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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


Curso: Pensar a Cidade – Antropologia das Sociedades Complexas
Professora: Adriana Facina Gurgel do Amaral
Aluno: Dennis Novaes Saldanha Côrtes

A favela em Arlindo Cruz: cruzamentos entre o flâneur, o antropólogo e o artista¹

Introdução
Apresentar o escopo deste artigo exige de início o afastamento de algumas
expectativas enganosas que podem ser sugeridas por seu título aparentemente
pretensioso. Percorrer com sucesso os meandros de uma noção como flâneur, que marca
obras tão díspares quanto as de Baudelaire e João do Rio, por exemplo, exigiria sem
dúvida um processo reflexivo incapaz de ser plenamente desenvolvido por este curto
trabalho. Os embates epistemológicos que marcam a Antropologia enquanto campo do
saber também não tornam nada simples a noção de “antropólogo” e, da mesma forma,
não menos complexo seria pensar as diversas implicações do termo “artista”. Longe de
ignorar a miríade de desdobramentos que marca tais conceitos, este trabalho propõe um
recorte menos amplo. Em primeiro lugar, serão apontadas aqui reflexões sobre a figura
do flâneur como destrinchada por Walter Benjamin em seu contexto histórico e social,
além de algumas relações possíveis com a obra de “João do Rio”, pseudônimo do
escritor carioca João Paulo Alberto Coelho Barreto, cujos escritos emergem
principalmente nas duas primeiras décadas do século XX. Num segundo momento,
trabalhos publicados por autores filiados à “Escola de Chicago”, além de outros que
inspiraram ou foram influenciados por essa corrente intelectual, constituirão a tônica da
análise. Por fim, algumas canções que integram o repertório do cantor e compositor
carioca Arlindo Domingos da Cruz Filho, mais conhecido como Arlindo Cruz, serão
exploradas na riqueza de suas singulares proposições poéticas.
Este recorte, talvez inusitado pelas clivagens que o atravessam no espaço-tempo,
se fundamenta numa preocupação específica que marca os três índices de reflexão
orientadores das considerações aqui propostas: as singularidades do ambiente urbano.

¹Artigo apresentado como trabalho final para a disciplina “Pensar a Cidade”, ministrada
por Adriana Facina Gurgel do Amaral no Museu Nacional 1º/2014
Diferentes cidades em diferentes recortes cronológicos abrigam ou abrigaram o flâneur,
etnógrafos da Escola de Chicago e a poética de Arlindo Cruz. Tão importante quanto
explorar essas diferenças contextuais é esmiuçar as especificidades destes olhares sobre
a cidade: os diferentes engajamentos do olhar que propõem ao espaço urbano.
Os séculos XIX e XX protagonizaram uma aceleração no desenvolvimento
capitalista simbioticamente ligada à expansão das grandes metrópoles. A cidade
“inova”, assim, não apenas por sua dimensão e escala, mas também pelas novas
interações que engendra. É com base nessa singularidade que Georg Simmel elenca a
“intensificação da vida nervosa” como o “fundamento psicológico” dos grandes centros
urbanos. O dinheiro representa talvez o mais característico arauto dessa “nova ordem”
ao subsumir qualquer particularidade à quantificação do valor de troca (Simmel: 2005).
Em consequência, mais que uma unidade geográfica e ecológica, a cidade é também
uma unidade econômica cuja organização baseia-se na divisão do trabalho (Park: 1979).
Esta “ecologia” urbana capaz de agregar milhares de corpos humanos em um espaço
relativamente restrito não é capaz de obliterar as singularidades das interações que
tomam forma nesse ambiente. No atravessar de uma rua é possível viajar um mundo.
Robert Park já sinalizava para este potencial de diferenciação oferecido pela cidade ao
sugerir a noção de “região moral”:
“(...) dentro da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se
segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e seus
temperamentos. A distribuição da população resultante tende a ser bastante diferente daquela
ocasionada por interesses ocupacionais ou por condições econômicas.” (Idem: 1979, p. 64)
O que estes autores investigaram de forma pioneira foram duas dimensões que
Gilberto Velho sistematiza como essenciais para a constituição do que ele denomina
“sociedades complexas”: a divisão do trabalho e certa heterogeneidade cultural (Velho:
1987, p.14). É justamente por esses diferentes mundos, por tal pluralidade de códigos e
valores que pretendia transitar o flâneur, que se imiscuíam os etnógrafos de Chicago e
que a poesia de Arlindo Cruz percorre em suas canções. As produções desses atores
realizam tais trânsitos por esquemas, perspectivas e interesses distintos o que, em vez de
os afastarem por completo, permitem cruzamentos ainda mais profícuos e
enriquecedores. O que este artigo propõe enfim, é o caminhar não necessariamente por
uma cidade específica, mas pelas cidades que emergem nos flâneurs, nos antropólogos e
no artista que lhe serve de base.

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O Flâneur
Distinguir aqui o flâneur e o “artista” é apenas um mecanismo prático que busca
ressaltar – e de forma alguma ignorar – a singularidade do fazer artístico atrelado ao
primeiro. Em suas considerações sobre A Paris do Segundo Império em Baudelaire,
Walter Benjamin associa as escritas leves e conciliadoras das fisiologias, forma
particular de texto surgida neste período, às transformações sofridas pela imprensa
parisiense no século XIX. À diminuição do preço cobrado pelas assinaturas dos jornais
e à inserção dos anúncios publicitários entre suas páginas, sucedeu-se a disseminação
dos folhetins, a maior superficialidade das notícias e uma nova forma de inserção do
literato à sociedade:
“Portanto, a assimilação do literato à sociedade que ele vivia efetuou-se no bulevar. (...) No
bulevar é que ele desdobrava os ouropéis de suas relações com colegas e pessoas da vida: e
ficava tão dependente de seus efeitos quanto as meretrizes em sua arte de vestir e travestir. Ele
passava no bulevar as suas horas de lazer, exibindo-se às pessoas como se fosse uma parte do seu
tempo de trabalho. (...) Assim, o valor de sua força de trabalho passa a ter algo de quase
fantástico, em vista do ampliado não fazer nada que, aos olhos do público, é necessário para o
seu aperfeiçoamento.” (Benjamin: 1985, p. 59-60)
O caminhar errante pelos espaços da cidade – a flâneurie ou o “flanar”, em João do Rio
-, vai aos poucos ganhando forma enquanto um exercício específico de conhecimento e
de escrita sobre a cidade. As fisiologias, que nas palavras de Benjamin eram uma
espécie de “escola superior dos folhetins” (Idem, p. 65), seriam a síntese deste olhar
panorâmico sobre os espaços e tipos urbanos oferecido por tal “método de observação”.
O resultado, enfim, é que a “botânica do asfalto” elaborada pelo flâneur era marcada
principalmente por sua inofensividade, seu conhecimento sobre o ambiente era oriundo
de uma postura de suspensão: para conhecer a cidade era preciso ser a “anti-cidade”. O
flâneur encarna brilhantemente o que Simmel considera uma “resistência do sujeito a
ser nivelado em um mecanismo técnico-social” (Simmel: 2005, p. 577). Levar a
tartaruga para passear em meio aos bulevares de Paris era afrontar o sistema de divisão
do trabalho, era protestar contra a “operosidade e eficiência” (Benjamin: 1985, p. 81).
Esta postura liga-se de certa forma àquela percebida por Simmel no grito de insatisfeitos
como Nietzsche e Ruskin contra a “pontualidade, a contabilidade, a exatidão, que
coagem a complicações e extensões da vida na cidade grande” (Simmel: 2005, p. 580).
Não é por acaso que a ideia de flanar pelas ruas brasileiras ganha espaço no
mesmo período em que o Rio de Janeiro sofre um acentuado crescimento populacional e
vive as transformações resultantes do discurso modernizador que pairava à época, tendo

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nas reformas levadas a cabo pelo prefeito Pereira Passos seu expoente máximo. É por
essas ruas que trafegava João do Rio em suas crônicas sobre o cotidiano da então
capital. Em sua obra, o flanar surge como profissão de fé de um trânsito capaz de
desvelar a pluralidade de universos que se dobram sobre o espaço urbano:
“Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da
observação ligado ao da vadiagem; Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas
rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador
do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas,
conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de
casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má.” (João do Rio: 2008, p.31)
Neste trecho de “A Rua”, conferência proferida pelo autor em 1905, é possível
perceber qual a posição ocupada pelo flâneur no exercício de suas incursões. Seu olhar
panorâmico não o permite assumir nenhum pertencimento específico, mas também
refreia de certa forma a profundidade na compreensão daqueles que observa. Numa rica
analogia com uma crônica escrita pelo próprio João do Rio, Raúl Antelo compara tal
postura de observador à de alguém que pretende conhecer a rua pela janela: por ela, é
possível fugir do lar sem sair dele e circular na rua sem seus perigos. A postura de João
do Rio, talvez inerente à própria noção de flâneur, seria simbolicamente equivalente a
esta de colocar-se à janela (Idem: 2008, p. 9). O seu projeto é descolar-se da cidade para
então conhecê-la. Seu tempo é outro, distinto daquele expresso na cronologia da
opressora máquina de contar tempo que é o relógio. Diferente da turbe que se arrasta
pelos espaços urbanos e se divide numa miscelânea de códigos e valores, o flâneur não
se pretende sujeito a nenhuma dessas segmentações em seu caminhar desprendido:
“O flâneur é um abandonado na multidão. Nisso ele compartilha a situação da mercadoria. Tal
peculiaridade não lhe é consciente. Mas nem por isso age menos nele. Prazerosamente ela o
invade como um narcótico, que pode compensá-lo por muitas humilhações. A ebriedade a que o
flâneur se entrega é a da mercadoria rodeada e levada pela torrente dos fregueses”. (Benjamin:
1985, p. 82)
Como o vento que levanta os vestidos e embaraça os penteados, ele traça em sua
fluidez os diferentes tipos urbanos, especula sobre suas singularidades, mas
privilegiando sempre a preponderância do olhar sobre o ouvir. Estes são alguns
contornos da arte proposta pelo flâneur que “de tanto ver o que os outros quase não
podem entrever”, põe-se a refletir (João do Rio: 2008, p. 33).

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O Antropólogo
Como anunciado na introdução deste artigo, a noção de “antropólogo” resvala
aqui principalmente em reflexões sobre alguns trabalhos produzidos no seio do que
muitos chamam “Escola de Chicago”. Howard Becker elenca um interessante
mecanismo de auxílio, suscitado primeiramente por Samuel Guillemard, para pensar
obras “filiadas” ao departamento de Sociologia desta universidade até a primeira metade
do século XX: uma escola de pensamento seria aquela formada por pessoas que
possuem opiniões mais ou menos semelhantes, mesmo que nunca tenham se
encontrado; por outro lado, uma escola de atividade seria integrada por pessoas que
trabalham em conjunto, mesmo que não compartilhem exatamente a mesma perspectiva
teórica (Becker: 1996, p.179). A Escola de Chicago encontrava-se sem dúvida na
segunda categoria. Capitaneados principalmente por Robert Park - que antes de integrar
os quadros do departamento de Ciências Sociais estudou filosofia na Alemanha, atuou
como jornalista e assessor do ativista negro Booker T. Washington -, diversos
pesquisadores dedicaram-se a pensar a cidade de Chicago, que sofreu entre o final do
século XIX e o início do século XX um assombroso crescimento populacional. Entre
outros elementos, o fato de não haver separação entre os departamentos de Sociologia e
Antropologia e o pioneirismo dos temas de pesquisa contribuíam para que estes
pesquisadores explorassem diversos recursos metodológicos em seus trabalhos e
partissem muitas vezes de perspectivas teóricas distintas.
Entre os intelectuais que formaram a primeira geração da Escola de Chicago
estava William Isaac Thomas, que entre 1918 e 1920 publicou, junto a Florian
Znaniecki, os cinco volumes de The Polish Peasant in Europe and America, um grande
estudo sobre grupos imigrantes poloneses. O esforço colossal dedicado à produção
dessa obra expressa a tônica de seu pensamento, que repercutiria em vários dos
trabalhos produzidos por seus herdeiros:
“Thomas insisted on systematic empirical investigation and took part in gradually removing the
study of social organization from the biologistic inclinations which had characterized it earlier.
He emphasized the need to understand the participant‟s view, the “definition of the situation” as
he termed it” (Hannerz: 1980, p. 21).
Por distintos caminhos e métodos de pesquisa, o que os etnógrafos de Chicago
buscaram foi justamente compreender a visão dos participantes. Não basta apenas
transitar fluidamente pela cidade e constatar a pluralidade que dela emana. É preciso

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entender com detalhes os universos que nela habitam, ou melhor, os universos que
compõem, num mesmo espaço material, a justaposição de várias cidades.
Diferente do olhar panorâmico oferecido pelo flâneur, as etnografias de Chicago
buscam conhecer com detalhes as visões de mundo, os diferentes planos de significação
manifestados em seus habitantes. O exercício levado a cabo por grande parte desses
trabalhos poderia ser mais ou menos descrito na fórmula “pensar como o outro pensa”.
Em sua introdução ao The Jack Roller – A Delinquent Boy‟s Own Story, Clifford Shaw
justifica a relevância de se publicar o relato de vida de um jovem “delinqüente” e como
as ciências sociais poderiam se apropriar desse material:
“It is not expected that the delinquent will necessarily describe his life-situations objectively. On
the contrary, it is desired that his story will reflect his own personal attitudes and
interpretations, for it is just this personal factors which are so important to the treatment of the
case.” (Shaw: 1966, p. 3)
É necessário compreender as interpretações e atitudes pessoais do próprio jovem.
Apesar dos ideais “reformistas” que pairavam sobre grande parte destes autores, o
primeiro passo a ser dado era muitas vezes o “exercício de alteridade”. Logo em
seguida, Shaw destaca a famosa frase de W. I. Thomas que influenciou não só o seu
trabalho, como o de vários autores da Escola de Chicago: “If men define situations as
real, they are real in their consequences” (Thomas: 1928, p. 572). Esta era a tônica do
engajamento proposto por alguns etnógrafos de Chicago. Clifford Shaw é ainda mais
claro ao ressaltar que a relevância da história de vida residiria principalmente em revelar
o ponto de vista do “delinqüente” e o seu mundo social e cultural (Shaw: 1966, p. 3).
Embora não estivesse completamente conectado aos trabalhos realizados em
Chicago, o clássico estudo de William Foote Whyte reflete bem esse exercício. Recém
graduado em Harvard, angariou uma bolsa de pesquisa por essa Universidade e só
depois defendeu sua tese no Departamento de Sociologia capitaneado por Robert Park.
Fortemente influenciado por leituras da Antropologia Social praticada à época –
especialmente as etnografias de Malinowski –, Foote Whyte morou por três anos e meio
em Corneville, bairro “pobre e degradado” de Nova Iorque ocupado por imigrantes
italianos. Apesar do cenário caótico apregoado pela população de classe média e pela
mídia, o que o autor encontra em sua vivência no bairro é um sistema altamente
integrado e organizado (Foote Whyte: 2005, p. 20). A densidade de suas descrições
etnográficas só foi possível pelo alto grau de integração estabelecido entre ele e os
moradores. De acordo com seus relatos num anexo acrescentado ao livro quase

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cinqüenta anos após sua primeira publicação, Foote Whyte revela que tal densidade só
fez-se possível por uma proximidade que beirou a dissolução da clivagem
pesquisador/pesquisado. O próprio autor, oriundo de camadas médias da cidade, ressalta
a intensidade dessa experiência e a sua importância:
“Quando o pesquisador está instalado numa universidade, indo ao campo apenas por poucas
horas de cada vez, pode manter sua vida social separada da atividade de campo. Lidar com seus
diferentes papéis não é tão complicado. Contudo, se viver por um longo período na comunidade
que é seu objeto de estudo, sua vida pessoal estará inextricavelmente associada à sua pesquisa.”
(Foote Whyte: 2005, p. 283)
Foote Whyte foi nomeado secretário do Clube da Comunidade Italiana, trabalhou na
campanha eleitoral de um político ligado à comunidade, chegou a participar de uma
fraude eleitoral e na organização de manifestações exigindo que a prefeitura de Nova
Iorque instalasse água aquecida nos banheiros públicos da região. Apesar disso, a
posição de pesquisador impedia a dissolução plena da clivagem entre o “eu” e o
“outro”. As reflexões tiradas de sua experiência na campanha eleitoral elucidam bem
este ponto:
“Também precisei aprender que o pesquisador de campo não pode se dar ao luxo de pensar
apenas em viver a vida como os outros à sua volta. Ele deve continuar a viver consigo mesmo.
Se o observador participante se vê assumindo comportamentos que havia aprendido a considerar
imorais, então é provável que comece a pensar sobre o tipo de pessoa que ele é. Ao menos que
possa levar consigo uma imagem razoavelmente consistente de si mesmo, é provável que se meta
em dificuldades. (Foote Whyte: 2005, p. 315)”
O trabalho de Nels Anderson sobre os hobos tangencia esta questão embora
numa relação inversa. A categoria hobo definia o trabalhador eminentemente migratório
que transitava pelos Estados Unidos à procura de serviços não especializados. Chicago
era ponto de encontro entre as diversas linhas de trem que levavam ao oeste americano
e, por isso, uma procurada stem, termo usado por estes trabalhadores em referência às
grandes cidades que eram paradas temporárias preferenciais. Anderson vinha de uma
família de hobos e por anos viveu como tal até ser incentivado a retomar os estudos por
um casal de fazendeiros para quem trabalhou. Ao ingressar no departamento de
Sociologia da Escola de Chicago foi incentivado a desenvolver sua pesquisa sobre estas
figuras que conhecia tão bem, já que parte integrante de sua própria história. O relato
etnográfico naquele momento, entretanto, não permitia a Anderson misturar seu
pertencimento ao do universo pesquisado. Era preciso distanciar-se para, a partir daí,
criar a tensão antes inexistente entre “pesquisador/pesquisado”. Embora sem dúvida os

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seus anos de vivência como hobo o tenham marcado para sempre, em seu relato
etnográfico o texto em primeira pessoa torna-se praticamente ausente, seu trabalho
parece seguir os conselhos dados a ele por Park: "Write down only what you see, hear,
and know, like a newspaper reporter." (Anderson: 1961, p.XII). O exercício etnográfico
ao qual Anderson se dedicou em seu retorno à Hoboemia após o contato com a Escola
de Chicago o colocou numa posição dual sensivelmente percebida por Ulf Hannerz:
“For Anderson as a sociologist, this was participant observation; for Anderson as a
hobo, the study was a way of „getting by‟”. (Hannerz: 1980, p. 32).
Mesmo considerando-se um hobo a posição de etnógrafo assumida por
Anderson necessariamente o fragmentou em dois. Para usar os termos de Hannerz,
havia um Anderson enquanto cientista social e outro enquanto hobo. Embora tal divisão
seja feita idealmente, ela pode ser percebida nos termos em que se dá seu relato
etnográfico. Sua postura não é a de alguém simplesmente “de dentro” que vive as
próprias experiências como parte integrante de seu cotidiano, mas de alguém que busca
conhecer seu próprio mundo estranhando-o. Sendo anteriormente um hobo, foi preciso
que Anderson criasse a tensão pesquisador/pesquisado para o exercício etnográfico.
Essa característica é a que busca ser ressaltada nesse trabalho sob o conceito genérico de
“antropólogo”: a procura por conhecer um determinado mundo sem ser plenamente
dissolvido por ele, sem deixar de ser o “pesquisador”. Embora hoje essa relação possa
ser questionada por diferentes caminhos, essa tensão entre “conhecer o outro”, sem
“tornar-se ele”, ainda era percebida no exercício etnográfico de autores ligados à Escola
de Chicago e representam aqui mais uma das possibilidades de engajamento do olhar
sobre a cidade.

O Artista
Nascido em 1958, o cantor e compositor Arlindo Cruz possui ao longo de sua
carreira mais de quinhentas músicas gravadas por diversos intérpretes, especialmente
nos gêneros samba e pagode. Integrante do grupo Fundo de Quintal por doze anos – de
1981 a 1993 –, atuando posteriormente em carreira solo, sua obra percorre parte
essencial da música popular brasileira e da cidade do Rio de Janeiro nas últimas
décadas. Tema freqüente em seu vasto repertório são algumas clivagens que marcam
esta cidade, especialmente no que tange às favelas cariocas, espaços cujos habitantes
sofrem com processos de marginalização material e simbólica impostos pelo Estado,
por certas camadas da população e pelo excludente sistema econômico que atua na

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dinâmica dos grandes centros urbanos contemporâneos. Diferente das perspectivas – ou,
na noção proposta por este trabalho, dos engajamentos do olhar – percebidas na arte do
flâneur ou nas etnografias produzidas na Escola de Chicago, Arlindo não se restringe
em suas composições a considerações em terceira pessoa. O “eu lírico” de suas canções
tangencia o olhar panorâmico sugerido pelo trânsito errante do flâneur e ao mesmo
tempo clama pela compreensão densa destes diferentes mundos almejada pelo trabalho
etnográfico. Diferente destes dois olhares, a cidade que emana de Arlindo permite
também a afirmação de pertencimentos múltiplos: em seu fazer poético lhe é permitido
ser o favelado, o transeunte, o policial ou o “bandido”.
Justamente por congregar diferentes mundos e perspectivas, o espaço urbano é
simultaneamente plural em sua singular materialidade, é ressignificado de acordo com
os atores que nele vivem, agem, ou sobre ele refletem. Nas palavras de Gilberto Velho,
“uma questão interessante em Antropologia é, justamente, a procura de localizar
experiências suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas” (Velho:
1987, p. 15). Uma dessas fronteiras, claramente percebida por Arlindo, é a postura -
muitas vezes reiterada pela imprensa hegemônica e por determinadas camadas da
sociedade carioca - de criminalização das favelas. Situação em muitos sentidos análoga
a essa, foi observada na crítica de Foote Whyte ao discurso hegemônico sobre
Corneville: “há algo de errado neste quadro: nele não há seres humanos” (Foote Whyte:
2005, p. 20). A este quadro “desumanizador”, Arlindo Cruz ofereceu uma resposta
ainda em seu período no Fundo de Quintal:
“Quantos morros já subi, desci, sem ver
O que falam por aí me faz tremer
Essa gente vive assim, sem reclamar
Lá ninguém é tão ruim, lá também se sabe amar
Todo mundo é irmão, todo mundo é companheiro
Lá no morro da Formiga, do Borel e do Salgueiro
Lá tem samba pé no chão, poesia verdadeira
Lá no morro da Serrinha, lá no morro de Mangueira
(...)
Essa gente vive em paz, essa gente faz o bem
Seja no Pau da Bandeira, seja na Vila Vintém
Esse povo que a cidade chama de fora da lei
Vive com dignidade sem levar vida de rei
Essa gente vive em paz essa gente faz o bem
Seja no Pau da Bandeira seja na Vila Vintém

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Esse povo que a cidade chama de fora da lei
Vive com dignidade sem levar vida de rei
O morro que a sociedade
Não quer enxergar como eu enxerguei
Vive com dignidade sem levar vida de rei
Chacrinha, Turano e Rocinha
E outros lugares que eu não cantei
Vive com dignidade sem levar vida de rei
No morro que eu pude encontrar amizade
Que em outros lugares que não encontrei
Vive com dignidade sem levar vida de rei” (Quantos morros já subi)
Como um flâneur que sobe despretensioso as favelas cariocas, o eu lírico desta canção
escrita por Arlindo Cruz, Mário Sérgio e Pedrinho da Flor oferece um olhar
panorâmico, mas que propõe justamente a dissolução do olhar à janela como método de
conhecimento. De perto, há seres humanos e, consequentemente, afetividade.
A complexidade de discursos criminalizadores foi trabalhada por Howard
Becker em seu livro Outsiders. Em vez de essencializar determinadas práticas como
“desviantes”, Becker propõe que às Ciências Sociais caberia averiguar a forma como o
“desvio” é construído pelo embate entre distintos grupos sociais. Na abordagem
proposta pelo autor, é necessário considerar que “grupos sociais criam desvio ao fazer
as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas e rotulá-las
como outsiders” (Becker: 2009, p. 22). Outra canção resvala diretamente nesta temática:
Entendo esse mundo complexo, favela é a minha raiz
Sem rumo, sem tino, sem nexo e ainda feliz.
Nem toda a maldade humana está em quem porta um fuzil
Tem gente de terno e gravata matando o Brasil
Favela,ô, favela que me viu nascer
Eu abro o meu peito e canto o amor por você.
Favela,ô, favela que me viu nascer
Só quem te conhece por dentro pode te entender.
O povo que sobe a ladeira ajuda a fazer mutirão
Divide a sobra da feira e reparte o pão.
Como é que essa gente tão boa é vista como marginal?
Eu acho que a sociedade tá enxergando mal (Favela)

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A figura do “traficante” – termo hegemonicamente usado para taxar o
responsável pelo varejo de drogas lançadas na ilegalidade pelo Estado – é a principal
referência utilizada pelos discursos que criminalizam os moradores de favela. De forma
bastante sensível, esta canção questiona não apenas a marginalização dos moradores
destes espaços, como do próprio “traficante”. Afirmar que “nem toda a maldade humana
está em quem porta um fuzil” é compreender a complexidade das relações que tomam
forma nestes ambientes com a propriedade de quem os “conhece por dentro”. De volta
ao trabalho de Foote Whyte, é possível comparar a música entoada pelo cantor às suas
observações sobre a criminalização dos gângsteres em Nova Iorque:
“Numa crise, o „peixe-graúdo‟ torna-se propriedade pública. É destacado da sociedade na qual
atua e julgado segundo padrões diferentes daqueles de seu próprio grupo. Esta pode ser a
maneira mais eficaz de processas um criminoso, porém não é um modo de entendê-lo” (Foote
Whyte: 2005, p. 20)
A liberdade do fazer artístico possibilita não só o caminhar reflexivo pelos diferentes
códigos e mundos da cidade, mas também o colocar-se poeticamente em várias posições
do espectro de pertencimentos que se constroem nestes ambientes. Um dos temas mais
marcantes na trajetória da cidade do Rio de Janeiro nas últimas décadas, a complexidade
dos conflitos entre policiais e “bandidos” nas favelas, também foi tema de reflexão na
obra de Arlindo:
“Bateu de frente o bandido e o subtenente lá do batalhão
Foi tiro de lá e de cá, balas perdidas no ar
Até que o silencio gritou, dois corpos no chão, que azar
Feridos na mesma ambulância, uma dor de matar
Mesmo mantendo a distancia não deu pra calar
Polícia e bandido trocaram farpas, farpas que mais pareciam balas
E o bandido falou assim: você levou tanto dinheiro meu e agora vem querendo me prender
(Polícia) Eu te avisei você não se escondeu, deu no que deu a gente tá aqui
Pedindo a Deus pro corpo resistir, será que ele ta afim de ouvir?
(Bandido) Você tem tanta bazuca pistola fuzil e granada, me diz pra que tu tem tanta munição
(Polícia) É que além de vocês nós ainda enfrenta um outro comando outra facção
Que só tem alemão sanguinário, um bando de otário marrento querendo zoar” (Numa cidade
muito longe daqui - Polícia e Bandido)
O engajamento do olhar que permeia as canções de Arlindo Cruz é apenas um
exemplo das possibilidades de reflexão sobre o ambiente urbano oferecidas pela música
popular. Obviamente, nem todas estas músicas foram compostas exclusivamente por
ele, que frequentemente realiza parcerias com outros artistas. A dificuldade de se obter
informações precisas sobre seus parceiros nas composições e a quem coube exatamente
a construção das letras não ofuscam o fato de que todas as canções aqui citadas foram
por ele gravadas e, logo, fazem parte da mensagem que pretende transmitir. O que se
buscou salientar nesta seção foi alguns dos múltiplos recursos de que o artista dispõe na
sua reflexão sobre a cidade e os atores que a ela dão significado. Como um flâneur, é
possível agir como um transeunte que traça panoramicamente alguns dos tipos urbanos
que encontra. Como o antropólogo, lhe é permitido clamar por um olhar “de perto e de
dentro” – para utilizar a expressão de Magnani sobre o que o olhar antropológico pode
oferecer à cidade (Magnani: 2002). Mas cabe também ao papel do artista travestir-se
dos próprios tipos sobre os quais se propõe a refletir. A ele é permitido ser o policial e o
bandido ou, quem sabe, a própria favela:
“Meu nome é favela
É do povo do gueto a minha raiz
Becos e vielas
Eu encanto e canto uma história feliz
De humildade verdadeira
Gente simples de primeira” (Meu nome é favela)

Conclusão
Propor cruzamentos entre as noções de flâneur, antropólogo e artista, elencadas
aqui como índices de reflexão sobre diferentes olhares direcionados ao ambiente e à
dinâmica urbana, não significa de forma alguma traçar entre elas alguma relação
hierárquica. Tomados como abstrações, os engajamentos do olhar – ou seja, o modo
como buscam orientar as reflexões - propostos por estes atores se fundem e se
distanciam por vários caminhos. A clivagem pesquisador/pesquisado pode não fazer
sentido, por exemplo, a um músico popular como Arlindo Cruz ao qual não interessa
nenhum tipo de objetivação “científica” como almejada de certa forma pelos etnógrafos
de Chicago. Apesar disso, é possível que o artista também reivindique um olhar mais
atento às singularidades das relações engendradas na cidade. Também o flâneur,
profissão de fé de um fazer artístico específico, está presente no olhar do antropólogo
que busca compreender como, no simples atravessar de uma rua, é possível conhecer
um mundo novo: sem dúvida, no afã que os impulsiona a desvelar as tramas urbanas, os
três se cruzam com freqüência em alguma esquina.

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