em Porto Alegre, em meio a vários soldados que correm nas ruas da zona sul
da cidade, vai se deixando claro que lugar as forças de segurança no país tendem a
ocupar. Ocupei este lugar por cinco anos e nele vivi afetos e encontros com corpos
que me levaram a esta forma pesquisar.
Um dia ouvi dê um oficial do batalhão:
- Porque está lendo, soldado não precisa pensar!
O pé de porco…
Em 2009 ainda na Polícia do Exército fiz concurso para Brigada Militar, sendo
aprovado e ingressando nesta organização no mesmo ano. Lá deparei me com a
condição de acreditar em proteger as pessoas e ter de se saber perder. Acabei por
me reconhecer no campo da segurança pública, sentir visceralmente a dor das
pessoas as quais às vezes muito pouco tínhamos a fazer...isolar um local de crime,
até a perícia chegar em meio a madrugada. O medo de que nos assolava. De que a
mãe da vítima chegasse antes do IML liberar o local e retirar dali o corpo...Mas ela
chegava e o silêncio e a dor nos estrangulava (…) Perdemos de novo(...).
Outras vezes era andar pelas ruas e se deparar com a inquietação de porque
éramos o estranho naquele ambiente. E de repente lá do fundo de um grupo de jovens
na rua se ouvia:
- Ó os Pé de Porco…
- Borá lá! Todo mundo bota a mão na parede!
palavras, alegrias e dores. Deste lugar fui convidado para ocupar outro, com certo
desafio do colega que me convidou para o trabalho:
- Precisamos trabalhar para que eles sejam menos “polícia”...
A dúvida deste questionamento ecoou por todo o curso de formação e talvez
ainda hoje, ou para sempre, seguirá ecoando pelos corredores da Guarda Municipal.
Seremos gigantes ou moinhos de vento?
[Refrão]
Por amor às causas perdidas
Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas
Por amor às causas perdidas.
[Refrão]
Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Muito prazer, ao seu dispor
Se for por amor às causas perdidas
Por amor às causas perdidas
(Letra da Música: Dom Quixote, Engenheiros do Hawaii, 2003).
No caminho que se segue peço ainda certa paciência, para que possamos
traçar juntos os percursos por linhas que sei não serão as mais fáceis. Mas
necessários são, para a um rigor metodológico e muito próximas ainda de minha
dificuldade em trabalhar as palavras, para que estas passagens possam tornar-se
mais leves. Gostaria de que, nas páginas que se seguirão, está dureza metodológica
se atenue para fazer com que esta figura de nossa aventura, o leitor-viajante possa
acompanhar o cavaleiro andante e caminhar com a leveza que a muito este campo
merece, embora, terreno muitas vezes árido e de afetações indigestas, penso que se
pode seguir com prazer a sequência desta obra.
Preciso marcar caro viajante, que a pesquisa que tem nas mãos almeja
exatamente ser uma não-pesquisa, desejo que seja um movimento clandestino,
pesquisa que se cria num ritmo vagabundo (vaga-mundo) mais afeta a viver do que a
retratar, mais preocupada com o sentir do que representar códigos de significação
dados a priori. Talvez agora ela já dê indícios de falha, como em muitos outros
momentos possivelmente fará, principalmente diante das expectativas que alguém
venha racionalmente e conscientemente construir, mas o desejo a constrói, e este
alguém que a deseja, a sonha menos científica, embora necessária, deseja se que
seja visceral, que cheire a gente, suor, saliva e sangue. Que misture os cheiros e os
corpos e que estes se tornem uma só coisa: Uma pesquisa sobre a educação
(formação) em segurança pública. Sugiro assim que estes conceitos deve orientar
aquilo que este fazer-se-pesquisa vem mobilizar. Esta pesquisa traz aquilo por que o
artesão-pesquisador viveu, sentiu, chorou e regurgitou (ou aqui mesmo agora ainda
regurgite), aquilo que no pesquisador cresceu como um tumor, que ele mesmo cuidou
para que vivesse e que talvez um dia venha ainda a destruir o organismo, criar aí
talvez um corpo sem órgãos daquilo que lhe fez jorrar sangue, suor e todos os outros
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fluidos corporais por todos os poros, o viver segurança pública no Brasil durante um
curso de formação.
2.2.2. Das Condições para que se viva uma aventura de cavaleiro andante
3.1. A SALA 1
“O espaço era um quadrado, certo cubículo, parecia vazia, mas estava cheia
de corpos amontoados, dos vários tipos, do uso que deles se pudesse fazer. De lá
não se ouviam vozes, não aquelas que se ouve costumeiramente. Haviam Grunhidos,
gritos mais de animais, de cães que cavam suas tocas ou ratos que criam seus
buracos...(Este era também um devorar esquizo de uma obra literária). Do fundo deste
buraco, o que nos movia a todos os corpos era uma dúvida: Como na solidão da sala
cavarmos uma toca?2”
Sancho sabia do erro que era irem em direção de mais uma taberna, ainda
lembrava da surra que levaram na última, mas seus apelos eram impassíveis para o
seu amigo.
1Desenho construído pelo autor após a atividade descrita como a Sala Viva.
2 Conceito proposto por Silvio Gallo, proposto como deslocamento 2. Na obra: Por uma
Dom quixote mais uma vez estava decidido que aquela taberna, pois mais
parecia uma sala, um cubículo, era um castelo e dizia ele:
- Certamente este castelo é de um Mouro, que ousou vir com sua fama e
dinheiro para as terras da Mancha.
No fundo dom quixote tivera uma ideia, que não ousara compartilhar com
Sancho, sabiam se cansados, pois, andavam há mais de dia sem parar, montados no
lombo de Rocinante, e no Burrico que levava Sancho, que mais de arrasto não iam
porque isto seria caírem de vez. Dom quixote tinha um plano secreto, queria neste
castelo testar a bravura de Sancho Pança, fazê-lo enfrentar um grande gladiador,
destes que os castelões tem para criar aventuras sangrentas, para deleite de sua corte
(fora isto que ele lera em seus livros de cavalaria e agora tinha certeza de estar
vivendo).
Tinha para si, que no mais Sancho já havia dado provas de lealdade e
honestidade para sagrar se cavaleiro e que derrotando um cavaleiro em uma justa
não haveria Castelão que não lhe sagraria Cavaleiro Andante. Caso não desse certo,
saberia no momento correto intervir ele mesmo Dom Quixote, fosse para salvar a vida
de Sancho e para bem mostrar a força de seu braço.
Ao chegarem na taberna gritou dom quixote:
- Ei de Lá, baixem a porta para que o maior Cavaleiro da Mancha possa entrar
com seu fiel e valente escudeiro, procuramos pouso, boa comida e belas damas.
- Sancho cochichou:
- Não esqueçais meu senhor que um bom vinho também não faria nenhum mal,
inclusive ajuda a descansar os atordoados e cansados de longas viagens.
O que a dupla não previa é que na taberna estava sim outro doido, mais pelo
vinho que havia há muito subido para a cabeça e que a esta altura pensava ser o
cavaleiro negro. Ao ouvir os disparates de Dom Quixote vindos de fora da taberna
gritou lá dentro:
- Soldado! Abri a porta,(hick) Deixai-me ver quem é este, que ousa invadir a
estas terras (hick) De somente um cavaleiro a honrar a pureza da bela e Única
princesa e Dama de Rossana de Montiel.
- Dom Quixote em um pulo caiu do cavalo de costas. Sacou a espada e antes
do taberneiro abrir a porta partiu ela ao meio.
-Quem ousa proclamar uma além da unica e pura dama de Toboso, minha
imaculada Dulcineia!
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A sala era de uma aula comum, muitos corpos, pessoas de diversos lugares.
O tema indigesto. A criminalidade, o que leva alguém a praticar um crime?
Do meio da aula o professor pergunta.
- Alguém se levanta: Mas é que este governo estimula, dando dinheiro para
vagabundo! Eles nem precisam trabalhar. Preso tem dinheiro dos trabalhadores e
“cidadãos de bem”. Só tem uma saída: A pena de morte! Todos os alunos estão
calados, alguns talvez concordem, mas ninguém ousa se levantar e falar, talvez
alguns pensassem nisto, mas não acreditavam na coragem do homem que está
prestes a se erguer.
Bem aos poucos uma mão negra lá do fim da sala vai subindo. Pede
humildemente licença para discordar do nobre colega. Alguns cochicham: Xii esta
discussão já vimos milhares de vezes.
De repente este homem se levanta completamente, é pequeno, mas se
avoluma como um gigante e de lá conta em lágrimas sua história. Meus colegas, dói
que pensem assim. Hoje sou professor de jovens em um projeto de educação e
esporte, porque acredito neles, mas vou lhes contar uma história. Perdi meu primeiro
e único filho morto por um assaltante. Odiei ele por alguns anos, até que encontrei a
mãe dele sem querer, compartilhei a dor dela e ela compartilhou a minha. Já vi o
homem que matou meu filho, olhei nos olhos dele, não soube o que falar, mas queria
dizer para ele, que merece uma segunda chance, que não o culpo e que nada que se
faça trará meu filho de volta(...). Ao final da aula estávamos cansados, abatidos e
calados, o mundo nos pesava nas costas.
Neste momento convido a darmos sequência a nossa aventura de cavaleiros
andantes, para que possamos conforme propôs Cervantes, que em um dado
momento a força de tanto lermos e imaginarmos, possa nos distanciar da realidade,
para que em algum momento já não saibamos em que dimensões vivemos, assim e
talvez, a partir daí podermos pensar em outras linhas, que nos permitam ocupar outros
planos, linhas virtuais que se entrecruzam e produzem encontros-andantes, aqueles
que potencializam a vida e são produtores de alegria.
3.4. BRI(COLAGENS)3
3Imagem produzida pelo autor durante o curso de formação e construção da pesquisa, afetações do
encontro com a obra de: MOSSI, Cristian Poletti. Um corpo-sem-órgãos, sobrejustaposições. Quem a
pesquisa [em educação] pensa que é, v. 124, 2014.
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não percebe e nem sabe (talvez não queira) distinguir quantos corpos é possível
contar, vê que por vezes se misturam, ocupam formas difusas(ora são móveis,
mobília, ora invadem uns aos outros, os tomam sem pudor, aos olhos de outros que
atentos observam. Há outros ainda, chocados pelo que observam, cadeiras acoplam
se com braços, uma mesa se desdobra em outros membros...em certo instante-
Agitação- os corpos querem ser tomados, ser guiados, como animais se agitam, se
agridem, rasgam a pele, outros se mostram desinteressados a um canto, percebe-se:
querem não se afetar, como se toda aquela profusão de corpos e agitações, de gritos
e uivos pudessem passar-se sem afetações. Os corpos que agitados buscam se a-
ninhar, a-grupar como ratos que se achegam a procura de calor, gritam...querem
segurança...algumas linhas na névoa de palavras que se forma, parecem querer
conformar uma máscara (TER)Giversar, construir o simulacro, demarcar uma
identidade...todos querem agarrar se ao território por segurança...Os outros corpos
seguem atrás percebem (ou imaginam perceber) um terreno firme (É que para estes
corpos ser iguais os torna seguros) (IR)manar.
3.5. A ARENA4
4 Imagem de desenho produzido em uma atividade com o grupo de alunos que se trabalhava
diversidade, diante da experiencia intitulada Arena.
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526 – Código utilizado pela PM e adotado pela GM NH para caracterizar homicídio. Os nomes da escola
e prefixo da viatura foram alterados.
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p1). Este breve limiar busca territorializar aquilo que se está vivendo, dizer sobre o
indizível e poder fazer desta experiência algo que ao menos traduza o mal estar é
uma possibilidade e uma linha-saída, possibilidade e rota de fuga, para este mesmo
mal estar, assim se convive e se convence, talvez a si mesmo, de que pode se
conviver com isto. Não se pretende aqui explicar nem representar a experiência de
cada um da morte e da vida, vale mais recortar esta cena, desenhar talvez o rabisco
de uma história de quem a vive e cria seu patuá de vida, mesmo lidando da sua
maneira com a morte, ainda que este movimento seja um grito em silêncio.
o consumo, não perturbe o fluir de mercadoria... dentro desta perspectiva esta lógica
se mantém com a figura do: Ele é tranquilo!
Segundo Valencio et al (2008) historicamente o Brasil tem recrudescido as
práticas coercitivas que impedem a expressão da cidadania das populações em
situação de rua, através de ações truculentas como a busca pela eliminação do
cenário dos sujeitos vulneráveis seja pela ação pública ou de órgãos específicos,
chegando ao auge da beligerância e da tortura como forma de dominação política que
naturalizam o autoritarismo. De outro ponto se avolumam os grupos que cobram um
tratamento e um olhar para estas populações considerando as risco para a segurança
pública e buscando retroceder na interlocução com os direitos humanos destas
populações. O que se constata é que os órgãos de segurança pública seguem tendo
em suas pautas as questões de higienização e exclusão das pessoas em situação de
rua, com discursos que justificam a proteção de cunho higienista atrelando essas
pessoas a criminalidade e retirando seus pertences, fichando-as nos registros policiais
ou simplesmente levando as para outras cidades como justificativa de as devolver a
cidades natais. Em meio a esta conflitualidade encontram se os servidores da
segurança pública, uma sociedade e “cidadãos” que cobram a limpeza e exclusão dos
estranhos e a garantia e manutenção de direitos das pessoas fragilizadas pela
situação de rua. (Bauman, 1999).
7 53 (penta-ter)– Código policial utilizado para designar usuário de drogas. e incorporado a Guarda Municipal de Novo
Hamburgo, significa usuário de drogas, drogadicto, traficante ou ainda pode definir uma pessoa que não condiz com os lugares
idealizados para ela. “Fulano tem cara de penta-ter”.
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Neste sentido, certos grupos passam a ser mais vigiados e controlados pelos órgãos
policiais, são os ditos sujeitos subversivos: italianos, judeus, alemães, japoneses,
comunistas e anarquistas. No estado novo, o governo passa a ser o estado e a polícia
o principal órgão de poder da sociedade, pois personificava o aspecto executivo da
figura do ditador, configurando assim um novo projeto político ditatorial (CANCELLI,
1993).
Ao final da década de 50 e início dos anos 60, o país passa a viver um
conturbado momento político, pois algumas classes populares aumentam sua
participação política e o mundo, diante do período pós-guerra, vive as incertezas da
então insurgente guerra fria, com a separação entre comunismo x capitalismo. No
Brasil, alguns movimentos passam a consolidar aspectos políticos e culturais
desenvolvendo noções sociais como a de cidadania e luta por direitos humanos e
sociais. Porém, de acordo com Simões (2004), a elite empresarial brasileira, após a
queda de Getúlio Vargas, passa a projetar um desenvolvimento modernizante para
inserir o país como sociedade industrial no mercado internacional capitalista. Este
projeto partia de premissas conservadoras e excludentes e está ideologia encontrou
adeptos na então Escola Superior de Guerra (instituição de formação de oficiais do
exército brasileiro). Neste contexto, a chegada de João Goulart ao poder com a
renúncia de Jânio Quadros significava retrocesso ao projeto desenvolvimentista da
elite brasileira.
bem aceitas pela sociedade como morar nas ruas, por vezes utilizam para aqueles
que não tem emprego ou ainda moram em locais tidos como violentos ou estão em
situação de pobreza, ou ainda não obedecem às leis de trânsito. Percebo que este
termo vai tomando ao longo da formação tom de deboche.
“- Daí o Vagabundo (ops) Cidadão à margem da sociedade, vai preso e a
família ainda fica ganhando dinheiro do estado para bancar ele, têm é que matar tudo!”
(Fala em uma discussão acalorada).
Os movimentos de repulsa e separação das diferenças, daquilo que foge de
uma identidade congelada, do desejo que vai produzindo movimentos outros e
inesperados assusta um grupo. Passa-se a olhar com repulsa, diferenciar e produzir
diferenciações negar a maquinaria social e se apregoar a uma identidade fixa e
cristalizada é um movimento necessários para aqueles corpos que se percebem
diante da possibilidade de se envolver pela diversidade e pluralidade. Deste platô
extinguir o plural parece ser a solução possível.
A Guarda Municipal de Novo Hamburgo foi criada a partir da lei 05/1990, com
efetivo inicial de 180 Guardas Municipais que iniciaram seus trabalhos no ano de 1992,
passando por curso de formação de 133 horas aula no um total de 15 dias. Sob
comando do primeiro diretor da Guarda Municipal o Cel. PM da reserva Sr. Antônio
Francisco Mesquita Salgado, sendo que este convidou para seu assessor na época,
o Sub-Tenente. PM da reserva Natalício Inquelman Blanco.(GUARDA MUNICIPAL
DE NOVO HAMBURGO, 2019).
No ano de 2018, foram nomeados 12 servidores para participar do curso de
formação de Guardas Municipais em um curso constando com 830 horas aula,
conforme plano politico pedagógico do curso de formação (Guarda Municipal de Novo
Hamburgo, 2018)8. Após seis meses de curso os 12 servidores aprovados no curso
entram em exercício no dia 27 de novembro de 2018.(PREFEITURA MUNICIPAL DE
NOVO HAMBURGO, 2018).9
A função dos municípios na segurança pública pode ser pensada como um
desafio recente, principalmente após a constituição de 1988 que define em seu art.
8Plano Politico pedagógico do Curso de Formação de Guardas Municipais de Novo Hamburgo, 2018.
9 Site da Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo. Disponivel em: <
https://www.novohamburgo.rs.gov.br/noticia/guarda-municipal-forma-turma-novos-agentes> Acesso
em: 31/05/2019.
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Neste sentido, o que muitos autores como Adorno (2016) têm discutido é o
lugar dentro das políticas de segurança pública ocupado pelas Guardas Municipais e
como estas têm buscado construir sua atuação. Na grande maioria dos casos o que
se observa é que estas corporações têm buscado seguir o modelo das polícias
militares no que tange a repressão, em muitos casos acabam reproduzindo práticas
de controle e segregatórias, ordenadas por modelos tradicionais das polícias militares.
Nesse sentido, para o autor, o que as guardas municipais emulam são práticas
idênticas as já executadas pelas polícias militares, citando ainda que, em vários casos,
há guardas municipais sendo capacitadas para o uso de fuzis, operando lógicas nas
quais não há um debate aprofundado a respeito do papel das guardas municipais nem
dos municípios no caso da segurança pública.
procurar nós, se não andarem por aí a dizer que estamos mortos e a procurarem
nossos corpos. Pois lhe digo, meu senhor, a esta altura, pelo cansaço e pela fome
que aqui vou, estou já a abrir mão da ilha que me darias e da qual me faria
Governador.
(Dom Quixote) - Acalma te homem, tens falado muitas tolices acaso não sabes
que antes de ser governador o que de mais honroso há para um homem é sagrar se
cavaleiro, deveras não entende. Se soubesses que estas aventuras que travamos só
ocorrem para elevarmos o grande nome da formosa senhora dos meus dias a bela e
encantadora dama Dulcinéia do povoado de Toboso. Tu também se tivésseis grande
dama e o mínimo de honra, por ela farias as maiores peripécias.
Sigamos, pois, a partir de agora ao Sul, pois o Norte de todos os Feiticeiros,
magos e malfeitores é o Sul para que vamos seguir…
Sancho seguiu-o sem entender palavra do que Dom Quixote havia dito.”
Era uma aula junto a uma corporação externa a Guarda Municipal, ocorria no
prédio do corpo de bombeiros e refere-se a conhecimentos sobre combate a incêndio.
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- Posso sentar na primeira fileira? É que não estou me sentindo bem, tive de
tomar um Dramin.
(Risadas).
(...) Daí ele começou com uma história de: E se isso, e se aquilo(...)
Já dei a real para ele. Para com esta história de e se..., e se…
Para De Miranda (2008) a cada vez que a mídia divulga casos de violência
policial, retoma-se o debate de discutir os currículos dos cursos de formação. Esta
autora refere ainda que, em pesquisas sobre as formações em segurança pública,
prevalecem a socialização dos indivíduos através do exercício da função,
marcadamente autoritárias e hierárquicas, pautadas no combate ao crime e na
capacitação aos conflitos armados. De Miranda (2008) propõe ainda que esta
característica não é marca única das polícias e instituições brasileiras, mas da maioria
dos países de orientação democrática, sendo que estas organizações mostram se
extremamente resistentes a mudanças na maioria dos países.
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4.6.1. Traçados e Linhas: Quais são os Lugares que o Guarda pode Habitar?
“...Em frente à escola fui entregar uma fitinha (da campanha maio amarelo) e
disse pra ele:
- Pede para teu pai colocar em ti.
Ele me disse:
- Meu pai tá preso!
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Na hora não saia nada, não sabia o que dizer, de repente veio baixinho, como
sem querer.
-Pede para tua mãe então!
O coração de Dom Quixote estava acelerado. Sancho não sabia, mas ele tinha
certeza que entre aquelas três donzelas, que caminhavam pela estrada afugentando
se do sol com sombrinhas na mão, junto delas estava Dulcinéia.
Ao chegarem perto das Damas Sancho cumprimentou as:
Boa tarde! Senhoritas.
- Dom Quixote que vinha um pouco atrás repreendeu-o.
- Desça do cavalo homem! Ajoelhe-se diante da mais formosa dama que toda
a terra já viu…
As mulheres começaram a rir(...)
Não entendiam nada dos disparates que Dom Quixote estava a proferir. Ele
falava em Amor mais belo que o de Amadis de Gaula e Oriana, que por hora
precisavam permanecer distantes enquanto ele o Cavaleiro da triste figura estivesse
a enfrentar todo o tipo de Bravuras para enaltecer o nome de tão magnífica donzela.
As mulheres assustadas, seguem viagem e Dom Quixote murmura para
Sancho.
- Ah, Sancho, não fosse eu tão valoroso Cavaleiro. Largaria tudo e seguiria com
a Doce Dama de Toboso, deixaria para vós toda a fama que conquistamos até agora.
Sancho retruca:
- Não esqueça senhor que ainda me falta a ilha para governar, que seja ainda
uma pequena e com poucas gentes.
- Mal sabes tu Sancho, Não terás só ilhas, terás continentes!
Um olhar que inclua a desconstrução dos lugares-dados: A mulher feia que usa
drogas... ou a mulher bonita que não usa drogas. Ou ainda, o sofrimento de acatar e
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Esta pesquisa nada quis provar, não teve por propósito revirar o já revirado,
pretendeu mais contornar as paisagens e as deformações no espaço, causadas no
próprio tecido e território da segurança pública, que inevitavelmente se produz da
interação dos diversos corpos que compõem esta paisagem. Este trabalho não focou
nas manchetes nem nas matérias jornalísticas, que envolveram a formação, mas nas
entonações, nas lutas, na lágrima e no sorriso de canto, no falar e no silenciar, no
pulsar da pele e arrepiar dos pelos, no engolir seco e no faltar das palavras, na boca
que abre e grunhe em silêncio. Não se procurou nestas páginas revolucionar,
procurava-se resistir. Ainda nestas linhas não se pretendeu representar nada, nem
estratificar ao máximo dos instantes, tampouco ordena-los ou controla-los, o que se
almeja é fruir, liquefazer os instantes, observar seus fluxos negando qualquer
possibilidade de analogias ou metáforas, retratar uma paisagem que ao mesmo tempo
que se forma já não é ela mesma, pois está também em constante devir.
Assim, pensar uma psicologia implicada no social e a partir da segurança
pública impõe o desafio de sentir e cartografar perspectivas, que incluam uma
mudança nas relações que se estabelecem com o trágico, possibilitando arranjos em
que o mal-estar ali produzido seja capaz de reinserir a processualidade nos modos de
ser, abrindo-se para novas paisagens e novas formas de compor no mundo. Para que,
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como propõe Rolnik (1995) essa psicologia possa constituir-se como fábrica de
hibridizações de forças e fluxos, produtora de diferenças fluindo aquilo que por
tendência tende a aglutinar-se, fazendo daí que se processe a eclosão de
acontecimentos. Estes questionamentos levam incessantemente a uma
problemática: vamos resistir ao trágico com as nossas ‘velhas’ moralizações na
manutenção da ordem ou afirmaremos o trágico na vida – e paradoxalmente na
segurança pública?
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7. REFERÊNCIAS
BENGOCHEA, Jorge Luiz Paz et al. A transição de uma polícia de controle para
uma polícia cidadã. São Paulo em perspectiva, v. 18, n. 1, p. 119-131, 2004.
BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de. Subjetividade e abordagem policial: por uma
concepção de direitos humanos onde caibam mais humanos. Tese de doutorado em
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Assinatura do participante da pesquisa
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Assinatura do pesquisador
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