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De Simone de Beauvoir aos “Cinquenta tons de cinza”

De Simone de Beauvoir
aos “Cinquenta tons de cinza”
From Simone de Beauvoir to the “Fifty Shades of Gray”
Maria Carolina Bellico Fonseca

Resumo
Com base análise do fenômeno editorial Cinquenta tons de cinza, a autora busca compreender
a excitação causada entre as mulheres pelo livro e seus personagens. Ela inicia com o questio-
namento da possível estrutura do personagem principal, tema de debate constante em várias
rodas femininas. Em seguida, usando os conceitos de fantasia e gozo, busca compreender o
interesse suscitado pela trama que envolve uma relação sadomasoquista e as posições de do-
minador e submissa chegando, por fim, a discutir o que isso poderia dizer dos encontros
sexuais na contemporaneidade.

Palavras-chave: Perversão, Fantasia, Sexualidade, Gozo.

No final de 2012, o romance em série Cin- gozo perverso é enlaçada novamente pela
quenta tons de cinza foi um grande sucesso libido e, dessa forma, nem o neurótico ne-
editorial; por todo lado, via-se mulheres ou cessita tanto do recalque e nem o perverso
lendo um dos volumes, ou pegando um para do desmentido já que, pela via do amor enla-
ler. Mas o que levou um livro tido como li- çado a um pouco de gozo, ambos conseguem
teratura menor, romance erótico “fast-food”, um amansamento da pulsão, um apazigua-
como tem sido chamado por alguns, a um mento do real do sexo, o que tem estreita
grande sucesso de vendas? relação com o aforismo de Lacan, citado no
O movimento feminista eclodido no sé- Seminário 20: “Só o amor permite ao gozo
culo passado trouxe frutos que as mulheres condescender ao desejo” (Lacan, 2004, p.
colhem até os nossos dias, como emancipa- 197). Lembrando Marco Antônio Coutinho
ção, sucesso profissional em qualquer tipo Jorge em um de seus seminários no CPMG
de carreira, destaque em atividades intelec- sobre a fantasia, o neurótico, na direção da
tuais, direito a voto, etc. O que leva, então, cura, se encaminha em direção à perversão,
ao sucesso um livro que, em pleno século e o perverso, no sentido oposto.
21, aborda um romance no qual a heroína
precisa se colocar como “submissa” sexual- Sa
mente em relação a um “dominador”? Essas
e outras aparentes contradições me levaram
à reflexão que se segue. Amor Gozo
Através de estudos psicanalíticos sabe- Neurótico Perverso
mos que ao neurótico falta certa concessão
ao gozo, e ao perverso falta a concessão ao A oposição entre neurose e perversão
amor, e que numa saída ideal de análise é a pode ser indicada pela ênfase posta em um
isso que assistimos. Em outras palavras, ve- dos dois termos da fantasia: neurose (S) e
mos que a pulsão de morte veiculada pelo perversão (a)

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•O polo do amor S — polo paterno da dade com quem quer que fosse. Seus casos
fantasia eram puramente sexuais e balizados por um
• O polo do gozo a — polo materno da contrato no qual as duas partes, submissa e
fantasia dominador, estabeleciam regras, limites, e a
Christian Grey, rapaz que por suas prá- dor e o sexo substituíam o sexo com amor.
ticas sadomasoquistas em tudo lembra um Isso lhe dava uma falsa sensação de liberdade
perverso, era uma pessoa que cresceu com e controle já que ele só podia transitar dentro
“uma autoimagem negativa, pensando que de tais limites.
era algum tipo de rejeitado, um selvagem in- Tudo correu muito bem até que apareceu
capaz de ser amado” (James, 2012, livro 3, alguém, uma jovem mulher, Anastasia Stee-
p. 479). Filho de uma prostituta viciada e ví- le, que fez seu mundo, antes calmo e organi-
tima de seu cafetão sádico, foi torturado du- zado, virar de cabeça para baixo ao introdu-
rante seus quatro primeiros anos até a morte zir paulatinamente um novo ingrediente em
de sua mãe biológica e posterior adoção por sua vida — o amor. Maníaco por controle,
uma família abastada. Cresce uma criança mas seduzido pela situação de embate, ele se
arredia, que após anos de silêncio consegue, propõe a entrar nessa relação, certo de que
através da música, sair da mudez que o aco- era o senhor da situação; todavia encontra
metia desde que foi achado ao lado de sua alguém rebelde, insubmissa e desafiado-
mãe morta, com cujo cadáver ficou tranca- ra, que aos poucos lhe tira o chão. Ela, por
do num apartamento sem comida, por três sua vez, é uma moça com autoestima baixa,
dias. Suas vivências com essa mãe submeti- inexperiente em relações afetivas, mas que se
da a seu cafetão que costumava queimar a sente fortemente atraída pela beleza e pelo
criança com cigarro aceso, trouxe como se- poder representados pelo rapaz e, ao se per-
quela um pavor de ser tocado, mesmo após ceber escolhida por ele (mesmo se sentindo
a adoção. Torna-se um adolescente rebelde, não merecedora de sua atenção) cede, paga o
prensado entre a forte demanda pulsional e preço se submetendo a uma certa dor, a que
o horror ao toque e ao envolvimento afetivo. lhe era suportável na relação, para ela, eró-
Vai de uma passagem ao ato a outra, descon- tica.
trolado num percurso mortífero até encon- Como nos mostra Lacan no Seminário 10,
trar uma mulher que o introduz no universo há uma “função — não mediadora, mas me-
sadomasoquista lhe oferecendo, assim, uma diana — da angústia entre o gozo e o desejo”
oportunidade viável “de lidar com a dor do (Lacan, 2005, p. 192), e é exatamente o que
lado de fora” (James, livro 3, p. 479), uma ocorre com esses personagens quando, antes
proposta sedutora para quem cresceu achan- de conseguirem estabelecer os limites baliza-
do “que merecia apanhar” (James, livro 3, dos em seu desejo, mas já apaixonados, o ca-
p. 479). Ao lhe dar uma forma de lidar com sal se separa. Gray, antes dominador e senhor
o gozo mortífero, ela o auxilia a “canalizar de si e do Outro, apaixonado, se torna cativo,
sua raiva” e se torna o “centro de seu mun- castrado; na angústia da perda se torna um
do”. Mas nessa primeira relação Christian era sujeito “premido, afetado, implicado no mais
submisso àquela que era sua dominadora, e íntimo de si mesmo” (Lacan, 2005, p. 191),
é nessa submissão que ele se “reencontra” e no mais íntimo de seu desejo. Então ele cede
“descobre a força de que precisava para to- em seu gozo e ascende ao desejo.
mar as rédeas” de sua vida, “ter o controle e Os limites entre dor e prazer são tênues, e
tomar suas próprias decisões”, enfim, se tor- estabelecê-los se torna um desafio que é en-
nar um dominador também. Por outro lado, frentado pelos dois. A diferença entre Anas-
foi criada uma situação de assepsia afetiva, tasia e as outras submissas é que esta não
na qual o rapaz evitava se relacionar de ver- abre mão totalmente de seu jeito de ser, de

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sua espontaneidade e, algumas vezes, apesar ca das relações sexuais. Freud se refere a esse
de tentar se controlar, faz o que lhe dá von- artigo como um ensaio sobre o masoquis-
tade e acaba sendo fortemente castigada por mo. Para ele a perversão na infância pode ser
isso. Castigo que aos poucos, vai sendo dese- a base para a construção de uma perversão
jado e provocado por ela, uma vez que acaba posterior que pode ser interrompida e per-
se tornando um ingrediente fortemente eró- manecer no fundo de um desenvolvimento
tico na relação dos dois, ou seja, o que antes sexual normal. A fantasia de espancamento
era uma forma de gozo do Outro se torna, e “outras fixações perversas análogas” são
ao ser enlaçado pelo amor e pelo desejo, um resíduos do complexo de Édipo, “cicatrizes”
tempero desejável na relação a dois. deixadas por esse processo.
Afora os ingredientes fortemente roma- Para Marco Antônio Coutinho Jorge, de-
nescos, a trama nos ilustra um pouco o tra- tecta-se no cerne desse texto de Freud uma
tamento do gozo da dor pelo amor e a busca articulação entre amor e gozo (“inerente a
de equilíbrio entre os dois. Sabemos que a se- toda fantasia de desejo”), representando a
xualidade é perverso-polimorfa na infância estrutura interna da fantasia. Segundo ele,
e que a sexualidade adulta tem aí suas raí- trata-se de:
zes que lhe trazem a seiva, a vida. A irriga- • Fantasia de completude amorosa na
ção da vida sexual de cada um vai depender neurose;
do quanto é possível conceder com o gozo • Fantasia de completude de gozo na per-
libertando-se das amarras da repressão, cuja versão.
raiz é o recalque. Talvez aqui esteja um dos Para Freud, mais tarde, quando a crian-
interesses do livro: a heroína vive situações ça é maior, a leitura substitui o papel de es-
e práticas sexuais que grande parte das mu- pancamento das crianças — o conteúdo dos
lheres só o faz em fantasias e, de certa forma, livros traz um novo estímulo às fantasias de
traz para elas uma autorização para a vivên- espancamento. Ora, não seria esse um dos
cia dessas fantasias sem se sentirem doentes motivos do sucesso dos Cinquenta tons entre
ou culpadas. Alguém já fez, mesmo que num as mulheres de hoje? Não teria o livro para
livro, então também posso, quero ou no ínti- essas mulheres adultas o mesmo o papel que
mo, desejo. um dia teve a fantasia para as crianças? Atra-
Contudo, não posso deixar de sublinhar ção e amor pelo dominador, erotização da
que no livro, mesmo com amor, a mulher dor, desejo por surras. Freud adoraria isso...
precisou ceder ao controle do homem para A sexualidade em nosso tempo tem certa
tê-lo, e ele precisou respeitar limite dela para coloração perversa e tem na atração pelo fe-
a dor. Ambos cederam. No entanto, é curiosa tiche um ingrediente saboroso como o com-
essa cessão de controle e a entrega à submis- prova o sucesso das sex shops. Nossas mães
são, em pleno século 21, quase um século de- e avós não queimaram seus sutiãs em vão.
pois de as mulheres terem se rebelado contra Hoje as mulheres se permitem o exercício
esse papel de submissas e lutado bravamente de sua sexualidade e fantasias de forma mais
por um lugar respeitável ao lado do homem, livre, aberta e, em alguns casos, até banali-
lugar de igualdade tanto de direitos quanto zada. Para algumas, o sexo casual, sem com-
de acesso ao prazer. promisso, oferece mais interesse que as tra-
Podemos dizer que aqui se trata da sub- dicionais relações entre homens e mulheres
missão como ingrediente erótico, numa re- como namoro e casamento, o que não deixa
vivência do erotismo da fantasia do artigo de ser uma ilusão de estar no controle da re-
de Freud — Uma criança é espancada –— na lação, da vida; já não são mais abandonadas e
qual o dominador substitui o pai desejado do enfraquecidas pelo amor, e o homem român-
Édipo, e as surras têm a equivalência simbóli- tico é tratado por elas como “chiclete que não

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sai do pé” e acaba levando um “end”. Outras três desejos realizados pelas fadas dos contos
preferem a exposição na Internet ou as rela- infantis) e bom de cama? (afinal, mocinha é
ções virtuais e ainda vemos também aquelas levada às nuvens em suas relações sexuais...).
que, almejando ou não uma vida profissional Outro fator que pode ser atraente é o poder
independente, desejam também um com- demonstrado pela heroína já que, no final,
panheiro, um lar e filhos. Mas todas que- ela, de certa forma, submete o sádico para
rem ser gostosas, poderosas e, algumas ve- transformá-lo num amante sensacional e
zes, destruidoras de homens. Não seria essa marido ideal...
uma forma de dominação sádica? Christians São muitas as razões desse sucesso de ven-
Grays de saias e peitos? Alguns homens con- das, e não tenho a pretensão de esgotá-las,
cordariam comigo, e tem sido comum ouvir porém não deixo de notar uma proximidade
deles seja em rodas sociais, seja em nossos com as fotonovelas de antigamente e mesmo
consultórios, que hoje é difícil encontrar com as novelas globais em seus ingredientes
mulheres para namorar, casar. romanescos, picantes e na apologia do amor
Nesse contexto podemos dizer que, em al- conquistado após muito sofrimento e bata-
guns casos, o amor tem sido prova de fraque- lha da heroína.
za, quase como o foi outrora para as mulhe- Muda a cultura, mudam os costumes,
res guerrilheiras e, até mesmo, para algumas diminuem as repressões, mas a sexualidade
feministas. Teriam sido as correntes do amor continua mais perverso-polimorfa do que
trocadas por correntes na cama usadas por nunca e tem encontrado em diferentes graus
mestres mulheres para submeter os homens? de sadismo um ingrediente poderoso.
As revistas femininas trazem cada vez mais
receitas e regras para a conquista e submis-
são do companheiro sexual. É interessante Abstract
se compararmos com as revistas femininas With the analysis of the topped best-seller Fifty
da década de 1950, que davam como receita Shades of Gray, the author tries to understand
para manter um casamento saudável, a quase the excitement caused among women for the
total submissão ao homem e a preocupação book and its characters. She starts questio-
com o prazer dele. ning the possible psychic structure of the main
Tudo isso é muito contraditório, pois, character, subject of constant debate in some
apesar de o sexo andar meio banalizado, um feminine circles. Then, using the concept of
livro como esse romance picante, com fortes fantasy and enjoyment, she discusses the in-
doses de erotismo sadomasoquista, faz um terest shown by the plot involving a sadistic
grande sucesso entre as mulheres, como eu and masochistic relation, and the positions of
disse no início deste texto, e se multiplica nas dominator/submitted, to finally speak about
prateleiras sob títulos diferentes. Faria sen- nowadays sexual meetings.
tido a parte da relação sádica se o livro não
fosse, no final das contas, uma grande água Keywords: Perversion, Fantasy, Sexuality,
com açúcar com um final feliz, dominador e Enjoyment.
submissa numa linda relação de amor, com
direito a casamento e filhos. Será que por trás
da tão almejada aparência de poderosa a mu-
lher contemporânea traz em si uma Julieta
em busca de um Romeu com chicote e vara?
Será que algumas mulheres não estariam
se identificando com o homem dos sonhos
clichê, rico, lindo e poderoso (até parece os

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Referências

FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contri-


buição ao estudo da origem das perversões sexuais
(1919). In: Edição standard brasileira das obras psico-
lógicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da
tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996, v. XVII, p. 195-218.

James, E. L. Cinquenta tons de cinza - livro 1. Rio de


Janeiro: Intrínseca, 2012a.

James, E. L. Cinquenta tons de liberdade - livro 1. Rio


de Janeiro: Intrínseca, 2012b.

James, E. L. Cinquenta tons mais escuros - livro 1.


Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012c.

Jorge, M. A. C. Fundamentos da psicanálise - de


Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de


Janeiro: Zahar, 2005.

R ece b ido em : 0 9 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3

S obr e a au tora

Maria Carolina Bellico Fonseca


Psicóloga. Psicanalista.
Mestre em Psicanálise pela UFMG.
Membro do CPMG.

Endereço para correspondência


Rua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários
30140-110 - Belo Horizonte/MG
E-mail: cbellico@terra.com.br

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