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o Emprego de Colheres Domésticas para

Medir Xaropes e Suspensões


M ed ica mentosas
SHElLAMONTEIROUSBON
ANDRÉA GRABE-GUIMARÃES2
lDocente da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Av.Olegário Macie12360. Belo Horizonte, MG.CEP:30180-112. e-mail:
sheila@)farmacia.ufmg.br
2Docente da Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade Federal de
Minas Gerais. Rua Costa Sena 171. Ouro Preto, MG.
agguimar@)terra.ufmg.br

INTRODUÇÃO dade de princípios ativos, como nos exemplos: "uma


colher de chá contém 250 mg", ou "4 mg por colher de
o sucesso de terapêuticas medicamentosas sobremesa (10 ml)", ou ainda "uma colher de sopa (15
depende, entre muitos fatores, da severa obediência a ml) contém ..."
um conjunto de parâmetros determinantes da correta A própria Farmacopéia Brasileira estimula
interação do medicamento com o organismo que o rece- esta prática, já que em suas edições 1a (1926), 2a (1959),
be. Uma vez definido o princípio ativo capaz de fornecer 3a(1977) e 4a(1988), sustenta esta correspondência en-
resultado terapêutico, outros parâmetros passam então tre volume e capacidade de colheres:
Colher de café =2 mL
a ser estabelecidos: a forma farmacêutica, a via de admi-
nistração, a dosagem, os intervalos de uso, os horários
Colher de chá =5 mL
Colher de sobremesa = 10 mL
e a duração do tratamento.
Considerada "o coração da terapêutica medica- Colher de sopa =15 mL
mentosa" (SHIRKEY, 1965),dose é a quantidade de fár- A Farmacopéia Brasileira é uma publicação téc-
maco que deve ser administrada a um ser vivo para pro- nica especializada, que trata de insumos farmacêuticos e
duzir um efeito determinado (LITTER, 1986). Estudos medicamentos, dirigida a estudantes e profissionais da
químicos,farmacodinâmicose farmacocinéticosdefinem área da saúde. Ao)nstitucionalizar essa correspondên-
a dose de cada medicamento. cia, endossa o erro sem esclarecer em que critérios foram
Já a correta administração, depende de certos baseadas tais determinações de medida (Pharmacopo-
cuidados: a obediência aos horários, a relação com as eia dos Estados Unidos do Brasil, 1929; Farmacopéia
refeições, a duração do tratamento e a correta medida da dos Estados Unidos do Brasil, 1959; Farmacopéia Bra-
sileira, 1977;Farmacopéia Brasileira, 1988).
quantidade- este últimofator é especialmenteimpor-
tante, quando se trata do emprego de medicamentos Esta"pesquisa procura contribuir para o escla-
líquidos. .-'-r recimento de profissionais de saúde e da população em
Xaropes e suspensões, por exemplo, contêm a geral para a importância de medir corretamente os medi-
dose do princípio ativo diluída em veículo. Apenas a camentos, sob forma líquida, sugerindo o emprego de
correta medição do volume pode garantir a administra- instrumentos mais adequados, que possam correspon-
ção da quantidade adequ~da do princípio ativo. Para der a essa importância. Procura contribuir, também, para
que essa medição possa proceder sem erros, é necessá- a atualização de dados, quando da revisão para novas
rio o emprego de instrumentos de medida precisos, com edições da Farmacopéia Brasileira.
indicação de volume de fácil visualização. .

No entanto, o que se observa freqüentemente é MATERIAL E MÉTODOS


a utilização de colheres domésticas para administrar
medicamentos - pela evidente facilidade de acesso a Para a amostragem, foram empregados 20 jogos
esses utensílios e a praticidade do uso. Quando se con- de colheres, sendo cada um composto por quatro tipos:
sidera a grande diversidade de formatos e modelos de café, chá, sobremesa e sopa. Foram usados como amos-
colheres - algumas são mais abauladas, têm formato tras de medicamentos líquidos um xarope e uma suspen-
oval ou arredondado, ou até trazem incrustadas pedras -8.ão,de amplo emprego em medicina pediátrica, caracte-
semi-preciosas no cabo - fica fácil perceber que o em- rizados conforme densidade e viscosidade:
prego desses utensílios para medir doses de medica-
mentos dá origem a erros.
. Xarope: densidade 1,1982 g/cm3e viscosi-
dade inferior a 30 cps
Algumas bulas contribuem para a continuida-
de desta prática na rotina terapêutica, já que citam uma
. Suspensão: densidade 1,2290 g/cm3e vis-
cosidade inferior a 30 cps
correspondência entre volume, tipo de colher e quanti- As medições que embasam este trabalho perfa-

,~~, v.12,n° 9/10,2000


zem um total de 800, assim discriminadas: 100medições Tipode colher i.,!!' ,.1'1"'<:
para tipo de colher (400) com o xarope e 100 para cada :? .. N=100
Volume(Farmacopéia
i ic
Brasileira) 2,0 5,0
Sobremesa I Sopa;
10,0 15,0
tipo de colher com a suspensão (400). As colheres eram X :ts' 1,3:t 0,3 3,0:t 0,5 7,8:t 1,0 12,0:t 1,4
cheias até a borda e, a seguir, o volume era vertido para CV 20,0 16,7 12,8 11,7
provetas, tendo-se o cuidado de retirar todo o conteúdo Amplitude 2,2 e 0,8 4,2 e 2,4 10,8e 6,4 14,2e 9,0
da colher com o dedo indicador, na tentativa de reprodu- * média obtida de 100 determinações de volume para cada
zir a administração oral de xaropes e suspensões. Como tipo de colher
instrumento de verificação do volume contido em cada
colher foram empregadas provetas:
de 10 mL com graduação de 0,1 mL para as
DISCUSSÃO
de café
de 25 mL com graduação de 0,2 mL para as Os menores coeficientes de variação foram ob-
de chá tidos para as colheres de sobremesa e de sopa. Aparen-
de 25 mL com graduação de 0,5 mL para as temente, as que estão menos sujeitas a erros de medi-
de sobremesa ção, por serem de maior tamanho, não exigindo, portan-
de 50 mL com graduação de 1,0 mL para as to, muita coordenação motora e equilíbrio das mãos
para o enchimento dessas colheres. Vale lembrar que
de sopa
quanto menor o CV maior a confiabilidade na média e,
A opção pelo emprego de provetas como ins-
consequentemente,menor variação de medida (SNEDE-
trumento de verificação do volume de colheres em lugar COR,1980).
de pipetas graduadas (VOGEL, 1987)foi devida às difi- A amplitude encontrada demonstra a falta de
culdades encontradas, particularmente relativas à pre- uniformidade da capacidade volumétrica das colheres.
sença de bolhas de ar quando da pipetagem do líquido Há aquelas de café que comportam volumes maiores
contido na colher. Além disso, foram feitas compara- que colheres de chá e colheres de sobremesa com maior
ções das capacidades volumétricas de pipetas e as mes- capacidade volumétrica que de sopa (tabela 1). No en-
mas provetas utilizadas no experimento, não se encon- tanto, era de se esperar que colheres de chá fossem
trando diferenças que pudessem influir no resultado. sempre maiores que as de café, e de sopa maiores que as
de sobremesa (Pharmacopoeia dos Estados Unidos do
RESULTADO Brasil, 1929;Farmacopéia dos Estados Unidos do Bra-
sil, 1959;Farmacopéia Brasileira, 1977;Farmacopéia
Os resultados obtidos da medição de volumes Brasileira, 1988).
de colheres são apresentados nas tabelas 1 e 2. Os volu- As variações de capacidade volumétrica podem
mes de xaropes e suspensão medidos experimentalmen- ser explicadas pelas diferenças de tamanho dentro do
te são significativamente menores (P<0,05) que aqueles mesmo grupo e entre os grupos de colheres utilizadas.
da Farmacopéia Brasileira e das bulas, nas seguintes Fato que deve se reproduzir para a maioria das colheres
proporções médias: para as colheres de café 25%, para fabricadas, já que não se pode exigir das indústrias ma-
as de chá 42%, para as de sobremesa 24% e para as de nufatureiras a fabricação desses utensílios com a preci-
sopa 20,3% em média. são requerida para os instrumentos de medição.
Observa-se também que não há diferença entre
TABELA 1: Média e desvio padrão dos volu- os volumes medidos com o xarope e a suspensão empre-
mes de xarope em colheres, comparando-se com os va- gados, neste ensaio, embora talvez fosse aceitável a
lores da Farmacopéia Brasileira, e onde se vê ainda o suposição de que viscosidade e/ou densidade maiores
coeficiente de variação (CV) e a amplitude (volumes acarretassem diferenças significativas na medição do
máximoemínimo). volume.
Em termos proporcionais, a maior diferença de
Tipodecolher' . i'. i "C<'. '..{.'.'.'.»..' ...'ii volume foi detectada nas colheres de chá (42% menores
N=100 '. . CaféChápSobre,mesa;'Sopa
. .._-_.._--
em média), justamente as mais "recomendadas" pela in-
Volume
(Farmacopéia
Brasileira) 2,0 5,0 10,0 15,0 dústria farmacêutica (bulas) como instrumento de medi-
X :ts' 1,5 :t 0,4 2,3:t 0,5 7,4:t 0,8 11,9:t 1,4
CV
da de medicamentos líquidos para uso oral.
26,1 17,9 10,8 11,8
Amplitude 2,2 e 0,8 4,2 e 2,0 9,7 e 6,6 15,0 e 9,2 Redução no volume administrado implica em
* média obtida de 100 determinações de volume para cada redução da dose do medicamento administrado, já que
tipo de colher os medicamentos líquidos contêm o princípio ativo dilu-
ído em veículos. E redução na dose administrada resulta
TABELA 2: Média e desvio padrão dos volu- em diminuição do efeito terapêutico, já que a dose do
mes de suspensão em colheres, comparando-se com os fármaco determina a concentração plasmática e esta, a
valores da Farmacopéia Brasileira, e onde se vê ainda o concentração no sítio de ação, que por sua vez determi-
coeficiente de variação (CV) e a amplitude (volumes na o aparecimento do efeito com a intensidade necessá-
máximoe mínimo). ria(FlNN,1982).

,~~, v.J2, no9jJO, 2000


Para a maioria dos fármacos, é definido um in- geral sobre a importância de usar instrumentos adequa-
tervalo de doses eficazes que corresponde a um interva- dos para a medição de volumes de medicamentos.
lo de concentrações plasmáticas no qual há um alto ní- Além disso, exigir da indústria farmacêuticaque
vel de eficácia e baixo risco de toxicidade (MELMON, cada unidade desses medicamentos se faça acompanhar
1972). Doses abaixo desse intervalo podem acarretar a de medidas-padrão (copo ou colher). Exigir,ainda, a cor-
permanência do quadro patológico, ao passo que doses reção das bulas no sentido de a) eliminar as orientações
que se situem acima desses intervalo podem trazer ao para o uso de colheres domésticas como instrumento de
paciente maiores riscos de intoxicação. medida e b) incluir sempre nas bulas informações sobre
A maior amplitude observada para a colher de a quantidade de princípio ativo contida num determina-
sobremesa com suspensão (tabela 20 demonstra a pos- do volume.
sibilidade de administração de soe maior que a terapêu- Finalmente, toma-se necessário rever a termi-
tica. No entanto, o que mais freqüentemente ocorre é a nologia da Farmacopéia Brasileira, eliminando a cor-
medição de volumes menores que os registrados na Far- respondência entre volumes de medicamentos e colhe-
macopéia. res domésticas.
Colheres de formatos e modelos diferentes,
mesmo que sejam todas de chá, por exemplo, fornecem A G RAD ECIMENTOS
volumes tão diferentes quando 2,0 e 4,2 mL, refletindo
nas respectivas doses. Se a bula afirma que 5 mL contém As autoras agradecem à doutora Vânia Vieira
500 mg de um fármaco, o emprego dessas colheres para Leite Bernardes, pediatra, pelo alerta sobre o problema;
medir a dose fornecerá de 100 a 210 mg - menos da e às professoras Elzíria de Aguiar Nunam e Lígia Morei-
metade da dose, portanto. ra de Campos, pela revisão do texto e determinações de
Esse erro na medição de volumes de medica- viscosidade e densidade.
mentos líquidos toma-se particularmente grave, quan-
do se trata de instituir terapêutica antiinfecciosa ou an- REFERÊNCIAS BffiLIOGRÁFICAS
tiepiléptica, nas quais é necessária a manutenção de ní-
veis plasmáticos constantes (LITTER, 1986;TAVARES,
1990).
. FARMACOPÉIA Brasileira. 3aed., São Paulo: An-
drei,1977.
A dificuldade de identificação do tipo de co- FARMACOPÉIA Brasileira. 4aed.,São Paulo: Athe-
lher, que ocorre muitas vezes em função da ausência de neu,1988.
um deles (impedindoa identificaçãocomparativa)é ponto . FARMACOPÉIA dos Estados Unidos do Brasil. 2a
agravante do problema. E que ainda encontra respaldo
nas orientações da Farmacopéia: "as doses menores que . ed., São Paulo: Siqueira, 1959.
FINN, AL; TAYLOR,WJ.; KANE, w'J. Princípios
5 mL costumam ser administradas em frações de colher Generales: Aplicaciones Practicas de Ias Concen-
de chá..."(FarmacopéiaBrasileira, 1988). tracionesPlasmáticasde Fármacos. New York:Goss
A continuidade deste trabalho se dará no sen-
tido de verificar quimicamente o impacto das variações
. TowsendFrank,1982.
LITTER, M. Farmacologia Experimental y Clínica.
de volume detectadas sobre a quantidade de princípio 7aed., Buenos Aires: El Ateneo, 1986.
ativo. MELMON,K.L.;MORRELLI,H.E ClinicalPharma-

CONCLUSÕES
. cology. 2aed.,New York:Macmillan,1972.
PHARMACOPOEIA dos Estados Unidos do Brasil.

. São Paulo: Nacional, 1926


SHlRKEY,H.c. Drug dosage for infantsand children.
o emprego de colheres de uso doméstico para Joumal ofthe American Heart Association, v.193,
medir doses de medicamentos líquidos dá origem a erro,
embora não se tenha a exata dimensão deste erro. Em . n.6,p.l05-1O8,1965.
SNEDECOR, G. W; COCHRAN, w'G. Statistical
sua maioria as colheres estudadas comportam volumes Methods. 6aed., Iowa: Annes Iowa State University,
menores que os necessários para fornecer a dose tera-
pêutica. Algumas, no entanto, comportam volumes mai- . 1980.
TAVARES,W. Manual de Antibióticos e Quimiote-
ores. É ainda possível a ocorrência de recomendações rápicos Antiinfecciosos. Rio de Janeiro: Athe-
do tipo "administrar meia colher das de chá". neu,1990.
É preciso, portanto, prestar amplos esclareci- VOGELAnálise lnorgânica Quantitativa,4aed., Rio
mentos aos profissionais de saúde e à população em de Janeiro: GuanabaraDois, 1987.

~~, v.12,no9l10, 2000

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