Escuridão. Absoluta e inerte Escuridão emanava de todos os lados, a
aproximar-se e a envolvê-lo. Como se de algo corpóreo se tratasse, esta tinha o peso de uma âncora inimaginavelmente maciça sobre os seus ombros. Tinha odor até, húmido e nauseante, fétido quase. Mas porquê? Não se lembrava de nada mais. Não parecia existir nada mais. Porque insistia, então, o seu coração em saltar-lhe pela boca? “Socorro!” gritou, mudo. “Ajudem-me! Alguém!” insistiu, mas as palavras não passaram de pensamentos. Deixou-se tombar. Levou as mãos à cabeça, aos olhos. Onde raio estou?! O que é isto? “Para sempre, meu amor.” A sua respiração ofegante cessou imediatamente. Sentiu-se suspenso no nada. Aquela voz… Sara? “Onde estás? És… tu?” A enorme sensação de quase alívio rapidamente se esmoreceu com o total silêncio das suas palavras. Deixou cair a cabeça. As lágrimas acumularam-se sob as suas pálpebras por meros instantes até que transbordaram. Mas tinha de existir algo, qualquer coisa à sua volta. Esfregou a cara e esforçou-se por focar a visão. Do seio das trevas surgiu um suave movimento que lentamente se traduziu no abrir de um par de olhos. Os olhos azuis- celestes da sua mulher, infundidos de vida, a fitá-lo de volta. Sentiu um aperto no coração. Uma gargalhada infantil ecoou, quase que em antecipação, ao som da felicidade que imediatamente o invadiu. Por momentos, sentiu esperança. Era uma melodia de alegria, nascida da semente do seu amor com Sara. Vicente… Os olhos permaneciam fixados no fundo do poço que era a sua alma, inflexíveis e inabaláveis. Mas aquela expressão… era irónica, sarcástica até. Parecia estar a perfurá-lo, a abrir-lhe um buraco. A alegria que sentira escureceu repentinamente, como uma recém-aberta flor que murcha e apodrece num só instante. Precisava afastar-se daquele olhar, empurrá-lo para longe. “AaaaaAAHHH!” Tentou gritar. Deu por si a cerrar os punhos em volta um do outro, a estrangular a imagem de algo que não estava lá até cravar as unhas nas próprias palmas. Com o crescer da sua pulsação e o ranger dos seus dentes, viu os olhos de Sara ganharem um tom avermelhado e as pupilas dilatarem. Sentiu a força dos seus braços, o peso do seu corpo. Viu-se, finalmente, em controlo. “Papá!” Aquele grito apavorado abalou-o. Todo o seu corpo estremeceu. Flashes violentos atacaram a sua mente, pintando os seus sentidos num intenso carmesim e reduzindo a sua percepção a uma sequência rasgada de contraditórias imagens mudas: aqueles olhos outrora resplandecentes agora vazios, opacos e escurecidos; aqueles lábios que outrora o beijaram e acariciaram, agora entreabertos e ensanguentados; aqueles cabelos de um loiro-quase-prata outrora emaranhados nos seus dedos em inebriante paixão, agora, num momento de pura raiva, colhidos pela raiz, encharcados no fluído da vida e da morte, colados ao pulsar desvanecente das jugulares presas sob a força bruta das suas mãos. Como haveria sido capaz? Sentiu uma presença atrás de si. Voltou-se repentinamente, assustado. Escuridão. Como havia sido capaz? Ouviu o som que Sara havia feito ao sufocar e virou-se uma vez mais, aterrorizado. Escuridão e vazio. Como fui capaz?! Ouviu o repugnante ruído de algo a rasgar e a escorrer; algo cárneo, algo errado. Olhou por cima do ombro e um arrepio percorreu-o. Voltou-se para defrontar aquele vulto. Ficou paralisado enquanto lentamente se formou a imagem da sua sala de estar: o sofá que tão bem conhecia, a estante com as molduras derrubadas e o álbum de fotografias caído (“Sara e João” lia-se na lombada aveludada), a mesinha de vidro estilhaçada e, na carpete felpuda, a figura da sua mulher a contorcer-se, a contrair-se e a estremecer debruçada sobre um corpo. Sangue por todo o lado. No canto, encolhido em posição fetal, ínfimo face àquele cenário mas enorme e pulsante aos seus olhos, estava Vicente. Correu para o filho e desabou sobre os joelhos perante aquela pequena figura aterrorizada. Esticou a mão, relutante, para tocá-lo. Mas nada tocou senão ar. Viu o inocente olhar esbugalhado e seguiu a sua direcção. Suores frios escorriam-lhe pela testa e ao longo das costas. A sua visão congelou na macabra imagem do que havia em tempos sido a sua mulher, agora desumanizada a trincar e puxar e arrancar parte do pescoço de um corpo no chão. O cadáver, vestido com as suas roupas agora ensopadas em sangue, fitava, com olhos que eram os seus, o tecto branco da sua sala numa expressão vazia – a mesma expressão presente no olhar morto, que nada via, do ser que se alimentava da sua carne. Tudo à sua volta estremeceu freneticamente até que a sua consciência se estilhaçou e apenas a escuridão restou. Uma vez mais, absoluta e inerte escuridão emanava de todos os lados, a aproximar-se e a envolvê-lo. Como se de algo corpóreo se tratasse, esta tinha o peso de uma âncora inimaginavelmente maciça sobre os seus ombros. Tinha odor até, húmido e nauseante, fétido quase. Mas porquê? Perguntava-se, a sua memória desvanecente já nada mais que um borrão…