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Impressões do vazio

Abstract. In this article, I propose some questions about printmaking and contemporary art, with
reference to Manoela Afonso’s work on Brasilia. The series of prints named Brasilia Gravada was
subject of Master's thesis in Visual Culture, in which the artist discusses his process of creation,
the contemporary poetics, and the insertion of artistic research in the university.
Keywords: printmaking, Brasília, contemporary poetics, university.

Resumo. Neste artigo são levantadas algumas questões sobre gravura e arte contemporâneas,
tendo como referência o trabalho da gravadora Manoela Afonso sobre Brasília. A série intitulada
Brasília Gravada foi tema de dissertação de Mestrado em Cultura Visual, em que a artista discute
seu processo de criação, alguns aspectos das poéticas contemporâneas e a inserção da pesquisa
artística na universidade.
Palavras chave: gravura, Brasília, poéticas contemporâneas, universidade.

Impressões iniciais
A arte, no mais das vezes, não é percebida como campo no qual fermentem processos
de construção de conhecimento. Prevalece a noção de que as emoções sejam sua principal
matéria. Mas, século XXI adentro, as inquietações que movem artistas abrem espaços para
trânsitos e interlocuções que ultrapassam antigas fronteiras. Os fazeres da arte se imiscuem
com os quotidianos, se entrelaçam com outras questões, estabelecem redes, perguntam, ou
simplesmente buscam tecer caminhos, percursos singelos de expressão, fundados nas
relações entre as pessoas e seus contextos de viver.
O trabalho Brasília Gravada, desenvolvido pela artista Manoela Afonso, sugere
algumas reflexões a respeito dessas questões, além das poéticas que se entrecruzam em sua
realização. Neste artigo, o propósito é recuperar um pouco desse percurso, retomar
algumas perguntas e trazer à pauta um trabalho em gravura contemporânea que se deixa
marcar pelos vazios de uma cidade modernista, dialoga com um poeta marginal, um artista
plástico, e encontra, na academia, o espaço para refletir sobre si mesmo.

Uma cidade de vazios


Manoela Afonso desembarcou em Brasília no ano de 2003. Pouco mais de duas
décadas após eu ter chegado à capital federal. Na memória dos primeiros impactos, a
impressão mais forte foi causada pelos vazios da cidade, pela sensação de ausência.
Lembro-me, também, da pressão exercida pela cúpula celeste sobre nossas cabeças, que
dava a sensação de liberdade e prisão, ao mesmo tempo. Falta de ar.
Em seus relatos, viajantes recém chegados, aventureiros de toda sorte, referem-se aos
edifícios iguais, dispostos transversal e longitudinalmente, entremeados por monumentos,
estranhas naves pousadas no vazio, entre o verde, o ocre e o azul.
Amiúde algumas trupes irreverentes ocupavam, de surpresa, os vazios entre-prédios,
entre-quadras, entre-monumentos, em concertos ao ar livre, apresentações experimentais
de teatro, recitais e muitos exemplares de livretos com poesia marginal, feitos de modo
artesanal pela chamada geração mimeógrafo. A juventude desafiava, também, a ditadura
militar. Do campus universitário à Praça dos Três Poderes, palcos diversos estimulavam a
expressão do desejo de liberdade reverberante na esplanada do Planalto Central,
encorajando ocupações, passeatas, performances relâmpagos.
Figura 1: Foto da SQS 108, Brasília, década de 60. Autor: sem identificação. Fonte: Arquivo Público do
Distrito Federal. Arquivo digital. Digitalização: Augusto Areal. Disponível em:
http://www.geocities.com/~augusto_areal/minis_pc.htm

Figura 2: Construção. Exposição Brasília Gravada, Galeria da FAV/UFG, 2008. Manoela Afonso. Carimbo
de borracha sobre papel Torchon, Van Gelder Zonen 190g/m2. 55,5 x 76 cm. Fonte: acervo da artista.

A gravadora, a academia, e suas impressões


Com suas gravuras, Manoela Afonso fez poesia-imagem dos espaços-vazios-e-
repetições de Brasília. Artista de alma inquieta, não há resposta satisfatória às questões que
lhe agitam os pensamentos e a sensibilidade. A vitalidade pulsa entre suas coleções de
coisas-perguntas-desejos-desenhos-sonhos-memórias-imagens.
No início de 2006, Manoela ingressou no Mestrado em Cultura Visual, da
Universidade Federal de Goiás, do qual eu era coordenadora. Ela trazia, então, para o
ambiente da universidade, em seu projeto acadêmico-artístico, as dúvidas, perguntas e
desacomodações que fazem do seu estar no mundo um exercício contínuo de
questionamento, crítica e criação. De experimentação artística.
Atuando na área de poéticas, a artista-pesquisadora trouxe à pauta o trabalho iniciado
nos anos anteriores. Nele, fazendo uso da técnica do carimbo, na gravura, brincou com as
formas, os vazios-entre-formas, os ritmos e repetições de Brasília. O projeto foi marcado,
sobretudo, pelas interlocuções estabelecidas com o trabalho de dois artistas referenciais no
cenário cultural brasiliense: Nicolas Behr, integrante da trupe de poetas que, desde os anos
70, vem traduzindo em versos suas experiências como cidadãos da capital plantada no
coração do cerrado, e Athos Bulcão, artista consagrado que agregou de modo indelével sua
digital às feições da cidade, nos azulejos, painéis, murais, fachadas, transmutando os
espaços arquitetônicos.

Figura 2: vazios urbanos. Exposição Brasília Gravada, Galeria da FAV/UFG, 2008. Manoela Afonso.
Carimbo de borracha sobre papel Fabriano 300g/m2. 50 x 70 cm. Fonte: acervo da artista.

O artista na universidade
A área de artes tem avançado no sistema de pós-graduação brasileiro. São muitas as
conquistas para qualificar a produção de artistas pesquisadores e pesquisadores sobre arte,
bem como divulgar os resultados das pesquisas, em publicações, exposições, eventos
científicos e artísticos, em iniciativas chanceladas pelas agências oficiais financiadoras.
Contudo, o que, no discurso institucional, aparenta relativa tranquilidade, de fato oculta
impasses e paradoxos ainda por ser mais bem explicitados (Martins & Rocha, 2007).
Uma questão está nas linhas de pesquisa voltadas para a pesquisa artística
propriamente dita. Se as artes demarcaram território dentro das universidades, também é
fato que as instituições universitárias não constituem solo exclusivo para a formação e
atuação de artistas. Ao contrário, no decurso da história ocidental, é recorrente a
constatação de que as artes têm experimentado transformações mais significativas em
movimentos deflagrados à revelia das instituições acadêmicas formais e normativas.
Nesses termos, é importante que se discuta o papel do artista nos cursos de pós-graduação,
e a orientação, ou orientações das pesquisas em poéticas visuais, com ênfase nos processos
de criação artística. Frequentemente, artistas e pesquisadores dedicam-se a descrever seus
fazeres, sem necessariamente avançar nas reflexões propiciadas pela pesquisa artística, em
particular no tocante aos suportes e aportes poético-conceituais. Incluídas, aí, as fontes de
conflito, dúvida, tensões, além das escolhas formais, estéticas e expressivas.
O que motiva os artistas nos programas de pós-graduação, sobretudo em artes
visuais? Muitos deles encontram, na universidade, a chancela para o seu trabalho artístico
– para docentes, ou discentes. Ao abrigo da academia, sentem-se mais fortalecidos para
enfrentar os desafios do sistema e do mercado das artes. A mais, a docência propicia uma
arena de atuação que, aos mais acomodados, pode parecer mais amena. O risco é que o
artista-professor desenvolva suas atividades sem maiores abalos às suas convicções.
Nem uma nem outra possibilidade seduziu Manoela Afonso. Ao contrário, suas
dúvidas e angústias desestabilizaram convicções mais ou menos arraigadas nos modos de
inserção da arte na universidade. Contribuiu, assim, para reiterar a necessidade de se
aprofundarem as reflexões a respeito.

Uma cidade modernista, uma gravadora contemporânea, carimbos de borracha


Manoela desembarcou, na universidade, em meio às discussões fragmentárias sobre
arte contemporânea, poéticas visuais e cultura visual. Na bagagem, além das muitas
dúvidas e anseios, trazia gravuras feitas com carimbo, datadas de 2003 a 2005, em que deu
formas visuais ao estranhamento e impressões provocadas pelos espaços e traçados da
capital federal. Para refletir sobre esse trabalho, além de retomar anotações, estabelecer
articulações teóricas, discutir questões sobre as artes visuais e seus fazeres, organizar
memórias em sítios na internet, produziu novas impressões da série, realizando uma
exposição ao final do curso.

Figura 3: ... e o Plano bateu Asas e voou. Exposição Brasília Gravada, Galeria da FAV/UFG, 2008.
Manoela Afonso. Carimbo de borracha sobre papel Torchon, Van Gelder Zonen 190g/m2. 38 x 54 cm. Fonte:
acervo da artista.

Figura 4: qual é o Plano, Piloto? Exposição Brasília Gravada, Galeria da FAV/UFG, 2008. Manoela
Afonso. Carimbo de borracha sobre papel Torchon, Van Gelder Zonen 190g/m2. 38 x 55,5 cm. Fonte: acervo
da artista
Na galeria, as gravuras foram organizadas como pequenos módulos ritmados, a
ocupar, na linha de horizonte, o espaço vazio das paredes-suporte. Em cada gravura-
módulo, pequenas imagens gravadas em carimbo repetiam-se, configurando uma unidade
interna. Cada gravura constituiu cópia única: a impressão manual da mesma matriz –
carimbos de borracha – multiplicava a imagem em composições únicas. Como se
multiplicam os blocos residenciais e comerciais na cidade-pássaro-avião... Como se
multiplicam os vazios entre-asas, entre-quadras, entre-blocos, entre-gentes...
A obra única desafia a noção de tiragem, da gravura clássica. Nos processos
exaustivos de impressão com o carimbo, as imagens não se repetem. Como a cidade-
inspiração que, embora ao incauto pareça sempre igual, de fato, experimenta variações
sutis em tonalidades, posicionamentos, sequenciamento, caminhos...
Os versos do poeta Nicolas Behr provocaram imagens, suas metáforas formataram
sensações, e os carimbos entintados, comprimidos contra as folhas de papel, recriaram
ritmos, repetições, quebras, respirando a brisa que toca os mosaicos de Athos Bulcão em
quantas construções-monumentos de Brasília, a dar-lhes fisionomias próprias.

Figura 5: Painel de azulejos do artista Athos Bulcão, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a Igrejinha,
inaugurada em 1958, na EQS 307/308. Brasília. Foto: André Dusek/AE

O exercício dialogal ancora uma das potencialidades da arte contemporânea, quando


se reconhece que o artista realiza seus projetos num contexto sócio-histórico e cultural,
pleno de encontros e disputas, negociações e embates. Possibilidades. E criar, pesquisar,
conhecer em processo conformam a própria experiência artística.

Vazios e impressões impermanentes, conclusões provisórias


Suas gravuras montam identidades impermanentes e fronteiras mutantes... Na
pesquisa artística de Manoela, significados e entendimentos não são revelados, mas
compreendidos como relacionais, singulares e plurais, construídos a partir da reflexão e do
questionamento contínuos sobre o vivido. A arte como experiência pressupõe que o vivido
inquietante seja questionado, pensado, transmutado em conceito, conceitos (Dewey, 2005),
poética e experiência estética.
A casa-atelier da artista-gravadora, que também é o mundo em que vive, passa de
um-lugar-de-fazer à condição de espaço onde se articula a própria vida com fazeres
artísticos e reflexões. Nesse espaço, as sensações provocadas por sua relação com Brasília
motivaram a produção de conhecimento prático, teórico e estético, pleno de significados.
Conhecimento em construção... como a cidade, seus habitantes... e a própria arte.
Referências
DEWEY, John. Art as experience. Berkley: Berkley Publishing, 2005.
MARTINS, Alice F. & ROCHA, Cleomar. Universos poéticos: a academia e as possibilidades de
poetificar. Revista VIS (UnB), v. 6, p. 36-44, 2007.

Para citar este texto:

MARTINS, Alice Fátima. Impressões do vazio. Atas do CSO'2011. Lisboa: Universidade de


Lisboa. Disp. em <http://www.cso.fba.ul.pt/ACTAS_CSO2011.pdf>. Acesso em 10 nov. 201.

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