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CURSO DE TÓPICOS ESP.

DE FILOSOFIA
DA LINGUAGEM 2019.1
TEXTO 3
2. DA LÓGICA AO LÓGOS.

2.2. A LÓGICA E O LÓGOS NA DISCUSSÃO SOBRE O


PSICOLOGISMO. O LÓGOS COMO JUÍZO. O LÓGOS
ENQUANTO LEKTÓN NA FENOMENOLOGIA
HUSSERLIANA. SER IDEAL E VALOR1.

Estamos tentando fazer um caminho retroativo: da lógica ao lógos. O que é


lógica? O que é o lógos – a partir da qual a lógica recebe o seu nome e sua coisa, sua
tarefa?

Na seção passada meditamos sobre a passagem da lógica moderna, matemática,


à cibernética e o que isso significava para a experiência da linguagem hoje, que se deixa
nomear, em breve, como informação.

Nesta seção queremos dar um passo para trás do hodierno, da atualidade. Na


direção do passado. Um diálogo com o passado, com a tradição, é fundamental para nós
que nos sejam liberadas novas forças criativas para o futuro.

Nosso intuito é o de realizarmos uma reflexão sobre a lógica e o lógico na


tradição.

1
Base bibliográfica para estas anotações:
Heidegger, Martin. Neuere Forschungen über Logik (1912). In: Frühe Schriften. GA 1. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 1978.
__________. Logik: die Frage nach der Wahrheit (1925/26). GA 21. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995.

1
No início do século XX, há cem anos atrás, a questão: o que é lógica? O que é
coisa, a tarefa, da lógica, não era pacífica, era controversa.

2.2.1. O PROBLEMA DO PSICOLOGISMO

O que é lógica? Faltava uma definição unívoca e consensual para a lógica. Qual
seria a essência da lógica e qual seria o seu objeto? Como entender os princípios da
lógica? A colocação destas perguntas se dava, na passagem do século XIX para o século
XX, no contexto do problema do psicologismo.

O que é, pois, psicologismo? Um -ismo é sempre a acentuação de um primado,


justificado ou não; é o cuidado, a proteção, de algo, de um primado. No psicologismo
estava em jogo o primado da psicologia, e, precisamente, a respeito da lógica e de sua
tarefa.

O problema do psicologismo tem a ver com a dificuldade de considerar o


relacionamento entre psicologia e lógica. A lógica trata do lógos (o que é isto é
justamente o que nos interessa compreender, ou, ao menos, vislumbrar, em nosso
curso). A psicologia, da alma. Na antiguidade, filosofia era a ciência da natureza vivente
(aproximadamente aquilo que hoje nós chamamos de biologia). A psicologia tinha como
tema o vivente e sua vida, a (zoé). É assim que ela nasceu, enquanto investigação
sistemática, com Aristóteles. Lembrando, porém, que Platão e sua escola (a antiga
academia) dividiram a filosofia em lógica, física e ética, convém dizer que a psicologia,
entre os gregos, era uma parte da física (da investigação da natureza em sentido bem
amplo, que incluía tanto a natureza vivente quanto a não vivente). A ética estudaria a
vida em outro sentido, a vida enquanto (bíos), isto é, a existência humana, o ser
pessoal. O homem, porém, é um cidadão de dois reinos: tanto pertence à natureza
(vivente), e, portanto, interessa à física, e, precisamente, à psicologia, quanto ao reino
da liberdade, e, portanto, interessa à ética.

A psicologia científica de nossos dias oscila nesta ambiguidade do ser humano.


Talvez Wundt e Dilthey ilustrariam bem esta oscilação. Wundt consolidou a psicologia
como método experimental, isto é, como investigação que se realiza por meio de
2
observação e experimento2. Esta psicologia tinha como tendência fundamental explicar
as ocorrências psíquicas através de uma conexão unitária que tem o caráter de lei, isto
é, de regularidade e regulação, a qual tem suas raízes em conexões últimas de
elementos psíquicos3. Dilthey, porém, introduziu uma diferenciação entre uma
psicologia explicativa (que se interessa pelas leis causais dos processos psíquicos) e de
uma psicologia compreensiva. Ele entendia que há uma diferença entre explicar e
compreender e aplicava esta diferença à psicologia, que ele tomava como uma ciência
da vida e das vivências humanas4. A psicologia, para ele, seria uma ciência que estuda a

2
Wundt foi aluno e assistente de Helmholtz em Heidelberg. Em seguida ocupou a cátedra de filosofia em
Leipzig2. Ali, em 1879, fundou o primeiro laboratório de psicologia experimental, através do qual a
psicologia passava a ser reconhecida institucionalmente como ciência independente não só da filosofia
como também da fisiologia. Por isso ele pode ser considerado o pai da psicologia tal como esta é
considerada atualmente, isto é, como ciência experimental autônoma. No seu laboratório Wundt e seus
alunos (europeus e americanos) dedicaram-se experimentalmente a quatro campos de pesquisa: 1. a
psicofisiologia dos sentidos, sobretudo da vista e da audição (tradição que vem de Helmholtz); 2. o tempo
de reação (prosseguindo as pesquisas de Donders provocadas por problemas de procedimento metódico
da astronomia quanto ao papel do sujeito da observação astrônomica); 3. a psicofísica (tradição de Weber
e Fechner); e 4. a associação mental (tradição que vem do empirismo inglês). Dá-se em Wundt, portanto,
uma confluência das diversas tradições científicas que contribuíram para o nascimento da psicologia
científica experimental. Além destas pesquisas experimentais em sentido estreito, o seu instituto dedicou-
se também a investigações sobre psicologia evolutiva e psicologia social.
3
Para Wundt, ter experiência de alguma coisa significa tornar-se consciente desta através de sensações,
percepções ou ainda através da memória. A psicologia estuda os elementos que compõe os conteúdos da
consciência. Tais elementos são processos mentais, isto é, atividades psíquicas que são determinadas por
certas leis que compete ao psicólogo descobrir. Uma das leis descobertas por Wundt é a lei da causalidade
psíquica. Esta é diversa daquela física. Uma vez que a consciência não é uma substância e os seus
conteúdos não são objetos a causalidade psíquica deverá regular processos e não coisas. Uma vez que
não existe uma energia psíquica, não se deve entender a causalidade psíquica no sentido de uma
transferência de energia, pela qual a causa se enfraquece transferindo a sua própria energia para o efeito.
A causalidade psíquica é uma “lei de sucessão” que regula o desdobramento, a expansão, o incessante
fluir da atividade psíquica. Da lei da causalidade psíquica Wundt inferiu a lei da síntese criativa: o resultado
de uma combinação de elementos psíquicos não é a mera soma destes, mas alguma coisa de nova e
original em relação àqueles. A associação de idéias obedece a esta lei. Esta é automática e não exige a
intervenção ativa da consciência. Quando, porém, a consciência intervém ativamente se dá o que Wundt
chamou de apercepção: a entrada de uma representação no ponto focal interior da consciência, ou seja,
na esfera da atenção. Empiricamente a apercepção pode ser detectada porque a ela acompanha sempre
o sentimento. Este, por sua vez, possui um modo de ser tridimensional correspondente a três eixos
distintos em torno dos quais giram os sentimentos: prazer-desprazer, tensão-relaxamento, excitação-
calma. O sentimento, como sinal da apercepção, é a manifestação de uma atividade unificadora da vida
mental do homem. A apercepção regula não somente o processo das sensações como também o processo
cognitivo-lógico da mente humana.
4
Explicar é reduzir um real ou um fato desconhecido a leis gerais, concebendo aquele real ou fato como
um “caso”, e enfocando-o conforme à sua capacidade de inserção num contexto global. Compreender é
apreender a significação do fenômeno num horizonte de sentido. O horizonte é a estância em que se dá
acessibilidade e inacessibilidade, desvelamento e velamento. Todo ponto-de-vista abre sempre uma
perspectiva, que se insere sempre num horizonte. Compreender não é somente perceber um sentido,
mas é também, perceber o horizonte do sentido, portanto, os limites de uma visão (apreensão de
sentido).

3
unidade da vida humana, a sua célula primordial, que é o indivíduo, em sua relação
estreita e inseparável com o seu meio. A psicologia teria como tarefa descrever as
estruturas desta vida5.

Em todo o caso, na virada do século XIX para o século XX se colocava o problema:


como haveriam de se relacionar psicologia e lógica? A psicologia teria um papel especial
em referência à lógica? Ao colocar esta pergunta, tinha-se em mente o conceito
tradicional vigente então sobre a lógica, a saber, como a “doutrina do pensar”, do
“pensar correto”. Segundo este conceito, a lógica seria a doutrina que ensina o pensar
correto, seria a “doutrina da razão” – a técnica ou a tecnologia do pensar correto. O
pensamento, porém, é correto, se segue as regras às quais está submetido, sujeito. A
lógica seria, portanto, a tecno-logia que emerge da ciência do pensar e de suas regras.
Ela seria uma ciência normativa, pois concerniria às normas do pensar correto.

A correção do pensar consiste na correspondência às regras. As regras, por sua


vez, são as formulações – “fórmulas” – das leis do pensamento, são leis contidas em
proposições. A lógica, assim, trataria do pensar a respeito das leis que o determinam.
Assim, o caráter de lei do pensar, ou se quisermos, o pensar mesmo, passou a ser tema
da lógica. De onde são obtidas as leis do pensar? Alguns respondiam: há que se buscar
as leis do pensar nos processos fáticos, vivos, do pensamento. O pensamento ocorre e
decorre como como processo e acontecimento anímico, como realidade psíquica. É esta
realidade que pode oferecer o âmbito a partir donde se haurem as leis do pensamento.
Mas a realidade psíquica é tema da psicologia. Portanto, a tarefa fundamental da lógica,

5
Surge assim a “Idéia de uma psicologia descritiva e analítica” (“Idee einer beschreibenden und
zergliedernden Psychologie), título da obra de Dilthey que foi publicada no ano de 1894. Trata-se de uma
“psicologia estrutural”. Suas tarefas são: 1. realizar um corte transversal (Querschnitte) da vida anímica;
2. apresentar um corte longitudinal (Längschnitte) da vida anímica, o que funda a Biografia como ciência
psicológica, de fundamental importância também para a história; 3. determinação e consolidação daquilo
que resulta da conexão, ou seja, a conexão adquirida (erworbener Zusammenhang) da vida anímica. Tal
conexão é chamada de “status conscientiae”: o estado da consciência como resultante da identificação
da condição psíquica de um determinado indivíduo em um determinado momento do decurso temporal
de sua vida. O fluxo da vida psíquica, sempre em movimento, é captado por assim dizer numa espécie de
fotografia ou radiografia da situação do indivíduo em um dado momento de sua história. Pode-se então
comparar diversos “estados de consciência” de um mesmo indivíduo em diversos momentos de sua
história; ou ainda, diversos “estados de consciência” de indivíduos diversos em um mesmo momento da
história de um grupo ou coletividade. O estado de consciência, por sua vez, é caracterizado através de
processos de representações, de sentimento e de vontade (Vorstellungen, Gefühls- und Willensvorgänge).
Nunca um destes momentos ocorre sem a presença dos demais. De acordo com a relação recíproca de
um dos três momentos com os outros o estado de consciência é identificado como pensamento, vontade
ou sentimento.

4
a obtenção das leis do pensar, que é um processo psíquico, está situada no âmbito de
tarefas da psicologia. A psicologia seria, assim, a disciplina fundamental da lógica. Eis a
hora e a vez do psicologismo.

O nome de J. Stuart Mill caracteriza bem a posição do psicologismo6. Para ele a


lógica não era uma ciência separada da psicologia e com ela coordenada. Ela era uma

6
John Stuart Mill é um expoente do positivismo. Este movimento foi formado, ao mesmo tempo, na
França e na Inglaterra, com Augusto Comte e com J. Stuart Mill. Comte desempenhou um papel
fundamental em apresentar o positivismo como uma teoria da cultura. J. Stuart Mill, como uma teoria
universal da ciência. Em 1843 ele escreveu uma obra que se tornou um clássico no âmbito da lógica:
Sistema de lógica raciocinativa e indutiva. Esta divide-se em seis livros. O primeiro livro trata dos nomes
e das proposições. Para ele a resposta de qualquer questão passível de ser formulada deve ser contida em
proposições. Todo assentir e dissentir deve assumir a forma de uma proposição. A proposição é a instância
originária onde se dá verdade e não-verdade, isto é, erro. No segundo livro ele trata do raciocínio;
sobretudo daquela forma de inferência que na lógica encontra um espaço privilegiado: o silogismo. Aqui
Mill introduz uma tese fundamental: toda inferência é de particular a particular. Deste modo uma
proposição universal que serve como premissa maior para um silogismo como “todos os homens são
mortais” expressa uma verdade que é retirada da experiência. Nós homens fazemos a experiência de ver
a morte de outros homens. A partir desta experiência concernente cada vez a um homem em particular
inferimos uma verdade geral segundo a qual “todos os homens são mortais”. Uma proposição geral é
possível somente como generalização de casos particulares. Para Mill todo conhecimento é de natureza
empírica, portanto, indutivo. Mesmo as proposições da geometria, geralmente consideradas dedutivas,
são indutivas. Elas são retiradas da experiência. Mesmo as ciências consideradas dedutivas ou
demonstrativas são, sem exceção, indutivas e a evidência destas são empíricas. No livro terceiro ele trata
da indução. Ele afirma que a indução é aquela operação da mente com a qual nós inferimos que aquilo
que é verdadeiro em um ou mais casos será verdadeiro em todos os casos semelhantes, ou seja, que
aquilo que é verdadeiro para certos indivíduos de uma classe é verdadeiro para toda a classe. A indução
é, portanto, uma generalização da experiência. Então podemos dizer que o princípio da indução é uma
evidência a priori, isto é, não indutiva? A resposta de Mill é negativa. Esta é uma generalização fundada
sobre generalizações precedentes. Trata-se de generalizações primitivas, como: “o fogo queima”, “a água
lava”; ou seja, a indução tem origem em experiências das quais nós inferimos um princípio de
uniformidade e leis que regulam que um estado de coisas ocorrerá toda a vez que se verificarem certas
condições. No quinto livro Mill trata dos diversos tipos de falácias. O sexto livro tem o título: “on the logic
of the moral sciences” (Da lógica das ciências morais). O nome “moral science” correspondia na tradição
inglesa ao título “Geschichtswissenschaft” (ciência da história, entendida não somente como
historiografia, mas como o conjunto de ciências histórico-sociais) ou o seu equivalente
“Geisteswissenchaft” (ciência do espírito, onde espírito designa a região ontológica da liberdade, em
contraposição à natureza enquanto região ontológica da necessidade), ambas operantes da tradição
alemã. Tratam-se de designações eqüivalentes àquilo que no nosso uso corrente chamamos de ciências
humanas. Ora, a tentativa fundamental de Mill neste livro é a de transferir o método das ciências naturais
para as ciências do espírito, isto é, para as ciências humanas. Mill reconhece a liberdade do querer
humano. Não obstante, ele postula uma forma de necessidade no que concerne ao comportamento
humano em geral. Se conhecêssemos exaustivamente uma pessoa, por exemplo, nas componentes de
sua realidade física, psíquica, social, e assim por diante, poderíamos prever o seu comportamento futuro
em circunstâncias bem precisas. Isto, porém, não exclui que aquela pessoa possa resistir aos fatores que
determinam o seu comportamento e possa querer agir diversamente do previsto. A necessidade, não é,
portanto fatalidade. A fatalidade pressupõe uma força constritiva que atua e determina a nossa vontade.
A necessidade deixa espaço para a livre autodeterminação do homem na sua ação. Duas são, para Mill,
as ciências morais fundamentais: a psicologia, que há por objeto as uniformidades de sucessão, isto é,
aquelas leis segundo as quais a um estado mental determinado deve suceder um outro específico; e uma
ciência por se criar, a etologia, entendida como ciência do caráter, que deveria estudar a formação do
caráter com base nas leis gerais da mente e nas influências das circunstâncias sobre o caráter. Tal ciência

5
parte e um ramo da psicologia. A lógica se relacionaria com a psicologia como a parte
com o todo, e como uma arte (ou técnica) com a ciência. Em termos teoréticos, a lógica
receberia seus fundamentos da psicologia. A lógica incluiria tanto da psicologia quanto
lhe fosse necessário para fundamentar as regras desta arte (ou técnica).

Enquanto tecnologia do pensar correto a lógica está em primeira linha


interessada no asseguramento da correção, na conformação às regras e leis. Estas não
seriam o produto de uma construção arbitrária, mas seriam hauridas dos fatos do pensar
mesmo. O psicologismo mostra sua impostação interrogativa característica no modo de
tratar e interpretar os princípios do pensamento. Como exemplo, podemos tomar a
interpretação do principium contradictionis (princípio de contradição) e o modo como,
nesta perspectiva, se funda o seu caráter de lei. Grosso modo: “a mesma proposição não
pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa”.

Para John St. Mill este seria uma das nossas mais primitivas e familiares
generalizações da experiência. A base psicológica de tal princípio lógico se encontraria,
segundo ele, no fato de que o crer e não crer são dois estados de espírito diversos que
se excluem mutuamente. Mill entende, portanto, a inconsistência, que é expressa no
princípio de não contradição, a saber, o não ser conjuntamente verdadeiro de
proposições contraditórias, como incompatibilidade de tais proposições no nosso belief:
ao não ser conjuntamente verdadeiro das proposições é substituída a incompatibilidade
real dos correspondentes atos de juízo. Segundo ele, o princípio de não contradição
deveria ser entendido como o fato de que dois atos de crença contraditoriamente
contrapostos não podem coexistir.

Mill, portanto, toma o princípio de contradição e os outros axiomas da lógica,


como as mais próximas generalizações da experiência. O fundamento originário desse
princípio consiste em que crença e não crença são dois atos mentais diversos, que se
excluem mutuamente. Isso nós o sabemos a partir da observação de nossa própria
mente. Nós observamos incompatibilidades físicas (quando um evento está presente o
outro, seu oposto, está ausente) e incompatibilidades psíquicas (concernentes a eventos

teria um feitio sociológico: estudaria o homem em sociedade, as ações das coletividades e massas, e os
vários fenômenos que constituem a vida social.

6
ou estados mentais), como, por exemplo, a inconsistência, ou seja, o não poder subsistir
ao mesmo tempo, de crença (ter por verdadeiro) e não crença (ter por não verdadeiro).
O ato de crença e o ato de descrença são incompatíveis ao mesmo tempo. A afirmação
e a negação de uma mesma proposição se recusam em virtude desta incompatibilidade
psíquica.

Sigwart segue na mesma esteira de J. Stuart Mill. Ele considera o princípio de


contradição como uma lei da natureza. Em virtude desta lei é impossível dizer, com
consciência, que A é b, e, ao mesmo tempo, que A não é b. A validade do princípio se
reconduz à uniformidade da constituição de nossa natureza e de nosso modo de pensar.
Todos os seres pensantes que pensam desta maneira devem produzir a mesma coisa
com a mesma necessidade a partir da mesma natureza. Esta necessidade é o critério da
validade objetiva do pensamento. Se outros seres tiverem a mesma organização ou
constituição mental que a nossa, estes deverão pensar como nós, ou seja, o processo de
pensamento deles deve produzir os mesmos resultados segundo as mesmas leis. A
verdade não é outra coisa do que a necessidade e a validade universal da ligação de
representações, cuja necessidade é regida e regulada através do princípio de
contradição, que, em sua validade, é fundado sobre a nossa natureza psíquica.

Também Theodor Lipps segue por esta via. Segundo ele, as regras segundo as
quais se deve proceder para pensar corretamente não são outras do que as regras
segundo as quais se deve proceder para pensar do modo como exige a maneira própria
do pensar e sua legalidade. Em breve: as regras do pensar são idênticas com as leis
naturais do pensamento mesmo. A lógica é a física do pensamento.

A recondução das leis do pensamento e, com isso, da validade das proposições


e, com isso, da verdade mesma à constituição natural do processo psíquico pode
significar, agora, que a organização psíquica é a organização psíquica do homem. A
natureza do homem tem esta organização, as leis do pensamento têm necessidade
antropológica material. Neste sentido, o psicologismo é antropologismo. Importantes
representantes da perspectiva antropologista da lógica são Sigwart e Erdmann. Segundo
tal interpretação todo juízo, que se enraíza no modo de ser específico do homem, nas
leis que o constituem é, para nós homens, verdadeiro. Tal relativismo é subjetivismo, no
sentido de que os juízos são afirmados como verdadeiros somente na medida em que
7
adequam à forma da subjetividade humana universal, ou seja, à consciência humana em
geral. A necessidade dos princípios lógicos fundamentais não é uma necessidade eterna,
incondicionada, e a sua validade, igualmente, não é eterna. O que acontece é que
aqueles princípios fundamentais reproduzem a essência do nosso representar e do
nosso pensar. A validade das leis do pensamento é relativa somente à nossa organização
humana. Não se pode mostrar que as condições essenciais do nosso pensamento sejam
também as condições de todo pensamento possível, uma vez que nós sabemos apenas
do homem. As condições do nosso representar e pensar é que fundamentam os
princípios lógicos fundamentais. A necessidade destes não é absoluta, mas só relativa a
nós, e hipotética. Os princípios lógicos valem, pressuposto que nosso pensamento
permaneça o mesmo. A imutabilidade de nossa alma e de sua constituição fundamental
– enquanto algo que absolutamente permanece - não pode ser por nós deduzida. Nós
permanecemos atados ao casual e condicionado do fático. A possibilidade de uma
mudança de nossa organização não está excluída. Assim, um dia o homem poderia ter
que pensar: 2 x 2 = 5. Ou agora mesmo outros seres vivos organizados com outra
organização psíquica poderiam pensar sem que seu pensamento fosse regido e regulado
pelos princípios fundamentais do nosso pensamento.

Assim, a pergunta “o que é a lógica? – e o que é lógico?” pareciam estar


respondidas pelo psicologismo. Mas o psicologismo, mais que uma solução, era um
problema. A resposta a estas perguntas hesitava de acordo com a oscilação entre a
afirmação e a renegação do psicologismo.

2.2.2. A CONFRONTAÇÃO DO KANTISMO


TRANSCENDENTALISTA COM O
PSICOLOGISMO.

Neste tempo a irrupção da psicologia parecia algo tão promissor que marcava
uma nova orientação no domínio das investigações da ética e da estética, da pedagogia
e do direito, da literatura e da arte. Na filosofia, a corrente do idealismo crítico, isto é, o
kantismo, se dividia entre uma interpretação psicológica de Kant, respectivamente, uma

8
interpretação psicológica do método, e uma interpretação transcendental. Enfim, na
apropriação do legado kantiano entravam em disputa a tendência de um psicologismo
(Schopenhauer, Herbart, Fries) e de um transcendentalismo. No início do século XX a
balança pesou mais para o lado da interpretação transcendental de Kant. Desde o fim
do século XIX, frente à imposição do positivismo, filosofia típica daquele século, pareceu
a alguns que a única alternativa seria um “retorno a Kant”. Dois foram os endereços
principais do neokantismo daquele período: a Escola de Marburgo (Cohen, Natorp,
Cassirer) e a Filosofia dos valores (Windelband, Rickert, Lask).

A impostação teorético-científica da filosofia predominava nestes círculos7.


Herman Cohen empreendeu uma interpretação positivista de Kant8. Em “Logik der
reiner Erkenntnis”, de 1902, ele trata, assim como Kant, da “lógica transcendental”, que
está na origem do pensamento científico. No princípio de tudo está a identidade entre
pensar e ser. Para ele, a forma fundamental do pensamento ou do ser não é a forma
fundamental do conceito, mas a do juízo.

Natorp entendeu a filosofia como ciência da ciência (teoria da ciência)9. Ao


contrário do psicologismo, que fundava a lógica na psicologia, Natorp procurou fundar
a psicologia na lógica. Para ele, a “psique”, melhor, a consciência, seria uma estrutura
lógica! O psicologismo – nós acabamos de ver – considerava os princípios lógicos como
fundados na estrutura psíquica humana! Uma posição era o inverso da outra. Para
Natorp o conhecimento dá-se na e para a consciência, mas os fundamentos do
conhecimento não são processos psíquicos empiricamente descritíveis, mas sim

7
No neokantismo a determinação da filosofia como impostação teorética no sentido de uma teoria do
conhecimento chega a seu extremo, e, precisamente, em duplo sentido: 1. a filosofia tem o caráter de ser
entregue a uma tarefa de conhecimento, não somente no sentido de a filosofia ser conhecimento
absoluto, mas no sentido de que todos os mundos genuínos da vida devem ser determinados a partir de
uma referência teorética; 2. a filosofia é ela mesma impostação teorética, e aquilo, com que a filosofia se
sintoniza nesta impostação é predeterminado através da configuração teorética da vida.
8
Hermann Cohen publica em 1871 uma obra que fez época: “Kants Theorie der Erfahrung” (A teoria de
Kant da experiência). Seu foco era uma teoria da experiência, no sentido da experiência científica, da
ciência matemática da natureza (física moderna). Mas também aqui, não só na psicologia, era importante
uma ciência da consciência. O domínio de uma ciência da consciência fora aberta por Descartes, explorado
pelo empirismo inglês (Locke, Hume, Berkeley), conquistado através do método transcendental por Kant,
explorado como metafísica do eu no idealismo alemão (Fichte, Schelling e Hegel), e, por fim, conquistado
com o método experimental, que tem sua origem nas ciências naturais, por Wundt. Soava a hora e a vez
da psicologia.
9
Teoria da ciência é entendida como sondagem da estrutura do conhecimento, que conduz a uma
investigação sobre a consciência como tal, isto é, a teoria do conhecimento, também aqui, se torna
psicologia, entendida não no sentido experimental, mas filosófico.

9
estruturas lógicas da consciência, precisamente de uma consciência transcendental10. A
psicologia, tal como era entendida por Natorp, em sentido filósofico e não positivo-
empírico-experimental, teria como tarefa apresentar o lógos da psique. Sua tarefa, em
relação à lógica, seria o de determinar teoreticamente, racionalmente, o subjetivo em
sua estrutura lógica11. A psicologia é precisamente o prelúdio da lógica e, como tal, é a
propedêutica a todas as ciências.

10
O conhecimento realiza-se em duas direções opostas: a objetivação (Objektivierung) e a subjetivação
(Subjektivierung). Objetivo e subjetivo não são dois setores da realidade subsistentes em si mesmos. São,
porém, direções nas quais o conhecimento é atuado. As ciências positivas em geral trabalham com a
objetivação. A filosofia, porém, enquanto teoria do conhecimento, isto é, enquanto respectivamente
psicologia e lógica descobre que o objectum não é que o projectum de um subjectum. A objetivação não
é que o correlato da subjetivação. A psicologia tem como tarefa trazer à apresentação o subjetivo
(Darstellung des Subjectiven). Ela deve promover a apreensão da realidade última e fundamental: a vida
em sua plena concreção (Konkretion). Mas esta tarefa, por causa do próprio modo de ser da vida que é
sempre fluente, é uma tarefa infinita, nunca de todo levada a cabo. Por isso, decisivo para a psicologia,
enquanto ciência filosófica da consciência, é concentrar-se em um método adequado, que possibilite uma
“reconstituição da concreção do vivido no seu todo” (“Wiederherstellung der ganzen Konkretion des
Erlebten). Ora, o erro fundamental da psicologia acontece quando ela objetiva o subjetivo, isto é, o
apreende no modo da determinação que é próprio do objeto e o sistematiza conceptualmente. Uma
psicologia rigorosa deve, ao contrário, representar o subjetivo como subjetivo, isto é, apreender e expor
a conexão concreta das vivências (der konkrete Erlebniszusammenhang), o imediato da alma (das
Unmittelbare der Seele), a pura subjetividade (die reine Subjektivität).
11
Mas o que é subjetivo? Na linguagem quotidiana nós costumamos dizer: “esta opinião é muito
subjetiva”, querendo dizer que esta opinião provém de uma perspectiva inadequada do sujeito, que não
capta o em si de um objeto. Subjetivo está aqui em contraposição a objetivo. De tardinha eu me sento
diante de minha casa e me ponho a olhar o ocaso. Eu digo: o sol se põe. Esta afirmação seria por muito
tempo considerada objetiva. No entanto, com o advento da idade da ciência, sabemos que é subjetiva,
pois objetivo mesmo é o movimento de rotação de um planeta (a terra) em redor de um astro (o sol).
Deste modo, quando usualmente falamos de subjetivo, nós nos referimos àquilo que se manifesta na e
para a vivência de um sujeito – normalmente numa vivência pré-teorética ou teoreticamente insuficiente,
e que, colocado em confronto com uma apreensão teorética mais rigorosa da coisa da parte do mesmo
sujeito, se mostra inexata. O que se manifesta (das Erscheinende), aquilo que usualmente chamamos de
subjetivo, está portanto em contraposição com o objeto de uma apreensão teorética (das Gegenstand).
Mas existem diversos graus de objetividade e, consequentemente, de subjetividade. Aquilo que, em uma
certa dimensão de cientificidade, é objetivo torna-se subjetivo para uma outra dimensão superior àquela.
Um fenômeno é objetivo, isto é, constitui-se em um objeto “x” para uma ciência “y”, mas torna-se
subjetivo, isto é, constitui-se uma manifestação “a” para uma ciência “z”. Dentro de uma mesma ciência
acontece o mesmo, isto é, de acordo com graus de objetivação e precisão, aquilo que era anteriormente
objeto (Gegenstand) se torna aquilo que se manifesta (das Erscheinende) em relação a uma nova
objetividade alcançada. Em todo o caso, de grau em grau “x” torna-se sempre de novo “a”. O
conhecimento caminha indefinidamente rumo a um “x” que é pura objetividade. A objetivação é,
portanto, um processo infinito. Deste modo, a contraposição entre subjetivo e objetivo não é fixa, mas é
fluentemente correlativa, uma correlação (Korrelation) que é ela mesma sempre em movimento. O
subjetivo é, portanto, somente um subjetivo em relação a um objetivo, e precisamente deste grau (dieser
Stufe). No processo de objetivação o que é considerado como subjetivo é sempre de novo posto de lado.
Este, porém, não é um nada (ein Nichts), mas alguma coisa de existente (ein Vorhandenes). O processo
de objetivação é um movimento do conhecimento no sentido de um alargamento periférico
(peripherische Erweiterung). Subsiste a possibilidade de recapitulação do subjetivo, daquilo que foi posto
de lado, na medida em que o conhecimento percorre a sua via em direção oposta, ou seja, a possibilidade
de realizar o correlato do processo de objetivação, quer dizer, o processo de subjetivação, cujo

10
O segundo endereço de kantismo que optou pela versão transcendentalista e
não psicologista, é o da Filosofia dos valores (Windelband, Rickert, Lask). Windelband foi
aluno de Lotze e se habilitou em 1873 com o escrito Über die Gewissheit der Erkenntnis
(Sobre a certeza do conhecimento)12. Através da influência de Lotze, Windelband dará
uma nova configuração ao método transcendental13. O problema do conhecimento não
é tratado a partir da pergunta pelo processo genético-psicológico da realização dos
processos cognitivos, mas a partir da pergunta pelas bases lógicas do conhecimento, isto
é, pelas condições lógicas de possibilidade do conhecimento. Trata-se, portanto, de uma
teoria do conhecimento transcendental no sentido kantiano do termo. O objeto do
conhecimento é constituído pela união de diversos elementos, é por assim dizer a
unidade da multiplicidade das manifestações, cuja unidade mesma não é outra coisa
que a lei, a regra da consciência. Windelband interpretava as leis lógicas a partir do
“motivo ético”. Segundo esta interpretação, as leis lógicas são dadas à alma como as
normas, segundo as quais ela deve direcionar e conduzir a ação de pensar. A lei lógica,
portanto, possui o modo de ser de aprioridade normativa. A regra tem caráter de norma.
A objetividade e verdade do pensamento repousa em sua normalidade (caráter de

movimento realiza-se no sentido de um aprofundamento central (zentrale Vertiefung). Ora, objetivar


significa ressaltar e situar o objeto num determinado nexo de leis. Caso se trate de ciências da natureza,
estas leis são leis do ser (Seinsgesetze). Se, ao invés, se trate de ciências do espírito, estas são leis do dever-
ser (Sollengesetze). A totalidade daquilo que é real, ou melhor, daquilo que pode ser objetivado, pode ser
dividida entre estes dois reinos ontológicos: o ser (sein), entendido como a dimensão do ser-natural, do
ser dotado do modo de ser da coisa e o dever-ser, entendido como o valor, aquilo que apresenta o modo
de ser como dotado de validade (Geltung). Aquilo que pertence ao reino do valor é o mais objetivo
possível. A esfera do valor é, como o mundo das idéias de Platão, além da esfera do ser:
   O processo de objetivação, seja nas ciências da natureza, seja nas do espírito, é
sempre um processo de generalização, isto é, de redução a leis gerais; o que implica ao mesmo tempo,
separação (Sonderung) e abstração (Abstraktion). A objetivação parte do individual para chegar ao
universal, isto é, ao genérico-abstrato. O processo de subjetivação, por sua vez, constitui-se em um
retorno ao concreto, precisamente à concreção da plenitude das vivências; o que significa também um
retorno ao individual. É a ora e a vez da psicologia.
12
Três diferentes mundos de impostação espiritual e de investigação filosófica determinam o
desenvolvimento de Windelband: Cohen com a sua redescoberta de Kant, Brentano com a teoria da
distinção entre juízo (Urteil) e avaliação (Beurteilung) e, enfim, Dilthey com a problemática da história.
13
Já Lotze havia afirmado que a última meta da filosofia seria conceber também as formas da lógica e
suas leis não como meras necessidades naturais do espírito, dadas como factuais e meramente existentes,
mas como manifestações que provêm de uma outra raiz mais sublime e que devem essencialmente a esta
sua necessidade. Por trás da influência de Lotze estava também a de Fiche. Trata-se do Fichte do período
crítico (por volta de 1794-1800), que fixa o pensamento transcendental de Kant e interpreta em sentido
crítico a razão teorética como essencialmente prática. É a doutrina do primado da razão prática, a
fundação do pensamento teorético, científico, na crença prática e na vontade de verdade, que se torna
convicção filosófica fundamental da filosofia dos valores.

11
norma). São as normas a priori da razão prática que emprestam ao pensamento valor e
validade.

O problema central da filosofia é a validade dos axiomas (lógicos, éticos,


estéticos). Axiomas são normas, leis, teoremas, ou seja, combinações de
representações; são proposições fundamentais, a partir das quais toda outra proposição
pode ser demonstrada. Uma vez que são proposições fundamentais, estes não podem
ser obtidos de modo dedutivo. Nem mesmo podem ser obtidos de modo indutivo, isto
é, a partir dos fatos, pois já a apreensão de fatos como fatos, isto é, a subordinação
destes em conceitos gerais, pressupõe os axiomas14.

O modo de ser e a validade das normas e leis são determinados a partir da


finalidade do pensamento, que é aquela de ser verdadeiro universalmente. A verdade
enquanto validade universal é a finalidade, o telos do pensamento. O método que
permite encontrar e fundamentar as normas do pensamento é chamado, por
conseguinte, método teleológico15. A lógica, e com ela a filosofia, começa com a

14
O problema então passa a ser aquele de como as normas ou leis do conhecimento que chamamos de
axiomas são postos à consciência. Poder-se-ia de imediato caracterizar o conhecimento como fenômeno
psíquico. O psíquico é uma conexão de processos de vivências (Erlebnisvorgänge) que decorrem no tempo,
os quais provêm uns dos outros e se constroem segundo determinadas leis gerais. Todo fato psíquico está
sob a determinação de leis gerais de consistência e de sucessão. Isto implica que o movimento da vida
espiritual, enquanto submetido a leis naturais são subordinados à necessidade causal. É a psicologia que
irá examinar como é que nós factualmente pensamos e evidenciar as leis, segundo as quais o pensamento,
enquanto processo psíquico, segue em seu funcionamento factual. Tais leis possuem a legalidade própria
da coação, do ser-constrangido a, do ter-que (des Zwanges, des Müssens). Mas existe um outro tipo de
leis e de legalidade no tocante ao conhecimento como tal, aquela da determinação ideal, do dever (der
idealen Bestimmung, des Sollens). Em contraposição à necessidade psíquica está um mandamento, ou
seja, estão normas e leis que dizem como o pensamento deve ser arranjado a fim de que ele possa ser
apreciado como verdadeiro, como universal-vinculante (allgemeingültig). Neste caso não se trata de
constrangimento natural, mas de constringência de uma norma. A lei natural é princípio de explicação
(Erkärung), a norma princípio de avaliação (Beurteilung). A legalidade natural do psíquico não inclui, mas
também não exclue a normativa. Portanto, as leis naturais psíquicas dizem como nós factualmente
pensamos, as normas, por sua vez, como nós devemos pensar a fim de que o nosso pensamento seja
verdadeiro.
15
Foi Fichte quem, levando avante o pensamento crítico de Kant, pela primeira vez reconheceu o método
teleológico como o método próprio da doutrina da ciência (Wissenschaftslehre), isto é, da filosofia. Ele
tentou pela primeira vez deduzir sistematicamente e através de uma metódica rigorosa, as formas da
intuição e do pensamento, os axiomas e teoremas fundamentais do intelecto, bem como as idéias da
razão a partir de um princípio unitário. A razão pode e se deixa fundar somente a partir de si mesma. O
princípio de fundação do sistema da razão é o eu originário. O eu é atividade egótica (ichhafte
Tathandlung). Sua finalidade é o dever. No agir o eu deixa surgir um limite (o não-eu), mas apenas para
poder de novo suspendê-la (aufheben). O dever é o fundamento do ser (das Sollen ist der Grund des Seins).
Fichte era convicto de poder derivar a variedade e a multiplicidade das diferentes funções qualitativas da
razão, a partir deste singelo (schlicht), simples (einfach) ato originário numa pura dedução, isto é, na
constante e renovada suspensão dos limites postos (Wiederaufhebung der gesetzten Grenze). O seu

12
convicção de que em relação ao pensamento se pode fazer a distinção entre verdade e
não-verdade e que existem leis, ou seja, formas, às quais as combinações de
representações devem obedecer para que o pensamento alcance a verdade. Ora, estas
normas são alguma coisa de sobre-individual, de incondicionado, de universalmente
válido. O método que procura encontrar estas normas deve separá-las daquilo que no
pensamento é individual, condicionado, acidental. Daí o caráter crítico do método e o
motivo porque este foi denominado de método teleológico-crítico.

Através da peculiar interpretação da filosofia kantiana – interpretação que


remonta a Fichte – dentro da qual o primado da razão prática é o princípio de todos os
princípios e, por conseguinte, a própria verdade teorética adquire o caráter de valor,
tornou-se possível a Windelband determinar todas as esferas problemáticas da filosofia,
isto é, a lógica, a ética e a estética a partir da consciência que experimenta a posição de
normas e leis. A filosofia se torna, a partir daí, ciência crítica dos valores (finalidades
ideais: o verdadeiro para a lógica, o bom para a ética e o belo para a estética).

A possibilidade de fundar a filosofia como tal ciência crítica dos valores reside,
para Windelband, na distinção entre Urteil (juízo) e Beurteilung (apreciação). Esta
distinção ele toma de Franz Brentano16. No seu ensaio de 1882, intitulado “Was ist

método teleológico se transformou em uma dialética construtiva (konstruktive Dialektik). Mas ele não
percebeu que o método teleológico precisa de um fio condutor material, objetivo, junto do qual a razão
efetue a sua atividade e alcance a sua finalidade. Este material, o nexo psíquico, dá precisamente as
determinações de conteúdo para as formas e normas do pensamento, mas não funda a validade destas.
Ele é, por assim dizer, somente ocasião e impulso (Anlass und Anstoss) para a atividade da razão. As
formas e normas do pensamento, porém, são fundadas somente teleologicamente. Nisto está a
peculiaridade do moderno método teleológico-crítico, que ele mostra a validade dos axiomas através do
colocar em relação do material como meio para a finalidade ideal da razão, isto é, a verdade enquanto
universal-válida, e precisamente de mãos dadas com a experiência. A psicologia não funda a lógica, mas
apenas fornece à mesma o conteúdo material para as formas e normas ideais do pensamento. Mas tal
“fornecimento” não se reduz ao campo do pensamento, isto é, da lógica. Sua função é de dar as
características formais do processos psíquicos: pensar, querer e sentir. Estes, por sua vez, estão
teleologicamente orientados para as finalidades ideais que são: o verdadeiro, o bom, o belo. Sobre estas
regiões ideais se fundam a lógica, a ética e a estética.
16
A partir do modo em que os diversos atos psíquicos se referem aos seus conteúdos (intencionalidade),
Brentano procura operar uma classificação dos mesmos, ou seja, procura pôr em relevo os tipos básicos
de referimentos intencionais das vivências. Ele distingue três classes fundamentais do relacionar-se
psíquico: 1. representação (Vorstellung), no sentido do representar (e não do representado); 2. juízo
(Urteil); 3. Interesse. Nós falamos de uma representação, ali sempre onde alguma coisa apareça
(erscheint). Mas o que quer dizer aparição (erscheinung)? Indica que algo simplesmente, singelamente,
naturalmente se dá (schlicht sich gibt). Representação é quando se colhe aquilo que simplesmente se deu
(das schlicht Gegebene). Em sentido lato, representar é ter em mira alguma coisa que se apresenta aí, isto
é, o simples colhimento do fato de que alguma coisa está ali (schlicht Da-haben von etwas). Neste sentido,
representação se refere ao colhimento ou apreensão imediata daquilo que é simplesmente presente ou

13
Philosophie?” (O que é filosofia?) Windelband diz: “Todas as proposições, nas quais nós
trazemos à expressão nossas intelecções, distinguem-se, apesar da aparente igualdade
gramatical, em duas classes que precisamente se separam uma da outra: os juízos e as
apreciações”17. Aquilo que é expresso nos dois casos é diverso: nos juízos vem à
expressão a pertença comum de dois conteúdos da representação; nas apreciações, uma
relação da consciência que julga, no sentido de apreciar, de avaliar, para com o objeto
que é representado. Tomamos como exemplo duas proposições iguais do ponto de vista
gramatical: “esta coisa é branca” e “esta coisa é boa”. Ambas apresentam a forma de “S
é P”. Mas no primeiro caso trata-se da co-pertença de dois conteúdos da representação:
“esta coisa” e “branca”. No segundo, ao invés, “boa” não se refere a uma propriedade
objetiva de “esta coisa”, mas diz a avaliação ou apreciação expressada pela consciência
que avalia em relação a “esta coisa”. A relação predicativa “S é P” é a mesma; o
predicado, porém, é diferente.

O predicado do juízo é uma determinação pronta, retirada do conteúdo objetivo


da coisa representada. O predicado da avaliação é, porém, uma relação que aponta para
uma consciência que coloca finalidades (uma coisa é considerada boa em vista de uma
finalidade, de um uso, por exemplo; e é considerada boa precisamente por alguém que

daquilo que simplesmente se dá, colhimento ou apreensão, por exemplo, da música que ouço, do sol que
contemplo, do calor que sinto, do prato que saboreio, do sorriso do amigo que encontro em meio ao
trânsito agitado de uma cidade grande, da cor de um caqui, e assim por diante. O juízo, ao contrário, é
um acolher como verdadeiro ou rejeitar como falso (ein Als wahr Annehmen oder Als falsch Verwerfen).
Em confronto com o simples e imediato colhimento da presença de alguma coisa, o juízo é uma tomada
de posição (Stellungnahme) para com o representado como representado. Toma-se posição: ou seja,
aceita-se como verdadeiro ou rejeita-se como falso o conteúdo de uma representação. Caso eu diga que
“a proposição ‘A terra é um planeta do sistema solar’ é verdadeira” ou diga que “a proposição ‘o círculo
é um quadrilátero’ é falsa”, em ambos os casos eu tomo posição a respeito do valor da proposição ( como
verdadeira ou falsa) com base no que através desta proposição é proposto, isto é, em última análise, o
conteúdo de uma representação (a terra, o círculo). Quanto à terceira classe de atos, deve compreender
todas os fenômenos psíquicos que não estão contidos nas duas primeiras. Para designar tal classe
Brentano usa diversas denominações: interesse, amor, movimentos do ânimo. Em contraposição à
representação, que é um simples ter em mira alguma coisa que aí está, e ao juízo que é sempre uma
tomada de posição diante do representado enquanto representado, esta classe de atos é caracterizada
por um tomar interesse (Interessenahme) em alguma coisa. Assim, no amor, eu pego interesse por aquilo
que amo; no esperar, por aquilo que espero; no crer, por aquilo que creio, etc. Este tomar interesse pode
se efetuar também de modo negativo: assim, no medo o meu interesse se volta para aquilo que temo, na
tristeza por aquilo que me entristece, no ódio por aquilo que detesto. Também comportamentos de
indiferença é uma tomada de interesse em relação a alguma coisa: assim, no tédio eu não me interesso
por nada, mas este “não se interessar por” é um modo defeituoso ou privativo de interessar-se, isto é, de
estar em meio às coisas (inter-esse). No tédio, em vez do meu interesse pelas coisas se mostrar como um
cuidar ou preocupar, ele se mostra como um descuidar ou desleixar.
17
W. Windelband, Präludien I, 29.

14
persegue uma tal finalidade no seu agir prático). Na avaliação ou apreciação é
expressado um sentimento de aprovação (Billigung) ou desaprovação (Missbilligung),
como o qual a consciência que avalia se relaciona com o objeto representado. A
apreciação ou avaliação não amplia o conteúdo do objeto do conhecimento; este já deve
ser representado para que possa entrar em relação com a consciência numa avaliação.
Não é assim, porém, que o predicado da avaliação seja meramente subjetivo, isto é,
resida na consciência que avalia, mas é dado em referência a um critério: a finalidade.
Uma apreciação ou avaliação só tem sentido para quem se coloca em relação com uma
finalidade.

Todas as proposições do conhecimento são já uma combinação de juízo e


avaliação; são ligações de representações sobre as quais se decide, através da afirmação
ou da negação, sobre o valor de verdade destas. As diversas ciências, quer matemáticas,
quer descritivas, quer ainda explicativas, procuram verificar toda a extensão de
conteúdo daquilo que deve ser afirmado, ou seja, das proposições do conhecimento que
efetuam afirmações. A filosofia, porém, não é ciência nem matemática, nem descritiva,
e nem mesmo explicativa. Objeto (Objekt) específico da filosofia não são coisas, mas as
avaliações mesmas. Estas, porém, não como objeto (Gegenstand) de uma consideração
científica de caráter empírico. Tal consideração das avaliações a partir de uma
consideração empírica é coisa da psicologia e das ciências da cultura. A filosofia tem
como objeto as avaliações que valem de modo absoluto, mesmo se estas não
conseguem factualmente um reconhecimento geral.

Seja na lógica, seja na ética ou na estética devem existir tais avaliações que
funcionam como critério para todas as outras avaliações; avaliações que reivindicam
para si mesmas o caráter de absolutidade da validade (Absolutheit der Geltung), de
validade universal (Allgemeingültigkeit). Tal universalidade não é factual. É indiferente
quantas pessoas reconheçam uma verdade factualmente; a validade universal é ideal e
se refere não ao âmbito do ser mas do dever-ser. Tais avaliações são, além disso,
necessárias. Mas a necessidade (Notwendigkeit) não é causal ou natural, não é a
necessidade de um “não poder de outra forma” (Nichtanderskönnen), mas a
necessidade de um dever, de um “não se permitir de outra forma” (Nichtandersdürfen).
Em toda a parte onde a consciência empírica descobre em si esta necessidade ideal do

15
dever ela se esbarra em uma consciência normal ( normales Bewusstsein). Filosofia é a
reflexão em torno desta consciência normal, reflexão que se realiza no modo da
investigação científica sobre esta. Tal consciência normal se identifica com a consciência
em geral (Bewusstsein überhaupt). Esta é um sistema de normas que possibilitam as
avaliações universalmente válidas.

A filosofia deve começar com a lógica. Para fundar a filosofia como ciência crítica
dos valores universalmente válidos, respectivamente, como ciência da consciência em
geral, entendida como um sistema de normas, é necessário proceder a à elaboração de
uma lógica. Ora, o principal erro de Kant, assim pensa Windelband, com Lotze e Sigwart,
foi o de ter elaborado a sua lógica transcendental18, entendida como teoria do
conhecimento, recorrendo à lógica formal tradicional, especificamente o erro de ter
derivado os elementos transcendentais fundamentais, as categorias, recorrendo à
tábua dos juízos da lógica tradicional. Uma nova visão dos juízos exige, portanto, uma
reforma da lógica.

Lógica é fundamentalmente doutrina do juízo (Urteilslehre). Só posteriormente


é que elabora uma doutrina das categorias (Kategorienlehre). A pergunta principal na
doutrina do juízo é aquela que se refere ao princípio de divisão que permite uma
classificação dos juízos. Um critério decisivo é o da qualidade; segundo este os juízos são
classificados em afirmativos e negativos. O peculiar da nova lógica (Sigwart, Lotze,
Bergmann) é que a negação, em contraposição à lógica tradicional, passa a ser vista
como um fenômeno subjetivo, isto é, como uma forma de relação da consciência que
pronuncia o juízo. Deste modo, o juízo negativo “a não é b” é, na verdade, uma
avaliação, porque, em última instância diz: “O juízo, a é b, é falso”. Quer dizer, o juízo
negativo não é propriamente um juízo, mas uma avaliação, não a ligação de
representações, mas um juízo sobre o valor de verdade (Wahrheitswert) de um juízo.
“Falso” não é um conteúdo da representação, mas uma relação: a tomada de posição
de uma consciência em referência a um conteúdo. Uma avaliação, por sua vez, é uma
reação de uma consciência que não somente representa, isto é, pensa, mas ao mesmo

18
“Transcendental, enquanto mera característica do conhecimento, não diz simplesmente um
conhecimento a priori, mas indica aquele conhecimento a priori que trata da possibilidade de um
conhecimento a priori de objetos” (Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a Pensar I, p. 103).

16
tempo sente e quer. Ora, a certeza (Gewissheit) que acompanha uma avaliação não é
outra coisa fundamentalmente que um sentimento, isto é, o sentimento de convicção
(Überzeugungsgefühl). Tanto no juízo positivo quanto no juízo negativo existe uma
graduação da intensidade da certeza. Deve existir um ponto zero da avaliação, um ponto
de indiferença entre o juízo positivo e o negativo. Este ponto de indiferença pode ser,
segundo Windelband, total ou crítico. Total é quando não se faz absolutamente uma
avaliação. É o caso da pergunta (Frage). Ela é a ligação de representações que aspira
pela decisão sobre o valor de verdade de um juízo. A indiferença é, porém, crítica ali
onde a pergunta já foi inteiramente efetuada e onde não se chegou a uma resposta
convincente, isto é, ali onde não se há base para se decidir seja pela afirmação seja pela
negação do valor de verdade de um juízo. Trata-se, neste caso, do “juízo problemático”
(problematisches Urteil). Tal juízo expressa a condição de incerteza a respeito de um
determinado estado de coisas. É a situação onde o juízo “a pode ser b” tem o mesmo
valor que “a pode não ser b”. Isto é, sobre a validade da ligação de representações “a =
b” não se pode decidir e dizer alguma coisa de certo. Trata-se, portanto, de uma
suspensão da avaliação (Suspension der Beurteilung). De outro lado, ao contrário da
pergunta, o juízo problemático é um verdadeiro ato do conhecimento, pois nele, se
afirma que não se pode afirmar ou negar nada a respeito de um determinado estado de
coisas. A renúncia a uma decisão é ela mesma uma decisão. É uma tomada de posição
em relação a uma tomada de posição.

Juízos são ligação de representações (Vorstellungsverbindung) sobre cujo valor


de verdade se deve decidir nas avaliações. Ora, como já vimos, a objetividade se
constitui em uma regra de ligação de representações, em uma síntese (Synthesis). A
consciência, enquanto aquela que julga, isto é, que constitui a objetividade, pode, por
conseguinte, ser definida como a função da relação. As atividades do pensamento
consistem em um representar ou afirmar relações entre uma multiplicidade mais ou
menos extensa de momentos específicos. As formas lógicas são formas de relação. Estas
são através da reflexão independentes dos conteúdos. As formas sintéticas da
consciência, as relações nas quais conteúdos dados intuitivamente são ligados uns com
os outros através da atividade de reunião exercida pela consciência, são as categorias.
Estas, por sua vez, podem ser ou reflexivas ou constitutivas. Reflexivas se referem à

17
atividade de combinar (kombinierende Tätigkeit) da consciência, isto é, à reflexão; as
constitutivas expressam conexões inerentes às coisas (sachliche Zusammenhänge),
conexões objetivas dos elementos da representação. As categorias reflexivas pertencem
ao âmbito imanente da consciência, as constitutivas atestam um âmbito transcendente
à consciência, o âmbito do “ser”. Ser diz, neste contesto, a independência do conteúdo
da consciência em relação à função relacional da mesma consciência. No juízo um
sujeito e um predicado são postos em relação através de categorias e o valor de verdade
desta relação é expressado. O juízo decide se aquela ligação deve valer. Deste modo, a
tarefa da lógica se concentra inteiramente na conexão relacional sistemática. A lógica
torna-se, assim, uma doutrina da relação (Lehre von der Relation).

O kantismo da escola de Baden (Windelband, Rickert, Lask) se realiza, pois, numa


perspectiva de filosofia dos valores. Rickert dá um novo impulso a uma filosofia dos
valores num viés kantiano19. A lógica seria o ramo da filosofia que se comporta de modo
teoleológico-crítico em referência ao valor verdade. Windelband e Rickert não se
interessavam pela origem psicológica do conhecimento (isto seria papel da psicologia),

19
O problema das ciências é colocado por Rickert metodologicamente como o problema da formação do
conceito (Begriffsbildung). O escopo das ciências da experiência é trabalhar cientificamente a realidade
através do conceito. A diferença entre as ciências deve, portanto, provir, em última instância, da formação
do conceito, isto é, do diverso modo e maneira no qual as características e os elementos conceituais são
apreendidos e reunidos. Este processo depende sempre da finalidade (Zweck) que cada vez o
conhecimento científico coloca. Rickert procura então o princípio da formação do conceito histórico
(Prinzip der historischen Begriffsbildung), que deve estabelecer a diferença para com a formação do
conceito nas ciências naturais. “Natureza” aqui não tem o sentido de mundo dos corpos ou de ser físico,
mas deve ser entendida no sentido da filosofia transcendental de Kant: natureza como o existir das coisas,
enquanto é determinado segundo leis gerais (Das Dasein der Dinge, sofern es nach allgemeinen Gesetzen
bestimmt ist). O conhecimento científico não tem como tarefa copiar e descrever a realidade, assim como
ela é. Isto porque a realidade apresenta uma imensa, ilimitada multiplicidade, que não pode nunca ser
esgotada pelo conhecimento e nem dominada pelo conceito. O que da realidade entra no conhecimento
científico e cai sob o domínio do conceito é o mínimo se comparado com o que permanece de fora. Todo
ser, seja físico, seja psíquico, está em um contínuo fluir, em uma constante, ininterrupta transição e
mudança. Todo real é uma continuidade (alles Wirkliche ist eine Kontinuität). Mas este “continuum” não
é o único aspecto da realidade. Existe ainda um outro. Nenhum pedaço da realidade é absolutamente
igual a outro. Cada realidade mostra um cunho todo próprio, singular, individual. Não existe nada
absolutamente homogêneo; tudo é de outra forma, todo real é uma heterogeneidade (alles Wirkliche ist
eine Heterogenität). Resultado: a realidade é um “continuum” heterogêneo. Isto faz com que a realidade
seja fundamentalmente irracional. Um domínio racional, conceptual da realidade só é possível caso se
desmembre os dois aspectos da realidade, isto é, sua continuidade e sua heterogeneidade. “O ‘continuum’
se deixa apreender, tão logo ele seja homogêneo. O heterogêneo se torna conceptual, tão logo ele se
deixe mudar em um ‘discretum’ ”. Com isso abrem-se os dois caminhos opostos da formação do conceito:
apreender a realidade, que é um heterogêneo ‘continuum’, ora como um homogêneo ‘continuum’, como
fazem as ciências da natureza, ora como um heterogêneo ‘discretum’, como fazem as ciências do espírito.
A realidade se torna natureza se nós a consideramos com respeito ao universal, ela se torna história se
nós a consideramos com respeito ao particular e individual.

18
mas sim pelo valor lógico de sua validade (do conhecimento), pelo valor do lógico como
tal. O caráter de valor do lógico é pode ser caracterizado como ideal.

Neste contexto, situa-se a investigação de E. Lask”20. Em relação a estes


problemas, dois são os escritos capitais de Lask: “Die Logik der Philosophie und die
Kategorienlehre. Eine Studie über den Herrschaftsbereich der logischen Form” (A lógica
da filosofia e a doutrina das categorias. Um estudo sobre o âmbito de domínio da forma
lógica), de 1911; e “Die Lehre vom Urteil” (A doutrina do juízo), de 1912. Lask se viu
impelido a aprofundar a determinação conceitual da filosofia enquanto ciência dos
valores. O seu trabalho se desenvolve no chão do criticismo lógico-transcendental. É um
aprofundamento da lógica transcendental de Kant. A novidade é que Lask,
contrariamente a Kant, que restringiu o problema das categorias só ao ente sensível,
conquista para as categorias uma “nova região de aplicação”, a filosofia mesma. Lask
pretendia uma doutrina das categorias que abrangesse o todo do pensável com os seus
dois hemisférios: o do ser (que concerne ao ente) e o do valor (que concerne ao válido).
Na perspectiva da lógica transcendental, o ser perde suas autonomia translógica. O ser
se refaz enquanto conceito, o que não quer dizer que o ser se restrinja a mero conteúdo
cunhado logicamente. O que quer dizer então dizer que o ser se modifica, se refaz como
conceito? Quer dizer que a objetualidade em face ao objeto, a coisalidade em face ao
coisal, o ser em face ao ente, se torna valor lógico, conteúdo de uma forma. O
enganchamento de forma (categoria) e material se designa de “sentido”. Para a filosofia
transcendental, conhecer quer dizer justamente o abranger do material (do sensível)
com a categoria. A lógica, cujo objeto de conhecimento são precisamente as categorias,

20
Heidegger apresenta o seguinte testemunho de admiração a Emil Lask que, juntamente com Rickert,
foi seu professor em Freiburg: “Emil Lask, a cujas investigações eu pessoalmente devo muito, caiu em
batalha na Galícia, em maio de 1915; seu corpo ficou desaparecido. Ele era uma das personalidades
filosóficas mais fortes da atualidade, um homem de peso que, segundo a minha convicção, estava a
caminho da fenomenologia; seus escritos abundam em estímulos, sem serem todavia leituras que a gente
lê só assim”. Heidegger dedicou a sua tese de habilitação a Rickert. No prefácio, de 1916, ele escreve: “a
dedicatória é expressão de uma gratidão devida. Ela quer, ao mesmo tempo, numa defesa plenamente
livre do próprio ‘ponto de vista’, manifestar a convicção de que o caráter da filosofia dos valores
(Wertphilosophie), isto é, o caráter de ser consciente de problemas, de ser portadora de uma visão de
mundo (der problembewusste, weltanschauliche Charakter der Wertphilosophie) é chamado a um
decisivo avanço e aprofundamento da elaboração dos problemas filosóficos. Sua orientação histórico-
espiritual (geistesgeschichtliche) dá um chão fecundo para a configuração criativa dos problemas a partir
da vivência fortemente pessoal. O trabalho filosófico de um Emil Lask, a quem seja, neste lugar, dito
expressamente uma palavra de uma recordação fiel e grata que se dirija ao seu distante túmulo de
soldado, permanece uma prova disto”.

19
pode, portanto, conhecer estas formas somente, de novo, através da abrangência
destas com outras formas. A categoria filosófica é forma da forma. Se o ser é, na filosofia
transcendental, categoria regional para o material sensível-intuível, assim também o
valer é a categoria constitutiva para o material não-sensível. O que até agora fora
tomado como simples forma, mostra-se como uma implicação de algo que vale e de
valer. Esta forma lógica – valer – está, de novo, na categoria do valer. Nós chegamos,
assim, à forma da forma da forma. Há aqui um “regressus in infinitum” (regresso ao
infinito)? É o que parece a Lask. Para ele a categoria pode se tornar material da categoria
infinitamente. O sistema das categorias consiste, pois, de duas regiões, do ser e do valer.
Esta duas regiões se emparelham. As formas lógicas abrangem material sensível e
material não sensível. O que configura estas formas é a subjetividade transcendental.
Esta, a subjetividade, é a criadora da esfera reflexiva. Isto, porém, não quer dizer que as
relações formais estejam submetidas ao arbítrio do pensar.

Lask escreveu também, completando o escrito sobre as categorias, uma doutrina


do juízo. Naquele tempo a “doutrina do juízo” (Lehre vom Urteil) era considera a célula
ou o elemento originário da lógica. É a partir do juízo que se constrói o edifício da lógica.
Uma reforma da lógica, ansiada naquele tempo, deveria ser, fundamentalmente, uma
reforma da doutrina do juízo.

O psicologismo tinha compreendido o juízo desde o ponto de vista da psicologia.


Wundt tinha se concentrado no surgimento do juízo, entendendo-o como uma atividade
mental. H. Maier investigou os atos constitutivos desta atividade. Franz Brentano, como
vimos, considerou também o juízo um tipo de ato intencional, isto é, tomou o juízo no
sentido do julgar, como um acolher como verdadeiro ou rejeitar como falso. Isto
significa: Brentano entendeu o juízo como uma tomada de posição para com o
representado como representado: no juízo (no ato de julgar) aceita-se como verdadeiro
ou rejeita-se como falso o conteúdo de uma representação. Theodor Lipps,
semelhantemente, considerou como essência do juízo desde o comportamento do
sujeito psíquico, concentrando-se na realização deste comportamento. Contra o
psicologismo, porém, o kantismo transcendentalista, acentuou que a problemática do
juízo – de sua essência – não residia na esfera do psíquico. Haveria uma diferença entre
o psíquico e o lógico, que o psicologismo desconhecia. A esfera do lógico era não o ser,

20
mas o valer. O sentido não vige como algo que é (ao modo da realidade física ou
psíquica), mas como algo que vale. O sentido do sentido é o valer.

2.3. A CONFRONTAÇÃO COM O PSICOLOGISMO POR PARTE DE


HUSSERL.

2.3.1. A PARTICIPAÇÃO DE HUSSERL NA


DISCUSSÃO SOBRE O PSICOLOGISMO.

Um outro confronto com o psicologismo foi realizado por Husserl21.

21
O primeiro volume das Investigações Lógicas se intitula “Prolegomena zur reinen Logik” (Prolegômenos
para a lógica pura). Sobre a gênese de tal obra Husserl se pronuncia no prefácio da primeira edição, de
1900: “As investigações lógicas, cuja publicação eu começo com estes prolegômenos, surgiram de
problemas inevitáveis que sempre de novo inibiram e finalmente interromperam o progresso de meus
esforços, efetuados durante anos, em torno de um esclarescimento filosófico da matemática pura.
Paralelo às perguntas sobre a origem das intelecções e dos conceitos fundamentais da matemática
aqueles esforços se deparavam também com as difíceis perguntas do método e da teoria matemática.
Aquilo que deveria aparecer transparente e facilmente compreensível segundo as representações da
lógica tradicional ou em todo o caso da lógica reformada, a saber, a essência racional da ciência dedutiva
com sua unidade formal e metódica simbólica, se me apresentou, no estudo das ciências dedutivas
efetivamente dadas, obscuro e problemático”. As questões fundamentais acerca da matemática tinham
conduzido Husserl às questões fundamentais acerca da lógica, tanto num âmbito como no outro ele não
encontrara clareza, não obstante todo o respeito de que estas duas ciências gozavam no contexto das
demais ciências, às quais eram apresentadas como modelo de rigor e de clareza. Husserl, pouco a pouco,
fora conduzido aos problemas da teoria do conhecimento e da lógica em geral. Inicialmente, o caminho
que ele percorre para a solução destes problemas é aquele que então era o mais trilhado, ou seja, aquele
que busca uma aproximação às questões da lógica a partir da abordagem psicológica: “eu parti da
convicção reinante de que a psicologia era aquela da qual a lógica em geral, assim como a lógica das
ciências dedutivas, deveria esperar seu esclarecimento filosófico”. Mas tal procedimento apareceu desde
o princípio limitado e duvidoso: “onde se tratava da pergunta pela origem das representações
matemáticas ou da configuração do método prático, que de fato era determinado psicologicamente, a
execução da análise psicológica me parecia clara e instrutiva. Assim que, porém, se efetuasse uma
passagem do contexto psicológico do pensamento à unidade lógica do conteúdo pensado (à unidade da
teoria), não se deixava vir à tona nenhuma reta continuidade e clareza. Tanto mais daí me inquietava
também a dúvida de princípio sobre como a objetividade da matemática e de toda ciência em geral fosse
compatível com uma fundamentação psicológica do lógico”. Husserl pouco a pouco será costringido a
abandonar o caminho dominante do psicologismo e a tomar a direção de “reflexões gerais de caráter
crítico sobre a essência da lógica e sobretudo sobre a relação entre a subjetividade do conhecimento e a
objetividade do conteúdo do conhecimento”. Inicialmente as investigações lógicas aparecem, portanto,
como a tentativa de uma nova fundação da lógica pura e da teoria do conhecimento. O caminho que
Husserl tomará para esta nova fundação partirá da crítica ao caminho que até então era dominante e que
ele mesmo havia trilhado, isto é, o caminho do psicologismo. A crítica do psicologismo seria, portanto,
antes de tudo uma crítica das suas próprias tentativas anteriores e uma compreensão de suas aporias,
juntamente com uma crítica do método dominante de abordar a fundamentação da lógica e das demais

21
Husserl não condivide a posição dos psicologistas, mas nem mesmo assume a
orientação dos anti-psicologistas de então. Tanto uns como os outros partem do mesmo
ponto de vista: “de modo bastante notável, do lado oposto se crê poder fundar a aguda
separação de ambas as disciplinas justamente no tocante ao caráter normativo da
lógica. A psicologia, diz-se, considera o pensamento, como é, a lógica, como deve ser. A
primeira tem a ver com as leis naturais, a última, com as leis do pensamento dotadas do
caráter de norma”22. Esta é a posição de Jäsche que, ao apresentar a preleção de Kant
sobre a lógica, diz que na lógica não queremos saber como o intelecto é e pensa, e como
este até agora procedeu no pensamento, mas sim como ele deve proceder no pensar.
Esta deve nos ensinar o uso correto do intelecto, isto é, aquele que concorda consigo
mesmo23. Esta também é a posição de Herbart que comete, segundo o parecer de
Husserl, o erro de confundir a idealidade específica da lógica com a idealidade normativa
da moral. Herbart, de fato, entende a lógica como moral do pensamento, contraposta à
psicologia, entendida como história natural do intelecto. “Ele, diz Husserl, não tem
nenhuma representação da ciência pura, teorética, que se esconde por trás desta moral
(e de modo semelhante na moral em sentido geral) e menos ainda do âmbito e dos
limites naturais desta ciência e de sua íntima unidade com a matemática pura”24. Isto
vale também para todos os lógicos que caem sob a esfera de influência de Herbart, até
mesmo para Lotze, que assumiu muitas sugestões de Herbart, examinou-os a fundo com
grande agudeza e desenvolveu-os de modo original. Por sua vez, partindo justamente
de Lotze, as duas vertentes do neokantismo, ou seja, a filosofia dos valores,
representada por Windelband e Rickert, e a escola de Marburgo, representada
sobretudo por Natorp, irão adotar uma posição anti-psicologista no tocante ao modo
de conceber a relação entre a lógica e a psicologia, como já tivemos oportunidade de
ver.

ciências, o método de esclarecer logicamente as ciências dadas através de análises psicológicas. Neste
sentido, a sua crítica do psicologismo remete ao dito de Goethe por Husserl mesmo recordado: “Man ist
gegen nichts strenger als gegen erst abgelegte Irrtümer” (Nunca se é mais rigoroso contra alguma coisa
do que contra os erros que se acabou de deixar).
22
E. Husserl, LU, vol. I, 53.
23
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 53.
24
E. Husserl, LU, vol. I, 218.

22
Husserl observa que as argumentações dos anti-psicologistas não colocam em
aporia os lógicos psicologistas. Estes respondem: “o uso necessário do intelecto é
justamente também um uso do intelecto e pertence, com o intelecto mesmo, à
psicologia. O pensamento, como deve ser, é um mero caso especial do pensamento,
como é. De certo modo, a psicologia há de sondar as leis naturais do pensamento,
portanto, as leis do juízo em geral, seja este verdadeiro ou falso”25. Esta é a posição, por
exemplo, de Lipps, quando diz que, porque as regras segundo as quais se deve proceder
para pensar corretamente, não são outra coisa que regras segundo as quais se deve
proceder, para pensar assim como exige a peculiaridade do pensamento, isto é, sua
especial legalidade, se pode dizer, em breve, que estas são idênticas com as leis naturais
do pensamento mesmo. A lógica ou é física do pensamento ou nada26. Mas a
controvérsia não pára por aí; segue adiante, na medida em que os anti-psicologistas
afirmam que o conceito de “lei” no tocante às leis naturais do pensamento, estudadas
pela psicologia, e às leis normativas do pensar, estudadas pela lógica, tem sentidos
fundamentalmente diversos. No primeiro caso, “lei” significa “uma fórmula sintética
para uma conexão necessária e sem exceção na coexistência e na sucessão” de
processos psíquicos. No segundo, ao invés, não se trata de conexões causais, mas de
imperativos dados ao pensamento para que o juízo efetuado resulte verdadeiro. Neste
sentido, para o anti-psicologistas, a lógica não é uma física, mas sim uma ética do
pensamento27. Por sua vez, os psicologistas não se acontenterão. Eles aceitam que a
lógica e a psicologia sejam disciplinas diferentes, mas perguntam como é que se pode
estudar nexos ideais do pensamento sem ter estudado aqueles naturais, reais, causais.
Assim responde Mill: “como se cada dever não deveria se fundar sobre um ser, como se
cada ética não teria de, ao mesmo tempo, se mostrar como uma física!” 28. E assim a
controvérsia se estende indefinidamente.

Tomando posição diante desta controvérsia Husserl afirma: “uma coisa deveria
estimular a admiração filosófica, a saber, a circunstância de que em geral uma
controvérsia tenha subsistido e ainda subsista; e que as mesmas argumentações fossem

25
E. Husserl, LU, vol. I, 54.
26
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 55.
27
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 56.
28
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 56.

23
trazidas sempre de novo; e que as objeções a estas não fossem reconhecidas como
vinculantes”29. Colocando na balança os argumentos e as objeções, a força e os limites
de ambos os lados, Husserl ousa tomar posição: “quer me parecer que a parte mais
importante da verdade esteja do lado anti-psicologista, só que os pensamentos
decisivos não foram trabalhados de modo pertinente e foram turvados por causa de
múltiplos elementos inconcludentes”30. Colocando a questão acerca dos fundamentos
teoréticos essenciais da lógica normativa e examinando a fundo as argumentações dos
psicologistas, ele descobre um ponto fraco: “através do argumento se mostrou apenas
uma coisa: que a psicologia é implicada (mitbeteiligt ist) na fundação da lógica, não,
porém, que esta seja partícipe (beteiligt ist) de tal fundação sozinha ou mesmo de modo
privilegiado e nem mesmo que esta forneça àquela o fundamento essencial”31. Os anti-
psicologistas não foram felizes na definição e na construção da lógica, precisamente da
lógica pura, mas desta “se aproximaram na medida em que eles notaram na lógica
tradicional uma plenitude de verdades teoréticas pertencentes umas às outras, que nem
se alistavam na psicologia, nem em outras ciências particulares e com isto deixavam
entrever um reino próprio de verdade. E eram justamente aquelas verdades, às quais se
referem, em última instância, toda regulamentação lógica e às quais se deveriam pensar
de modo prioritário quando o discurso versava sobre verdades lógicas. Poder-se-ia
então facilmente chegar ao ponto de ver nestas o essencial da lógica no seu todo e
denominar a sua unidade teorética com o nome de ‘lógica pura’”32.

2.3.2. A CRÍTICA DE HUSSERL AO PSICOLOGISMO

A crítica de Husserl ao psicologismo se realiza33: a) mostrando que há no cerne


da posição psicologista um contrasenso; b) demonstrando que há falhas fundamentais
na auto-fundamentação desta posição.

29
E. Husserl, LU, vol. I, 58.
30
E. Husserl, LU, vol. I, 59.
31
E. Husserl, LU, vol. I, 59.
32
E. Husserl, LU, vol. I, 60.
33
Os Prolegômenos para a lógica pura, no seu conteúdo essencial remontam às lições dadas por Husserl
em meados dos anos noventa (1896, conforme o prefácio da segunda edição, de 1913; 1895, segundo o

24
a) As preliminares da crítica.
Husserl procura mostrar que no cerne da posição psicologista há um contra-
senso34. Ele o faz desvendando o psicologismo como um relativismo cético.
Positivamente, Husserl parte da concepção de teoria. Teoria não é, aqui, propriamente,
um sistema de suposições, de proposições que se condicionam, para a possível

prefácio da edição de 1939, publicada por Eugen Fink). O tema central destas reflexões é a idéia de uma
lógica pura a ser conquistada positivamente, mas cuja via de acesso deve ser aberta antes de tudo a partir
de uma crítica do psicologismo. Em uma nota, Husserl afirma que usa os termos psicologista, psicologismo
e semelhantes sem uma “coloração” depreciativa, assim como antes dele os usara Stumpf, em sua obra
“Psychologie und Erkenntnistheorie” (1891). O psicologismo é uma posição que se decide pela redução da
lógica à psicologia. Para o psicologismo, “os fundamentos teoréticos essenciais (da lógica) residem na
psicologia, em cuja região pertencem, segundo seu conteúdo teorético, as proposições que dão à lógica
o seu cunho característico”. Representantes do psicologismo são, por exemplo, os expoentes da lógica
empirística inglesa, em que se destaca John Stuart Mill, e os alemães Bain, Wundt, Sigwart, Erdmann e
Lipps. Tal posição é assumida antes de tudo por John St. Mill. No seu escrito polêmico contra Hamilton ele
afirma: “A lógica não é uma ciência separada da psicologia e com ela coordenada. Na medida em que em
geral ela é uma ciência, é uma parte ou ramo da psicologia, distinguindo-se desta, de um lado, como a
parte do todo, de outro lado, como a arte da ciência. Ela deve de todo as suas bases teoréticas à psicologia
e ela inclui, no fim, tanto desta ciência, quanto é necessário para fundamentar as regras da arte (Kunst,
no seu duplo sentido de arte e técnica)”. A posição psicologista é adotada também, na Alemanha, por
Theodor Lipps, o qual afirma que “justamente o fato de que a lógica é uma disciplina particular da
psicologia, distingue ambas uma da outra de um modo suficientemente claro”. Basicamente o
psicologismo justifica a sua posição mostrando que os conteúdos da lógica são atividades ou produtos
psíquicos (psychische Tätigkeiten oder Produkte). Tais conteúdos, como por exemplo, conceitos, juízos,
inferências, deduções, induções, definições, classificações etc – são elementos de caráter psíquico,
portanto, objetos da psicologia, só que, na lógica, são tratados de acordo com o ponto de vista prático ou
normativo, isto é, em vista da execução de uma arte ou técnica de pensar que realize corretamente.
34
Buscando uma confutação do psicologismo Husserl analisa antes de tudo as suas consequências para a
lógica. O ponto de partida é que a psicologia é uma ciência de dados de fato (eine Tatsachenwissenschaft)
e, com isto, uma ciência que parte da experiência (eine Wissenschaft aus Erfahrung). Em seguida ele
observa que as leis que a psicologia até então tinha posto em relêvo, eram leis vagas – onde “vago”
significa o contrário de exato – que possuem o caráter de generalização da experiência, de enunciados
sobre regularidades aproximativas da coexistência e da sucessão de processos psíquicos, que não têm a
pretensão de fixar com determinação infalível e unívoca o que deve subsistir ou resultar em circunstâncias
exatamente circuncritíveis. A partir daí Husserl indica três consequências do psicologismo: 1) Em bases
teoréticas vagas só podem fundar regras vagas. Se as leis psicológicas carecem de exatidão, o mesmo
deve valer para as prescrições lógicas. 2) Mesmo se se admite que as leis psicológicas são exatas, isto não
leva a dar um passo adiante. É que nenhuma lei natural é passível de ser conhecida a priori e nem de ser
fundada com evidência apodítica (einsichtig). A única via para fundar ou justificar uma tal lei é a indução
a partir de dados de fato particulares da experiência. A indução não funda a validade da lei, mas somente
a mais ou menos alta probabilidade desta validade; o que pode ser justificado de modo apoditicamente
evidente é somente a probabilidade e não a lei. Consequentemente, também as leis lógicas, sem exceção,
deveriam ter o caráter de mera probabilidade. 3) Se as leis lógicas tivessem a sua fonte de conhecimento
em atividades psicológicas, se fossem, por exemplo, como usualmente ensina a parte opositora, locuções
normativas de dados de fato psicológicos, elas mesmas deveriam possuir um conteúdo psicológico, e
precisamente em dois sentidos: elas deveriam ser leis para o psíquico e ao mesmo tempo pressupor,
respectivamente, incluir a existência de algo de psíquico. Isto é, segundo demonstração, falso. Nenhuma
lei lógica implica um “matter of fact”, nem mesmo a existência de representações ou juízos ou demais
fenômenos do conhecimento. Nenhuma lei lógica é, segundo o seu sentido genuíno, uma lei para
atividades da vida psíquica, portanto, nem para representações, isto é, as vivências do representar, nem
para juízos, isto é, as vivências do julgar, nem ainda para demais vivências psíquicas.

25
explicação de conexões de fatos. Mas teoria quer dizer, ao modo grego da
(theoria): a unidade de uma conexão de fundamentações de proposições
verdadeiras, fechada em si mesma, de início, uma dedução, como, por exemplo, a teoria
matemática. Para cada teoria há condições de possibilidade e uma justificação racional.
Por exemplo, o princípio de identidade, no sentido de a validade dos axiomas da teoria,
no progresso dos passos fundados dedutivamente, ser universalmente a mesma. Além
disso, a necessária validade dos axiomas. Se uma determinada teoria e ciência vai contra
estas condições de possibilidade de uma teoria em geral, então ela em si mesma choca
contra aquilo que a faz possível. Esta teoria contradiz o sentido que ela, enquanto teoria,
tem que ter. Ela perde todo sentido racional – no dizer de Husserl, todo sentido
“consistente”.

Se o conteúdo enunciativo teorético de uma teoria nega as condições de


possibilidade de uma teoria em geral, então ela é, no seu cerne, absolutamente
contraditória, totalmente inconsistente. Então jaz nela, com a inconsistência do seu
sentido, a abdicação de toda racionalidade, de toda possibilidade de um afirmar e
fundamentar que se justifique. Ora, o característico de uma teoria cética é que ela diz:
as condições de possibilidade de uma teoria em geral são absolutamente falsas35.

O psicologismo é ceticismo por ser relativismo. A posição relativista diz: toda


verdade vale somente em relação ao sujeito que casualmente julga. Este sujeito que
julga pode ser entendido como um sujeito individual, que julga aqui e agora – ou, porém,
como espécie, isto é, não como este ou aquele homem, mas como o homem enquanto

35
O psicologismo é uma “teoria cética” (skeptische Theorie). Husserl esclarece que por teorias céticas ele
entende “todas as teorias cujas teses ou dizem explicitamente ou implicam analiticamente que as
condições lógicas ou noéticas para a possibilidade de uma teoria em geral são falsas”. O ceticismo lógico
nega as condições lógicas, isto é, racionais de toda tese ou de qualquer fundação de uma tese em geral.
O ceticismo noético nega as condições noéticas de uma teoria, isto é, aquelas condições ideais que são
radicadas na forma da subjetividade em geral e na relação desta com o conhecimento. Forma de ceticismo
noético é o ceticismo da antiguidade, o qual apresenta teses deste teor: não existe nenhuma verdade,
não existem conhecimento nem fundação de conhecimento. Destes dois modos de ceticismo há que se
distinguir ainda o ceticismo metafísico, isto é, aquele que nega a existência ou a cognocibilidade de “coisas
em si”. Este não é, porém, o caso do psicologismo, que deve ser entendido no sentido de um ceticismo
lógico. Note-se que já da definição se pode ver que o conceito de teoria cética é intrinsecamente absurdo:
é uma teoria que nega as condições de possibilidade de toda e qualquer teoria.

26
tal, em diferença, por exemplo, do anjo. O relativismo específico, que relativiza a
validade do conhecimento à espécie homem, é chamado de antropologismo36.

O antropologismo enquanto relativismo específico afirma: verdadeiro é aquilo


que, a cada vez, correspondendo à disposição psíquica da referida espécie e às suas leis
de pensamento, pode valer como verdadeiro. Isso inclui: uma mesma proposição que
para uma espécie pode ser verdadeira, pode ser falsa para outra espécie. Mas a mesma
proposição não pode ser ambas as coisas: verdadeira e falsa. É contraditório. Do mesmo
modo contraditória é a fala de uma verdade para este ou para aquele. O que é
verdadeiro é absoluto, é em si verdadeiro. Aqui Husserl retoma Bolzano37. Na esteira de

36
O psicologismo é uma forma de relativismo. Mas o relativismo é uma concreção do subjetivismo: toda
a verdade é relativa, a saber, relativa ao sujeito que conhece, que concebe, julga, infere. O conceito
originário de relativismo é indicado na fórmula de Protágoras (entendida ao modo moderno, isto é, a
partir da relação sujeito-objeto – aqui não entraremos na questão de uma interpretação dela que não
parta deste horizonte moderno, mas se atenha ao horizonte da compreensão grega): de todas as coisas é
medida o homem. O relativismo pode ser individual ou específico. É individual se interpretamos a fórmula
de Protágoras assim: de toda verdade é medida o homem individual. Isto é: para cada um é verdadeiro
aquilo que lhe parece verdadeiro; para alguém é verdadeira tal coisa, para outro a coisa oposta, desde
que lhes pareça assim. Obviamente este tipo de relativismo é refutado imediatamente quando é posto.
Não se trata deste relativismo no caso do psicologismo. O relativismo pode ser ainda expresso assim: de
toda verdade é medida o homem como tal, isto é, não como indivíduo, mas como espécie. É o relativismo
específico, que pode ser chamado também de antropologismo, devido à sua referência limitativa ao
homem. Importantes representantes de uma lógica antropologista são Sigwart e Erdmann. Segundo tal
interpretação todo juízo, que se enraíza no específico do homem, nas leis que o constituem é, para nós
homens, verdadeiro. Tal relativismo é subjetivismo, no sentido de que os juízos são afirmados como
verdadeiros somente na medida em que adequam à forma da subjetividade humana universal, ou seja, à
consciência humana em geral.
37
Bolzano (1781-1848). Matemático e filósofo, sacerdote católico e professor de filosofia da religião na
universidade de Praga até o ano de 1819, quando será afastado da cátedra e suspendido do ministério
sacerdotal a divinis, Bolzano influirá de modo decisivo na matemática e na lógica de seu tempo.
Fundamental será a sua posição, segundo a qual o domínio daquilo que é lógico é essencialmente
objetivo, há um seu próprio “in se”, não dependendo, por conseguinte, da subjetividade de quem pensa
ou expressa. Bolzano era considerado por Husserl como um dos maiores lógicos de todos os tempos.
Particularmente cara lhe era a Wissenschaftlehre, publicada por Bolzano no ano de 1837. Husserl entrevê
na postura interrogativa de Bolzano uma proximidade com Leibniz: “Historicamente ele (Bolzano) há de
ser colocado em um relação bastante próxima com Leibniz, com quem ele condivide pensamentos
importantes e concepções fundamentais e ao qual ele também filosoficamente está muito próximo.
Todavia, também ele não esgotou completamente a riqueza das intuições lógicas de Leibniz, antes de
tudo no tocante à silogística matemática e à mathesis universalis. Entretanto, naquele tempo ainda se
conhecia pouco dos escritos inéditos de Leibniz e faltava a matemática ‘formal’ e a doutrina das variações
como chave de compreensão”. Bolzano teve o mérito de dar à lógica o tratamento rigoroso análogo ao
rigor matemático: “Em cada linha de sua obra digna de admiração, Bolzano se demonstra como o agudo
matemático que na lógica faz reinar o mesmo espírito de rigor científico que ele mesmo, como o primeiro,
introduziu na abordagem teorética dos conceitos fundamentais e das proposições fundamentais da
análise matemática, que ele, através disto, colocou sobre novas bases”. Husserl recorda outrossim que
Bolzano era contemporâneo de Hegel e que constitui uma via alternativa para a filosofia, entendida como
filosofia científica, diversa daquela do idealismo alemão que tendia a ser uma visão de mundo: “em
Bolzano, contemporâneo de Hegel, não encontramos nenhum vestígio da profunda ambiguidade da
filosofia do sistema (Systemphilosophie), que tinha em mira ser mais uma sabedoria universal

27
Bolzano, Husserl defende a posição, segundo a qual o domínio daquilo que é lógico é
essencialmente objetivo, há um seu próprio “in se”, não dependendo, por conseguinte,
da subjetividade de quem pensa ou expressa, seja um homem ou não. Diz Husserl nas
Investigações Lógicas: “O que é verdadeiro, é absolutamente verdadeiro, é ‘em si’
verdadeiro; a verdade é idêntica e só uma, sejam homens ou não, sejam anjos ou deuses
que a apreendem no juízo” 38. O “em si” da verdade deve poder ser interpretado
corretamente. Em questão aqui não está uma noção de verdade necessária em oposição
à verdade contingente; nem se trata do ideal em sentido normativo; nem se trata da
idealidade do ideal entendido como arquétipo concreto. A idealidade em questão é a da
unidade na multiplicidade. A verdade é, pois, uma unidade ideal, que é sempre a mesma,
ainda que os atos de juízo sejam muitos e variados, e executados por vários sujeitos,
diversos numericamente ou até mesmo especificamente. A idealidade da linguagem e
da verdade implica que a significação não é o produto da consciência humana. Ela
pertence a outro modo de ser que o da consciência.

b) A demonstração de falhas fundamentais.


O cerne da coisa em questão é: o psicologismo tenta demonstrar os princípios
da lógica a partir de fatos. Aqui Husserl retoma Leibniz, precisamente, a diferença entre
“verités de raison” – verdades de razão, verdades a partir de conceitos, - e “verités de
fait” – verdades de fato39. O psicologismo procura sustentar verdades de razão através
de verdades de fato.

(Weltweisheit) e uma visão de mundo (Weltanschauung) cheia de pensamentos do que um saber


universal de caráter teorético e analítico (theoretisch-analysierendes Weltwissen), e que tanto reprimiu,
com uma funesta confusão destas intenções fundamentalmente diversas, o progresso da filosofia
científica (den Fortschritt der wissenschaftlichen Philosophie)”. Ao importante contributo de Bolzano à
reflexão de Husserl, deve-se acrescentar o contributo crítico de Frege ao trabalho inicial de Husserl. Frege
tinha feito uma recensão à “Filosofia da aritmética” de Husserl, que o levaria a procurar uma outra
aproximação na abordagem do número, diversa daquela oferecida pela psicologia, mesmo se se tratasse
de uma psicologia descritiva e não de uma psicologia genética. De fato, Frege afirma que uma descrição
dos processos mentais que precedem a enunciação de um juízo numérico não pode nunca, mesmo se
exata, substituir uma verdadeira determinação do conceito de número. Não poderíamos nunca invocá-la
para a demonstração de algum teorema, nem aprenderíamos desta alguma propriedade dos números 37.
A leitura de Bolzano e a recepção das críticas de Frege à sua filosofia da Aritmética, sobretudo a crítica
referente ao perigo do psicologismo, fará com que Husserl dê uma reviravolta no seu pensamento, que
até então estava somente no início.
38
HUSSERL, 2014, p. 88.
39
Leibniz surge aos olhos de Husserl como o pensador que levou a lógica e a matemática a uma unificação.
Tal é, a propósito, a concepção de Husserl: “O motivo estimulante para o início da filosofia moderna, a
idéia de um aperfeiçoamento e nova configuração das ciências, conduziu também em Leibniz a esforços

28
Assim, para dizer com Leibniz, a lógica não trata de verdades de fato (verités de
fait), que tratam de objetualidades reais, mas sim de verdades de razão (verités de
raison), que tratam de objetualidades ideais. Husserl procura mostrar como lei lógica
não implica um “matter of fact”, nem mesmo a existência de representações ou juízos
ou demais fenômenos do conhecimento. Nenhuma lei lógica é, segundo o seu sentido
genuíno, uma lei para atividades da vida psíquica, portanto, nem para representações,
isto é, as vivências do representar, nem para juízos, isto é, as vivências do julgar, nem
ainda para demais vivências psíquicas. Assim, por exemplo, contra John Stuart Mill,
Husserl procura mostrar que o princípio de não contradição, enquanto lei lógica, não
exprime “nenhum constrangimento psicológico, mas a intelecção de que proposições
opostas não são simultaneamente verdadeiras, ou os estados de coisas
correspondentes a elas não podem existir conjuntamente”.

As leis lógicas devem ser distinguidas das leis naturais e das leis morais. As leis
lógicas não são nem regras práticas para o agir humano, nem asserções sobre
regularidades aproximativas que possuem o caráter de uma probabilidade mais ou
menos certa de que o estado de coisas é assim e não de outra forma. As leis lógicas
oferecem uma certeza apodítica, uma certeza peremptória de uma verdade que deve
ser assim e não pode não ser de outra forma. No caso do princípio de não contradição

ininterruptos em torno de uma lógica reformada. Mas, mais inteligentemente do que seus predecessores,
ao invés de difamar a lógica escolástica como formalismo vazio, ele apreendeu-a como um precioso
estágio preliminar da verdadeira lógica que, não obstante sua imperfeição, seria capaz de oferecer uma
verdadeira ajuda ao pensamento. Seu aperfeiçoamento, na direção de uma disciplina de rigor e de forma
matemática, de uma matemática universal, num sentido o mais alto e mais compreendente, é uma meta
à qual ele dedica sempre novos esforços”. Mas em que consistiria propriamente esta “matemática
universal”? Husserl esclarece que “a esfera da mathématique universelle aqui concebida seria portanto
muito mais ampla do que a esfera do cálculo lógico, em cuja construção Leibniz muito se empenhou, sem
com isto levar a cabo completamente. Propriamente, Leibniz teve que compreender sob esta matemática
universal toda a mathesis universalis, no sentido quantitativo usual – que constitui o conceito leibniziano
mais estreito de mathesis universalis – tanto é que ele repetidamente designou os puros argumentos
matemáticos de ‘argumenta in forma’. Mas a esta deveria pertencer também a ars combinatoria, seu
speciosa generalis, seu doctrina de formis abstracta, que constitui a parte fundamental da mathesis
universalis em um sentido mais amplo, mas não no sentido amplíssimo acima indicado, enquanto esta
mesma é distinta da lógica como campo subordinado. Leibniz define a ars combinatoria, especialmente
interessante para nós, como ‘doctrina de formulis seu ordinis, similitudinis, relationis etc. expressionibus
in universum’. Ela é aqui contraposta como scientia generalis de qualitate à scientia generalis de
quantitate (à matemática universal em sentido habitual)”. Na verdade, aquilo que será a meta do
trabalhos de Husserl naqueles anos, anunciado como uma Lógica pura, consistirá, segundo o seu sentido
mais próprio, não somente na elaboração de uma lógica matemática no sentido de uma disciplina baseada
sobre o cálculo lógico, mas terá a vastidão de uma ciência que retoma fundamentalmente a idéia da
mathesis universalis tal como a entende Leibniz.

29
afirma Husserl: “temos evidência apodítica, i.e., intelecção no sentido pleno da palavra,
em relação à inverdade conjunta de proposições contraditórias e, respectivamente, para
a não existência conjunta de estados de coisas opostos. A lei desta incompatibilidade é
o princípio genuíno da não contradição” (HUSSERL, 2014, p. 68-69).

Na verdade, para Husserl, os termos lógicos, quais representação, conceito,


juízo, inferência, demonstração, teoria, necessidade, verdade e outros afins, podem e
devem apresentar-se também como nomes de classes para vivências psíquicas e
formações disposicionais. Mas os conteúdos puramente lógicos a que estes termos se
referem e que entram em questão na formulação das leis da lógica não são atos nem
fatos psíquicos. Os conceitos sobre os quais se constroem as leis lógicas não podem ter
uma extensão empírica, ou seja, conceitos universais, cuja extensão é preenchida por
singularidades fatuais, mas têm de ser conceitos gerais genuínos, cuja extensão se
compõe exclusivamente de singularidades ideais, de espécies genuínas.

Para Husserl, o não poder ser verdadeiro de duas proposições contraditórias não
tem a ver com relações entre estados psíquicos ou atos psíquicos. O que está em
questão não é a incompatibilidade de atos ou estados psíquicos reais. Não se trata de
co-existência, mas de con-sistência. No princípio de contradição o que interessa é a
impossibilidade “objetiva” e “legislativa” de coligação de proposições que valem, não a
impossibilidade de uma incapacidade psíquica, subjetiva. Tomemos duas proposições
contraditórias – “a é b” e “a não é b”. O princípio de contradição tem em vista a
inconciliabilidade do “ser-b de a” com o “não ser-b de a”: impossibilidade de con-
sistência. Não tem em vista que duas ocorrências ou dois estados psíquicos são
inconciliáveis: impossibilidade de co-existência. O teor de um juízo, o conteúdo julgado
de um juízo, o sentido do juízo “2 x 2 = 4” não é nada psíquico; não é um evento real,
que decorre por um tempo na torrente de vivências que pertence à consciência de quem
julga. O conteúdo do juízo, o teor da proposição, ou, brevemente, a proposição é o que
vale. Psíquico é o ato de realizar o juízo, o enunciado. O sentido do juízo, o que é julgado,

30
o verdadeiro, não é uma ocorrência real, mas é, antes, algo não real – Husserl dirá: é ser
ideal40. O neokantismo dizia: é validade.

Isso incide na compreensão da legalidade das leis lógicas. Não se trata de uma
legalidade real, a sua necessidade não é a de uma constrição real, mas de uma legalidade
ideal, a sua necessidade é aquela de uma regulação normativa. Em questão está a
consistência em si e eternamente válida de verdade. O que está em jogo é a
inconciliabilidade eternamente subsistente do seu ser-verdadeiro-simultaneamente. As
leis lógicas não só não regulam e regem ocorrências psíquicas, como nem mesmo as
pressupõem.

As leis naturais se referem a fatos. Enquanto tais, só podem ser fundadas sobre
e a partir de fatos, ou seja, por meio de observações e visões panorâmicas de fatos –
através de indução. Todas estas leis, mesmo as mais abrangentes, como, por exemplo,
a da gravitação, são, no tocante à sua validade, apenas prováveis, embora esta
probabilidade possa ser da mais alta dignidade. Elas têm, enquanto leis reais, o caráter
do presumível. Isto quer dizer: elas são acompanhadadas de uma limitação - “com base
no que foi observado até agora, enquanto ulteriores experiências não tiverem posto em
crise as leis presumidas”. Elas são, pois, leis condicionadas.

Já as leis do pensamento são leis incondicionadas, visíveis somente através de


“ideação”, ou a partir de “conceitos puros”, e são, enquanto tais, incondicionadas. O
princípio de contradição é válido em si mesmo e sua validade independe do fato de que
um certo número de homens o reconheça e o cumpra ou não.

Muda também, de um tipo de lei para outra, o caráter de evidência e certeza. As


leis ideais têm evidência (visão no sentido de intelecção) apodítica: absolutamente

40
Na esteira de Herbart, Husserl defende a posição, segundo a qual a lógica se ocupa do pensado (das
Gedachte), isto é, do conceito em sua unidade ideal e em sua identidade permanente consigo mesmo, e
não do pensamento (das Denken), entendido como processo psíquico cognitivo real, intimamente conexo
a mecanismos fisiológico-cerebrais, que é tomado em consideração pela psicologia. O conceito não é
nada de real, não é nem físico, nem psíquico. Não são partes dos atos psíquicos. Conceito, em sentido
lógico, isto é, não psicológico, se refere ao concebido, ao pensado como tal, abstraindo-se do modo em
que nós o pensamos, isto é, o recebemos, o produzimos e reproduzimos, pelos nossos atos reais. A lógica
pura teria como objeto as relações do pensado (Verhältnisse des Gedachten), ou seja, os conteúdos de
nossas representações. Estas, por sua vez, possuem o caráter essencial de idealidade, isto é, são relações
ideais, onde ideal é entendido como o contrário de real. O ideal – e não o real – é o que subsiste em si
mesmo de modo permanente e sempre idêntico. Somente o real está sujeito às leis do devir e da
necessidade natural, física ou psíquica. O ideal não está.

31
indubitável. A certeza do conhecimento de leis reais é a assertória: ela doa somente um
fático, pressumido, ser-assim-e-não-de-outro-modo. A certeza apodítica, por sua vez,
doa um unívoco, peremptório, não-poder-ser-diversamente.

O psicologismo só foi possível com base no domínio da impostação naturalística


em face da razão e do espírito. O naturalismo afirma que tudo só pode ser
experimentado e interpretado como realidade natural. Ele tem sua raiz na cegueira para
com o não real. O ter da proposição enquanto tal – o sentido – é de um tipo de ser que
não é real, mas ideal.

A falha fundamental do psicologismo está em ignorar a diferença fundamental


no ser do ente, a saber, a diferença entre ser real e ser ideal. Junto com a questão do
ser vem a questão da verdade. De que tipo de ser é o ser verdadeiro de algo? Como
entender o ser-verdadeiro no que diz respeito ao ser em geral?

O psicologismo confude o ser real do psíquico, do julgar, com o ser ideal da


proposição julgada; ele confunde o acontecer temporal do real com a consistência
supra-temporal do ideal.

2.3.3. O POSITIVO DE QUE PARTE A CRÍTICA DE


HUSSERL: A DISTINÇÃO ENTRE SER REAL E
SER IDEAL. O LÓGOS ENQUANTO LEKTÓN.

Toda crítica genuína deve falar a partir do positivo. Este, o positivo, no caso da
crítica de Husserl ao psicologismo, fala a partir da diferença entre o pensamento como
ato (real) de pensar (Denken) e o pensamento como o conteúdo (ideal) do pensado
(Gedanke). A legalidade das leis lógicas não é a do pensar, mas a do pensado. A justeza
ou correção do pensamento é um caráter do pensado. A verdade, do mesmo modo, não
é uma propriedade de uma ocorrência psíquica, mas é um distintivo do “conteúdo de
pensamento” (o pensado do pensar). Verdadeiro não é pôr (setzen), mas o que é posto
(das Gesetzte) enquanto tal, a proposição (Satz).

32
Assim, o verdadeiro não diz respeito ao (lógos) enquanto o
(légein), o falar, mas ao (lógos) enquanto o (legómenon), o
que é dito enquanto tal, aquilo que, de maneira idêntica, é dizível e posto, o
(lektón).

Husserl retoma este tema do (lektón) da lógica estoica.  (lektón)


significa “o que pode ser dito”, “o que pode ser exprimido”; a expressão, o enunciado.
“Nele se apreende explicitamente e de modo preciso pela primeira vez a ideia de
proposição (Satz), enquanto o juízo julgado no julgar (juízo em sentido noemático), e as
leis silogísticas são referidas às suas formas puras”, diz Husserl. A contribuição dos
estoicos, neste último sentido, consistiu em elaborar uma lógica da “consequência”. Os
juízos não somente se seguem um após o outro, mas se seguem um a partir do outro.
Um silogismo não é uma mera série de juízos, mas sim uma conexão de juízos em que
um segue a partir do outro segundo um nexo interno e segundo determinadas leis
formais, numa articulação unificadora de sentidos diversos. Um silogismo conjuga um
sentido de juízo com outro sentido de juízo e, assim, produz uma inferência, uma
conclusão; e, isso, segundo determinadas leis puras, necessárias, não casuais,
independentes do conteúdo objetivo dos juízos41.

41
Agostinho também assimilou o tema do lektón em sua concepção da linguagem. Ele estabelece quatro
elementos da dialética: verbum, dicibile, dictio e res. Vejamos como Agostinho expõe o nexo entre estes
quatro elementos: “Ora, porque as palavras (verba) são sinais das coisas (signa rerum), quando se ocupam
com as coisas, enquanto são sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras – pois
sobre palavras não podemos falar a não ser com palavras, e, quando falamos, não falamos a não ser de
coisas – ocorre à mente que as palavras são sinais das coisas, sem deixar de ser coisas. Quando, pois, a
palavra sai da boca, se sai por causa de si mesma, isto é, para que acerca dela se inquira ou se discuta, há
certamente uma coisa que é sujeita a discussão e a investigação, mas justamente esta coisa é chamada
palavra. E o que quer que, a partir da palavra, não os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e
que a mente mesma mantém incluída em si, se chama dicibile41. Quando, porém, a palavra sai não por
causa de si mesma, mas para significar algo de outro, chama-se dictio41. E a coisa mesma, que não é uma
palavra nem ainda uma concepção da palavra na mente, seja que tenha uma palavra com a qual possa
ser significada, seja que não a tenha, daqui por diante não é chamada, com nome apropriado, de outro
modo do que de coisa. Estes quatro hão de ser mantidos distintamente, portanto: a palavra (verbum), o
dicibile, a dictio, a coisa. Aquilo que defini como palavra é uma palavra e significa a palavra. Aquilo que
defini dicibile é uma palavra, e todavia não significa a palavra, mas aquilo que graças à palavra se
compreende e está contido na mente. Aquilo que eu defini dictio é uma palavra, mas uma palavra que
significa contemporaneamente as outras duas, ou seja, a palavra mesma e aquilo que se faz na mente
através da palavra. Aquela que eu defini como coisa é uma palavra, que significa tudo aquilo que fica fora
das três que foram ditas”. Temos, assim, a palavra, o conceito da palavra na mente, a unidade de palavra
e conceito, e, enfim, a coisa significada pela unidade de palavra-e-conceito.

33
A verdade é um caráter do ser ideal. Ao colocar esta posição, Husserl retoma a
diferença entre real e ideal. Tomemos a proposição: “o quadro é branco”. Este
enunciado (Aussage) aparece, de início, como uma sequência de posições (Setzungen):
a posição do quadro – enquanto posição disso, sobre o que se julga. A ex-posição
(Heraussetzung) do branco a partir do objeto dado (quadro); ex-posição que, ao mesmo
tempo, é de-com-posição - (diaíresis) – do branco em relação ao objeto (o
quadro), no modo do ressaltar, e ex-posição com vistas a uma determinada im-posição
ao sujeito. O que nesta sequência de posições se articula enquanto tal é o julgado – o
conteúdo posicional – da proposição: o ser-branco do quadro. Este conteúdo posicional
pode ser enunciado por diversos indivíduos em diversas circunstâncias, em diversos
tempos, em diversas condições de nitidez, em diversas condições de humores, em
diversas conexões proposicionais ou judicativas. Julgado, numa série infinda de casos, é
sempre a mesma proposição, é sempre o mesmo conteúdo proposicional. Portanto,
uma proposição é um mesmo (idem), cuja mesmidade (identidade) mantêm-se em face
à multiplicidade das posições judicativas que realmente acontecem. Temos, portanto,
identidade e consistência (Beständigkeit) da proposição, de um lado, – em face da
diversidade e das mudanças de posições, de outro; a consistência atemporal do sentido
ideal e a realização do juízo enquanto um decurso temporal do acontecimento psíquico.

2.3.4. IDEIA E IDEAÇÃO.

Nós experimentamos isso também quando falamos de cor enquanto mudam as


cores em sua multiplicidade, ou quando falamos de vermelho enquanto desfilam diante
de nós uma plenitude de múltiplas nuances do avermelhado. Neste caso, subsiste a
mesma determinação, vermelho, na multiplicidade das nuances do avermelhado; ou a
mesma determinação, cor, na multiplicidade das cores (vermelho, verde, amarelo, etc).
Ou então experimentamos isso quando nos relacionamos com a ideia de triângulo como
a mesma, em face a múltiplas aparições de figuras triangulares, sejam eles equiláteros,
isósceles e escalenos; retângulos, obtusângulos, acutângulos. As apresentações
individuais são múltiplas, mas a ideia é a mesma. Esta conexão e diferença de identidade
– diferença – consistência – mudança foi por Platão pela primeira vez compreendida e
34
tematizada no todo. O mesmo é o que permanece (o triângulo na mudança dos
triângulos; o vermelho na mudança das nuances avermelhadas; a cor na mudança das
cores). Este mesmo é o aspecto, a cara, a fisionomia, a vista, que algo oferece ao se nos
manifestar. Em grego se chama (eidos) ou (idéa). É o primariamente visto
em sentido essencial: o que faz com que algo seja o que ele é. Os gregos ressaltaram,
com isso, o modo de captação das coisas. Ver quer dizer, aqui, em sentido bem amplo,
captar algo nele mesmo. Neste modo de captação algo se torna acessível naquilo que
ele é e no que o perfaz, o constitui (sua essência). A palavra “ideia” não diz tanto uma
determinação coisal, mas sim uma determinação a partir do modo de captação do
visado (intencionado) em questão.

Este modo de captação, chamado aqui de ver, é intuição, (theoria). Na


tradição fala-se de “intuitus” (intuição) – “simplex aprehensio” (apreensão simples). O
captado nesta captação não pode ser demonstrado por via de uma demonstração, só
pode ser mostrado42. Esta captação é anterior ao raciocínio. É o colhimento e
acolhimento do que simples e originariamente se dá com tudo aquilo que se mostra
como sendo (o ontológico). O recolhimento disso é o que caracteriza o intellectus (de
inter + legere: colher o que está entre, entreler) ou a mens (mente)43. O que está em

42
Tomás de Aquino, em seu comentário sobre o Peri Hermeneias (De Interpretatione) (Proemium, I, 1),
fala de três operações do intelecto: a pura apreensão (apprehensio simplex), o juízo e o raciocínio: “una
quae dicitur indivisibilium seu simplicium intelligentia vel apprehensio, per quam scilicet intellectus
apprehendit essentiam cujusque rei in seipsa; alia operatio intellectus, scilicet componentis et dividentis;
aditur et tertia operatio, scilicet ratiocinandi” (uma operação, que se diz inteligência ou apreensão
daquelas coisas que são indivisíveis ou simples, pela qual, a saber, o intelecto apreende a essência de
qualquer coisa em si mesma; outra operação, é a do intelecto, a saber, do intelecto que compõe e divide;
acrescenta-se também a terceira operação, a saber, a do raciocínio). A pura apreensão é a operação do
intelecto, pelo qual se tem presente o objeto, sem ainda afirmar nada a respeito dele. Por exemplo: tenho
presente o objeto “cavalo”. A segunda operação é a do juízo. No juízo afirmo ou nego um predicado do
sujeito. Por exemplo: “O cavalo é um animal”. O raciocínio é a operação pelo qual eu conecto enunciados,
passando de um para outro, realizando inferências. Por exemplo: “saindo do meu quarto, apaguei a luz;
agora a luz está acesa; logo, alguém entrou, durante a minha ausência, no meu quarto”. A estas três
operações intelectivas, correspondem, na lógica, o conceito (que é o pensado da simples apreensão), a
proposição ou enunciado (que é o pensado do juízo), e a argumento (que é o pensado do raciocínio). À
lógica não interessa as operações do pensar, mas sim, o que nelas é pensado como tal. Cfr. Rovighi, Sofia
Vanni. Elementi di filosofia. Vol. I: introduzione, logica, teoria della conoscenza. Milano: ed. La Scuola,
1998, p. 51-52.
43
Cf. Agostinho. Sobre a potencialidade da alma. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 126 (tradução modificada):
“Razão (ratio) é a mirada da mente (mentis aspectus), e raciocínio (ratiocinatio) é a indagação da razão
(rationis inquisitio), ou seja, o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar.
Essa indagação, ou raciocínio, é necessária para a procura (opus est ad quaerendum), para ver (ad
videndum). Quando esse olhar da mente, chamado razão, concentrado em (conjectus) alguma coisa, a vê
(videt), denomina-se ciência (scientia nominatur). Quando não consegue ver, por mais esforço que

35
jogo, aqui, é, pois, o simples (noein): o perceber intelectivo, que apreende, à
medida que desvela, numa simples apreensão, o ser e suas determinações.

Aristóteles, logo no começo do primeiro livro de sua obra destinada à filosofia


primeira (Metafísica) diz: (pantes
anthrópoi tou eidénai orégontai phýsei) – Todos os homens por natureza (pelo modo
constitutivo de sua realização) tendem para o saber (aspiram a, desejam).
(eidénai) é saber no sentido de ter visto o (eidos) ou a (idéa). O ser
ideal é aqui entendido como o ser disso que faz de um ente isso que ele é, o ser do
mesmo, que subsiste imutável face à variação de suas concretas realizações. É o que
pode ser captado através do (noûs), do intelecto, ou da razão (no sentido de
percepção intelectiva). Por isso, a tradição chamou de (noetón). Isso se
diferencia do que pode ser captado com a (aísthesis), a percepção sensorial,

empregue, chamamos ignorância”. Mens, mentis: não é fácil determinar o significado preciso de mens.
Mesmo porque, em sua significação acontece uma natural oscilação. Também é assim no uso que os
medievais fazem desta palavra fundamental do pensamento. Dependendo do contexto o sentido sofre
uma ligeira modificação. Grosso modo, a palavra latina mens pode significar mente, espírito, inteligência;
mas também intenção, projeto; ânimo, coragem; disposição de espírito; memória; razão. A palavra latina
mens provém de um radical: mn-. Em Sânscrito temos a palavra manyatê, pensar, intencionar. Em grego
temos a palavra "ménos". Esta quer dizer: força, vigor, potência, violência; força vital, princípio de vida,
vida; mas significa também força de ânimo, coragem, paixão, furor; e, ainda, vontade, intenção, propósito.
Ménos nomeava o ser, entendido originariamente como o irromper em todo o seu vigor, por exemplo, o
irromper de uma tempestade. Também se podia falar de ménos do sol: o seu irromper, surgir, aparecer e
brilhar cheio de vigor. No grego moderno ménos quer dizer fogo, ardor. No grego antigo há também a
palavra mémona, que é um perfeito arcaico, cujo sentido é: pensar fortemente em, ter a intenção de,
desejar, ser pleno de ardor, de coragem para... Assim, o vigor intenso e ardente que irrompe como
vitalidade do homem, que vige como paixão e como potência de pensar, de recordar, de intencionar, de
querer, de amar... é a mente. O perfeito mémona corresponde ao latim menini, recordar (cfr. o grego
mimnesko, que é, também, recordar; bem como o substantivo mnéia, recordação). Este mesmo radical
mn- está no inglês "mind" (mente). Está também no alemão: em Meinung (intenção) e em Minne (amor),
palavra cara a Mestre Eckhart, que guarda em sua significação algo de aspirar a, de recordar (Minne
Trinken = beber para celebrar o amor), de bem-querer, com solicitude e ternura. Mente quer dizer, assim,
intenção, no sentido de intencionalidade (fenomenologia!): intencionalidade não como simples dirigir-se-
a-alguma-coisa da consciência (Husserl), mas como o direcionar-se, o orientar-se, do humano em sua
existência, como ser-no-mundo (Heidegger), isto é, como ente em relacionamento com o mundo
circundante (Umwelt), com o mundo compartilhado da convivência (Mitwelt), com o mundo de si mesmo
(Selbstwelt). Mente quer dizer, pois, a intencionalidade enquanto ser-junto às coisas e ser-com o outro.
É a intencionalidade enquanto Da-sein. É preciso entender a palavra não simplesmente em sentido
psicológico, mas, muito mais, em seu sentido ontológico. Mens é o que é o mais próprio do homem; é o
ser do homem enquanto abertura, isto é, potência de recepção para a doação do ser, do sentido do ser,
da verdade do ser de tudo o que é. O ser do homem, aquilo que os medievais chamavam de “mens”
(mente) e que Heidegger chama de Da-sein (ser o aí para a proximidade do ser) é o vigor cordial desta
abertura para a evidência, para o simples ver, para o simples captar do vir à luz, do fenômeno, entendido
como manifestação e brilho do ser. Ser-homem é existir, isto é, insistir nesta abertura. Mens é o ápice do
ser do homem, de suas possibilidades de ser, de ser para o manifestar do ser, para a sua verdade
manifestativa, anterior a toda a verdade predicativa.

36
ou seja, o (aisthetón), o sensível. Lembremos, aqui, que a dissertação que
Kant escreveu para se tornar professor ordinário em Königsberg, em 1870, se intitulava:
De mundis sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (forma e princípios do mundo
sensível e do inteligível)44. No século XIX e XX falava-se de ser real (sensível) e de ser
ideal (não-sensível). Características do ser ideal: ser o mesmo, permanente e universal.
Husserl entendia que cada verdade fosse uma unidade ideal para uma multifariedade
infinda e ilimitada, segundo a possibilidade, de enunciados corretos que contêm a
mesma forma e a mesma matéria45. O ser ideal da proposição – a verdade – vale e

44
Trata-se de um escrito que funciona como um divisor de águas entre o período pre-crítico e o período
crítico do seu pensamento. Neste escrito, que queria ser uma propedêutica à metafísica entendida como
conhecimento dos princípios do intelecto puro, ele apresenta a distinção entre conhecimento sensível e
conhecimento inteligível. O conhecimento sensível nos faz representar as coisas uti apparent e não sicuti
sunt, ou seja, as coisas como estas se nos aparecem e se nos dão afetando-nos. O conhecimento
inteligível, por sua vez, nos faz representar os conceitos puros do intelecto, os quais não podem ser
colhidos pela percepção sensível e se referem às coisas sicuti sunt, ou seja, como são em si mesmas.
45
Todo ato traz consigo uma referência intencional para com sua objetualidade. O conteúdo intencional
de um ato inclui uma referência intencional a um objeto e uma matéria intencional com sua qualidade.
No juízo se dá uma referência intencional ao que é julgado. Por exemplo, eu enuncio uma proposição,
dizendo: “o relógio está sobre a mesa”. Neste caso, o objeto primordial deste ato de juízo é o estado de
coisas enunciado, ou seja, que o relógio está sobre a mesa. Além do objeto intencional, aquele ao qual
tende o ato, faz parte também do conteúdo intencional de um ato a sua matéria juntamente com a sua
qualidade. Dois atos diferentes podem receber uma mesma qualificação. Assim, as expressões “2 x 2 = 4”
e “Husserl é o fundador da fenomenologia” são igualmente qualificadas como enunciado ou asserção.
Ambas as proposições são caracterizadas pela qualidade do juízo. Mas aquilo que é asserido nos dois
juízos é diverso. O primeiro juízo tem um conteúdo e o segundo um outro. Com outras palavras, varia
aquilo sobre o que se julga no juízo, varia a sua matéria. A matéria intencional do ato é um componente
essencial do mesmo. Não existe juízo que não seja juízo sobre alguma coisa, sobre uma determinada
matéria. Mas também é impensável uma matéria que não seja matéria de um ato, seja qual for a sua
qualidade, isto é, matéria de um juízo, de um desejo, etc. A qualidade dos atos pode variar, enquanto a
sua matéria permanece idêntica. Dito de outro modo, o mesmo conteúdo pode ser, ora conteúdo de uma
representação, ora de um juízo, ora de uma interrogação, ora de uma dúvida, ora de um desejo, e assim
por diante. Por exemplo, eu posso imaginar que existem seres inteligentes fora do nosso planeta; alguém
pode afirmar: “existem seres inteligentes fora do nosso planeta”; outro ainda pode perguntar: “existem
seres inteligentes fora do nosso planeta?”; e outro pode duvidar e dizer: “não é certo que existem seres
inteligentes fora do nosso planeta”; e outro ainda pode desejar: “se ao menos existissem seres
inteligentes fora do nosso planeta!”. Aqui, nos diversos atos, a objetualidade intencional é a mesma: o
mesmo estado de coisas é representado na representação, é asserido no juízo, é desejado no desejo, é
posto em questão na pergunta. A mesma objetualidade é intencional, ora na modalidade de uma
representação, ora na de um juízo, ora na de uma pergunta, ora na de uma dúvida, ora na de um desejo.
Um ato pode, porém, se referir a um mesmo objeto intencional, numa mesma modalidade e ter matérias
diferentes. Com outras palavras, um mesmo referimento intencional ao seu objeto pode apresentar
matérias diversas. Isto se dá, por exemplo, ali onde confrontamos expressões que são equivalentes, mas
não tautológicas. Assim, as expressões “triângulo equilátero” e “triângulo equiângulo” se referem ao
mesmo objeto numa mesma qualidade, a do ato de nomear. Mas suas matérias são diversas. Igualmente,
se eu nomeio “Pelé” e “O cidadão Édson Arantes do Nascimento”. Aqui entra um outro tipo de variação
na modalidade do ato que não é dada pela variação do modo de referimento nem do objeto intencional,
mas sim da matéria do ato. Isto quer dizer que a matéria não somente determina que objetualidade é
intencionada mas também em que modo ela é intencionada a partir dela mesma. É que a matéria não se
limita a fazer o ato apreender a objetualidade dada a cada vez, mas determina também em que modo

37
enquanto em vigor (geltende) ela é válida (gültig) em referência às coisas que ela visa
(intenciona). O ser ideal da verdade é, em face da efetividade real das coisas, designada
como valer. As verdades mesmas valem. A lógica, em sentido não psicológico, é lógica
da validade (Geltung).

No século XIX, a verdade se torna valor. Contribuiu nesta determinação a obra


de Lotze, Microcosmos, um Ensaio de uma Antropologia (1856). Assim vem à tona a idéia
do dever-ser e do valor46. Trata-se de uma interpretação das idéias platônicas, as quais

este a apreende, quais atributos, relações ou formas categoriais o ato em si mesmo lhe destina. Podemos
exemplificar isso com um exemplo tirado do âmbito da linguagem religiosa ou teológica. Certamente, é
bem diferente, no ato de orar, dirigir-se a Deus como “o Senhor” e dirigir-se a ele como “Pai”. Com efeito,
os atributos que são implicados no nome “Senhor” são bem diferentes dos atributos implicados no nome
“Pai” e ambos os nomes irão nomear de modo diferente o modo de Deus se relacionar com suas criaturas.
Isto significa que matérias diversas podem apresentar um mesmo referimento ao objeto. Contudo, uma
mesma matéria não pode nunca apresentar um referimento diverso ao objeto. Portanto, a matéria é o
sentido apreensional do ato. Ela faz o ato ter este objeto e não outro, ou melhor, ela faz o ato ter este
objeto dado deste modo, apreendido desta maneira e não de outra.

46
Herman Lotze ( médico e professor de filosofia antes em Götingen e depois em Berlim) tem como obra
mais importante uma que se intitula Mikrokosmus (Microcosmo: idéias sobre a história natural e sobre a
história da humanidade, publicada em três volumes, nos anos de 1858-58, 1864)46. Nesta obra ele
empreende uma psicologia, ou seja, uma doutrina do homem como ser dotado de espírito e interioridade,
partindo de uma síntese entre história natural e história da cultura e abrindo-se a considerações de
caráter cosmológico e religioso. Ele tentou conciliar as aspirações profundas da alma humana com a visão
científica do mundo. Todo o mecanismo da natureza demonstra uma racionalidade organizativa do
mundo. Todo o processo de evolução natural tem como meta a vida espiritual do homem. Os fatos não
são tudo; estes remetem às leis universais e estas, por sua vez, ao reino dos valores. Deste modo ele
possibilitava uma síntese entre os impulsos filosóficos genuínos herdados do idealismo alemão, ou seja,
aqueles que reivindicam a primazia do espírito sobre a natureza, com as exigências de racionalidade e de
fidelidade à experiência típica das ciências positivas.Lotze ocupou uma posição de transição para a
“filosofia científica” da época, na medida em que esta não podia se contentar com o deserto criado pelo
materialismo grosseiro dos naturalistas e nem com a elaboração de uma historiografia filosófica, embora
esta, sob a influência de Hegel, oferecesse importantes contributos para a própria filosofia. Com
dificuldades, seu trabalho preparava uma nova irrupção do filosofar em meio à situação de desolação da
filosofia naqueles anos. “Jazia fundado na situação histórico-espiritual (geistesgeschichtlichen Situation)
que uma problemática filosófica originária, imponente, se liberasse de modo tão difícil e ganhasse sua
força de impacto espiritual somente passo a passo. O filósofo, que viveu esta libertação como necessária
e tentou colocá-la em obra foi Hermann Lotze”. Lotze tentou uma superação do naturalismo. “Para ele
tratava-se de indicar como um erro de princípio a recusa de toda tomada de consciência através de uma
meditação sobre os princípios, quer dizer, a absoluta coisificação do espírito (die absolute Versachlichung
des Geistes) à qual o naturalismo conduzia, ou seja, a redução de todo ser a acontecimento dotado do
modo de ser de coisa, de matéria, de corpo, isto é, redução a matéria e força; e precisamente sem com
isso nem cair de novo na antiga, pré-crítica metafísica, nem na metafísica idealista que já era passada”.
Positivamente falando, “Lotze descobriu uma esfera não empírica, não dotada do modo de ser da
natureza, não confinada no horizonte da experiência, ou seja, um mundo não sensível, evitando no
tocante a esta não sensibilidade (Nichtsinnlichkeit) a sobresensibilidade (Übersinnlichkeit) naturalista da
antiga metafísica que no fundo era igualmente ruim e extravagante”. De acordo com a dificuldade
apresentada pela situação espiritual em que vivia, Lotze conseguiu realizar a sua tarefa só de um modo
incoativo, isto é, de tal modo que as suas intuições servissem de ponto de partida, de arrancada (Ansatz)
para o pensamento. Ele não ficou isento de recaídas nem em uma metafísica especulativa de cunho

38
propriamente não são, mas valem. Os valores pertencem a uma outra dimensão, àquela
do dever-ser e do valer, que ultrapassa a dimensão do ser, isto é, das coisas e dos fatos
da natureza (superação do naturalismo). Lotze assumira de Fichte a doutrina do primado
da razão prática, concebendo-a como razão “que sente os valores” (wertempfindende
Vernunft).

A crítica de Husserl ao psicologismo, portanto, positivamente, é orientada pelo


conteúdo ideal das proposições, pelo sentido, que vale. A ideia é o universal que é
ressaltado através da abstração, melhor, da ideação ou abstração ideante, junto ao caso
exemplar, enquanto o seu “quê”. Por exemplo, percebemos esta ou aquela mesa – daí
abstraímos (prescindindo do casual e do individual, extraímos) “mesa em geral”. A
ideação é um tipo de ato categorial. Os atos de intuição categorial são fundados nos atos
de intuição sensível. Os atos fundados abrem de modo novo os objetos simplesmente
já dados. Há dois tipos de atos de intuição categorial: atos de síntese e atos de ideação.
Os atos de síntese produzem o “estado de coisas” ou a “conjuntura” (Sachverhalt), que
é de natureza ideal, bem como as categorias lógicas. Os atos de ideação produzem a
intuição do universal. Com outras palavras, atos de síntese tornam objetivos os estados
de coisa que são enunciados na enunciação. Os atos de ideação doam um objeto
universal, a saber, a espécie. Os atos de intuição categorial, portanto, abrem uma nova
dimensão de objetualidade. Eles atestam que há um apreender simples não só do que é
sensível, mas também do que é inteligível, isto é, do que é categorial e transcategorial,
o transcendental-ontológico.

Ao expressar o enunciado “a cadeira é amarela e almofadada” nós ressaltamos


um estado de coisas, uma conjuntura (Sachverhalt): o ser amarelo e almofadado da
cadeira. A conjuntura não é uma parte real da coisa. Ela é de “natureza ideal” (p. 86).

teológico, nem em acentuação exclusiva da realidade natural. Além disso, ele não conseguiu trazer à tona
uma nova impostação da metódica filosófica, permanecendo oscilante quanto a uma orientação
sistemática em filosofia. “Ele não obteve nem a radical intuição da íntima impossibilidade de um sistema
de filosofia científica (die innere Unmöglichkeit eines Systems der wissenschaftlichen Philosophie), nem
tinha a falta de consideração, em face aos mundos da vivência (Erlebniswelten), de aprisioná-los e de
violá-los em um sistema de mundividência (Weltanschauungssystem)”. Para a genuína filosofia ele foi
precisamente uma “figura híbrida” (“Zwittergebilde”), mas compreensível em sua fecundidade e nos seus
erros, tão logo se esclareça suas motivações histórico-espirituais considerando retrospectivamente e suas
tendências e efeitos considerando prospectivamente.

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Este ressaltar tem o caráter de uma síntese em sentido intencional. Nesta síntese, o “p”
(ser-amarelo) e o “q” (ser-almofadado) se mostram como pertencentes a “S” (o ente
cadeira). O ressaltar do ato categorial produz, pois, uma nova objetualidade que torna
mais explícito, que descobre, o que já era dado na percepção sensível. Isso nos leva a
ampliar também o conceito de objetividade.

No caminho da compreensão daquilo que é


presente na intuição categorial, se pode aprender a
ver que a objetividade de um ente não se exaure
justamente naquilo que, enquanto realidade, é
determinado neste sentido tão estreitamente
definido; se pode ver que a objetividade ou
objetualidade no sentido mais amplo é muito mais
rica do que a realidade de uma coisa; ainda mais, se
pode ver que a realidade de uma coisa é
compreensível na sua estrutura só a partir da plena
objetividade do ente simplesmente experimentado
(Heidegger).
Este aprender a ver adquire agora uma nova amplidão se considerarmos os atos
de ideação. Trata-se da intuição do universal. Enquanto os atos de síntese tornam
objetivas as conjunturas ou estados de coisa, os atos de ideação doam, de modo simples,
um objeto não individual, ou seja, doam um objeto universal, com outras palavras, doam
a ideia, o eidos, a espécie. Ao ver uma ou muitas esferas eu também intuo a espécie
“esfera”. Ora, a espécie chamada “esfera” não é nenhuma esfera individual. Mas, para
que eu possa perceber uma esfera como esfera é preciso que eu já intua também, previa
e concomitantemente, embora de modo não temático, o significado da espécie “esfera”.
A espécie, porém, não é nada de real, nem na coisa nem na consciência. A ideia ou
espécie é, pois, de outra objetualidade. Entretanto, o ato categorial de ideação não pode
se dar sem estar fundado no ato de intuição sensível. Conclui-se que

A intuição concreta, que oferece de modo


explícito o objeto não é uma percepção isolada, uma
percepção sensível monogradual, mas é uma
percepção graduada, ou seja, determinada em
sentido categorial. Só esta plena percepção
graduada, categorialmente determinada, é o
preenchimento possível do enunciado que lhe
oferece a própria expressão (Heidegger).

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O que se pode concluir de tudo isso é que: a descoberta da “intuição categorial”
atesta que há um apreender simples não só do que se dá na percepção sensorial, mas
também há, junto com essa, um apreender simples do “categorial”. Com outras
palavras, a descoberta da “intuição categorial” atesta que, na percepção cotidiana, ou
seja, na percepção concreta da coisa, em toda experiência, se dá também uma
percepção do estado de coisas e do ideal. Isso significa, ainda, que há atos em que
consistências ideais se mostram a si mesmas, sem que sejam criações destes atos,
funções de pensamento, produtos do sujeito. Com outras palavras, nós já sempre vemos
o visível no invisível. Sem ver o invisível, jamais poderíamos ver nem mesmo o visível.

2.3.5. A ANCORAGEM NA TRADIÇÃO E NO


PENSAMENTO GREGO. QUESTÕES EM
ABERTO.

O que há de positivo na crítica de Husserl ao psicologismo, a saber, que ser se dá


tanto como realidade quanto como idealidade, remete à tradição e ao pensamento
grego. O que, no século XIX, se chamou de valor, é uma reinterpretação do ser ideal dos
gregos. No valor de Lotze está a ideia de Platão. Para Platão, o (lógos) tem a
função de (deloun), isto é, de tornar manifesto, fazer patente, algo; deixar ver
algo. Isso que é visto (isto é, captado) é a ideia. Lotze interpretou que o valer é a forma
de efetividade da ideia. Quando nós falamos de “verdade” há uma ambiguidade.
Verdade pode significar o ser-verdadeiro de uma proposição. É a efetividade ideal ou
validade de uma proposição verdadeira. Verdade pode significar também aquilo pelo
que o ser-verdadeiro se dá (essência da verdade). Uma coisa são as verdades (o ser-
verdadeiro de proposições verdadeiras), outra coisa é a verdade (aquilo pelo que o ser-
verdadeiro se dá enquanto tal e em geral).

A lógica da validade não deixa claro:

1. O que é verdade (questão sobre o ser ou a essência da verdade);

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2. Que proposições são a concreção originária e mais própria de verdade, de tal
modo que nestas se pudesse primordialmente determinar o ser da verdade.
3. Porque as proposições poder ter um ser a partir do ser tomado no sentido do
ser real, tomado no sentido da efetividade do que é simplesmente dado.
4. Que justamente este sentido de ser é o único e o primário.
5. Porque ser tem que ter este sentido.
6. Porque, no fim das contas, a pergunta pela verdade (pelo ser ou pela essência
da verdade) está acoplada com a pergunta pelo ser (pela verdade ou sentido
do ser).
Antes de tudo, aqui, deve-se colocar a questão pela essência da verdade: é a
verdade como tal um valor? A verdade reside originariamente no juízo? Todo juízo
verdadeiro é um tomar posição diante de um valor? Outro tipo de questão é aquele que
se refere ao problema da validade. Os valores não são meramente, eles “valem”. O que
quer dizer “valer”? O que vem primeiro, o que tem o primado: é a validade de um valor
que estabelece um dever ou é o dever que obriga a reconhecer a validade de um valor?
Um terceiro tipo de pergunta é aquele que se refere à relação entre ser (Sein) e dever
(Sollen). Como se pode superar o abismo entre estas duas regiões ontológicas? É o dever
alguma coisa de transcendente em relação à consciência ou é, ao invés, imanente?
Todas estas perguntas mostram que esta posição não é totalmente clara e evidente, isto
é, que ela traz consigo muitas pressuposições obscuras.

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