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Governo de Minas Gerais,

Fundação Municipal de Cultura e Le Petit apresentam:

Mostra de cinema
permanente
décima sétima edição
PATROCÍNIO
editorial
CA1324/001/2017

Daniela Fernandes
Violência SA

Desde o início da década de 1980, Marilena


Chauí já discorria: a sociedade brasileira é
autoritária e violenta. “Não se trata, porém, de
considerar os brasileiros como individualmente
violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas
históricas que produzem uma vida social em
que o espaço público e republicano é mingua-
do, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito
da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano,
relações de poder.”
PARCERIA O autoritarismo e a violência serão escan-
carados na tela do cinema na nossa 17ª Edição.
Como não abordar, “exibir” um tema que
é tão atemporal? A opressão, o medo e a inti-
midação caminham lado a lado por décadas e
décadas na nossa história. Partindo do tema
“A Violência no Cinema Brasileiro”, apresen-
taremos a nossa inquietação e impassividade
APOIO CULTURAL diante de APOIO
questões que envolvem desde a vio-
INSTITUCIONAL
lência à nossa ética. Através do olhar forte da
nossa curadoria, serão apresentados 8 clássicos
da filmografia brasileira e, cá pra nós, este ano
a Mostra vai tirar seu fôlego. Nosso caderno de
crítica apresenta um novo formato, mais encor-
pado, demonstrando o olhar de 16 críticos que
APOIO resenharam, de forma elétrica, sobre os filmes.
O que falar dos próximos 4 meses de sessões
e encontros? Que serão intensos e libertários.
Nosso papel continuará sendo o de dialogar,
questionar e trazer à tona questões históricas.
Nossos filmes, nossa memória – assim como a
ética – não podem ser esquecidos.
CORREALIZAÇÃO REALIZAÇÃO INCENTIVO
Diretora Curta Circuito
curadoria Andrea Ormond
Abra a porta e deixe entrar: a violência
no cinema brasileiro

O cinema brasileiro é parte da alma nacional,


tanto quanto a malandragem ou a jabuticaba.
E existe nele um mundo sórdido, obscuro. Por
mais que doa, é preciso admitir: o país do futu-
ro tem exímia tradição em matéria de violência.
Atos grandiosos – torturas, banhos de sangue –;
atos pequeninos – escondidos debaixo do tapete.
Para desafiar a lógica do bom mocismo
nacional, a Mostra Curta Circuito de 2018
coloca o dedo na ferida. São oito filmes sobre
a violência no cinema brasileiro. Nem sempre modo vazio. Abandonamos as escolhas mais pelas pornochanchadas dos anos 1960 e 1970 Falando sobre o cinema de ação no Brasil,
debatidos, mas atualíssimos. conhecidas pelo grande público e preferimos –, desconstrói esse dogma. Celeste (Cláudia com tiros, correrias espetaculares e poucos
Teremos serial killer (Ato de Violência, de elementos raros, inusitados. Afinal, cinema é Ohana), a cocota filhinha de papai, manipula recursos financeiros, surge Os Treze Pontos,
Eduardo Escorel); uma tentativa brasileira de um fenômeno artístico, embriagado de diversi- um idiota. É o confronto da força bruta com a realizado em Minas Gerais. Alonso Gonçalves
cinema de ação (Os Treze Pontos, de Alonso dade, de estilos, intenções. força do sexo, cheio de tintas novelescas e car- dirige a trama e encarna o protagonista. Um
Gonçalves); juventude transviada (A Lei do Cão, Eu Matei Lúcio Flávio debocha do realismo tões-postais do Rio de Janeiro. Tudo planejado autêntico sururu no roteiro, misturando loteria
de Jece Valadão); a versão radiofônica dos jor- social. Dirigido por Antonio Calmon, ovelha des- por Paulo Sérgio Almeida, diretor que mais tarde esportiva – sim, houve uma época em que ela
nais populares de notícias (O Outro Lado do Cri- garrada do Cinema Novo, o filme peitou os câno- se especializou na franquia dos filmes de Xuxa existiu – e informática. A estratégia acaba res-
me, de Clery Cunha); a epopeia da ultraviolên- nes e deu uma resposta pop, autoral. Da mesma Menenghel. Beijo na Boca usa algumas histórias saltando o eterno flerte dos filmes de ação com
cia (Eu Matei Lúcio Flávio, de Antonio Calmon); carne em que Hector Babenco criou Lúcio Flávio de crimes cometidos por casais homicidas. Boni- a tecnologia. Mesmo sem firulas digitais e sem
a mulher como elemento devorador e senhora – O Passageiro da Agonia, um filme-denúncia, tos e, de longe, absolutamente normais. a estética de videogame que atualmente povoa
de si (Beijo na Boca, de Paulo Sérgio Almeida); o Eu Matei Lúcio Flávio extraiu praticamente uma Essa tensão entre normalidade e patologia os blockbusters, Os Treze Pontos deixa agradável
ódio em tempos de votação eleitoral (A Próxima história em quadrinhos, coleção de vinhetas explode em Ato de Violência. Como pano de surpresa para os espectadores.
Vítima, de João Batista de Andrade); a canalhice memoráveis que muito anteciparam o cinismo fundo, vemos a análise sobre até que ponto o Em tempos idos, o rádio era elemento aglu-
do crime organizado versus o poder gay (Repúbli- das décadas seguintes. Críticas apressadas não desejo de “constituir família” é uma tara impos- tinador da família brasileira. Assim como o
ca dos Assassinos, de Miguel Faria Jr.). entendem as alucinações de Calmon. Mas foi ta pela sociedade. Baseado em fatos reais, Ato pinguim em cima da geladeira, o rádio ficava
Como visto, o gênero da violência é amplo, ele o responsável por colocar na tela um homem de Violência aborda a história de Chico Pica- no meio da sala. Ao seu redor, crianças de cal-
cabem diversos subitens. Além dos aspectos amarrado, martirizado, à imagem e semelhança dinho, aqui batizado de Antônio (Nuno Leal ças curtas, o pai fazendo contas, a mãe pondo
visíveis – os hematomas e as certidões de óbi- de São Sebastião – figura típica na mitologia eró- Maia). Homem pacato, que assassina mulher, é os pratos na mesa. Como nem tudo são flores,
to –, a violência também abriga outros tipos de tica, analisada por gente como Yukio Mishima. preso, cumpre a pena. Casa-se na prisão, sai em a tradição radiofônica viajou para a atmosfera
perversidade. Pode aparecer em um sussurro, Está lá, no meio da saraivada de testosteronas. liberdade condicional, mas repete o crime com barra pesada dos crimes. Casou-se com os jor-
durante o jantar da família, e ser tão poderosa Basta olhar. Sem preconceitos. Olhar. uma prostituta. O filme traz o véu da melanco- nais, que já batiam ponto no métier, e nasceram
quanto uma facada na jugular. Curiosamente, violência costuma ser as­­ lia, com passeios sombrios pelas ruas da Boca filhos como Gil Gomes. Gil misturou rádio,
Cada um dos filmes selecionados tem a mis- sociada ao universo masculino. Beijo na Boca, do Lixo, de São Paulo. novela e assassinatos. Em O Outro Lado do Cri-
são de falar da violência sem engrandecê-la de produzido por Pedro Carlos Rovái – conhecido me, de Clery Cunha, narra causos pitorescos

curta circuito 2018


com a voz histérica. Anos mais tarde, Clery e do em 1967, A Lei do Cão possui um tipo de vio- da como, por exemplo, os italianos fazem com
Gomes trabalhariam juntos novamente, no lência que seria explorada na década seguinte. os gialli. No Brasil, ela fornece o combustível
clássico programa de televisão “Aqui, Agora”. Espécie de redneck paranoia, com jovens trans- para o fenômeno cultural que criou um edifí-
Televisão, por sinal, é o mote de A Próxima viados e brasileira filosofia de botequim. Uma cio cinematográfico de extrema originalidade.
Vítima. João Batista de Andrade estava incen- pérola da filmografia nacional, que permaneceu Com os pés fincados na brutalização do cotidia-
sado com O Homem Que Virou Suco, sobre esquecida por cinco décadas, agora resgatada no, temos uma pantera que cresce exponencial-
migrantes nordestinos na megalópole. A Próxi- na programação da Mostra Curta Circuito. mente a todo minuto. Agora mesmo, enquanto
ma Vítima aborda novas camadas de crueldade. 2018 é ano de eleições, que podem ser tran- o leitor vira as páginas.
Perto do fim do regime militar, durante as elei- quilas ou de terrível fanatismo. A Próxima Víti- No relicário do tempo, os debates trazidos
ções estaduais, o repórter de TV, David (Antô- ma já demonstrava que o mundo cruel existe, pelos oito filmes permanecem na ordem do dia.
nio Fagundes), apaixona-se por uma garota de mesmo para aqueles que ficam maravilhados Desafiam o narcisismo do século XXI, tão auto-
programa. Mergulha de cabeça na loucura de com a euforia cívica. Sobretudo em um país centrado e falsamente equilibrado em campa-
amar a mulher de todos, condenada por todos. recordista de homicídios, líder em indicadores nhas higienistas, que não se sustentam diante
Fagundes foi destemido o suficiente para rom- de desigualdade social e com fôlego muito cur- de um piparote mais forte. Por trás da euforia
per com o rótulo de macho alfa em cena históri- to para o exercício democrático. Debater a vio- da felicidade, da miríade de selfies, das estreli-
ca. Ao confrontar o suspeito de um crime, acaba lência tornou-se necessidade urgente. nhas em aplicativos, o mundo lá fora ruge, com
recebendo a medida extrema. O rapaz urina Felizmente para nós, a Curta Circuito usa a boca aberta e os dentes afiados. A violência
no rosto do repórter. Não há concessões, João o guarda-chuva das artes e seleciona uma, permanece como paradigma brasileiro, brotan-
Batista não edulcora o ódio. em especial: o cinema. Nele repousam vários do não apenas dos problemas sociais ou econô-
República dos Assassinos utiliza recurso canais de comunicação, como a fotografia, a micos, mas também da dessensibilização das
importante em nossa trajetória cinematográfi- cenografia, a escrita do roteiro, as questões almas. Profunda, em quase todo ser humano.
ca: a adaptação literária. O livro homônimo de econômicas da produção. Devemos observar o O cinema abre uma porta para esse enrosco.
Aguinaldo Silva causou rebuliço ao contar a his- modo com que tudo isso é colocado na panela e A Curta Circuito, sempre embalada na missão
tória dos “Homens de Ouro”, grupo de policiais remexido pela equipe de um filme. Sem a inten- de resgate histórico do cinema brasileiro, traz o
que recebeu carta branca para combater o crime ção ingênua de dar soluções para um problema carnaval para a sala escura. Um corso de demô-
no Rio de Janeiro. Aguinaldo foi editor do jornal estrutural da sociedade brasileira, lançamos o nios, êxtases e reflexão. Aproveite. Porque ele
O Lampião da Esquina, marco da comunidade olhar para oito longas-metragens fulminantes está prestes a começar.
LGBT, quando ainda nem sequer existia o acrô- do cinema nacional.
nimo. Trocando nomes – para evitar consequên- Para que a seriedade do drama, se é possível
cias –, República afrontou o submundo do crime ser kitsch como Gil Gomes? Para que a tese da
com elementos da mais fina flor gay. O beijo da virilidade, se podemos debochar nas entreli- Andrea Ormond
travesti Eloína (Anselmo Vasconcellos) em Car- nhas, como em Eu Matei Lúcio Flávio? O beijo Formada em Letras e Direito pela PUC-Rio, é
linhos (Tonico Pereira) ainda hoje ecoa. Dois na boca pode ser perverso, como o de Celeste, escritora, além de curadora e crítica de cinema.
losers na noite delicada e suja, ao som de Rober- ou clamar por um lugar ao sol, como o de Eloí- Autora da trilogia de livros “Ensaios de Cinema
to Carlos, trazidos pelas mãos de Miguel Faria Jr. na. O tapa dói na cara do repórter David, mas os Brasileiro – Dos Filmes Silenciosos ao Século
Como não poderia deixar de ser, Jece Vala- moçoilos de A Lei do Cão dançam com a cabe- XXI”. Mantém desde 2005 o blog Estranho
dão aparece neste ciclo de filmes. Tanto na ça entupida de mandrix. Ao fim de tudo, pode Encontro, exclusivamente sobre cinema brasi-
frente das câmeras – como protagonista, em Eu restar apenas a derrota de Antônio em Ato de leiro. Colabora na Folha de São Paulo e na revis-
Matei Lúcio Flávio – quanto atrás delas – como Violência, e o rastro das mortes que sociologia ta Cinética, tendo participado das revistas Fil-
produtor e diretor, em A Lei do Cão. Ame-se ou nenhuma consegue limpar. Mas cinema é tam- me Cultura, Rolling Stone, Teorema e dezenas
deixe-se Jece, é inegável que a sua persona mes- bém ilusão, o tiro pode ser de festim, nas lutas de coletâneas e catálogos de mostras. Na ficção
merizou o público durante décadas. Esteve à de Os Treze Pontos. publicou os livros “Longa Carta Para Mila”
vontade nos crimes filmados: bicheiro, homem Em processo de análise comparada, a vio- (2006) e “Rainha” (2017). Curadora do Curta
da lei, fanfarrão e – surpresa! – visionário. Roda- lência nos filmes brasileiros há de ser garimpa- Circuito - Mostra de Cinema Permanente.

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críticos
Carlos Primati Elpídio Rocha Marcelo Miranda Felipe M. Guerra
Crítico, pesquisador e curador especializado Jornalista e cinéfilo, é um dos organizadores É jornalista, crítico, pesquisador e curador de Jornalista e pesquisador de cinema. Escreveu
em cinema fantástico, com enfoque específico e debatedor do projeto Cinema Comentado cinema. Mestre em Comunicação pela UFMG, centenas de artigos para o portal Boca do Inferno
na produção brasileira. Organizou a obra com- Cineclube, em Montes claros (MG), desde é co-organizador do livro em dois volumes e para seu próprio blog, Filmes para Doidos. Tam-
pleta de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e 2004. Admirador e fã do cinema brasileiro Revista de Cinema – Antologia (1954-57/1961- bém escreveu e dirigiu diversos curtas e longas-
escreveu para catálogos abordando a obra de nos diversos gêneros, estilos e experiências 64) e escreve na revista eletrônica Cinética. Fez metragens independentes.
Carlos Hugo Christensen, Carlo Mossy, Rodri- cinematográficas. seleção de filmes para o Festival Internacional
go Aragão e outros. de Curtas de BH (2007-2013), Festival de Curtas Bianca Dias
Fernando Oriente de São Paulo (2015-2016), Festival de Brasília Psicanalista, escritora e crítica de arte. Autora
Marcelo Carrard Araújo Crítico, professor e pesquisador de cinema. (2010), Indie Brasil (2013-2015), Mostra Cinema do livro Névoa e assobio e pesquisadora em arte
Jornalista, critico e pesquisador de cinema. Edi- Editor e crítico do site de cinema Tudo Vai Bem, Conquista (2014-2017), Cine BH (2017), Sema- e psicanálise.
tor do canal Cinema Ferox do YouTube. além de colaborador em outras publicações. na dos Realizadores (2016-2017) e Pachamama
(2016-2017), entre outros. Luiz Soares Junior
Adilson Marcelino Leandro Cesar Caraça É professor de filosofia, crítico de cinema e
É negro, jornalista, pesquisador de cinema É pesquisador, professor de História e de Cine- Eliska Altmann tradutor. Redator da revista Cinética, também
brasileiro, e criador e editor do site Mulheres do ma, e Mestre em Multimeios pela Universidade Socióloga e pesquisadora de cinema. Doutora escreveu para a espanhola Lumière e portuguesa
Cinema Brasileiro. de Campinas - UNICAMP. em Sociologia pela UFRJ (PPGSA), membro da À Pala de Walsh; mantém um blog de tradução
SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos de de crítica francesa de cinema, e está na iminên-
João Carlos Rodrigues Eduardo Haak Cinema e Audiovisual. Realiza pesquisas sobre cia de lançar seu primeiro livro, o De forças e de
Jornalista e pesquisador. Autor de O negro no Escritor, paulistano, nascido em 1971. Dois crítica cinematográfica e cinema na América fantasmas; o demoníaco no cinema clássico.
cinema brasileiro (quarta edição), Cine Danúbio livros publicados, “Tem Uma Coisa Sobre Mim Latina. Idealizadora do portal CineCríticos.
- páginas de reflexão sobre o cinema brasileiro e Que Acho Justo Você Saber” (KBR Editora,
João do Rio: vida, paixão e obra. 2011) e “Adulteração” (Edição do Autor, 2017). Fábio Leite
É jornalista e crítico de cinema. Escreveu para
Ailton Monteiro Beatriz Saldanha o Pasquim, Estado de Minas e Hoje em Dia,
É mestre em Literatura Comparada pela Uni- Pesquisadora, crítica de cinema e curadora, onde foi também editor-adjunto (caderno
versidade Federal do Ceará. É membro da mestra em Comunicação audiovisual pela Uni- Cultura). Foi editor-chefe do Agenda (Rede
Abraccine e da Aceccine. Mantém o blog Diá- versidade Anhembi Morumbi (SP). Membra da Minas) e editou os livros “O Fim das Coisas
rio de um Cinéfilo desde 2002 e contribui tam- Aceccine, escreve para a revista Movimento - As Salas de Cinema de Belo Horizonte” e
bém com críticas para o site Pipoca Moderna. e administra a Revista Les Diaboliques, espe- “Cinema em Palavras”.
cializada em cinema de horror mundial visto
por mulheres.

curta circuito 2018


filmes

17 ato de violência 69 O Outro Lado do Crime

29 A Lei do Cão 81 Beijo na Boca

41 Os Treze Pontos 97 A Próxima Vítima

53
8
Eu Matei Lúcio Flávio 113 República dos Assassinos
9
sumário
14 Programação 37 Um cineasta chamado Jece Valadão
Adilson Marcelino

16 Locais de Exibição 45 Sequestro, fuga e loteria esportiva


Ailton Monteiro

21 Autorretrato de um serial killer da Boca do Lixo


Marcelo Carrard Araujo 49 Um policial à mineira que conquista o público
Elpídio Rocha

25 Retalhos da vida: coisas de um mundo imundo


Carlos Primati 57 Um dos grandes filmes da história
do cinema brasileiro
Fernando Oriente

33 A lei da oferta e da procura


João Carlos Rodrigues 62 Intenso, amoral, cafajeste
Leandro Cesar Caraça
73 Cubo quente
Eduardo Haak 106 Os crimes do Brás e o medo
de que nada mude
Felipe M. Guerra

77 Rádio, Cinema e Televisão


Beatriz Saldanha 117 Imagem e violência
Bianca Dias

85 122
“Eu não sou aluna de ninguém” ou
Como aprender com Celeste. Uma O novelesco macho da danação
leitura sobre Beijo na boca e o romanesco diva do luto tardio
Eliska Altmann Luiz Soares Junior

92 Violência na carne
Marcelo Miranda 128 Ficha Técnica

101 Um thriller contundente e sombrio


Fábio Leite
programação
Belo Horizonte/MG Araçuaí/MG Montes Claros/MG

05/03| 20H 28/05 | 20H 23/03 | 19H 24/03 | 19H


Ato de Violência Beijo na Boca Os treze pontos Os treze pontos
Eduardo Escorel, RJ, 1980, 115’ Paulo Sérgio Almeida, RJ, 1981, 97’ Alonso Gonçalves, BH, 1985, 107’ Alonso Gonçalves, BH, 1985, 107’
Bate-papo após a sessão com o diretor Bate-papo após a sessão com o ator Bate-papo após a sessão Bate-papo após a sessão
Eduardo Escorel e o ator Nuno Leal Maia Mário Gomes e o produtor Pedro
Carlos Rovai
27/04 | 19H 28/04 | 19H
19/03 | 20H O Outro Lado do Crime O Outro Lado do Crime
A Lei do Cão 04/06 | 20H
Clery Cunha, SP, 1979, 95’ Clery Cunha, SP, 1979, 95’
Jece Valadão , RJ, 1967, 100’ A Próxima vítima
Bate-papo após a sessão Bate-papo após a sessão
Bate-papo após a sessão João Batista de Andrade, SP, 1983, 93’
Bate-papo após a sessão com o diretor
25/05 | 19H 26/05 | 19H
João Batista de Andrade e a produtora
02/04 | 20H Beijo na Boca Beijo na Boca
Assunção Hernandes
Os treze pontos Paulo Sérgio Almeida, RJ, 1981, 97’ Paulo Sérgio Almeida, RJ, 1981, 97’
Alonso Gonçalves, BH, 1985, 107’ Bate-papo após a sessão Bate-papo após a sessão
Bate-papo após a sessão com o diretor
25/06 | 20H
Alonso Gonçalves
República dos Assassinos 22/06 | 19H 23/06 | 19H
Miguel Faria Jr., RJ, 1979, 100’ A Próxima vítima A Próxima vítima
30/04 | 20H
Bate-papo após a sessão com o diretor João Batista de Andrade, SP, 1983, 93’ João Batista de Andrade, SP, 1983, 93’
Eu matei Lúcio Flávio
Miguel Faria Jr e o ator Anselmo Bate-papo após a sessão Bate-papo após a sessão
Antônio Calmon , RJ, 1979, 97’ Vasconcelos
Bate-papo após a sessão com o crítico
Fernando Oriente

07/05 | 20H
O Outro Lado do Crime
Clery Cunha, SP, 1979, 95’
Bate-papo após a sessão com o diretor
Clery Cunha e com o radialista Gil Gomes

14 curta circuito 2018 15


Em liberdade
locais de exibição condicional, após ter
cumprido um terço
MINAS GERAIS
da pena a que fora
condenado, Antonio
Belo Horizonte
Cine Humberto Mauro, Palácio das Artes
Av. Afonso Pena, n° 1537, Centro

Montes Claros
Cinema Comentado Centro Cultural
volta a cometer um
Praça Dr. Chaves, nº 32, Centro
crime quase idêntico
Araçuaí
Centro Cultural Luz da Lua
Rua Dom Serafim, n° 426, Centro ao primeiro: em um
pequeno apartamento,
no centro de São
Classificação indicativa 18 anos
Entrada Franca

Paulo, estrangula e
esquarteja
uma mulher.

16 curta circuito 2018


ato de violência
Autorretrato de um
serial killer da Boca do Lixo
Marcelo Carrard Araujo
O cinema sempre foi fascinado pela figura do
assassino em série (serial killer), devolvendo
para o público retratos desses seres que comete-
ram atos insanos de violência, que construíram
uma narrativa muitas vezes ritualizada e repeti-
tiva de homicídios. Clássicos absolutos como M
- O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (1931),
são exemplos de destaque nesse conjunto de fil-
mes. Presentes com muita intensidade na cultu-
ra pop norte-americana, os serial killers sempre
foram um fenômeno mais comum em culturas
anglo-saxônicas, com alguns desdobramentos
em países europeus e na Ásia. Aqui no Brasil
ainda são um fenômeno raro. Dos assassinos
em série nacionais mais notórios e recentes interessante composição cromática onde as
temos Fortunato Botton Neto (“O Maníaco do cores vermelho, azul e verde, que aparecem nos
Trianon”), que inspirou o livro: Dias de Ira – Uma créditos iniciais, se fazem presentes nos néons
História de Assassinatos Autorizados” (2001), de do hotel e dos bares na região da Boca do Lixo, o
Roldão Arruda; Francisco de Assis Pereira (“O famoso quadrilátero que inclui a rua do Triunfo
Maníaco do Parque”); Marcelo Costa Andrade e a rua Vitória, uma das locações do filme. Essas
(“O Vampiro de Niterói”); entre outros. Um dos mesmas luzes se projetam dentro do aparta-
mais icônicos, ainda vivo, que faz parte do ima- mento durante a noite. Cada plano é fotogra-
ginário popular nacional de maneira profunda é fado de maneira quase documental em muitos
o capixaba Francisco da Costa Rocha (“O Chico momentos, e de grande beleza nas sequências
Picadinho”) que, em um espaço de dez anos, das barcas de Niterói. A maneira como foi foto-
entre 1966 e 1976, esquartejou duas prostitu- grafado o presídio, com locações no Carandiru,
tas em São Paulo, na região central conhecida reafirma o olhar esteta de Lauro, que consegue
como Boca do Lixo. criar composições de uma beleza estranha,
Um dos cineastas mais sensíveis do cine- mesmo em um cenário de profunda fealdade e
ma brasileiro, que se notabilizou por filmes de tristeza como os interiores de uma penitenciá-
rara beleza como Lição de Amor (1975), Eduar- ria. Os registros das externas na Boca do Lixo
do Escorel decidiu contar a história de “Chico são antológicos, poucas vezes a Boca foi mos-
Picadinho” de forma muito singular, sem jul- trada no cinema da maneira que aparece em
gamentos e sem maniqueísmos. Em 1980, ele Ato de Violência, com as sombras e a atmosfera
lança Ato de Violência, protagonizado por Nuno melancólica que ilustram muito bem a jornada
Leal Mais e Selma Egrei. O filme tem muitos do protagonista rumo ao seu abismo.
pontos altos. A direção de fotografia é do irmão Outro destaque é a trilha sonora inspira-
de Eduardo, Lauro, que já abre o filme com uma da e de grande força narrativa, composta por
Eduardo Escorel / RJ 1980 115’
21
morta e despida, o que pode caracterizar uma cias de Polícia. Outro detalhe interessante está
pulsão necrófila do protagonista. A necrofilia é no texto do primeiro interrogatório, em que é
um dos pontos que une a maioria dos assassinos destacado o detalhe de que o protagonista teria
em série, seu hábito de interagir e conviver com cometido o homicídio por causa da negativa da
corpos sem vida. A sequência da mutilação tem vítima de ser sodomizada, sendo essa prática
um certo desconforto para o público não acos- denominada de “coisa de veado” pelo delegado
tumado com representações mais cruas, mais e pelo escrivão. Preconceitos e ambiguidades
explícitas da violência. O assassino, quase como sexuais se fazem presentes nesse momento.
um autômato, carrega o corpo da mulher até a Como se todo aquele contexto do crime tenha
banheira e inicia, como em um ritual silencioso como origem o meio onde ocorreram os atos
e frio, o processo de mutilação do cadáver. Não bárbaros de violência, como se fosse algo típico
choca como sequências similares que aparecem de protagonistas da noite da Boca do Lixo, mar-
em filmes como Henry - Retrato de um Assassino ginais e excluídos que vivem em um território
(1986), de John McNaughton, ou Sedução e Vin- permissivo, desprezado pela sociedade. Esse
gança (1981), de Abel Ferrara, mas impressiona, espaço da vida noturna marginal, das práticas
principalmente pela performance de Nuno Leal sexuais e sociais interditas criam essa atmos-
Maia, que em nenhum momento é over acting, fera de repressão e medo. A angústia do prota-
histriônica. Ele é um homem absolutamente gonista transitando por esse espaço aparece de
comum, que poderia ser um vizinho, um amigo forma crescente em termos dramáticos, em um
próximo. Mesmo com uma atuação mais con- casamento perfeito entre a edição, de Gilberto
Egberto Gismonti. A relação música e imagem tida o ator consegue, com o olhar, dizer muito Santeiro, colaborador de diretores cultuados do
presente no filme consegue acentuar a angústia nas entrelinhas. A presença de Selma Egrei, Cinema Brasileiro, como Ivan Cardoso e Júlio
e o desejo mórbido do protagonista, com um outra atriz que tem uma força expressionista Bressane, com as imagens fotografadas por
efeito dramático genial onde a beleza da músi- nos olhos, surge como contraponto na vida do Lauro Escorel e a trilha sonora de Egberto Gis-
ca, algumas vezes, se funde com cenas violentas protagonista, como uma possibilidade de espe- monti. Outro destaque do filme é o ator Renato
e sombrias. Um exemplo conhecido dessa rela- rança, de redenção. Existe, porém, uma ambi- Consorte, que interpreta Manoel, grande ami-
ção entre beleza e fealdade, ou beleza e cruel- guidade dessa mulher que tem um fascínio go do protagonista e figura importante para o
dade, aparece na trilha sonora antológica de estranho pela figura do assassino, com quem desenvolvimento da trama.
Riz Ortolani, para o clássico Cannibal Holocaust se casa e tenta levar uma vida pacata de classe A cronologia real dos dois assassinatos
(1979), de Ruggero Deodato. Os italianos, aliás, média baixa. Tanto essa ambientação da vida cometidos por Francisco da Costa Rocha
criaram essa escola estética com os filmes gialli, de casado do protagonista como as sequências (Chico Picadinho) ocorreu em 1966, na Boca do
em que as narrativas dos crimes, do mistério que mostram o cotidiano do presídio e as ruas Lixo paulistana, onde vivia uma rotina de álcool
são sublinhadas pela fotografia e pela trilha e ambientes característicos da Boca do Lixo são e algumas drogas ilícitas, frequentando os bares
sonora de talentosos e sensíveis artistas como muito bem retratadas pela direção de arte de e boates da região, onde conheceu sua primeira
Luciano Tovoli (fotógrafo) e Ennio Morricone, Paulo Chada, em uma colaboração muito efi- vítima, a bailarina austríaca Margareth Suida,
Stelvio Cipriani, Bruno Nicolai, Fabio Frizzi, Riz ciente com a direção de fotografia. que vivia na região e eventualmente fazia pro-
Ortolani (compositores). No primeiro depoimento para a polícia gramas sexuais. O crime ocorreu no aparta-
O roteiro engenhoso de Eduardo Escorel, vemos dois momentos de análise interessan- mento onde Francisco morava, na conhecida
com colaboração de Roberto Machado, narra tes. No início, vemos o protagonista amarrado rua Aurora, um dos endereços mais movimen-
a história do protagonista começando com o em um “pau de arara”, conhecido aparelho de tados da Boca do Lixo. A vítima foi estrangula-
segundo assassinato, nos levando através de tortura, muito utilizado nos violentos inter- da por Francisco, que em seguida a esquartejou.
flash backs para seu passado, no momento em rogatórios de presos políticos, que o roteiro O segundo assassinato ocorreu dez anos depois
que pratica seu primeiro assassinato, seu primei- conseguiu colocar em cena em plena Ditadura do primeiro, em outubro de 1976. A vítima foi,
ro ato de violência. A sequência mostra o prota- Militar brasileira, como forma de denunciar a mais uma vez, uma prostituta, chamada Ânge-
gonista nu, deitado ao lado de uma mulher na tortura política, transferindo-a para uma situ- la, que atendia seus clientes em um apartamen-
cama. Aos poucos, sem diálogos, descobrimos ação de tortura de um acusado de assassinato, to na avenida Rio Branco. O assassinato dessa
que ele estava deitado ao lado de uma mulher fato comum em muitos subterrâneos de delega- segunda vítima teve as mesmas características

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Retalhos da vida: coisas
de um mundo imundo
Carlos Primati
do primeiro: estrangulamento após o ato sexu- saída do universo da prostituição, com todos A história verídica do rapaz que estrangulou e dois filmes sobre o assunto foram lançados,
al, seguido do esquartejamento da vítima. Os os simbolismos incluídos nisso. Recentemente picou em pedacinhos duas moças, em plena ambos também intitulados O crime da mala.
crimes e o agravante da reincidência fizeram ele passou por outro laudo onde se encontra Boca do Lixo, a rota do vício e decadência da Meio século depois, o banditismo e os cri-
desse caso uma notícia de repercussão nacio- internado, na Casa de Custódia de Taubaté, no cidade de São Paulo, é uma daquelas crônicas mes violentos preservavam seu encanto sórdi-
nal. A questão do primeiro laudo psiquiátrico interior de São Paulo. Mesmo com a idade avan- da vida real que superam qualquer conceito do tanto nas páginas policiais quanto nas telas
ter falhado fez com que muitos desses procedi- çada e o tempo de internação que já ultrapassou imaginado pelo cinema de ficção. Ato de violên- de cinema – marginais notórios como o Bandido
mentos fossem revistos. A cobertura da mídia, o limite legal, a junta psiquiátrica que o analisou cia, filmado em 1979 e lançado dois anos depois, da Luz Vermelha e Lúcio Flávio, por exemplo,
o sensacionalismo foram muito grandes. Na chegou à conclusão de que ele não tem condi- é o segundo longa-metragem de Eduardo Esco- que chocaram a sociedade com suas peripécias
sequência final do filme, em que vemos o pro- ções de conviver em sociedade. Sua atividade rel como diretor, precedido pelo elogiado dra- fora-da-lei e posteriormente foram imortali-
tagonista sendo entrevistado, fica clara essa mais frequente como interno é a de pintura de ma de época Lição de amor (1976). Baseado no zados em celuloide. O rol de malfeitores que
repercussão do caso, mas também resume a quadros. A representação de “Chico Picadinho” infame criminoso Chico Picadinho, vai muito estavam na boca do povo tinha também a figura
personagem, seus traumas e culpas, onde a em Ato de Violência não é maniqueísta, seu ape- além do drama policial: é uma obra-prima que sinistra de Francisco Costa Rocha, mais conhe-
misoginia, a relação com a figura materna são lido não é dito explicitamente no filme. Nuno toca também nos âmbitos social e existencial cido pela alcunha de Chico Picadinho, que
destacadas de maneira quase documental. Leal Maia conseguiu uma interpretação realis- da questão. Permanece tão intenso hoje quanto estrangulou e esquartejou duas mulheres, em
Mesmo nessa sequência da entrevista, a inter- ta e contida, onde a angústia da personagem o na época em que estreou; tão vivo e pulsante – e 1966 e 1976, depois de fazer sexo com elas em
pretação de Nuno Leal Maia continua contida torna assustadoramente humano. Como disse o enigmático – quanto o maníaco homicida que o seu apartamento. Os assassinatos lhe renderam
na medida certa. Uma performance exagerada notório serial killer norte-americano Ted Bundy, inspirou: Francisco Costa Rocha, que, beirando comparações com “Jack, o Estripador” e com
ou repleta de clichês teria, com certeza, arrui- em sua frase mais conhecida e perturbadora: os 80 anos de idade, segue cumprindo pena em os famigerados “crimes da mala” de décadas
nado o filme como um todo. “Nós, serial killers, somos seus filhos, nós somos um hospital psiquiátrico no interior paulista. antes, por conta de o maníaco ter tentado se
Em muitos filmes inspirados em fatos reais, os seus maridos, nós estamos em toda parte. E A crônica policial, com seus casos escabro- livrar dos corpos de maneira semelhante.
o verdadeiro nome dos protagonistas é trocado. haverá mais de suas crianças mortas no dia de sos e horripilantes, sempre foi fonte de vasto O intervalo de uma década entre os dois cri-
Em Ato de Violência, o protagonista é chamado amanhã. Você sentirá o ultimo suspiro deixan- material para a ficção cinematográfica nacio- mes equivale ao período em que o assassino este-
de Antônio Nunes Correia e sua noiva é cha- do seus corpos. Você estará olhando dentro de nal. No período silencioso, o incipiente ramo ve preso, condenado pelo primeiro homicídio;
mada de Tania. As sequências onde Antônio seus olhos”. das imagens em movimento trouxe filmes a repetição de delitos praticamente idênticos,
e Tania aparecem juntos são os momentos em “posados” como O crime da mala, de 1908, antes e depois de seu encarceramento, instigou
que o protagonista demonstra suas fragilidades Marcelo Carrard Araújo explorando o fascínio mórbido do público pela debates acerca da ineficácia dos sistemas penal
e sua melancolia de maneira mais profunda, recriação do chocante homicídio cometido por e judiciário, bem como a responsabilidade dos
num contraponto com a performance do “caça- um comerciante contra seu sócio – em seguida profissionais médicos encarregados de avaliar
dor” que vaga pelas ruas escuras da Boca do ele esquartejou o corpo e o escondeu em uma as condições mentais do detento – falhando em
Lixo em uma busca por algo que satisfaça sua mala, mas logo foi descoberto. Vinte anos constatar sua patologia homicida. O sentimento
pulsão mórbida. Um dos temas centrais da his- depois, no final de 1928, ocorreu outro assas- popular era de indignação diante da soltura de
tória, que ainda causa polêmicas jurídicas até os sinato com características semelhantes – um um criminoso de tamanha periculosidade.
dias de hoje, é o fato de “Chico Picadinho” ter homem matou a esposa grávida e tentou des- O cinema da Boca do Lixo não poderia
recebido um laudo psiquiátrico que fez com que pachar seu cadáver dentro de uma mala, a qual ignorar um caso com tanta riqueza de detalhes
ele fosse libertado da prisão e voltasse a ter uma começou a pingar sangue, denunciando seu sádicos e doentios – ainda mais seu cenário
vida normal, sem reincidência. O que se seguiu macabro conteúdo e frustrando as intenções do sendo justamente o centro da cidade de São
foi a exata repetição do primeiro assassinato, assassino. Poucas semanas depois dos detalhes Paulo, epicentro do submundo marginalizado
no mesmo ambiente, com uma vítima também da tragédia estamparem as páginas dos jornais, que misturava vagabundos, prostitutas e artis-

24 curta circuito 2018 25


tas. O primeiro filme a ser lançado com ‘Não faço isso porque isso é coisa de viado’.
argumento inspirado na vida criminosa de O interrogado desesperou com esse proce-
Chico Picadinho foi Matador sexual, dirigi- dimento da mulher, o que o levou a tentar
do e estrelado por Tony Vieira, com roteiro esganá-la com as mãos.” A casualidade
de Rajá de Aragão. Sensacionalista e de com que cada detalhe do processo criminal
orçamento modesto, era um típico subpro- é tratado ao logo de toda a narrativa revela
duto da Boca do Lixo: exploração de sexo e tanto a impessoalidade do caso quanto as
violência, oferecendo uma solução simples pequenas falhas que resultarão no comple-
para a trajetória trágica do bandido: depois to fracasso da recuperação do criminoso. O
de cometer uma série de crimes contra delegado prossegue, sugerindo uma expli-
prostitutas, o assassino conhece uma moça cação simples para o ocorrido, dizendo que
parecida com sua mãe e, enfim conscien- Antônio encarnou naquele corpo “a sua
te de seus atos, comete suicídio. Matador revolta por ter sido um moço sem chance
sexual chegou às telas em agosto de 1979 e na vida e por não ter tido uma família nor-
sumiu sem deixar vestígios. mal”. O roteiro não demorará para refutar
Mas antes mesmo de Tony Vieira ter tal comodidade, e quanto mais Antônio se
começado a filmar sua versão, Eduardo revelar, menos será possível entender seu
Escorel já pesquisava a fundo o tema de seu ato de violência.
longa-metragem.
O gesto agressivo da mão
O triste retrato da morte Levado para a Casa de Detenção de São
Para preparar o longa, Eduardo Escorel Paulo, ele aguarda o resultado do processo.
passou três anos estudando o caso de Chico É visitado regularmente por Tânia (Selma
Picadinho, lendo artigos de jornal e docu- Egrei), sua doce e paciente noiva, que nun-
mentos do processo, principalmente o dos- ca o abandona e planeja se casar com ele. A
siê médico-judiciário que tentava elucidar espera de vários anos pela sentença enfim
a personalidade complexa do criminoso. O chega ao fim: Antônio Nunes Correia, 24
repórter Percival de Souza, que cobriu os invadida somente pelo brilho do luminoso em nu e inerte da prostituta que ele mesmo estran- anos, acusado de homicídio qualificado, por
crimes na época e fez uma entrevista exclusiva neon do lado de fora, piscando em verde, ver- gulou – mais tarde, em depoimento, ele irá ale- motivo torpe e usando meio cruel, é condena-
com o assassino, também colaborou no rotei- melho e azul, infiltrando-se pela veneziana e gar que não se lembra de como isso aconteceu. do a 20 anos e seis meses de prisão. Recolhido
ro, que é assinado por Escorel em parceria de pulsando como um organismo vivo. Antônio Calmo e compenetrado, inicia um demorado e à Penitenciária do Estado, ele passa por uma
Roberto Machado, doutor em Filosofia pela sai pela noite, apressado, deixando um bilhete meticuloso procedimento de sangrar e esquar- série de exames psicológicos que são incapazes
Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) e para o colega de quarto dizendo que teve que tejar o cadáver; coloca-o na banheira e com de constatar qualquer anomalia; o psiquiatra
professor da PUC-Rio, e um dos autores do livro viajar. Ao chegar a casa, Manuel (Renato Con- uma faca o reduz a pedaços pequenos, tentando decreta: “Todos os exames, entrevistas e testes
Danação da norma: medicina social e a constitui- sorte) descobre na varanda sacos plásticos com livrar-se de qualquer vestígio do crime. realizados nos permitem excluir o diagnóstico
ção da psiquiatria no Brasil, de 1978. Tamanha pedaços do corpo de uma mulher. Na delegacia, A seguir ele parte para a casa da mãe em de distúrbio endógeno de personalidade em
atenção aos detalhes resultou num filme con- começa a relatar consternado sua relação com Campo Grande, no subúrbio do Rio de Janei- linha psicopática. Não é um psicótico e nem um
tundente e muitas vezes com um aspecto docu- Antônio, com quem divide o apartamento: é a ro, onde não demora para ser encontrado pela psicopata, portanto”.
mental. segunda vez que o amigo comete um crime bru- polícia. Preso, inicia um longo e penoso proces- Antônio consegue a comutação da pena
Começa com uma tomada noturna das ruas tal, ambos praticamente idênticos. so, começando pela delegacia, onde é “inter- para 14 anos, é transferido para o Instituto
na Boca do Lixo, repleta de hotéis de quinta Antônio foge para o Rio de Janeiro e a polícia rogado” no pau-de-arara. O delegado extrai Penal Agrícola, em Bauru, e recebe permissão
categoria e pequenos apartamentos de baixa segue em seu encalço. A captura é apenas ques- do bandido um motivo para o crime: “propôs para se casar, eventualmente conseguindo a
classe. Em um deles está Antônio Nunes Cor- tão de tempo; o filme então retrocede dez anos à mulher com ele manter cópula anal, tendo a liberdade condicional devido ao bom compor-
reia (Nuno Leal Maia), a escuridão do ambiente e vemos Antônio despertando ao lado do corpo mesma se recusado terminantemente dizendo tamento durante todos os seus anos de cárcere.

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Após cometer um
crime passional,
No entanto, quando sai, não consegue manter
um emprego por mais de duas semanas, não é
violência, e um simples gesto de carinho insi-
nuam uma agressão. Bebeto, em sua fuga,
mata mais quatro
capaz de sustentar a esposa grávida e começa Na entrevista final, o único momento emo-
a beber. Pede dinheiro emprestado, começa a tivo de Antônio, o criminoso não tem qualquer
sair com prostitutas e acaba se separando da resposta razoável para as indagações dos repór-
mulher. Volta a morar com o antigo companhei- teres, nem mesmo quando insistem em sugerir

pessoas. Escondido
ro de quarto, que não esconde seu desconten- alguma fixação pela mãe (“Isso é uma coisa
tamento com a situação. Antônio não demora que Freud explicaria melhor do que eu!”), ou
para cometer o segundo crime, depois de uma quando perguntam sobre sua infância – “Não

em uma cidade,
noite de bebedeira pelos bares e perambulações sei por que matei as duas mulheres. Até agora
a esmo pela cidade, quando convida uma prosti- não encontrei motivo pra isso”. Inescrutável,
tuta para ir com ele até seu apartamento. ele próprio sugere a dificuldade de elucidar seus

não demora muito


A canção que embala a derrocada de Antô- motivos: “Vocês já pensaram se cada sujeito
nio é um dos grandes achados do filme – um que tivesse fraco por bebida, por mulher e tives-
samba de Alcione, lançado em 1976, ano do se problema na infância saísse por aí cortando
segundo crime de Chico Picadinho. Os versos mulher em pedacinho? Acho que não sobrava
“O crime lá do bangue-bangue / No cine da
Boca do Lixo / O velho mendigo na praça / A
nêga que nunca negou / O triste palhaço sem
mulher pro gasto!”.
Chico Picadinho ainda está vivo, continua
preso, o enigma de sua maldade nunca foi
para que passe a ser
conhecido entre os
graça / No circo que já desabou” parecem des- decifrado. E Ato de violência permanece sendo
crever os últimos momentos de liberdade de um dos mais poderosos filmes a lidar com esse
Antônio ao mesmo tempo que sugerem uma tema, tão atual quanto em seu lançamento.

habitantes. Com
quase metalinguagem. A música antecipa o
desfecho do caso – “O triste retrato da morte Carlos Primati
/ Estampa o jornal O Dia” – evocando o papel
decisivo da imprensa na construção deste cená-
rio de violência e tragédia.
Segundo o próprio diretor, Ato de violência é
a história da falência de todos os mecanismos
medo, eles iniciam
uma verdadeira caça
institucionais envolvidos com a questão: o
penitenciário, o judiciário, a polícia, a psiquia-
tria, a vida urbana e o próprio sistema social

às bruxas para tirar a


em que vivemos. O filme recusa interpretações
de fundo psicológico ou sociológico, tecendo
uma narrativa desprovida de emoções claras:
Antônio combina a data de seu casamento com
a mesma casualidade que fala de sua transfe-
rência para outro presídio; seus momentos de
intimidade com mulheres se confundem com
vida do assassino.
28 curta circuito 2018
A Lei do Cão
A lei da oferta e da procura

João Carlos Rodrigues


1967 não foi um ano especialmente prolífico
para o cinema brasileiro, com apenas 42 lon-
gas-metragens lançados comercialmente. O
saldo é irregular. Uma obra-prima de prestígio
e polêmica (Terra Em Transe), um sucesso de
bilheteria com qualidade (Todas as Mulheres do
Mundo), três outros bem acima da média (À
Margem, O Menino e o Vento, Perpétuo Contra o
Esquadrão da Morte) e três fracassos do Cinema
Novo tentando abordar a Zona Sul do Rio de
Janeiro (Garota de Ipanema, El Justiceiro e Mar
Corrente). Existia ainda um circuito de salas
populares com ingressos a preços acessíveis,
então havia público pagante. E produtores dis-
postos a investir. Estamos sob uma ditadura
militar de direita, governo do general Costa e
Silva, mas ainda falta um ano para a tomada do dos pesquisadores, o menu é bem variado, indo
poder pela extrema direita com o Ato 5. Parado- de comédias musicadas com Jerry Adriani a
xalmente é um período de grande criatividade melodramas sociais, passando evidentemente
nas artes plásticas, no teatro e na música, tro- pelo gênero que o consagrou no início dos anos
picalismo e tudo mais. No cinema um pouco 1960 com O Boca de Ouro e Os Cafajestes.
menos, como constatamos no caso em questão, Além de ótimo ator e produtor antenado,
produto típico do cinema comercial popular. Jece foi também diretor. Não um grande diretor,
Visto hoje, cinquenta anos depois da estreia, mas um diretor correto e vigoroso. Já na primei-
A Lei do Cão é um filme como hoje não se faz ra versão de Bonitinha Mas Ordinária, coprodu-
mais. Produção privada, sem incentivos esta- zida por ele e assinada por Billy Davies, ele teria
tais (que então mal existiam), coproduzida por dirigido várias sequências, segundo me revelou
poderoso distribuidor com boa penetração no a Odete Lara. Seu primeiro filme (Procura-se
circuito Metro, um dos melhores do país. Um Uma Rosa) foi bem de crítica e mal de público.
filme feito para o público, principalmente o Com o segundo (História de Um Crápula) acon-
masculino, e que pode ser enquadrado no então teceu o inverso. A comparação dos títulos mos-
florescente subgênero “policial carioca”. tra que o público prefere a barra pesada. A lei do
É uma produção Jece Valadão, a décima cão foi o quarto e estreou em dezembro de 1967,
primeira de sua parceria com Herbert Richers. um bom ano no qual o Jece-produtor lançou
Erra quem pensar que todos esses filmes fos- outros três, um deles o seu projeto mais ambi-
sem dirigidos por ele, ou que girassem em torno cioso e bem sucedido até então, Mineirinho vivo
de sua persona cinematográfica (o malandro ou morto, dirigido pelo Aurélio Teixeira, outro
carioca) e o submundo onde vive. Para espanto grande sucesso.
Jece Valadão / RJ 1967 100'
33
Os fãs do Jece-ator não acharão maiores Temos a boate Sancho Panza, reduto de Podemos assim incluir A Lei do Cão na lista
atrativos em A lei do cão, onde ele, apesar de Bebeto e sua turma. O assunto das conversas de obras que fazem da oposição cidade/campo
encabeçar os créditos, só aparece poucos minu- vai de Sartre a Wanderléa. Drinks e danças. O o seu tema, neste caso, subjacente. Diferente,
tos num papel pouco interessante. O protago- grupo é da pesada e tem regras rígidas e castigos entretanto da maioria esmagadora, aqui o cam-
nista é um estreante não ator (Paulo Frederico) exemplares, o pior deles a curra depois da vítima po não é apresentado como uma alternativa
que, embora não esteja de todo mal, não seguiu ingerir um vidro inteiro de anfetaminas. Que tal? desejável aos pecados da cidade grande. Pelo
carreira. Parece que toda captação do dinheiro Uma menor de idade, namorada do assassinado, contrário, é ainda pior. O controle social (que
para a produção passou pela exigência de sua diz coisas comprometedoras, leva uma surra e no Rio era permissivo a ponto de Bebeto matar
contratação. A investigar melhor. O argumento morre. A polícia aperta o cerco. Bebeto resolve e não ser preso) é muito mais rigoroso numa
é do próprio Jece (outras fontes citam o drama- fugir do Rio, sem rumo. E atropela de propósi- cidade pequena. A professora não tem direito
turgo Hélio Bloch, mas não está na ficha técni- to um guarda rodoviário. Ele é um monstro, o de trocar de noivo, os pais proíbem as crianças
ca), que consta também como roteirista embora arquétipo do filhinho de papai irresponsável. de ter aulas com a pecadora, os forasteiros são
esse trabalho tenha sido feito pelo Braz Chediak, Aqui se encerra a primeira parte da narrativa, vistos com desconfiança, as divergências são
que nos créditos surge apenas como dialoguista. uma espécie de film-noir nacional. Ritmo fre- resolvidas na porrada. Cidade pequena, inferno
Segundo este, a segunda parte foi escrita pelo nético incentivado pela trilha sonora, violência, grande – diz um velho provérbio italiano.
ator Mário Lago, que também não consta dos juventude transviada, os pais imperfeitos, o poli- Há toda uma angústia niilista que não se
créditos. Tanto Jece quanto Chediak fizeram cial dedicado, mulheres bonitas (mas sem nudez) espera encontrar num filme comercial de roti-
posteriormente coisa bem melhor, pois enredo e – eis a fórmula do sucesso comercial que a direção na. A sociedade urbana moderna é inviável. A
roteiro são exatamente o ponto fraco da película, leva adiante com sua moderada competência. sociedade rural arcaica igualmente. Quando
cujas duas partes são excessivamente contradi- Tudo começa a mudar quando chegamos na
tórias no tratamento do protagonista. segunda parte. Na sua fuga desesperada, Bebe-
to vai parar numa estradinha de terra em não sei
Vamos ao filme. onde, e conhece um matador de aluguel (o mes-
mo dos créditos, ou seja, Jece Valadão, o tal) que
Depois dos créditos superpostos sobre resolve protegê-lo e dar-lhe guarida em sua casa
planos de Jece matando pessoas a tiros num numa cidadezinha perto dali. Esta é introduzida
descampado, caímos no Rio de Janeiro. Noi- ao espectador (e ao protagonista) por um coro
te. Enquanto um casal se diverte na cama, um de crianças cantando o Hino Nacional na porta
homem espreita num carro defronte da casa. da escola. É um outro mundo. Troca de olhares
Movido a comprimidos. Será um assassino pro- entre a bela professorinha trigueira e o monstro
fissional, um detetive ou simplesmente um cor- carioca. Ela está noiva de um capiau, mas sonha
no injuriado? O amante se despede da mulher e sair dali, dá mole e os dois são surpreendidos
caminha assobiando feliz da vida. É intercepta- aos beijos. Confusão na cidade. Querem espan-
do pelo homem do carro que, depois de alguma car Bebeto, que é salvo pelo matador.
luta corporal, o mata a golpes de canivete. O Aqui tudo mudou, as referências são quase
assassino parte no carro em disparada. Em casa de western, os enquadramentos da natureza e
ele telefona para a mulher da primeira cena, que do casario, o ritmo meio lento. A trilha sonora
é sua noiva e garante ter ficado só a noite intei- agora é bem mais brasileira, composta pelo
ra. No papo citam Nelson Rodrigues (“viver Maestro Carioca.
é a única coisa que vale a pena”). Clima de Chama atenção do espectador a mudança
decadência. Logo depois descobrimos que ele de tom no tratamento de Bebeto. Na cidade
é Bebeto de Tal, filho de pai rico e mãe bebum grande, um perigoso assassino. A polícia ainda
(e também adúltera, saberemos no decorrer da lhe segue os passos. No interior, de agressor
trama). Um delegado começa a investigar. Ao passa a vítima. E tudo pelo sincero amor à pro-
fundo, o rock brasileiro da desconhecida banda fessorinha que parece ter regenerado o proble-
The Babies (?!) com a música título e outras. mático filhinho de papai?

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Bebeto era mau e exorbitava de sua condição
social favorecida, ficava impune. Quando pare-
ce estar “indo pelo bom caminho”, o caminho
Essa mudança de rumo é o detalhe que faz
A Lei do Cão diferente da produção corriquei-
ra do esquema em que foi realizado: o diálogo
Um cineasta chamado
Jece Valadão
do amor, as coisas desandam. A saída, onde quase direto entre a oferta e a procura do cine-
fica a saída? Não há. Esse desencanto vai surgir ma brasileiro e seu público, que existia meio
outras vezes nas obras de Jece Valadão e Braz século atrás e não voltará mais. Uma produção
Chediak e me parece originário do mundo fic- bastante representativa de sua época, o período
cional de Nelson Rodrigues, na época cunhado pré-Embrafilme. Adilson Marcelino
do primeiro e evidente admiração do segundo.
A quebra dos clichês tradicionais de um fil- João Carlos Rodrigues Jece Valadão nasceu em Campos dos Goytaca-
me desse gênero, onde uma mensagem mora- zes, no dia 24 de julho de 1930. Referência icô-
lista sempre se impõe no final com a prisão nica na cinematografia brasileira, circulou pelas
do culpado ou sua morte trocando tiros com a suas mais diferentes fases – Chanchada, Cinema
polícia, não é frequente. Há uma grande con- Novo, Cinema Marginal, Cinema Popular, Era
tradição entre o odioso Bebeto da primeira Embrafilme, Cinema dos Anos 80, Retomada.
parte e seu romântico avatar da segunda, numa Jece é daqueles atores que, ainda que
mudança de tom um tanto abrupta e quase inve- tenham trafegado também pelo teatro e pela
rossímil que, como dissemos antes, prejudica o televisão, são essencialmente cinematográ-
andamento da trama. Terá sido por deficiência ficos. Como são, cada um em seu registro,
do protagonista? Não teria sido mais coerente também outros como Grande Otelo, Paulo
que continuasse predador e fosse por isso jus- José, Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Otávio
tiçado pela população como Inimigo Público nº Augusto e Anselmo Vasconcellos.
1? A redenção pelo amor é um dos subtemas do Jece atuou e produziu tantos filmes impor-
filme ou estou delirando? tantes, que estampou em seu currículo encon-
tros memoráveis. São inúmeros os momentos
luminosos, mas de cara é fácil registrar títulos
como Rio 40 Graus e Boca de Ouro, de Nelson
Pereira dos Santos, Os Cafajestes, de Ruy Guer-
ra, Mineirinho Vivo ou Morto, de Aurélio Teixei-
ra, Navalha na Carne, de Braz Chediak, Memó-
rias de um Gigolô, de Alberto Pieralisi, O Gigante
da América, de Julio Bressane, Eu Matei Lúcio
Flávio, de Antonio Calmon, A Idade da Terra, de um dos casais mais explosivos e marcantes do
Glauber Rocha, e Encarnação do Demônio, de cinema e da cena artística da década de 1970.
José Mojica Marins. Jece vai encarnar e explorar essa persona
De Os Cafajestes, um dos seus maiores suces- em vários filmes que produzirá e atuará, assim
sos, tanto de público como de crítica, tomou como também em aparições públicas, seja
emprestado a alcunha que encarnou à frente em programas de auditório ou em entrevistas
e atrás das câmeras, marcando, embaçando e estampadas em jornais em tons escandalosos
misturando sua vida e obra. e sensacionalistas. É o típico caso em que artis-
Vida afora, Jece passou a ser identificado, ta e personagem formarão uma simbiose tão
tanto na esfera pública como na privada, seja poderosa, que o imaginário do público ficará
como artista ou indivíduo, desde como o pró- marcado por essa conjunção até a sua morte e
prio cafajeste até alternâncias que povoam esse para sempre depois dela.
universo, como o canalha, o machista e o durão. É, inclusive, o personagem urdido a partir
E formou com a atriz Vera Gimenez, uma de do corpo e da postura do ator que o encarna
suas esposas e estrela de vários de seus filmes, que vai garantir, muitas das vezes, a corrida do

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(Adriana Prieto), foge da polícia, mata mais dois
policiais durante o trajeto, é perseguido por um
comissário (Wilson Viana), e encontra guarida
no enigmático matador de aluguel encarnado
por Jece Valadão, alojando-se em sua casa em
uma vila quase perdida no mapa.
No mesmo dia de sua chegada, Bebeto
conhece e se apaixona pela professora primária
Alice (Esther Mellinger), que, na própria noite
de noivado, corresponde ao amor do forasteiro
e atiça a ira dos habitantes do vilarejo.
A Lei do Cão é filme em preto e branco, com
fotografia assinada por Antonio Smith, produ-
zido por Jece e por Herbert Richers, e marcado
em sua narrativa por dois momentos distintos.
Na primeira, a fase asfalto, com as andan-
ças boêmias de Bebeto no Rio de Janeiro junto
à sua turma de transviados, como era conheci-
da certa casta de jovens dos anos 1960, que até
amavam os Beatles e os Rolling Stones, mas
público às salas de cinema, sobretudo do cir- ram sobre essa parte de sua obra, para produ- sobretudo o iê iê iê da Jovem Guarda do Rei
cuito popular, fazendo tilintar as bilheterias e zir fortuna crítica. Pode-se citar, dentre outros Roberto Carlos, do Tremendão Erasmo Carlos
permitindo que Jece construa carreira extensa, poucos, o blog Estranho Encontro, da curadora e da Ternurinha Wanderléa.
filme após filme. desta Mostra, a crítica e pesquisadora Andrea Em divertida cena em que toda a turma está
Em paralelo, é como se Jece ocupasse, no Ormond; e a saudosa Revista Zingu! – que tive dançando sob a batuta da banda The Baby’s
imaginário do público, lugar semelhante de a felicidade de fazer parte da equipe, primeiro com o rockzinho cujo refrão proclama a tal “lei
outros atores como Charles Bronson e Clint como colaborador e depois como crítico e colu- do cão”, a moçoila jura amor eterno e único por
Eastwood, que também, à época, encarnavam nista fixo, e, por fim, também como editor. Roberto, esnoba Wanderley Cardoso, outro
tipos do gênero em filmes policiais e de ação Os filmes que Jece Valadão dirigiu são um ídolo romântico da Jovem Guarda, e detona,
americanos, ainda que no seu caso muitos fil- capítulo à parte em sua carreira, assim como de puro ciúme e inveja, a rainha da cena toda, a
mes também tenham acrescentado pequenas também o é sua produtora, a não menos mítica moderníssima Wanderléa.
ou fartas doses de erotismo, marca indesviável Magnus Filmes, na história do cinema brasi- É nessa primeira parte que o filme coloca em
do cinema popular. leiro. Pois ainda que tenha, em algumas vezes, cena duas atrizes marcantes na história do cine-
No entanto, mesmo com todo esse simbolis- visitado o drama – como em A noite do meu ma brasileiro e ainda em início de suas carreiras:
mo e essa senhora filmografia, o grande público bem, e na comédia A filha de Madame Betina Betty Faria e a saudosa e estonteante Adriana
e mesmo boa parte dos cinéfilos ainda conhe- –, é no gênero policial que ele eternizará seu Prieto. Betty e Adriana repetiriam a parceria com
cem muito pouco de sua faceta como diretor, nome, já que quase todos os seus títulos estão Jece em As Sete Faces de um Cafajeste.
que soma quase duas dezenas de filmes e vai nesse universo. O matador profissional, Obses- Nesse primeiro tomo, o filme focaliza todo
da década de 1960 até o início dos anos 1980. são, Nós, Os canalhas, e Os Amores da Pantera o desregramento que marca a vida de Bebeto,
E isso passados mais de 50 anos de sua estreia são alguns deles. como as noitadas e as matinês no dancing, a
como cineasta e mais de 10 de sua morte – ocor- E, dentre eles, alguns filmes raros e sumidos bebida, os assassinatos e a família disfuncional,
rida em 27 de novembro de 2006. do circuito, como o citado A noite do meu bem, com os pais ricos interpretados pelos veteranos
Ainda que vários dos filmes tenham feito As sete faces de um cafajeste – que voltou à cena Henrique Martins e Neusa Amaral. Ela, uma
sucesso à época de seus lançamentos, sua car- via Canal Brasil –, e A Lei do Cão. mãe flagrada pelo filho em momento adúltero.
reira como ator e produtor eclipsou tanto a do A Lei do Cão gira em torno do playboy Bebeto comete seus assassinatos como se
realizador, que muitos anos depois, e já na era Bebeto, que mata a canivete o amigo Eduardo fosse um psicopata de carteirinha, pois não
da internet, poucas publicações se debruça- (Edson Machado) por causa de Marta (Bet- demonstra perturbação nenhuma. É capaz
ty Faria). Depois, mata de pancada Alzirinha mesmo de fazer jogo de gato e rato com Marta,

38 curta circuito 2018 39


em telefonema logo após assassinar Eduardo,
que momentos antes estava aos amassos com
ela, enquanto Bebeto os vigiava pela janela,
como se aquele povo e aquele lugar retomas-
sem as rédeas da ordem imposta e acordada
entre eles.
Um grupo de
malfeitores persegue
camuflado em carro estacionada na rua. Não à toa, há o uso certeiro do Hino Nacio-
Ver a mãe bêbada e depois ouvir o telefo- nal na trilha sonora, entoado diariamente pelas
nema dela para o amante parece perturbá-lo crianças no pátio da escola, como a simbolizar

a jovem viúva de um
muito mais. E quando coloca na mala de fuga o em estado bruto o slogan “Ordem e Progresso”
porta-retratos que estampa um momento apa- da bandeira, mesmo que ela esteja encharcada
rentemente idílico dele com ela, o gesto insinua de sangue e de fúria.

técnico em informática
uma relação subterrânea de filho para mãe, que A Lei do Cão é filme da primeira fase de Jece
pode tanto referenciar um acento erótico como Valadão como cineasta. E já aí está nítido o
também resguardar uma possibilidade de ins- estilo do realizador, que em filmes posteriores
tantâneo de pureza infantil e familiar antes do alternará entre bons e maus momentos, a cada

que havia descoberto


total desmonte moral. produção firmando seu nome no cinema poli-
Já na segunda parte, quando a ação vai para cial, uma das páginas mais fascinantes do cine-
o campo, o filme muda completamente de ma brasileiro, ainda que seja um baú a ser (re)

a chave para fazer os


registro, com um Bebeto inclusive revelando e descoberto ou revisitado, como faz agora esta
externando facetas existenciais apenas esbo- edição da Curta Circuito.
çadas antes, ainda que o registro adotado pelo

treze pontos na loteria.


ator Paulo Frederico não dê conta de encarnar, Adilson Marcelino
a contento, todas as nuances.
E é aí que entra em cena o Quinzinho de Jece
Valadão, o típico matador de aluguel solitário,
com acento existencialista e alta dose de niilismo.
Jece Valadão vai transitar entre o novo casal de
apaixonados, Bebeto e a professora Alice, depois
de ela ser escorraçada, não só de casa, mas igno-
rada por toda a vila, ao trair o noivo no dia da ceri-
mônia com o forasteiro recém-chegado.
Aliás, a Alice do campo, de Esther Mellinger,
ainda que viva aparentemente – e depois vere-
mos o quanto a aparência se tornará realidade
dura – encarcerada pelo local e vida primitiva
que leva, é muito mais liberta e senhora de si
do que o cinismo burguês que marca a Marta da
cidade, de Betty Faria. Já a Alzirinha de Adriana
Prieto seria como uma possibilidade entre as
duas, na sua entrega aos desvarios da paixão,
mas selada com a morte.
De rifle sempre à mão, o cético matador,
entre um serviço e outro, protege o casal desgar-
rado, enquanto todo o vilarejo fica de suspensão
à espreita e esperando a primeira oportunidade
para o ajuste de contas.
De cá da plateia adivinhamos que mais cedo
ou mais tarde esse momento de explosão acon-
tecerá. E quando, finalmente, ele acontece, é

40 curta circuito 2018


os treze pontos
Sequestro, fuga e loteria
esportiva
Ailton Monteiro
O diretor Alonso Gonçalves aposta na aventura
romântica em Os Treze Pontos

Ao ver Os Treze Pontos (1985), ou outro filme


de Alonso Gonçalves, como Confronto Final
(2005), é fácil se pegar pensando no diretor
como uma pessoa que, desde criança, é fasci-
nado pelo cinema de ação, principalmente o
produzido nos Estados Unidos. Gonçalves é um
cineasta nascido no município de Formiga, em
Minas Gerais, e Os Treze Pontos foi o seu segun-
do longa-metragem.
Na década de 1980, quando o filme foi exibi-
do, havia um boom de obras do gênero estrela-
das por nomes como Sylvester Stallone, Arnold
Schwarzenegger, Chuck Norris, entre outros,
que podiam ser vistas como uma espécie de
continuação simplificada e mais bruta das pro-
duções da década anterior, encabeçadas por
astros como Clint Eastwood e Charles Bronson.
Ao contrário dos filmes protagonizados por
esses astros, porém, Os Treze Pontos traz um
herói comum. Não se trata de um ex-combaten-
te de guerra, um policial ou um homem cheio
de músculos, mas uma pessoa que estava no
lugar certo e no momento certo na hora de exer-
citar seus feitos heroicos. Em nenhum momen-
to temos uma informação de onde nasceram os
dons de bom lutador de Luciano, o protagonista
vivido pelo próprio Alonso Gonçalves.
Assim como as produções de sua década,
Os Treze Pontos utiliza uma decupagem simples
e eficiente que valoriza as cenas de luta, a fim
de oferecer uma boa visão ao espectador que
aprecia uma boa briga. Vale lembrar que vários
cineastas de Hollywood flertaram com o boxe,
justamente por ser uma luta que pode ser vista
com clareza e interesse pela audiência, ao con-
Alonso Gonçalves / BH 1985 107'
olhar. Não que fosse feio fazer um filme que
explorasse também o desejo, mas talvez o cine-
asta tenha se sentido mais confortável fazendo
uma obra mais inocente, sem nudez ou um ape-
lo à sensualidade.
Enquanto isso, também somos presente-
ados com uma explicação no mínimo curiosa
para ela ter sido sequestrada pelos bandidos. É
quando o título do filme, Os Treze Pontos, passa a
fazer sentido: refere-se aos 13 pontos da Loteria
Esportiva, um jogo muito popular na década de
1980. O marido de Laura havia descoberto uma
fórmula para acertar os 13 pontos e a tal fórmula
estaria anotada em um livro preto, antes de ele
ter sido assassinado pelo próprio sócio.
Podemos dizer que o tal livro seria uma espé-
cie de mcguffin, recurso bastante comum nos
filmes de espionagem, algo que o próprio Alfred
Hitchcock utilizou de maneira bem transpa-
rente em vários de seus trabalhos do gênero.
Trata-se de um elemento que serve como um
dispositivo do enredo, algo que dá sentido à
trama, mas que, ao mesmo tempo, não é a peça
trário do que tem prevalecido nas montagens uma situação de emergência à frente de bandi- bravura quanto por sua boa vontade em cuidar mais importante, já que em filmes como este e
picotadas de thrillers de ação do novo milênio dos sua inteligência, seu raciocínio rápido e seu bem de Laura até que ela não esteja mais na em tantos outros o que mais importa é a ação e
realizados nos Estados Unidos, como os dirigi- instinto de sobrevivência. Em suas mãos, uma mira dos assassinos. a atmosfera de excitação ou suspense.
dos por Ridley Scott (caso de Gladiador) e Paul faca e uma vara de pescar tornam-se uma lança Pode-se dizer que o cinema brasileiro não A história de Os Treze Pontos começa com
Greengrass (os filmes da franquia Bourne). São capaz de matar um de seus perseguidores. tem uma tradição forte com o gênero, com Luciano pegando um ônibus em uma estrada e
trabalhos que chegam a privar o espectador de Aliás, a cena da lança acertada no pescoço cenas de ação bem elaboradas, feitas com carregando sua vara de pescar. Um carro passa
visualizar as lutas e ainda disfarçam uma supos- de um dos bandidos é uma das poucas em que a dublês e técnicos especialistas. E por isso é inte- rápido e buzinando pelo ônibus e o protagonista
ta falta de habilidade dos cineastas na condução violência gráfica se destaca no filme, existindo ressante entrar em contato com uma obra como vê, na janela do carro, uma mulher pedindo ajuda.
de uma boa coreografia de ação. mais para enfatizar as habilidades de Luciano esta, claramente uma produção barata e bem Como ele foi a única testemunha ocular, e o único
O trabalho de Alonso Gonçalves encontra do que para glorificar o ato de violência em si, pouco conhecida do grande público, mas que disposto a ajudar, ele decide descer da condução
poucos pontos de intersecção com o cinema bra- ou cultuar o gore. Tanto é que, mais à frente, o tem uma eficiência que produções mais caras quando percebe que pode prestar socorro.
sileiro que lidou com a violência em anos ante- herói confidenciará a Laura, a jovem que ele feitas nos Estados Unidos não têm no que se De fato algo muito perigoso estava acon-
riores. Se pegarmos, por exemplo, obras como salvou, que se sente mal pela morte daquele refere à elaboração de sequências de ação. tecendo. A câmera subjetiva revela uma situa-
Ódio (1977), de Carlo Mossy, e Eu Matei Lúcio homem, diz que nunca havia matado ninguém Alonso Gonçalves ter feito este trabalho, na ção em que tanto a mulher como também um
Flávio (1979), de Antônio Calmon, veremos se antes. Nesta fala, como em outras, é onde mais cara e na coragem, fazendo de si mesmo o herói homem estão reféns de um grupo de bandidos.
tratar de uma proposta bem distinta. Realiza- percebemos as fragilidades de Alonso Gonçal- que salva a moça bonita, é trazer para si a rea- O herói só consegue entrar na casa com alguma
do em um momento em que havia uma maior ves no trato com as palavras, nos diálogos do lização de uma fantasia. Mas não uma fantasia vantagem quando a maior parte dos capangas
liberdade dos cineastas em mostrar tanto o sexo filme, homem de ação que é. com pitadas de erotismo, como era comum ver deixa o local a fim de executar o sujeito raptado.
quanto o sangue de maneira mais gráfica, o filme Em sua vontade de ser independente, Gon- no cinema brasileiro do período, especialmente Luciano, habilmente, consegue desarmar
de Gonçalves é de uma ingenuidade admirável, çalves preferiu fazer ele mesmo tudo sozinho: nos anos 1980. É até um tanto inocente o modo o agressor da sala e fugir de lá correndo com a
ao contar uma história romântica de heroísmo. roteiro, direção, produção e o papel principal. como ele vê a moça com olhos de quem está mulher pelos campos. A visão do espaço verde
Luciano, que posteriormente saberemos Sai mais barato para o realizador: ele faz o que apaixonado, usando o campo e o contracam- e daquele casal sem nenhum vínculo até então
se tratar de um fotógrafo que vive sozinho em deseja e ainda personifica, ele mesmo, a figu- po para deixar bem claro o clima que ficou no e em busca de sobrevivência até daria para ali-
uma casa modesta, tem como grande arma em ra de um herói louvado tanto por seus atos de ar entre os dois. Há pureza no sentimento e no mentar uma imagem bem romantizada, mas o

46 curta circuito 2018 47


filme, em sua narrativa que opta por explorar o
suspense naquele momento, prefere dar conti-
nuidade, sem interrupções, à fuga e à persegui-
Mas isso faz parte do jogo e da diversão des-
se tipo de produção, em que nem sempre aquilo
que é mais provável é o que será visto em cena.
Um policial à mineira que
conquista o público
ção pelo campo. Lembremos que Os Treze Pontos é mais herdeiro
O herói se transforma em um exército de do cinema de ação hollywoodiano, que se esta-
um homem só, preparado para vencer com inte- beleceu na era do cinema mudo, do que de um
ligência os criminosos e até o avanço de um cão cinema mais moderno, seja ele realista, seja
treinado. Por pouco o cachorro não tem o mes- adepto de alegorias sofisticadas. Elpídio Rocha
mo destino do sujeito da lança, mas, durante o
embate, o animal não chega a morrer. Mesmo Ailton Monteiro Iniciando a narrativa, a câmera apresenta o
para uma década menos preocupada com os cenário e acompanha o ônibus que segue por
maus tratos com os animais é possível perceber uma estrada de terra. Em seguida, um carro
a sensibilidade de Gonçalves nesse quesito. ultrapassa o coletivo e desperta a atenção de
Assim, a violência em Os Treze Pontos é mais Luciano, fotógrafo que incorpora o herói pres-
suavizada, além de haver um interesse também tes a sair de sua “zona de conforto”, seu coti-
em trazer o filme para um público maior, seja ele diano tranquilo, e envolve-se numa aventura
jovem, seja um público mais velho, que talvez se policial em que os riscos crescem ao longo da
sentisse incomodado com algo mais sangrento. projeção. Existe uma mulher em perigo e Lucia-
Trata-se de diversão para toda a família, até no, assumindo a persona do mocinho da histó-
mesmo para quem quiser ver o filme como uma ria, parte em socorro da vítima.
comédia involuntária ou uma produção trash. A trilha sonora reforça o suspense e acom-
Mas bom mesmo é vê-lo como um achado, panha o resgate de Laura, jovem viúva perse-
como um filme digno de respeito, descoberto guida pelos criminosos. A dupla de protago-
e valorizado em tempos de cinismo, principal- nistas escapa e, literalmente, corre durante um
mente no atual momento de reajustamento e bom tempo antes de estarem seguros e livres
reaquecimento do cinema de gênero no Brasil, dos malfeitores – na fuga é inevitável a luta com
seja o horror, o policial ou o filme de ação. Den- os criminosos, a perseguição de um cão e o con-
tro desse cenário, é bem-vindo um filme que fronto mortal com um dos vilões.
tem um compromisso com a aventura, e que Em Os Treze Pontos, produção de 1985 diri-
faz isso sem esperar por recursos do governo ou gida pelo mineiro Alonso Gonçalves (também
uma situação econômica favorável para ganhar intérprete do herói Luciano), temos a história de
dinheiro com cinema popular. um personagem envolvido, por acaso, na trama
Lembremos que Os Treze Pontos já tem mais em que os bandidos buscam um “livro de capa
de 30 anos de sua realização. E que mesmo preta” com a fórmula mágica para acertar os 13
naquela época o que dava mais lucro no circuito jogos da loteria esportiva. São os anos oitenta e
exibidor eram os filmes dos Trapalhões, que de a loteca – avó da quina e da mega-sena – repre-
certa forma até têm vários pontos em comum senta a fantasia do enriquecimento rápido.
com este trabalho de Gonçalves. Claro que se O falecido marido de Laura (interpretada por
podem destacar também as falhas, como quan- Helenice Aleixo) era um matemático e especia-
do, numa cena de luta, Luciano dá as costas a lista em computadores que tinha o objetivo, ou
um dos bandidos para verificar se Laura estava a obsessão, de encontrar a fórmula dos núme-
bem. Ou dos vários tiros que não o acertam. Ou ros, estatísticas e cálculos para vencer o desafio
de quando ele deixa a mulher sozinha em um da loteria esportiva. Ao conseguir o sucesso, é
telefone público em uma área perigosa, ficando morto e coloca a esposa como alvo da quadrilha
no ar uma sensação de déjà vu, ao nos fazer lem- liderada por Ayres (Pedro N. Campos).
brar certos filmes de suspense com serial killers.

48 49
Cinema Policial e Mineiro romântica. Cabe aos espectadores torcer pelo
São essas informações que norteiam a constru- casal à espera de um final feliz.
ção da história de Os Treze Pontos, obra inserida Temos, portanto, a construção de uma nar-
no gênero policial – categoria clássica do cine- rativa cinematográfica popular que não tem
ma que aborda o crime e seus vários elementos medo de trabalhar na conquista do público, uti-
característicos: roubos, criminosos, detetives, lizando os elementos do cinema de gênero para
perseguições, mistério, mortes, etc. Consagra- atrair os consumidores. A história policial iden-
do e difundido pelo cinema americano, o poli- tifica muito bem os bons e os maus; a trama vai
cial tem suas ligações ancestrais com os filmes aos poucos estabelecendo a relação sentimen-
de gângsteres dos anos 1930 e as produções em tal dos protagonistas; os momentos de ação e
preto e branco de 1940, os filmes noir que tanto de suspense são elaborados no desenrolar do
influenciaram (e influenciam) títulos consagra- filme; o humor aparece para valorizar cenas
dos como Chinatown, Blade Runner, A Estrada específicas do roteiro. A receita é costurada de
da Perdição e Los Angeles - Cidade Proibida. acordo com a concepção tão pessoal do diretor
O crime é o ponto de partida para narrativas Alonso Gonçalves.
que assumem as particularidades e caracterís-
ticas dos países em que os filmes são produzi- Cineasta Mineiro
dos. França, Itália, Hong Kong, Coreia do Sul se Natural de Formiga, município do oeste minei-
apropriam dos elementos típicos das produções ro, Alonso José Gonçalves nasceu em 1943.
dos Estados Unidos adaptando-os aos valores, Apresentando-se como autodidata, aos 13 anos
significados e temperos locais. E, obviamente, desmontou uma câmera fotográfica para cons-
os brasileiros estabelecem sua nomenclatura o espaço físico, humano e cultural, na maioria Narrativa Popular truir um protótipo usando lentes e caixas de
característica nas produções nacionais. das vezes, é trabalhado por diretores que não O filme traz as imagens necessárias para valo- papelão. Sem curso formal, começou a produzir
Historicamente, O Assalto ao Trem Pagador, são naturais do Estado. rizar o teor de ação e aventura da história: são e dirigir seus filmes, na década de 1970, com o
de Roberto Farias, ocupa papel de destaque na A representatividade de Minas vem das ori- cenas de luta com socos à vontade e armas dinheiro que ganhava num laboratório de foto-
cinematografia policial do país; é a história de gens do cinema nacional com as produções de diversas como facas, revólveres e até a lança grafia. A curiosidade guiou o cineasta para os
um roubo que incorpora a crítica social na orga- Humberto Mauro, mineiro de Cataguases, que improvisada do protagonista. Existe uma noção conhecimentos em ótica e efeitos especiais.
nização e execução de um crime quase perfei- construiu uma obra sólida e legitimamente bra- interessante de movimento no desenrolar da Aos 74 anos, Gonçalves possui uma filmogra-
to. Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia e Pixote, sileira trabalhando com os elementos típicos do trama já que os personagens mantêm uma fuga fia que inclui títulos como A Testemunha (1971),
ambos de Hector Babenco, prosseguem com a ambiente rural numa narrativa fluida e efetiva- constante dos bandidos e deslocam-se em bus- Caçado (1976), Somewhere in Brazil (1990), Os
abordagem das mazelas sociais e o retrato dos mente cinematográfica. Apesar do pioneirismo ca de segurança e proteção. Fanáticos (1996) e Confronto Final (2005) – estre-
marginais e marginalizados. Já O Bandido da de Mauro, Minas Gerais, como a maioria dos O humor também é uma característica em lado por Jackson Antunes, o filme conta a histó-
Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, caminha estados brasileiros, precisa recuperar e valori- Os Treze Pontos. O encontro do casal com um ria de Marco Ferranti que, após um assalto, vai
pela experimentação linguística e estética oxi- zar cada vez mais a sua produção local estimu- bêbado oferece um respiro para os risos duran- obsessivamente transformando a sua casa numa
genando a narrativa fílmica. E não podemos lando o trabalho contínuo de novos cineastas. te a escapada; e o bêbado se apresenta confor- fortaleza para evitar a criminalidade.
esquecer os campeões de bilheteria da Reto- Em Os Treze Pontos estão os espaços rurais e me o tipo humorístico que já esperamos: fala Em entrevista ao jornal Hoje em Dia, o dire-
mada: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles urbanos marcados pelas características da épo- “enrolada”, terno xadrez e andar cambaleante tor afirma que já foi “chamado de trash, mas
e Kátia Lund, e Tropa de Elite, de José Padilha. ca reveladas também pelos carros, ônibus, ves- à procura do seu cachorro. Da mesma forma, o também elogiaram a qualidade das minhas
Todos os filmes citados se estruturam incor- tuário, casas e telefones – tanto o fixo quanto o trio de criminosos que invade a casa de Lucia- cenas, não só as de ação como as que tinham
porando as peculiaridades do Brasil, mas são típico orelhão de ficha tão comum nas esquinas. no e o enfrenta numa coreografia de socos, atores dialogando”. E o interesse pela inter-
representantes de um modelo narrativo carioca E os personagens falam e se movimentam como pontapés e caretas é bem eficiente ao provocar pretação do elenco garantiu a Dalmy Veiga o
ou paulista. Em contraponto, temos as parti- pessoas que poderíamos encontrar casualmen- sorrisos na plateia. prêmio de melhor ator coadjuvante, no 3º Rio
cularidades de Os Treze Pontos: uma produção te pelas ruas da cidade naquela década de 1980. Obviamente, o convívio de Laura e Luciano Cine Festival (1985), pelo papel do “bandidão”
mineira filmada em cenários locais com elenco No figurino “oitentista”, vale a pena destacar o promove o envolvimento sentimental do casal. Russo, em Os Treze Pontos.
de “gente como a gente”. Minas Gerais sempre chapéu, o blusão e o embornal de Luciano – ele- O herói vai se encantando com a viúva inde- É na perspectiva de resgatar a história do
foi um espaço geográfico muito referenciado mentos que individualizam e identificam muito fesa e começa a experimentar emoções que cinema brasileiro e valorizar as produções iden-
pelo cinema nacional – e aí está o xis da questão: bem o herói da aventura. vão estabelecendo a já tradicional perspectiva tificadas como “populares” ou “comerciais”

50 curta circuito 2018 51


que a exibição e a discussão sobre o filme se
mostram sempre necessárias e atuais. Os Tre-
ze Pontos incorpora os elementos da narrativa
tos de tensão e alívio, certeza e dúvida, medo e
riso, bem distribuídos durante o filme.
O filme policial utiliza a possibilidade de
Lúcio Flávio é um
jovem em busca de
policial sem medo de abrasileirar as caracterís- violência ao abordar o crime que, muitas vezes,
ticas e construir uma história que se desenvolve envolve o indivíduo comum numa história de
obedecendo às regras de ação e suspense que reviravoltas e mudanças; os personagens devem

ascensão social que


estabelecem um diálogo com os espectadores. superar dificuldades e ultrapassar limites para
Os personagens, o desenvolvimento da tra- sobreviver ou conquistar os seus objetivos. Os
ma, os momentos de tensão estão ligados às Treze Pontos, de Alonso Gonçalves, é a trajetória

opta pela vida do


ideias já conhecidas de muitos outros filmes, do fotógrafo Luciano assumindo sua persona de
mas, é certo, possuem os maneirismos e as par- herói e, provavelmente, encontrando o “grande
ticularidades de um diretor que possui ideias amor” – essa resposta está no final do filme.
próprias e é capaz de mostrar seu estilo de for- Existem dificuldades para os personagens

crime. Enquanto
ma consistente para a plateia. superarem e os espectadores também preci-
sam lidar com as arestas e rusgas que Gon-
A Caminho do Desenlace çalves não consegue evitar na construção da

Mariel ganha fama


O cinema é uma mídia extremamente eficiente trama. Pessoalmente, é uma jornada que vale
na comunicação com os espectadores, os quais, a pena e podemos participar dela sabendo que,
durante os minutos ou horas da projeção, são ao final, teremos nos divertido e aproveitado a

como um policial
transportados para a realidade exibida na telo- boa companhia.
na. As aventuras e desventuras dos personagens
se tornam tão presentes que somos enredados Elpídio Rocha
pela trama e, praticamente, “sentimos” o que
aquelas pessoas experimentam: medo, angús-
tia, alegria, prazer, amor. É a tal da “supressão
da realidade” que estabelece um acordo tácito
de atuação no
submundo criminoso.
entre a obra cinematográfica e o seu consumi-
dor: nós aceitamos vivenciar a realidade fílmi-
ca para usufruir das sensações, das emoções

Os dois acabam se
orquestradas pelo diretor.
Daí a importância de nos enxergarmos na
tela do cinema, a necessidade de identificar os
lugares como um cenário familiar e os compor-
tamentos como atitudes que também podemos
adotar. É a nossa aldeia e seus aldeões que
devem ser apresentadas pelos artifícios da séti-
enfrentando na eterna
luta entre polícia
ma arte. Portanto, o cinema nacional (ou regio-
nal) tem importância estratégica porque revela
a cultura em que estamos inseridos com sua

e bandido.
linguagem, manias e comportamentos típicos.
A narrativa cinematográfica mais clássica,
em que a história se desenvolve com começo,
meio e fim bem determinados, é mais eficiente
para envolver a plateia. Daí as “regras” de cada
gênero para contar uma história de sucesso e
garantir uma narrativa fluida com seus momen-

52 curta circuito 2018


Eu matei Lúcio Flávio
Um dos grandes filmes da
história do cinema brasileiro
Fernando Oriente
Antonio Calmon realizou, nos anos 1970, três
filmes notáveis em que, a partir da violência,
discorria sobre a sociedade urbana brasileira
da época. Longe de se preocupar com sociolo-
gismos, denúncias panfletárias ou psicologiza-
ções, Calmon utilizava a força da encenação
para promover as tensões dentro do quadro e
potencializar a intensidade das imagens, ao
mesmo tempo em que mergulhava de cabeça
no cinema de gênero e seus códigos – aqui tra-
duzidos de maneira preciosa para a realidade
nacional. Em Paranoia (1976), com roteiro de
Carlos Heitor Cony, o diretor se aproximou do
universo dos contos de Rubem Fonseca para
levar ao extremo as angústias e o horror de
uma família brutalizada por assaltantes que
invadem sua residência. Já em Terror e Êxtase
(1979), Calmon aborda a criminalidade tendo
como pano de fundo o choque de classes. Mas
é em Eu Matei Lúcio Flávio que ele atinge seu
ponto alto. Um filme materialista, seco, em que
a violência surge na superfície da tela, na cara
do espectador. Um filme direto, cheio de fúria,
sarcasmo, em que o que vale é a imagem como
espetáculo cinematográfico.
Conduzido por um impressionante Jece
Valadão (que além de protagonizar o longa é um
dos grandes responsáveis pela existência do fil-
me, devido a seu papel decisivo e criativo como
produtor), Eu Matei Lúcio Flávio é uma jornada
célere, toda montada em elipses, em que a ação
é muito mais importante que os dramas. Para
Calmon o que conta é a intensidade, a força
visual das cenas. É impossível não lembrar-
mos de Samuel Fuller e sua célebre definição
do cinema: “Um filme é um campo de batalha.
É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma
palavra: emoção”. E é isso que Eu Matei Lúcio
Antônio Calmon / RJ 1979 97'
57
Flávio oferece ao espectador. Mas o que temos é
um filme brasileiro, popular, feito dentro da nos-
sa própria desordem e incerteza enquanto país.
Calmon não busca identificar o que seria uma
brasilidade; muito pelo contrário, ele absorve os
elementos comuns do tecido social brasileiro e
os leva à tela. Sem glamour, cru e frenético, o
filme pulsa alucinado uma energia primal que
se dirige exclusivamente aos sentidos.
Eu Matei Lúcio Flávio é centrado no persona-
gem Mariel Mariscot de Mattos (Jece Valadão)
que de salva-vidas na praia de Copacabana e
leão de chácara de boates se torna policial, para
depois fazer parte de um grupo de elite da polí-
cia carioca que em breve se tornará um esqua-
drão de extermínio, tão comum na história do
Brasil – os sempre presentes esquadrões da
morte que, formados por agentes da lei, assas-
sinam impunemente qualquer um que acham
suspeito –, sempre pessoas pobres, de comuni-
dades periféricas e em sua esmagadora maioria
jovens negros, ou seja, algo extremamente atu-
al nos dias de hoje em qualquer cidade grande
do país. O filme de Calmon é todo conduzido
pela ótica dos policiais/exterminadores; ele
abraça o lado mais reacionário da sociedade e
celebra, sem hipocrisia, os feitos desse grupo.
Essa opção, que foge à tendência do cinema mulheres, brigar, matar e se impor pela presen- sexuais, suas noites em boates grã-finas, acom-
brasileiro de se associar sempre ao lado dos ça física e pela violência. Além disso, o Mariel panhado agora por políticos e representantes
oprimidos, não prejudica em nada a potência do filme é extremamente narcisista, adora apa- do Estado que passam a fazer parte de seu novo
do que vemos na tela; é por abordar uma situ- recer e pensa apenas em se dar bem e em subir círculo de amizades, durante sua escalada na
ação-limite, com outro enfoque, que o diretor na vida, do seu jeito. Um personagem perfeito sociedade. Eu Matei Lúcio Flávio pode ser vis-
acaba por expor os mecanismos estruturantes para Jece Valadão, que aqui se apropria de todas to como um fragmentado painel de espaços e
da sociedade em que estamos mergulhados. Eu as características que o transformaram nesse ambientes que compunham o universo urbano
Matei Lúcio Flávio trata da violência, do crime e paradigma do machão brasileiro ao longo das da sociedade carioca dos anos 1970, desde o
da brutalidade de uma maneira orgânica, o que décadas em que atuou. O Mariel de Valadão é submundo do crime e das ações ilegítimas das
seria impossível se a intenção do diretor fosse um dos grandes personagens do nosso cinema forças da lei, passando pelas ruas sujas e caóti-
denunciar as mazelas da sociedade, como mui- e Calmon o utiliza de maneira primorosa. Já cas, presídios e delegacias, até as residências e
tos dos filmes brasileiros o fazem e acabam por Lúcio Flávio aparece muito pouco, seria como o locais de diversão de uma parcela abastada da
se perder em suas boas intenções. Para Calmon, prêmio final para a carreira de exterminador de elite político-econômica.
o que importa é o cinema, a força do filme e suas Mariel. Os conflitos dramáticos entre os perso- Mas o que de fato importa para Antonio
intensidades. Julgamentos éticos e morais são nagens, relegados a um segundo plano dentro Calmon é a força das cenas, a potências das
subjetivos, cabem ao espectador, não ao cineas- da evolução narrativa, servem exclusivamente ações. A opção por montar o filme em elipses
ta. Essa é a cartilha que o diretor segue. para Calmon construir um desfile de sequên- faz com que o espectador seja jogado da inten-
Mariel é um arquétipo do macho. Bruto, cias vigorosas, em que as explosões de violência sidade de uma cena a outra, com pouquíssimos
tosco, opressor, arrogante, ele se preocupa ape- dos confrontos são intercaladas pelas cenas em tempos mortos. O tempo aqui é o tempo dessas
nas em trepar com o maior número possível de que acompanhamos Mariel em suas conquistas ações, da fúria que rompe a tela com explosões

58 curta circuito 2018 59


de violência, trepadas, assassinatos filmados de se seguem dentro de uma montagem ágil ao Antonio Calmon foi um dos grandes reali-
maneira direta e sem retoques, o movimento som da “Lady Laura” de Roberto Carlos. zadores do cinema brasileiro, principalmente
constante dentro do quadro, a materialidade Calmon compõe suas cenas de ação com durante os anos 1970 e início da década de
dos corpos que preenchem a tela. Um filme precisão notável, desde enquadramentos que 1980. Pouco reconhecido, ele realizou filmes
da carne e do sangue, de corpos nus e dilace- potencializam os personagens e movimen- emblemáticos, verdadeiras radiografias do Bra-
rados. Do ruído das balas sendo disparadas, tos dentro do plano, a decupagem ágil, o uso sil no período, passando por comédias de costu-
dos gritos de dor de pessoas sendo mortas e expressivo do sangue que jorra de corpos perfu- mes até filmes leves e despretensiosos como seu
torturadas. Para construir esse espetáculo de rados por balas e facas, a estilização das cenas maior sucesso de público, Menino do Rio (1982).
violência, Calmon abraça o cinema da cruel- de ação com o uso do slow-motion – que tornam Mas foi em seus filmes em que a violência é
dade. As sequências são carregadas de ações a materialidade dessas ações ainda mais explí- a matéria central que o diretor realizou seus
abjetas, assassinatos cometidos com requintes citas. Tudo é resolvido dentro da imagem, por melhores longas; e Eu Matei Lúcio Flávio não é
de maldade, estupros, torturas. Uma passagem aquilo que está no interior do quadro. As distân- só um de seus melhores trabalhos, mas um dos
surge emblemática dentro dessa perspectiva. cias focais e a presença da câmera priorizam a grandes filmes da história do cinema brasileiro.
Durante um assalto a uma farmácia, bandidos superficialidade da imagem, colocando os atos,
espancam os funcionários da loja, estupram corpos e objetos sempre em primeiro plano, Fernando Oriente
uma funcionária (uma das cenas mais brutais com um achatamento da profundidade de cam-
e explícitas do cinema brasileiro) e, quando o po que faz tudo o que vemos na tela surgir de
grupo de policiais liderados por Mariel chega ao maneira direta e explícita. A câmera se move
local, são eles que assumem o papel de algozes: constantemente, recuos e aproximações, zoom
matam com deleite cada um dos assaltantes e e uma constante reorganização das ações den-
o prazer de suas ações extremas é filmado de tro do mesmo plano ou unidas por cortes secos.
maneira frontal. A mise-en-scène de Antonio Calmon segue e tra-
Assim como a cena da farmácia, Eu Matei balha aquilo que a urgência das ações exige.
Lúcio Flávio é recheado de sequências pode- Mandando o moralismo às favas, Antonio
rosíssimas. Dos tiroteios e execuções, e das Calmon coloca todos os seus personagens
sequências dentro do presídio, passando pelas dentro da mesma espiral de violência, amora-
cenas em que Mariel seduz e possui as mulhe- lidade e brutalidade. Após construir um grupo
res que cruzam seu caminho até a arrebatadora de extermínio que chega às manchetes dos jor-
passagem em que vemos um cadáver execu- nais, Mariel passa a ser perseguido pela polícia.
tado pelo grupo de extermínio ser encontrado Já não temos mais heróis e vilões, todos estão
amarrado embaixo de uma escultura de São do mesmo lado. Não existe espaço para heroís-
Sebastião, perfurado por flechas (como a ima- mos, só homens que agem por pulsões brutas.
gem do santo), ao som da canção de umbanda E é exatamente o agir única e exclusivamente
‘Batida de Oxóssi’. A beleza bruta das cenas de seguindo seus impulsos que faz de Mariel um
Calmon vem da maneira direta, crua com que personagem tão bem resolvido. Desde a primei-
filma, priorizando sempre o materialismo e as ra vez em que surge em cena até o desfecho do
potências imagéticas, sem se preocupar com filme, ele faz apenas o que suas pulsões e dese-
o bom gosto elitista ou o primor academicista. jos imediatos determinam, sem arrependimen-
Um outro agente potencializador de Eu Matei tos, esbanjando sarcasmo, arrogância e sadis-
Lúcio Flávio é o uso das canções populares, que mo. Até mesmo o afeto que ele demonstra pela
dialogam de maneira cínica e dialética com a prostituta vivida por Monique Lafond – única
brutalidade das cenas, o que fica explícito numa personagem com quem parece se importar – é
longa sequência de assassinatos e torturas que construído por Calmon dentro da lógica da psi-
cologia agressiva do seu protagonista.

60 curta circuito 2018 61


Intenso, amoral, cafajeste

Leandro Cesar Caraça


Inspirado em dois célebres personagens da mo para o emergente udigrudi marginal. Cal-
crônica policial carioca, Lúcio Flávio Vilar Lírio mon estreou como diretor de longas-metragens
(1944-1975) e o ex-policial civil Mariel Mariscot com O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura
de Mattos (1940-1981), Eu Matei Lúcio Flávio, Brasil (1971), seu próprio exercício dentro do
de Antonio Calmon (1945-), a partir de seu títu- modelo marginal, e do qual podemos dizer, ain-
lo, não é verdadeiro na apresentação dos fatos. da, que foi o seu exorcismo de uma proposta de
Afinal, Mariel Mariscot, protagonista do filme e cinema que não privilegiava o grande público.
(na vida real) um antigo membro do Esquadrão Ainda que diretores símbolos do Cine-
da Morte carioca, não foi o responsável pelo ma Marginal, como Júlio Bressane e Rogério
assassinato do bandido Lúcio Flávio. O longa Sganzerla (1946-2004), tivessem a intenção
de Calmon apresenta a história sempre sob a de penetrar nos grandes circuitos comer-
ótica de Mariscot, de maneira errônea e exa- ciais, como lembrou Jean-Claude Bernardet4
gerada, em uma resposta direta a Lúcio Flávio, (1936-), poucas foram as produções dessa onda
o Passageiro da Agonia (Hector Babenco, 1977), que alcançaram sucesso nas bilheterias, como
lançado com muito sucesso alguns anos antes, e O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Sganzer-
que veio com a proposta de transformar o então la. Após a ressaca com o insucesso comercial
popular criminoso em uma espécie de anti-he- do seu primeiro longa (financiado pela Embra-
rói romântico do cinema nacional. filme), Calmon demorou quase cinco anos para
Por isso, ainda que se possa evocar pro- retornar à direção, com Paranoia, tenso e vio-
duções estadunidenses como os faroestes Eu lento drama sobre invasão de domicílio.
Matei Jesse James (I Shot Jesse James, 1949), de A partir daqui, a violência se instaurará em
Samuel Fuller, e O Homem que Matou o Facínora algumas (não todas) produções assinadas por
(The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), de Calmon, de maneira crua e direta, longe de
John Ford, o vigoroso título do filme de Calmon qualquer pretensão mais artística, como preten-
encontra, na verdade, comparação mais ade- deu Júlio Bressane em Matou a Família e Foi ao
quada junto ao sensacionalismo tupiniquim de Cinema. Em uma série de filmes realizados nos
Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), acla- anos 1970, Calmon trocou o niilismo destruidor
mado exemplar do ciclo do Cinema Marginal, de regras de Bressane (e de outros cineastas do
dirigido por Júlio Bressane (1946-). udigrudi) por filmes de gênero, nos quais deixou
A trajetória de Antonio Calmon como profis- bem claro sua predileção por tramas policiais,
sional da sétima arte o levou a integrar o movi- sejam elas detentoras de um desenvolvimento
mento do Cinema Novo na segunda metade da mais realista, ou completamente apegadas a
década de 1960, como assistente de direção situações absurdas.
para Carlos Diegues1 (1940-), Glauber Rocha2 Durante essa fase prolífica, Calmon foi
(1939-1981) e Gustavo Dahl3 (1938-2011), e, no responsável por filmes viscerais (e atrevidos, e
mesmo período, também exerceu esta função grosseiros) como Paranoia (1976), Revólver de
para Júlio Bressane em Cara a Cara (1967), Brinquedo (1977), Eu Matei Lúcio Flávio (1979),
espécie de obra transicional, do cinemanovis- Terror e Êxtase (1979) e O Torturador (1980),

62 curta circuito 2018 63


ao mesmo tempo em que realizou interessante sofrem com uma categorização apressada ou
trilogia de comédias de costumes, que conse- preconceituosa, originárias de um posiciona-
guiram ir muito além de uma corriqueira por- mento social-político moralista ou incapaz
nochanchada: Gente Fina é Outra Coisa (1977), de compreender o tempo em que estes filmes
O Bom Marido (1978) e Nos Embalos de Ipanema foram realizados, e que preferem varrê-los para
(1978). Divorciado de qualquer compromisso debaixo do tapete.
maior que os principais cineastas remanescen- No caso de Eu Matei Lúcio Flávio, temos dois
tes dos movimentos cinemanovista e margi- momentos em especial que justificarão a sua
nal ainda mantinham em suas obras, Calmon feitura: a morte de um famoso criminoso e a
tornou-se um dos nomes em destaque de uma prisão de um não menos polêmico policial e jus-
produção cinematográfica nacional que privile- ticeiro, antigo membro do Esquadrão da Morte.
giava a exploração de temas ousados, proibidos Tão importante quanto a temática presente foi
pelo bom gosto. a união de profissionais como Antonio Calmon,
Uma categoria de filmes que poderiam retra- o roteirista Leopoldo Serran (1942-2008), o
tar ansiedades culturais contemporâneas, como diretor de fotografia Hélio Silva (1929-2004) e o
o sexo livre, o divórcio e o consumo de drogas, produtor, ator principal e “cafajeste” Jece Vala-
sendo capazes de elaborar uma crítica ao pro- dão (1930-2006), um dos maiores astros que o
blema enquanto também fazem proveito de cinema nacional ousou ter, e também conhecido
situações vulgares e chocantes para atrair a aten- de Mariel Mariscot.
ção dos espectadores. Esquecidos pela crítica Diferentemente do que fora almejado por
austera de suas respectivas épocas, assim como Samuel Fuller e John Ford, nos dois filmes
pela historiografia brasileira clássica, o cinema mencionados no início deste texto (Eu Matei
de exploração (exploitation) nacional remonta Jesse James e O Homem que Matou o Facínora),
aos tempos longínquos do período mudo, como o exploitation de Calmon não quer rever mitos
apontou Alice Gonzaga (1929-) em “Só Para ou divagar sobre como são construídos, apenas
Homens – O Sexo nos Filmes Mudos Brasileiros”5, apresentar uma sucessão de situações pseu-
um texto que funciona como um bom ponto de do-biográficas em um recorte sensacionalista.
partida para quem ainda acredita na inocência Como revelam os letreiros antes do título, Eu
imaculada das décadas de 1910 e 1920. Matei Lúcio Flávio baseia-se livremente em
O cinema apelativo brasileiro não cor­ relatos da crônica policial e acontecimentos da
responde somente aos filmes de horror de José vida de Mariscot, porém, “nada tendo a ver com
Mojica Marins (1936-) ou ao montante de pro- a pessoa do referido policial”.
duções saídas da Boca do Lixo6 paulista ou do A narrativa fragmentada, de maneira quase
Beco da Fome7 carioca, costumeiramente redu- caótica, costura uma sequência de fatos que
zidas à onipresente condição de pornochancha- levaram Mariel Mariscot (Jece Valadão) das
da, ou seja, comédias rasteiras que nada mais funções de salva-vidas e de leão de chácara
teriam a oferecer a quem assiste senão a saúde para integrante do infame Esquadrão da Morte,
física de suas atrizes. Dezenas de filmes ainda que se originou do Esquadrão Le Cocq, divisão

64 curta circuito 2018 65


extraoficial criada por policiais do Rio de Janei- com a atriz Maria Zilda Bethlem sendo a maior
ro em 1965, para vingar a morte do detetive vítima da gratuidade do filme.
Milton Le Cocq. O filme não perde tempo com Sem precisar dar desculpas a ninguém,
os antecedentes de Mariscot, evitando mostrar Antonio Calmon criou um espetáculo intenso,
a sua infância, relações familiares, ou mesmo amoral, cafajeste, e que, com a ajuda do roteiro
a carreira profissional como policial de manei- ágil de Leopoldo Serran, soube se distanciar dos
ra mais detalhada. Ainda assim, a presença de personagens reais, evitando complicações mais
Jece Valadão em cena é quase constante, sendo sérias e urgentes. Clássico inconteste do cinema
substituído por outros personagens somente policial para alguns, produção abjeta para outros,
em momentos sempre carregados de violência Eu Matei Lúcio Flávio tem seu lugar de destaque
ou degradação. na filmografia nacional dos anos 1970.
Na história real, Lúcio Flávio denunciou
policiais membros do Esquadrão da Morte – Leandro Cesar Caraça
Mariel Mariscot incluso – e sua atuação como
principal testemunha ajudou a desmontar a
organização de justiceiros. Eu Matei Lúcio Flávio
descreve a relação entre Mariscot e Flávio como
inimigos jurados, cada qual consciente de que
sua nêmesis está à espreita logo ali na esqui-
na, com armas em punho. Lúcio Flávio (Paulo
Ramos) tem pouquíssimo tempo em cena, a
despeito de estar presente no título, deixando
todo espaço para Valadão/Mariscot brilhar.
Sucesso nas bilheterias, fracasso com a crí-
tica e com setores da esquerda, Eu Matei Lúcio
Flávio acabou confundido como uma apologia
ao extermínio sumário de bandidos e à brutali-
dade policial em tempos de ditatura militar. Ao
contrário de Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia
e de República dos Assassinos (Miguel Faria Jr.,
1979), também a respeito do Esquadrão da Mor-
te, o filme de Calmon não romantiza ou proble-
matiza sobre a questão. Jece Valadão (ou Mariel
Mariscot) aparece na tela para ser aplaudido,
em um espetáculo que tira parte de sua força do
exagero das sequências, exagero esse que con-
segue criar momentos de bizarra beleza, como
o cadáver do criminoso morto, deixado em
frente à estátua de São Sebastião, em uma pose
copiada da icônica imagem do santo. Outras
memoráveis passagens de Eu Matei Lúcio Flávio
envolvem os personagens de Anselmo Vascon-
cellos (o sádico parceiro policial) e de Monique
Lafond (no papel do grande amor de Mariscot),
mas nada que supere toda a sequência ambien-
tada em uma farmácia (recriada em estúdio),

66 curta circuito 2018 67


Baseado nas crônicas
radiofônicas do
NOTAS
radialista Gil Gomes,
1. A Grande Cidade ou As Aventuras e Desventuras
de Luzia e Seus 3 Amigos Chegados de Longe
em seu programa na
(1966). Antonio Calmon também ficou
responsável pela continuidade do filme
de Diegues.
Rádio Globo de São
2. Terra em Transe (1967); O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro (1969).
Paulo. Gil Gomes, um
3. O Bravo Guerreiro (1968). repórter policial, é
4. “Cinema marginal?”, Folha de S. Paulo,
10/06/2001. convidado a participar
da investigação de um
5. Publicado em Ele Ela nº150, Ed. Bloch,
out/1981, pg. 36-42.

crime passional: uma


6. Ver O Imaginário da Boca, Inimá Simões,
IDART, 1981; e Boca do Lixo – Cinema e
Classes Populares, Nuno Cesar Abreu, Ed.

mulher morta por seu


Unicamp, 2006.

7. Ver “A Boca e o Beco”, Luís Alberto Rocha

amante, um homem
Melo, In: Retomando a Questão da Indústria
Cinematográfica Brasileira, Ed. Caixa
Cultural, 2009, pg. 58-75.

vinte anos mais jovem,


que acabou tirando
sua própria vida após
cometer o assassinato.
68 curta circuito 2018
O Outro Lado do Crime
Cubo quente

Eduardo Haak
São Paulo. Brasil. América do Sul. Hemisfério
meridional. Terra. Sistema solar. Universo. Um
deles. Em algum momento no final dos anos
1970 estou com minha mãe num cinema na
Avenida Santo Amaro. (Talvez seja o Cine Vila
Rica.) E que filme viemos ver? Não faço ideia,
mas é bem possível que seja algum dos Trapa-
lhões. A sala escurece e os trailers começam a
ser exibidos. E, antes de cada trailer, aparece
aquela ficha da Censura Federal. Leio o título
do filme escrito na ficha que acabou de apare-
cer. “Cubo Quente”. Uau. Que filme será esse, Estarão esses pistoleiros aí disputando à bala o
“Cubo Quente”? O título me deixa absoluta- tal do cubo quente?
mente fascinado, embasbacado. Aos sete ou Pergunto à minha mãe, eufórico, se ela pode
oito anos ainda não tenho como perceber a me levar para ver esse filme cujo trailer está
semelhança entre esse título e o estupendo títu- sendo exibido. Mas eu sei que a pergunta é meio
lo da novela de William S. Burroughs, The Soft inútil. Minha mãe, como a quase totalidade do
Machine, a máquina suave. Se me perguntassem público frequentador de cinema, não é muito
na saída do cinema, o que é Soft Machine?, eu chegada a filmes brasileiros. Faz concessões
responderia: a marca do jeans. (Soft Machine era eventuais aos Trapalhões, por causa de mim e
o jeans preferido da jeunesse dorée paulistana meus irmãos, e olhe lá. Portanto, a chance de
da época.) De qualquer forma, o apelo enigmá- ela me levar para ver “Cubo Quente” é pratica-
tico, abstrato, surreal do título, “Cubo Quente”, mente nula.
para mim é o que basta. (Faço aqui duas retificações: o cinema bra-
Então o trailer propriamente dito de “Cubo sileiro nessa época era, sim, prestigiadíssimo
Quente” começa a ser exibido. Trata-se de pelo público pagante, consumidor de cinema
um western feito no Brasil, dirigido por Clery popular, comercial, etc. Lembro-me dos pais de
Cunha. Tiros pra cá e tiros pra lá. Gosto de wes- um amigo, família de classe média, sem qual-
terns, de bangue-bangues? A bem da verdade, quer tipo de vaidade intelectual. Numa semana
não. Quando ouço falar em bangue-bangues eles foram ver Eu te amo, do Arnaldo Jabor, e na
me vem à cabeça aquela coloração fosca e o semana seguinte viram Mulher Objeto, do Sílvio
som estridente dos bangue-bangues à italiana de Abreu. Lembro-me de eu pensar, não sem
exibidos na TV Record. Não, definitivamente uma boa dose de admiração por eles: aqueles
não sou fã de westerns. Mas isso pouco impor- dois, hein?, com aquelas caras de santinhos. Há,
ta, eu gostar ou não de westerns, o que está em há. A segunda retificação é que a coloração fos-
jogo aqui é outra coisa, o que está em jogo é o ca e o som estridente dos filmes que, num futuro
apelo de um filme chamado “Cubo Quente”. próximo, eu iria ver na Sala Especial, também
na TV Record, não seriam impeditivos para que
Clery Cunha / SP 1979 95'
73
eu me tornasse fã de um gênero de filme que, Mas, voltando à vaca fria, ou melhor, ao cubo
na falta de um termo melhor, convencionou-se quente: pra resumir aquela história toda, eu
chamar de pornochanchada. Algumas dessas acabei nunca vendo o “Cubo Quente”. (O que,
pornochanchadas que vi na minha adolescên- aliás, seria impossível mesmo vê-lo, como cons-
cia – filmes cômicos que mostravam mulhe- tataremos logo a seguir.) E, de certa forma, vim
res com os peitos de fora, sim, uma definição a me tornar mais ou menos receptivo ao estilo
simplista, mas não completamente errada – se western. Sei, por exemplo, que Northorp Frye, o
tornaram clássicos pessoais para mim e meus crítico literário canadense, dizia que o western
irmãos, como o “filme do Geninho” (Elas são é a versão moderna do gênero literário pastoral.
do baralho, direção de Sílvio de Abreu, 1977), o Que o Dennis Hopper dizia que Easy Rider era
“filme que a Sandra Bréa chama o barbudinho um western, com as motocicletas chopper ocu-
parecido com o Alan Parsons de broxa” (Os Imo- pando o lugar dos cavalos. Que o diretor Clery
rais, direção de Geraldo Vietri, 1979) e o “filme Cunha, em entrevista cedida a Andrea Ormond
do Herman” (Será que ela aguenta?, direção em 2009, afirmou que seu filme Chumbo Quente
de Roberto Mauro, 1977). (A cena clássica do (chumbo, chumbo!, não cubo!) acabou ficando
“filme do Herman”: Herman Nietzsche-Freud um western meio burlesco, meio circense, com
fazendo, com um disco riscado, uma serenata os bandidos fazendo piruetas, abrindo queijos
para a Wilza Carla, “vou trepaaar, vou trepaa- de onde saíam ratos, etc. O western, de fato, é
aar, vou trepaaar... na escada, minha doce ama- um gênero dúctil, aberto, plural. Cabem nele
da, só para te ver...”. Há, há.) Havia também o tanto filmes escrachados, paródias como Um
“filme da Cristiane dos Anzóis Pereira”. Sobre Pistoleiro Chamado Papaco, de Mário Vaz Filho,
esse último, o “da Cristiane”, não tenho abso- quanto livros de alta literatura, como o aclama-
lutamente nenhum dado técnico. Nunca vi esse do Meridiano de Sangue, do Cormac McCarthy.
filme ser reprisado e ninguém que eu conheça já Depois de dirigir o western Chumbo Quente
ouviu falar dele. Que eu me lembre o filme era (1977), Clery Cunha, cineasta goiano radicado
passado no Guarujá, litoral sul de São Paulo, e o em São Paulo, realizou O Outro Lado do Crime
elenco era formado apenas por atores obscuros (1978), talvez um de seus filmes mais notáveis.
(nenhum ator que, mesmo que eventualmen- O filme, uma história de crime (José Lewgoy
te, aparecesse nas novelas da Globo). Fazendo às voltas com a esposa velhusca e a amante
aqui, de cabeça, uma reconstituição do enredo, brotinho, etc.), é narrado em off pelo radialis-
quase quarenta anos depois de o ter visto pela ta Gil Gomes. O efeito dessa narração é espe-
última vez, o filme era um dramalhão que con- tacular. Clery Cunha foi dos poucos artistas
tava a história da tal da Cristiane e seu envolvi- que perceberam o grande potencial artístico
mento romântico com um sujeito que acaba se e estilístico da narrativa policial radiofônica.
metendo com uns bandidos, aí os bandidos se Hector Babenco usou a voz do radialista Afaná-
vingam do sujeito, cegando-o, aí o sujeito resol- sio Jazadji num trecho de Pixote, mas foi uma
ve se afogar. Alguém aí já viu esse filme? aparição incidental, sem maior importância
para o filme. Rogério Sganzerla em O Bandido

74 curta circuito 2018 75


da Luz Vermelha criou uma narrativa em off de
inspiração radiofônica, mas não propriamen-
te policial (a narrativa em off do Luz está mais
Clery Cunha, que também dirigiu Os
Desclassificados (1972), A Pequena Órfã (1973),
O Rei da Boca (1982), entre outros, é um diretor
Rádio, Cinema e Televisão
próxima da locução do speaker cretino usada com profundo domínio da técnica cinemato-
por Nelson Rodrigues em Álbum de Família). gráfica e, ao mesmo tempo, um conhecedor
Já Clery Cunha assimilou à narrativa cinema- bastante íntimo do universo boca do lixo (uso
tográfica o modo como os programas policiais aqui a expressão em seu sentido abrangente;
de rádio vinham sendo feitos nos 1970 e 1980 Cunha, não só como também, foi diretor jor- BEATRIZ SALDANHA
– aquela sonoplastia nervosa, feita com músicas nalístico do Aqui Agora, noticiário exibido pelo
de inspiração moderna, atonal; o modo de nar- SBT entre 1991 e 1997). Talvez por isso tudo Somente quem viveu os anos 1970 e início dos
rar, cheio de ênfases e suspenses. Aliás, esses tenha conseguido realizar em O Outro Lado do 80 tem ideia da dimensão que tinha o progra-
programas policiais tinham uma surpreendente Crime “aquele tipo de poesia torta que o cinema ma policial matinal narrado por Gil Gomes
semelhança com certas composições de Arnold brasileiro desaprendeu a produzir e demons- nas estações de rádio paulistas. Com seu esti-
Schönberg (um dos papas da música moderna), trar com cores e sensações tão vivas”, como lo dramático, inimitável e inconfundível, Gil
ou mais precisamente com uma, um oratório escreveu Andrea Ormond num ensaio sobre o Gomes estendia o quanto podia sua narração
para voz recitante, coro e orquestra chamado filme. E, estando Clery Cunha ainda atuante de crimes reais ocorridos na cidade; mesmo os
O Sobrevivente de Varsóvia. (É bastante pos- (alvíssaras!), vou encerrar esse texto com um mais banais invariavelmente ganhavam uma
sível que o compositor Arrigo Barnabé tenha pedido para ele: ei, Clery, filma agora o “Cubo intensidade eletrizante e sempre terminavam
percebido a grande afinidade entre os progra- Quente” que eu estou querendo ver esse filme em tragédia. Como não poderia deixar de ser,
mas policiais de rádio dos anos 1970-80 e essa desde os meus sete anos. Ok? grande parte dos relatos se referia a crimes
peça específica de Schönberg, o que o levou a passionais, traições, ganância ou brigas fúteis.
explorar isso, essa afinidade, em sua canção Eduardo Haak Havia uma espécie de lição de moral torta ao
pop dodecafônica Tubarões Voadores, de 1984, final e a conclusão óbvia de que o crime não
“Fecha a janela, Joãozinho, ou senão nós sere- compensa nunca.
mos comidos pelos...”.) A geração seguinte pôde conhecer o pecu-
Gil Gomes (e Afanásio Jazadji), mais do liar jornalista investigativo em sua sobrevida na
que jornalistas informativos, na verdade eram televisão, quando Gil Gomes se tornou repórter
os grandes narradores da distopia, da antie- do jornal Aqui agora, transmitido pelo SBT entre
popeia paulistana daqueles tempos. Johnny 1991 e 1997. Com uma equipe de profissionais
Rotten, o vocalista dos Sex Pistols, uma vez advindos do rádio, proclamava-se um “tele-
não hesitou em dizer que achava São Paulo um jornal vibrante, que mostra a vida como ela é”.
lixo. E nenhum paulistano deu uma de bairrista Os repórteres extraindo o máximo de emoção
ofendidinho, todos rimos muito com aquela de cada fato cotidiano e batendo recordes de
afirmação do pistoleiro sexual. Sim, Johnny audiência. A forte carga dramática que sobre-
Rotten estava certo, São Paulo era mesmo um pujava as matérias fez com que o Aqui agora
lixo, uma cidade violenta, poluída e degrada- fosse criticado por seu sensacionalismo e pela
da, uma cidade sem qualquer senso de solida- abordagem irresponsável em alguns casos (os
riedade ou de comunidade humana, a não ser repórteres interceptavam o sinal de rádio da
em circunstâncias muito excepcionais, como polícia e muitas vezes chegavam ao local do cri-
no caso do trágico incêndio do Edifício Joelma. me antes mesmo dos agentes da lei). Em uma
(Clery Cunha, aliás, dirigiu em 1979 um filme de suas edições mais infames, na busca sedenta
sobre esse incêndio, Joelma, 23º Andar, filme por audiência e furo de reportagem, o programa
que foi um grande sucesso de público. E eis que chegou a exibir o suicídio de uma adolescente,
me ocorre aqui uma variação daquela frase atri- atitude até hoje bastante discutida quando se
buída a Otto Lara Resende, “O paulistano só é trata da ética no jornalismo.
solidário quando está sendo queimado vivo”.) Repórter policial de rádio desde 1968, quan-
do tinha 28 anos de idade, o paulistano Gil Gomes

76 77
levou sua experiência para a televisão, tornando- (José Lewgoy), com um rapaz mais jovem que (a novata Marneide Vidal), uma jovem adorável
se responsável principalmente pelas reportagens seria, no fim das contas, um chantagista. Uma que conheceu no metrô a caminho do trabalho.
que abordavam crimes passionais, entre cônju- querela teria acabado com os dois mortos. Ape- O filme assume, então, a estrutura de um gran-
ges e familiares, dando prosseguimento ao estilo sar de todo o esforço da polícia em defender o de flashback, o qual Gil Gomes narra com sua
que havia desenvolvido com sucesso no rádio. A marido como “injustiçado”, “cidadão respeitá- intensidade característica. Sua locução é, como
voz marcante era o único instrumento de traba- vel” e “pacato talvez até demais”, um detalhe sempre, vigorosa e apaixonada, enfatizando o
lho do locutor; na televisão os relatos ganharam, se sobressaía: pouco antes do acontecimento marasmo e a mecanicidade do casamento de
evidentemente, apoio das imagens, marcando fatídico, o marido triplicara o valor do seguro maneira persistente, repetindo palavras e frases
a figura de Gil Gomes como o conhecemos até da esposa. Intrigado, Gil Gomes inicia a leitura até quase perder o fôlego, como uma bomba
hoje: um homem de postura encurvada vestindo da pasta com os dados sobre o caso e começa prestes a explodir. É a crônica de uma morte
camisas de cores berrantes e sempre fazendo o a contar a história como tradicionalmente fazia anunciada. Diferente do que se espera de um
mesmo gesto com a mão espalmada, agitada em nos programas de rádio. Ou seja, com intensa e filme de investigação, não existe aqui a dúvida
movimentos horizontais. esmagadora dramaticidade. sobre quem matou, e sim a curiosidade sobre
O tamanho do sucesso de Gil Gomes no É então que Alberto, o suposto cidadão res- como o “respeitável” Sr. Alberto armara a situa-
rádio levou o repórter policial a protagonizar o peitável e viúvo inconsolável, é trancado em ção, desde forjar o adultério de sua pacata esposa
filme O outro lado do crime, lançado em abril de uma sala e confrontado por um grupo de pes- até construir um álibi que o protegesse. O deta-
1979, dirigido por Clery Cunha, um dos princi- soas, pressionado a contar a verdade sobre o lhe final – descoberto pelo investigador da agên-
pais cineastas da Boca do Lixo quando se trata crime. Ele desaba diante das evidências e revela cia de seguros, e não por Gil Gomes, que desta
de filmes policiais. Nascido no interior de Goiás que mantinha um caso amoroso com Luciene maneira fica resumido a narrador da história, a
e criado em São Paulo desde pequeno, Clery foi exemplo do que fazia no rádio – envolve as condi-
diretor de clássicos do cinema de exploração ções em que o revólver foi encontrado na mão do
como Pensionato de mulheres (1974), Chumbo suposto suicida. A plateia da época talvez tenha
quente (1978, com a dupla de cantores serta- percebido alguma semelhança com a estrutura
nejos Leo Canhoto & Robertinho), Joelma 23º dos episódios da série Columbo, estrelada por
andar (1979) e O rei da boca (1982). Sua primei- Peter Falk e muito popular na TV brasileira.
ra fita, Os desclassificados, realizada em 1972, já É interessante imaginar o processo de cria-
antecipava a temática da violência na cidade de ção do roteiro de locução da história, visto que
São Paulo; um de seus últimos trabalhos, como Gil Gomes estava habituado a descrever tudo
codiretor ao lado de Francisco Cavalcanti, foi da maneira mais detalhada possível, a fim
Horas fatais: cabeças trocadas, um policial de de desenvolver uma ilustração mental para o
vingança estrelado por Chico Cavalcanti e ten- ouvinte de rádio. No cinema, é claro, a ação se
do José Mojica Marins como antagonista. concentra nas imagens, portanto havia grandes
O outro lado do crime, que tem argumento do chances de haver redundâncias entre o que era
próprio Gil Gomes, baseado em um caso verídi- visto e o que era falado, mas a narração é, de
co, e roteiro assinado por Clery Cunha e Jesse J. modo geral, muito bem resolvida. Os comen-
Costa (mais conhecido como Jesse James, que tários de Gil Gomes são constantes e incisivos,
em seus últimos anos foi cinegrafista do canal interferindo diretamente na trama e oferecen-
ESPN), o jornalista aparece como ele mesmo, do um tom dramático que provavelmente não
um incansável repórter policial que apresenta se perceberia através da atuação contida de José
um programa de rádio no qual narra histórias Lewgoy, que muitas vezes aparece sozinho em
de crimes passionais. Representado como um cena, reflexivo.
homem de grande prestígio, de quem todos O outro lado do crime é um filme muito mas-
querem estar perto, é convocado para auxiliar culino, uma história cotidiana sobre afirmação
na investigação de um estranho caso de assas- da masculinidade, sobre o prazer de se sentir
sinato seguido de suicídio. Elisabete Cordeiro macho novamente, recuperar a virilidade: “O
(Liana Duval), uma senhora de 55 anos, esta- homem agora se perfuma, não mais arrasta os
ria traindo o marido, Alberto Lima Cordeiro pés. Estufa o peito. Alberto Lima Cordeiro, um

78 79
homem!” Alberto reencontra na amante a von-
tade de viver e de prover. No começo do filme,
a narração parece tomar partido dele, falando
O outro lado do crime é um filme bastante
peculiar na cinematografia brasileira, cons-
truindo graças à personalidade de Gil Gomes
Celeste vive sob a
educação rígida do
sobre Elisabete de maneira ofensiva e cruel, um curioso diálogo entre três meios de comu-
quase como um diabrete no ombro: “Ela comia, nicação de massa que viveram seu apogeu em
comia, e por isso engordava. De atrativos físicos diferentes épocas: o rádio, o cinema e a tele-

pai. Durante um
não tinha absolutamente nada. Geleia, bolo, e visão. A maneira particular como trabalha a
Elisabete comia. Desesperadamente comia. narração e sua ressignificação faz com que seja
Freneticamente comia.” um dos filmes mais interessantes originados na

curso de astronomia,
Luciene, por sua vez, é o completo oposto. Boca do Lixo ainda em sua fase prolífica.
Moça de formas delicadas, alimentava-se como
um passarinho. Quase uma ninfa sedutora. Beatriz Saldanha
Mas a crueldade da narração não é seletiva.

conhece Mário e
Gil Gomes enfatiza o romance entre Alberto e
Luciene como algo completamente grotesco:
“Aos locais mais pitorescos ele ia e era ridículo.

inicia um tórrido
Alberto Lima Cordeiro era praticamente ridícu-
lo. Ele tentava dar uma de apaixonado, mas nem
beijar ele sabia! Era realmente ridículo. Era um

romance. Ao perceber
homem apaixonado, totalmente apaixonado.
Um homem enamorado que não sentia como
estava tudo, tudo, tudo tão ridículo.” No fim das
contas, a revelação guardada para o finalzinho:
todos foram vítimas da encantadora Luciene,
que seduz homens casados no metrô para lhes
tirar dinheiro e bens materiais (mas que curio-
o envolvimento do
rapaz com o tráfico de
samente escapa impune). Deste modo, O outro
lado do crime remete aos contos da tradição
oral, sempre carregados com uma moral que se

drogas, Celeste passa


revelava no final de cada história. Mas, ao invés
do lobo na floresta, temos uma mulher fatal que
ataca na selva de cimento armado. Este tipo de
representação misógina não é uma exclusivi-
dade deste filme; pelo contrário, as mulheres
fatais são bastante presentes no imaginário da
Boca do Lixo, o que diz muito sobre o público
a rejeitá-lo.
que consumia os filmes.
O filme termina com o anúncio e uma espé-
cie de trailer de um segundo filme protagoni-
zado por Gil Gomes, prometendo muito mais
emoção e ação efetiva do repórter policial na
resolução de crimes – que sai em perseguição
a bandidos e até dispara um revólver. O filme,
contudo, não chegou a ver a luz do projetor.
A parceria entre Gil Gomes e Clery Cunha foi
retomada anos depois no programa Aqui agora,
do qual Clery era um dos coordenadores.

80 curta circuito 2018


Beijo na Boca
“Eu não sou aluna de ninguém” ou
Como aprender com Celeste. Uma
leitura sobre Beijo na boca.
Eliska Altmann Em 1982, doze foram os filmes brasileiros de
maior público: Os trapalhões na Serra Pelada, de
J.B.Tanko, com 5.043.350 espectadores; Coisas
eróticas, de Raffaelle Rossi, com 4.729.484; Os
vagabundos trapalhões, de J.B.Tanko, 4.631.914;
Menino do Rio, de Antonio Calmon; Luz del Fuego,
de David Neves; Fome de sexo, de Ody Fraga; Pra
frente, Brasil, de Roberto Farias, com 1.298.055
espectadores; Aventuras da Turma da Mônica, de
Maurício de Sousa; Amor estranho amor, de Wal-
ter Hugo Khouri; A noite dos bacanais, de Fauzi
Mansur; Índia, a filha do sol, de Fábio Barreto; e
Beijo na boca, de Paulo Sérgio Almeida, que con-
tou com 562.851 espectadores.1
Segundo o pesquisador Arthur Autran, nos
anos 1980, devido a uma “censura mais liberal,
filmes tornam-se mais ‘pesados’ e degringolam
no pornográfico, com cenas de sexo explícito,
chegando a representar cerca de 70% do total
da produção brasileira em 1988”.2 Nesse senti-
do, a referida década teria sido marcada “pela
decadência das formas de produção cinemato-
gráfica desenvolvidas no Brasil durante o decê-
nio anterior”.3
Deste contexto, o presente ensaio trata do
longa carioca Beijo na boca, cujo realizador, pos-
teriormente, viria filmar Banana split (1988),
Sonho de verão (1991), Xuxa popstar (2000), Xuxa
e os duendes (2001) e Xuxa e os duendes 2 – No
caminho das fadas (2002). Seguindo temáticas
comuns à maioria das produções do período,
Beijo na boca não se furta a cenas de nudez, sexo
e violência, como indica a sinopse encontrada na
ficha catalográfica do filme disponibilizada pela
Cinemateca Brasileira: “Uma garota de Copa-
cabana enamora-se de um misterioso rapaz.
Paulo Sérgio Almeida / RJ 1981 97'
85
Quando é pega com tóxicos, acaba sendo era o salário mínimo vigente as mulheres cariocas tinham em média 5 filhos
expulsa da casa dos pais e vai morar com o em 1982.4 6.313 foi o número em 1960, caindo para 3,5 em 1970, e chegando
namorado. Este, influenciado por um primo, de vítimas de homicídios por ao nível de reposição (2,1 filhos) na década de
parte para investimentos em cocaína. O amor armas de fogo no país no ano 1980. Entre 1980-85, contudo, o maior grupo
louco cresce em meio a drogas e revólveres e, do lançamento de Beijo na boca. etário brasileiro foi o de 0-4 anos. Conforme
para amenizar o ciúme do rapaz, os dois deci- De acordo com o especialista Alves, o aumento não teria ocorrido devido ao
dem matar os ex-namorados da moça”. Além Julio Jacobo Waiselfisz (2016), crescimento da fecundidade, mas porque havia
do referido trecho, na ficha ainda podem ser em 1980, “as armas de fogo mais mulheres em idade reprodutiva, especial-
lidos os seguintes dados: “Gênero: drama; foram utilizadas para cometer mente entre 15 e 24 anos7, como Celeste.
Termos descritores: tóxico, comportamento 43,9% dos homicídios”, como Entretanto, contrária aos ideais reproduti-
social, juventude, homicídio; Descritores os consumados por Mário e vos, familiares e religiosos de uma sociedade
secundários: cocaína, praia; Termos geográfi- Celeste. Interessante notar ain- a viver os resquícios da ditadura militar que
cos: Rio de Janeiro”. da que o desenvolvimento eco- durou 20 anos, Celeste diz frases do tipo “dis-
Mais do que “Rio de Janeiro”, Beijo na nômico nacional concentrado penso seu dinheiro e esse tal de marido, tá
boca se passa, sobretudo, na Zona Sul (além nas grandes regiões metropo- legal?” Desse modo, pode-se supor que a per-
da Cinelândia e Barra da Tijuca), revelada litanas, principalmente Rio de sonagem desvia, em certo sentido, da visão
desde a abertura em cenas de Copacabana, Janeiro e São Paulo, era fator objetificada da mulher dos filmes eróticos
do Pão de Açúcar, de orlas cariocas intercala- para o aumento da violência. campeões de bilheteria da época, bem como se
das com uma mão que segura um revólver e Enquanto as taxas nacionais de posiciona numa margem de erro dos estereóti-
porta um soco inglês, sob a música de Marina homicídio eram de 5,1 por 100 pos8 ilustrados no filme. Destes, vale ressaltar
Lima “Nos beijamos demais”. Entre os cená- mil habitantes, as das capitais 1) o protagonista: homem branco, músculos
rios “clichês” da “cidade maravilhosa” que seriam de 21,35. Recortados por definidos (Mário aparece quase 90% do filme
ilustram a ficha técnica, o espectador ainda é sexualidade, índices mostram sem camisa), que cumpre papel de protetor
apresentado aos protagonistas Claudia Oha- exclusividade masculina das apaixonado por sua femme não submissa. Com
na (Celeste), que sai do mar e veste uma cami- vítimas, como os ex-namora- verve machista, obstinado em apagar o passado
seta “Rio I love you”, e Mário Gomes (Mário) a dos da protagonista: “94,4% na de Celeste, ele pergunta incessantemente “que
fazer exercícios na janela de seu quarto antes média nacional”. Deste núme- namorado? Quanto tempo vocês namoraram?
de se arrumar para sair. O prólogo termina ro, a imensa maioria compre- Tem certeza que não tem mais nada com esse
com uma visão ampliada do Rio a se enquadrar endia (e ainda compreende) a população negra. Arthur? Como pode provar?” Depois da decisão
numa espécie de cartão postal. Na faixa de 15 a 29 anos de idade, igualmente de assassinarem o ex da moça, Mário justifica:
Tais informações dão ideia dos “termos des- em semelhança com os personagens, o cresci- “Ele te comeu. Precisava mais alguma coisa?
critores” de Beijo na boca: praia; homicídio (por mento da letalidade foi mais intenso do que no Você é minha mulher. Ninguém come”; 2)
meio dos signos revólver e soco inglês); compor- resto da população. Em 1982, 3.118 jovens foram Osmar (Milton Moraes), o pai de Celeste. “Sem-
tamento social (também verificado através de mortos no Brasil.6 pre em viagens de negócios”, o coronel da polí-
marcadores sociais como classe, gênero e raça) Na década do lançamento de Beijo na boca, cia reformado “sempre quis ter filho homem”,
e juventude. Destes, relacionados a índices o antigo Estado da Guanabara liderou o proces- mas “como nasceu mulher, a responsabilidade
socioeconômicos nacionais e regionais do perí- so de transição da fecundidade no país. Como maior da educação dela é sua”, diz à esposa ao
odo, vale conferir alguns dados: Cr$ 16.608,00 aponta o sociólogo José Eustáquio Diniz Alves, limpar seu revólver. O personagem, evidente-

86 curta circuito 2018 87


mente, é o provedor da família e também for- amplo cenário, poderíamos concluir que o Rio abordagens culturais complexas, Beijo na boca
nece mesada à filha; 3) a mãe de Celeste (Joana de Janeiro de 1982 ou, pelo menos, de Paulo serve-nos para compreender historicidades
Fomm): do lar, “passou a vida inteira passando Sérgio Almeida, era branco, classe média, auto- cinematográficas e sociais, e questioná-las. Um
panos quentes” na cria. “Deixa a menina... ritário e machista – por meio das representações exame do passado, por meio de jogos políticos
Osmar, Celeste acabou de fazer 21 anos. Você masculinas –, conformado e insubmisso no que do presente, fornece ferramentas intelectuais
não sabe o que é a cabeça de uma mulher nessa concernia às mulheres. Como tal visão parece sobre imaginários e resistências.
idade”. Por outro lado, adverte a filha: “Assim reducionista, valeria perguntar: Por que e para
você não vai conseguir casamento. Não sabe quem tal recorte discursivo? Como seriam ***
nem fazer café!”. representados outros grupos e tipos? Quem fala Em tempo: Beijo na boca ganhou primeira
Ao lado e à margem desses lugares-comuns, através do filme e quem o assiste? E se a geogra- página do Caderno B do Jornal do Brasil no
Celeste, de certa forma hesitante, parece ante- fia fosse deslocada do Centro – Zona Sul – Barra? domingo, 10/10/1982. Na matéria intitula-
cipar princípios feministas mais articulados no Como reflexão para estas e outras questões, da “O sonho de ser uma estrela começa a se
Brasil contemporâneo9. Há mais de trinta anos, averiguamos uma minutagem das aparições a realizar”, a crítica Susana Schild indica que
a jovem dava indícios de uma desnaturaliza- apontarem para as representações das subjeti- “embora o diretor negue a inspiração do filme
ção das estreitas relações entre sexo e gênero. vidades cariocas no filme. no Caso Lou (e ao final de Beijo na boca surja
Assim, apesar de ter nascido biologicamente Dos primeiros 02’49’ a praticamente 04’07’’ na tela a advertência de praxe ‘qualquer seme-
“fêmea”, parecia entender que não possuía uma (com um pequeno intervalo), Claudia Ohana lhança é mera coincidência’), o enredo segue a
“condição invariável”. Não precisava cumprir o aparece nua e só. A atriz ainda ocupará a tela na trilha daquela tragédia”.
papel reprodutivo de sua mãe, não precisava mesma forma por mais meio minuto ao longo
ser boa esposa nem moça de família. Seu devir do filme. Nua ou seminua, Celeste aparece, em Eliska Altmann
mulher lhe conferia certo desapego e liberdade cenas de sexo com Mário, também nu ou semi-
a ponto de dizer, com segurança e empáfia, a nu, por mais 16 minutos. Diminuindo esses
Mário ao telefone: “eu não te disse que era pra 17’50’’ dos 97 minutos totais do longa sobram
ligar só no final de semana? Saudades... já? Você 79 minutos. Destes, vemos por três segundos
não acha que está exagerando um pouquinho?”. (12’45’’ a 12’ 48’’) um menino negro vendedor
Ademais, Celeste enfrentava o pai: “tira a mão de balas e por cinco segundos (29’03’’ a 29’08’’)
de mim!”. “Mania de querer saber o sobrenome a empregada da casa de Celeste – igualmen-
das pessoas... Até parece que aqui alguém tem te negra e com uniforme – que nada fala. Em
sangue azul”. Seu pecado foi ter se apaixona- menos de meio minuto (28’36’’ a 29’01’’) ouvi-
do por Mário. Apesar de também enfrentá-lo mos um porteiro branco e idoso, do tipo “fofo-
(“deixa de ser ridículo! Fica me vigiando, se queiro”, e por seis segundos, “Alemão”, um
quiser. Eu, hein, que saco!”), confessa: “Estou rapaz negro prestador de serviços, responde ao
com medo. Qualquer dia você me mata e diz Mário dando-lhe a chave de seu conversível:
que matou por amor”. “Aí, já está na mão, chefia”.
Tais tipos de Beijo na boca viviam numa Como apontam e denunciam as inúmeras
urbe eminentemente praiana. Das raríssimas discussões sobre raça e gênero no Brasil atual,
locações do filme, pode-se dizer que 90% são os tempos contados acima confirmam que per-
praias. Em tomada no Cristo Redentor, ouvi- cepções multiculturalistas a refletirem plurali-
mos de Celeste: “Ai, eu adoro o Rio. Acho que dade racial e social não estavam na pauta dos
não conseguiria morar em outra cidade”. Deste dias de 1982. Entretanto, hoje, se lido a partir de

88 curta circuito 2018 89


NOTAS

1. Listagem de filmes brasileiros com mais


de 500.000 espectadores. Documento
da Ancine disponível em https://oca.
ancine.gov.br/sites/default/files/cinema/
pdf/2105_1.pdf. Acesso em janeiro de 2018.

2. AUTRAN, A. “Anos 80”. In RAMOS, F.


P. e MIRANDA, L. F. A. de. Enciclopédia
do cinema brasileiro. São Paulo: Editora
SENAC, 2000, pp. 27-28.

3. Idem.

4.Fonte:http://www.fontaocontabilidade.
com.br/capa.asp?infoid=1336. Acesso em
janeiro de 2018.

5. WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência –


homicídios por armas de fogo no Brasil - 2016.
Flacso Brasil, 2016.

6. Idem.

7. Para mais detalhes, ver https://www.


e c o d e b a t e . c o m . b r / 2 0 1 5 /0 4 / 2 9 /
decrescimento - da-populacao - da-
cidade-do-rio-de-janeiro-artigo-de-jose-
eustaquio-diniz-alves/. Acesso em janeiro
de 2018.

8. Sobre o conceito de estereótipo, ver


SHOHAT, E; STAM, R. Crítica da imagem
eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

9. Note-se que, no Brasil, um maior uso dos


conceitos e entendimentos sobre gênero –
suas desigualdades e representações – teve
início justamente nos anos 1980, chegando
a um amadurecimento jurídico com a
Lei Maria da Penha, criada mais de duas
décadas depois. Referências para fontes
inesgotáveis de estudos e pesquisas sobre
a temática são as revistas Estudos feministas
(UFSC) e Cadernos Pagu (Unicamp).

90 curta circuito 2018 91


Violência na carne

Marcelo Miranda
Entre a Boca do Lixo e o pornô, o cinema bra-
sileiro do começo dos anos 1980 tentava se
equilibrar entre a relevância estética ou temá-
tica e o erotismo, entre o impacto de narrati-
vas pautadas pela crescente violência urbana
e por questões sociais sempre urgentes no
país ao apelo à nudez e ao sexo que garanti-
riam o naco de bilheteria de quem só quisesse
assistir a uns corpos bonitos. Em 1982, ano em
que Beijo na Boca chegava às salas de exibi-
ção, vários títulos disputaram espaço ao longo
dos meses, muitos deles na busca pela divi-
são perfeita entre a relevância e a picardia,
ou o perfeito encontro entre um elemento e
outro: de Rio Babilônia (Neville D’Almeida) a
O Segredo da Múmia (Ivan Cardoso), de Meni-
no do Rio (Antonio Calmon) a Amor Estranho
Amor (Walter Hugo Khouri), de Karina Objeto
de Prazer (Jean Garrett) a Das Tripas Coração
(Ana Carolina), todos, em alguma medida e
por caminhos às vezes radicalmente opos-
tos, expuseram as inquietações de um tempo
incerto (o Brasil quase na pós-ditadura) mes-
cladas a seus efeitos, com maior ou menor
intensidade, nos corpos de atores e atrizes.
Beijo na Boca, portanto, não está isolado
em sua concepção de filme urbano-policial
com pitadas generosas de erotismo, nudez
e sexo (mistura então consagrada há duas Collor, a retomada que se seguiu a partir de
décadas pela literatura de Rubem Fonseca). É 1994 trouxe produções de limpeza exemplar,
um exemplar típico do cinema popular brasi- que tentavam aflitivamente se apresentar
leiro que depois seria difamado por estetas do como “relevantes” e “legítimas” num cenário
bom-gostismo, muitos deles com poderes em de terra arrasada e amaldiçoada. Sob certas
instâncias oficiais e que, na ânsia de gentrificar variáveis, o estrago permanece ainda hoje.
a produção, construíram uma falsa narrativa Voltemos a Beijo na Boca, esse trabalho
histórica de que os filmes do país se resumiam desavergonhado de Paulo Sérgio Almeida, no
a sacanagem. Com o fim da Embrafilme em qual uma Cláudia Ohana de 19 anos é estopim
1990, no famigerado governo de Fernando de uma história de paixão, ciúme e morte ainda

92 curta circuito 2018 93


capaz de fazer a alegria de programas sensacio- insegurança se manifesta por atos de violência.
nalistas de TV ávidos por explorar a desgraça A inconformidade em dividir a existência com
humana no seu mais fundo grau de degradação. outros dois sujeitos que conhecem a intimidade
O noticiário violento de jornais pinga-sangue de sua namorada é a crise existencial de um per-
sempre foi matéria-prima para o cinema brasi- sonagem que, no limite, é incapaz de se fixar em
leiro desde sua fundação como narrativa, ainda outra coisa senão eliminar aquilo que denuncia
no começo do século XX. Gigantes como Julio a total inadequação e fragilidade de seu estar no
Bressane e Rogério Sganzerla iniciaram suas mundo. O encontro com Celeste é simultanea-
carreiras a partir de relatos de violência saídos mente a glória e a derrocada de Mário, pois, ao
diretamente das páginas dos tabloides cariocas mesmo tempo em que ele se identifica com a
e paulistas, vide Matou a Família e Foi ao Cinema moça sexualmente livre, não se conforma de que
(Bressane, 1969) e O Bandido da Luz Vermelha essa liberdade inclua um passado, uma vivência
(Sganzerla, 1968). anterior que ainda não o incluía. As ações de
Beijo na Boca se vincula a essa tradição, vindo Mário têm o objetivo de eliminar esse passado;
no embalo da libertinagem dos anos 1970, numa sua passionalidade é, na prática, a obsessão por
espécie de exploitation à brasileira que deixa o apagar o que não lhe convém.
recalque de lado para se entregar aos prazeres Celeste, desprendida no auge da pós-ado-
da(s) carne(s) e preparar cuidadosamente um lescência, demora a compreender as intenções
caldeirão que eventualmente irá explodir. Estru- de Mário, até que se depara com o comporta-
turalmente, o filme é construído como a evolu- mento violento do namorado diante de homens
ção de um ato sexual casual, no qual as prelimi- do passado dela. Então, tal como a Holly (Sissi
nares estão no tesão entre Mário (Mário Gomes) Spacek) de Terra de Ninguém (Terrence Mali-
e Celeste (Cláudia Ohana), imediatamente atra- ck, 1973) ou, para ficarmos mais perto, a San-
ídos um pelo outro logo no primeiro encontro; o dra (Cristina Aché) de Amor Bandido (Bruno
gozo vem num estouro de violência desmedida; Barreto, 1979), Celeste embarca na onda san-
e a calmaria se dá num tribunal de acusação, em guinária do companheiro, dividindo-se entre
que um amante mal olha para o outro. O roteiro a resignação de quem reconhece a sedução
de Euclydes Marinho não é tão sofisticado para da inocência e o distorcido entendimento de
que a analogia seja evidente, estando bem mais que aqueles atos fazem algum sentido. Ou,
preocupado em acumular cenas de sexo e con- como escreveu Andrea Ormond no site “Estra-
flitos, mas a forma como Paulo Sérgio filma os nho Encontro”, o casal “enxerga somente a
corpos dos protagonistas (em cenas de duração possibilidade de vingança e autorrealização –
ampliada) e como registra os dois tiroteios do fálica, perversa – diante do mundo. Matam por
enredo (com certo fetichismo pela forma como conta desse revanchismo patético”.
articula visualmente os ataques aos homens que Diferente do que acontece na maioria das
transaram com Celeste) permite outras cama- narrativas de casais assassinos, em que a dupla
das de apreensão. quase sempre morre durante os caminhos de
Mário, bon vivant pobretão num núcleo fuga, o desfecho de Beijo na Boca usa duas
marginal que parece sair de uma peça de Plínio cenas e algumas manchetes de jornal para colo-
Marcos, é o macho travestido de corajoso. Sua car Mário e Celeste no banco dos réus, respon-

94 curta circuito 2018 95


dendo aos crimes que cometeram. A narrativa
assume, pela imagem, a inspiração no noticiá-
rio de fait-divers, porém negando a suíte (desdo-
A cidade de São Paulo
bramento de um fato noticiado no jornal do dia
anterior) e deixando à imaginação do especta-
dor as possibilidades de conclusão do processo
vive um clima
iniciado nos minutos finais.
Ao mesmo tempo, Beijo na Boca se assume,
com o final em aberto, como crônica moral de
pré-eleitoral (1982).
Em meio a muita
um Rio de Janeiro esfacelado por um caldo polí-
tico grotesco e efervescente do qual a mais cruel
consequência é justamente a despolitização da

propaganda, comícios
juventude em cena. Nada mais distante e tam-
bém mais próximo de um país em vias de sair
de uma ditadura militar para uma democracia

e agitação, o repórter
ainda de fachada do que uma garota de classe
média e um traficante pé-de-chinelo responden-
do a um tribunal por um relacionamento que deu

David vê-se envolvido


ruim. O instantâneo de um tempo cheio de con-
tradições, retratado num filme como Pra Frente
Brasil (dirigido por Roberto Farias e lançado no

no caso dos assassinatos


mesmo ano de Beijo na Boca), encontra no tra-
quejo às vezes torto de Paulo Sérgio Almeida um
retrato possível. Os dois protagonistas terminam

de prostitutas do bairro
separados, e assim ficarão, unidos apenas pelo
filme, revivendo em looping, como tantos outros
amantes trágicos do cinema, as delícias do dese-
jo que antecedem a catástrofe.

Marcelo Miranda do Brás, principalmente


através de seu
relacionamento com a
prostituta Luna, uma
das possíveis vítimas.

96 curta circuito 2018


A Próxima vítima
Um thriller
contundente e sombrio
Fábio Leite
Na época em que A Próxima Vitima estava sen-
do produzido, o Brasil vivia um período de tran-
sição política, desenvolvimento social e cresci-
mento populacional intenso: em 1982 acontecia
a primeira eleição para governador de estado
desde 1964 e, no ano seguinte, iniciava-se o
movimento Diretas Já!, que deveria ter culmi-
nado na eleição presidencial de 1984. A produ-
ção cinematográfica brasileira acompanhava
no mesmo ritmo esse movimento, chegando a
lançar 111 filmes em 1981 e 98 em 1984 (a déca-
da de 80 teve um total de 908 lançamentos,
sendo a mais produtiva de todo o século XX).
E os filmes para adultos tinham boa recepção
do público, muitos ultrapassando a marca de
um milhão de ingressos vendidos, entre eles,
Bye Bye Brazil (1980), Pixote (1980), Eles Não
Usam Black-Tie (1981), Eu Te Amo (1981), Luz del
Fuego (1982), Pra Frente Brasil (1982) e Parahyba
Mulher Macho (1983).
Uma produção das mais interessantes desse
período, A Próxima Vítima, no entanto, não fez
sucesso de público quando de seu lançamento
nos cinemas, em 1983. Entre outros fatores,
porque não se integrava em nenhuma das ver-
tentes do cinema feito naquela época: não é um
filme que explora o erotismo, nem libertário
e eufórico, não cumpre uma revisão da nossa
história recente e muito menos oferece biogra-
fia de bandidos e marginalizados, fórmula que
rendeu bem-sucedidos filmes nos anos 70. O
que o filme de João Batista de Andrade ofere-
cia, de fato, era uma radiografia nada positiva
da realidade do país, tomado pelo medo e a
violência, sem líderes ou proposta social. Um
discurso que ia de encontro ao cenário otimis-
ta de desenvolvimento, liberdade e cidadania
pintado pelos políticos em campanha e que a
João Batista de Andrade / SP 1983 93'
101
população ansiava em acreditar. Na contracor- coadjuvante no Festival de Gramado de 1984),
rente da efusiva propaganda eleitoral, o filme a menina, está na lista das vítimas desejadas
revolvia os escombros da ditadura e projetava do misterioso assassino. A polícia, conivente
a escalada insana da violência, antes restrita às com esta eliminação de personagens indeseja-
favelas e periferias, mas que naquele momento das, escolhe para bode expiatório um marginal
se instalava nos bairros tradicionais dos gran- em ascensão no tráfico de drogas, o insolente
des centros urbanos. Situação que, preconizava Nêgo, uma pedra no sapato do delegado Orlan-
o filme, nenhum governo conseguiria reverter e, do Barone (Othon Bastos), um legítimo agente
pior, iria se agravar: menos de dez anos depois, da ditadura. Neste ambiente sombrio, David,
o crime organizado já tomava de assalto as ruas encantado pela menina Luna, vai fazer o que
de São Paulo e do Rio de Janeiro. pode (o que não é muito) para tirá-la daquele
A Próxima Vítima é um filme grave, incô- lugar. Enquanto isso, nas áreas transparentes
modo, talvez o mais sombrio de sua época. A da cidade, boa parte da população se mobiliza
começar pelo título, seco, incisivo, desnorte- em torno da campanha eleitoral.
ante: sem identificação, não propõe barganha O diretor João Batista de Andrade e seu cor-
ou concede esperança. A Próxima Vítima é um roteirista, o autor de novelas Lauro César Muniz,
filme sem nome: seu “sujeito” é anônimo, um apostaram em uma narrativa inusitada: uma
qualquer, qualquer um de nós. É o que acaba trama de serial killer tendo como pano de fundo
reconhecendo o repórter de TV David Duarte um momento político real, a eleição de 1982 para
(Antonio Fagundes) ao investigar uma série de governador do estado de São Paulo. E uma histó-
assassinatos de prostitutas: ninguém está total- ria em que o assassino não é o protagonista, nem
mente a salvo. mesmo um personagem, mas vários. Talvez eles
A Próxima Vítima traz a história de David sejam mortos-vivos da ditadura.
Duarte, um repórter de variedades de uma TV A campanha eleitoral de 1982 é presença
paulistana que é designado para cobrir a inves- constante na narrativa, seja em cartazes, carros
tigação policial de uma série de assassinatos de sonorizados ou mesmo em falas de transeuntes.
prostitutas, ocorridos numa região decadente Em algumas sequências, os personagens fictí-
do Brás, bairro famoso pela forte presença da cios chegam a se misturar com os militantes nas
imigração italiana. Ele aceita a missão a contra- ruas, o que confere certa estranheza à narrativa,
gosto, afinal não é repórter policial, como diz ao uma vez que a trama criminal é substituída por
seu chefe de reportagem, e acaba se enredando diálogos vagos sobre o momento político. (Vale
numa trama sórdida protagonizada por cafe- lembrar que Tizuka Yamazaki faria empreita-
tões, traficantes de drogas e policiais corruptos. da semelhante dois anos mais tarde, ao inserir
Ingênuo, romântico e inexperiente na área cri- uma história de ficção dentro das eleições pre-
minal, o repórter acaba conhecendo uma garota sidenciais de 1984, no filme Patriamada, com
de programa adolescente, por quem se interes- resultado bastante irregular).
sa. Luna (Mayara Magri estreando no cinema,
em atuação que lhe valeu o prêmio de atriz

102 curta circuito 2018 103


Narrativas convergentes em dramaturgia, interpretação e cinemato-
A Próxima Vítima é estruturado, assim, num grafia. É o momento em que David Duarte vai
enredo singular, com ingredientes alheios à ao encontro de Nêgo para uma possível entre-
fórmula tradicional do filme policial brasilei- vista. E descobre que o marginal é um sujeito
ro em que se destacam bandidos românticos pensante, consciente de sua situação e dono
e excêntricos e policiais covardes e corruptos de um discurso articulado. E que reage com
(A Rainha Diaba, Esquadrão da Morte, Amor fúria ao bom-mocismo do repórter. Primeiro,
Bandido, Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia). de forma irônica: “Eu digo o que quero e vocês
Desse modo, o filme de João Batista de Andra- colocam no ar o que querem, não é?”, reagindo
de tem mais proximidade com A Lira do Delírio à proposta de Duarte para a entrevista (“Você
(1978), de Walter Lima Jr., que aborda o tráfico vai poder dizer tudo o que quiser”). E logo
de bebês no Rio de Janeiro (um tema até então depois, dirigindo-se aos seus companheiros: “E
inédito entre nós), Hardcore - O Submundo do aí, moçada, estou bem para aparecer na televi-
Sexo (1979), de Paul Schrader, sobre a busca de são?”. Quando percebe que fora dali não haverá
um pai por sua filha adolescente no submundo diálogo, que está em frente a um assustado jor-
da pornografia, e Taxi Driver (1976), de Martin nalista, ele dispara, colérico, como se soubesse
Scorsese (com roteiro de Schrader), a única que aquelas seriam as suas últimas palavras:
produção do gênero drama policial a ganhar a “Você grava tudo o que eu tenho a dizer, você Feminismo em pauta
Palma de Ouro do Festival de Cannes. É bem também, todos vocês” (momento em que ele se O roteiro de A Próxima Vítima aborda também,
provável que Taxi Driver tenha inspirado em dirige também ao espectador). Esta pungente mesmo que de passagem, um tema que ganhava
algum momento os criadores brasileiros. Há, atuação de Aldo Bueno foi devidamente reco- distinção naquela época: a crescente presença
pelo menos, três semelhanças entre estes fil- nhecida pelo júri de Gramado em 1984, que lhe das mulheres nas redações e o comportamento
mes: Taxi Driver foi filmado nas ruas de Nova concedeu o prêmio de melhor ator coadjuvante. dos homens em relação a essa “intromissão”.
Iorque, é ambientado durante uma eleição e o Outro momento de destaque é a desajeitada É o que acontece com Tereza (papel de Lou-
personagem central tenta salvar da prostituição excursão de David Duarte pelo Brás, onde che- ise Cardoso), namorada e colega de trabalho
uma menina de 13 anos. ga para fazer a matéria sobre os assassinatos. de David Duarte. Jovem assumidamente de
Mas as correspondências param aí. Se Scor- É o momento em que João Batista de Andrade esquerda (“O importante é que a oposição ven-
sese e Schrader optaram por um estudo sobre se permite registrar a vida cotidiana, intensa e ça”, diz ela ao namorado) e bem-humorada, ela
a degradação individual, o interesse de João alegre do bairro. A sequência tem como guia o não se deixa enredar nas manifestações e brin-
Batista e Lauro César era o de registrar a via de trambiqueiro Guido Andreolli, dentista prático cadeiras machistas dos colegas de trabalho.
mão dupla em que se encontrava o país: de um que faz amizade com David Duarte e promete Em que pese o desnecessário e inconvincen-
lado, o Brasil idealizado pelos políticos e dese- ajudá-lo na investigação. Um sujeito cordial e te ‘final feliz’ reservado ao casal de jornalistas,
jado pela população, que saia às ruas exigindo divertido, Guido mantém com o jornalista uma A Próxima Vítima resulta ao mesmo tempo
direitos e liberdade: do outro, um povo decaído, relação ambígua, uma vez que sua sobrevivên- em um bom thriller policial e um contundente
pobre, amedrontado, ainda às voltas com os cia ali está ligada ao seu silêncio. retrato do Brasil das derradeiras manobras da
desmandos da ditadura. A sequência, além de sua excelência, guar- ditadura militar.
da uma curiosidade cinematográfica. Guido
Personagens marcantes Andreolli é interpretado pelo ator e dramaturgo Fábio Leite
Essa parcela marginal da sociedade está bem Gianfranceso Guarnieri, que estreou no cinema
representada por dois personagens que pra- no papel de rapaz de origem italiana e morador
ticamente – e significativamente – passam e do Brás, no filme O Grande Momento (1958), de
não voltam pela trama do filme: Nêgo e Guido Roberto Santos. Seria o trambiqueiro Guido
Andreolli. Com a entrada em cena de Nêgo, a uma versão corrompida e desesperançada de
propósito, o filme atinge seu ponto mais alto, Zeca, o jovem sonhador de O Grande Momento?

104 curta circuito 2018 105


Os crimes do Brás e o
medo de que nada mude
Felipe M. Guerra
Separados por um oceano e quase um sécu- Jack um século antes, as vítimas eram prostitu-
lo, Jack, o Estripador e o Maníaco do Brás têm tas mortas ora a punhaladas, ora asfixiadas. No
muito em comum. Os dois assassinos seriais quarto de hotel que foi cena de um dos crimes,
mataram prostitutas em bairros pobres (Jack na ele deixou uma mensagem na parede anuncian-
Whitechapel de 1888, na periferia de Londres; do suas próximas vítimas.
o Maníaco, no bairro paulista do Brás de 1982) Embora alguns desses elementos apareçam
considerados “antros de imoralidade”, pela alta no filme, não era exatamente o modus operandi
criminalidade e prática de prostituição. Ambos do psicopata que interessava ao diretor de A
abalaram o status quo em suas respectivas épo- Próxima Vítima. “Eu não queria fazer um filme
cas (marcadas pelas próprias tensões sociais), sobre o Assassino do Brás”, explicou João Batista,
atraindo a atenção da opinião pública pela em depoimento ao autor. “O que me chamou a
imprensa, que cobrava ação da polícia. E tanto atenção foi que havia este mito dos assassinatos
Jack quanto o Maníaco do Brás desapareceram no Brás na crônica policial e, certo dia, um policial
sem que se soubesse suas identidades. entregou a um repórter a foto do suposto assassino,
Mas se Jack, o Estripador virou lenda que até e esta foto foi para a TV. Apareceu até no Fantásti-
hoje inspira livros e filmes, o “nosso” Manía- co. Quando eu vi aquilo fiquei espantadíssimo por-
co do Brás já teria sido esquecido se não fosse que percebi a loucura que era. Quer dizer, o policial
por A Próxima Vítima, um belo thriller policial dá a foto de um suspeito, o sujeito põe no ar e pron-
dirigido por João Batista de Andrade em 1982 e to, aquele suspeito está morto e podem alegar que
lançado no ano seguinte. ele era o assassino”.
À época, o cinema policial brasileiro já bus- Além disso, em 15 de novembro daquele ano
cara inspiração na crônica policial em títulos seriam realizadas as primeiras eleições diretas
como O Bandido da Luz Vermelha (1968), de para governador de Estado após quase duas
Rogério Sganzerla, e Ato de Violência (1980), de décadas do país sob o comando dos militares.
Eduardo Escorel – este, baseado em outro serial Em São Paulo, Reinaldo de Barros era o candi-
killer nacional, Chico Picadinho. dato da situação (pelo PDS, partido sucessor da
O diferencial de A Próxima Vítima para Arena que depois viraria PP), enquanto Franco
estas e para as diversas produções estrangeiras Montoro (PMDB), Luiz Inácio Lula da Silva
sobre assassinos em série é que João Batista (PT) e Jânio Quadros (PTB) representavam a
não se limitou a retratar o psicopata e suas víti- oposição e a esperança da renovação.
mas, preferindo usar o personagem real como A volta da democracia foi o estopim de uma
pano de fundo para analisar o contexto social e autêntica guerra. As manchetes dos jornais da
político do período – anos antes de filmes nor- semana que precedeu a eleição dão uma ideia
te-americanos como O Verão de Sam (1999), de do clima turbulento: “Assaltado comitê no
Spike Lee, e Zodíaco (2007), de David Fincher, ABC”; “Filho de Brizola sofre espancamento”;
fazerem o mesmo. “Candidato assassinado no Nordeste”; “PT
O verdadeiro Maníaco do Brás cometeu impede o comício peemedebista”.
seus crimes entre abril e maio de 1982. Como

106 107
Ou seja, se o Maníaco do Brás tivesse come- mante da polícia. E, num hotel miserável, David
tido seus crimes em meio a esse caos, e não conhece Luna (Mayara Magri, em sua estreia
mais cedo naquele mesmo ano, é possível que no cinema), uma jovem prostituta, menor de
tivesse sido ignorado pela imprensa. E João idade, com quem se envolve – e que logo será
Batista brinca com essa ideia, tomando a liber- marcada para morrer pelo “Vampiro”.
dade poética de situar a ação do assassino em Também cruza o caminho do repórter o
meio às eleições de 1982. delegado Orlando (Othon Bastos). Incapaz
“Comecei a pensar o filme pelo momento que a de solucionar os crimes, ele resolve acalmar a
gente vivia”, explicou o diretor. “Entrei no PMDB opinião pública forjando seu próprio culpado,
para tentar fazer dele um partido de oposição. Para um marginal inexpressivo conhecido como
mim, [a eleição de Montoro] era fundamental para “Nego” (Aldo Bueno). O irmão do suspeito
consolidar a reabertura, um governador de oposi- (João Acaiabe) resume o porquê da escolha:
ção numa área como São Paulo criaria um núcleo “Faltou bandido para mostrar, é só achar um
democrático. Comecei a ligar aquele momento, negro e aí fica tudo certo”.
aquela miséria toda, com algo que eu achava que É quando o filme dramatiza aquele episódio
a oposição não estava vendo. A oposição ficava no verídico que inspirou o diretor: Orlando entrega
terreno do jogo da política tradicional, e eu tinha a a David uma fotografia do “suspeito”, e a exibi-
percepção de que o Brasil era muito mais complexo ção da imagem em rede nacional faz com que
do que aquilo. Acabei costurando o filme com estas um inocente seja caçado. Arrependido, o repór-
duas ideias”. ter corre contra o relógio para salvar Nego, ao
Escrito por Lauro César Muniz a partir de mesmo tempo em que tenta proteger Luna do
argumento do diretor, A Próxima Vítima come- verdadeiro assassino.
ça com o jornalista David Duarte (interpretado Mas o destino de todos já está traçado
por Antonio Fagundes) recebendo uma pauta enquanto o povo celebra, nas urnas, a vitória
que ninguém quer: as mortes de prostitutas no da oposição e o início de “novos tempos” – num
Brás. Ele não é repórter policial, mas seus cole- desfecho que dialoga com um filme anterior
gas estão ocupados com os comícios e todos de João Batista, Doramundo (1978), em que os
concordam que “a única coisa que interessa são assassinatos numa pequena cidade dos anos
as eleições”. 1930 são esquecidos com a inauguração de um
A imprensa batizou o maníaco de “Vampi- campo de futebol.
ro do Brás” (alcunha inventada para o filme), Existem dois “Brasis” em A Próxima Vítima.
e, enquanto investiga para sua reportagem, o Um é o Brasil em polvorosa com as eleições,
protagonista se envolve com uma realidade sempre mostrado à luz do dia; alegre, colorido,
miserável, povoada por prostitutas, cafetões com comícios repletos de militantes e muita fé
e policiais corruptos. Seu guia neste estranho na mudança. O outro é o Brasil “subterrâneo”,
novo mundo é Guido (o saudoso Gianfrancesco do medo e da impunidade, representado pelo
Guarnieri), um descendente de italianos que Brás à noite.
atua como cafetão, dentista “prático” e infor-

108 curta circuito 2018 109


São usadas incríveis imagens discursando’. Esta frase é sobre a desconfiança que
filmadas durante a verdadeira eu tinha sobre o real conhecimento do que era o
eleição de 1982: Lula, Jânio e Brasil por parte da esquerda e dos democratas que
Brizola na TV, Ulysses Guima- estavam derrubando a Ditadura”.
rães e Milton Nascimento num Fugindo da cartilha do thriller policial, A Pró-
comício, e até o “Cavalo de xima Vítima jamais materializa seu assassino.
Tróia”, um impresso clandestino O espectador vê apenas os corpos mutilados de
real que tentava sabotar um dos suas vítimas, em cenas cruas que ressaltam um
candidatos. E o chefe de reda- sentimento de fatalismo e desesperança. Mas o
ção da TV onde David trabalha criminoso é uma presença quase fantasmagó-
é o famoso jornalista Goulart rica (talvez por isso o apelido de “Vampiro do
de Andrade, interpretando ele Brás”), que nunca aparece, mas em torno dele
mesmo. Com isso, o filme ganha gira toda a história. Um porteiro de hotel sugere
estilo e visual de documentário. sua versão para o mistério: “Ele não é um só, são
O eclético diretor de fotografia muitos. Um mata, outro aproveita e mata tam-
Antonio Meliande – que traba- bém, outro aproveita a onda e mata mais uma, e
lhou tanto com Khouri quanto mais outra. São três ou quatro assassinos”.
com Mojica, e dirigiu pornôs na Na vida real, o Maníaco do Brás nunca foi
Boca do Lixo – contribui com a identificado. Reportagens de maio de 1982
câmera sempre em movimento anunciam a caçada a um suspeito conhecido
que registra pessoas reais em como “Nego Testa” (daí o apelido usado no fil-
ruas reais, seguindo o protago- me). Porém, ao contrário do que acontece com
nista por becos escuros, hotéis a versão cinematográfica do personagem, o
fuleiros, bares e inferninhos. destino do verdadeiro Nego não ficou registra-
Embora enfoque as elei- do na crônica policial, mas em 1984 ele ainda
ções, João Batista não caiu na estava sendo convocado para interrogatório
armadilha de imprimir sua pró- sobre uma das mortes atribuídas ao Maníaco,
pria visão política à obra. Em segundo o Diário Oficial.
uma entrevista para a Folha de Em um filme que funciona tanto pela trama
São Paulo na véspera da estreia policial quanto como registro de uma época, o
do filme, em novembro de mais impressionante é constatar que, passados
1983, ele explicou: “Como cida- trinta-e-poucos anos do seu lançamento, pouca
dão, estive mergulhado nessas coisa mudou. Tanto Goulart quanto Orlando
eleições, convencendo os amigos terminam o filme com declarações de falsa
da importância de votar e de lutar pela vitória da esperança (“Vai ficar tudo bem, estamos numa
oposição. Meu filme, porém, não é sobre as certe- democracia”; “Agora os tempos são outros”), mas
zas que eu tinha, e sim sobre as dúvidas”. ainda assim a obra de João Batista de Andrade
Em depoimento ao autor, Andrade confir- segue assustadoramente atual.
mou: “Eu tinha certa dúvida sobre a capacidade Numa ironia estilo “a vida imita a arte”, um
de a oposição conduzir bem o Brasil com a reaber- novo psicopata atacou recentemente no mesmo
tura. Tem uma cena no filme em que o Fagundes e bairro e acabou recebendo novamente a alcu-
o Guarnieri estão urinando diante da foto de um nha de Maníaco do Brás. Isso aconteceu em
político. O Guarnieri fala: ‘Desculpe, senador’, e o 2014, um ano eleitoral, remetendo ao filme.
Fagundes responde: ‘Ele nem está ouvindo, ele está

110 curta circuito 2018 111


Em 1970, os crimes do
Por fim, é marcante o diálogo entre Anto-
nio Fagundes e Louise Cardoso, que interpreta Esquadrão da Morte pelo
requinte de violência
sua colega de trabalho e caso amoroso, durante
um comício da oposição. Já transformado por
toda injustiça e violência que testemunhou,

provocaram uma onda


ele declara:

– Gostaria muito de acreditar em tudo isso.

de reações por todo


Esta eleição é uma puta mentira, não vai dar em
nada outra vez.

– O importante é que a oposição vença – res-


ponde ela. o país. As fotos das
– Que oposição? Tudo igual, tudo governo! Você
acha que empresário, latifundiário algum dia vai vítimas, adornadas pela
caveira, símbolo do
ficar do lado do povo? Quero ver o que essa merda
de oposição vai fazer com essa miséria que eu estou
vendo por aí!

Felipe M. Guerra
grupo, causaram uma
incômoda indignação.
Esta é a história de Mateus
Romeiro, o mais famoso
dos policiais, que integrou
o grupo dos Homens de
Aço, uma das facções em
que se dividia o esquadrão.

112 curta circuito 2018


República dos Assassinos
Imagem e violência

Bianca Dias
Em Totem e Tabu Freud ensina que a violência
está na base do laço social. A própria noção de
contrato social supõe uma violência, pois seu
princípio é de uma ordem universalizante. Há
nuances da violência: aquela em que se viola
uma ordem estabelecida, seja ela considerada
da ordem da natureza ou da civilização; ou a da
própria linguagem sobre o vivente que, ao nas-
cer, encontra o Outro do discurso.
República dos Assassinos, filme de Miguel
Faria Jr., aborda a violência a partir de uma série
de eixos que se combinam de modo a produzir,
não significação, mas enigma. Prazer sexual,
esquadrão da morte, repressão, militarismo e
outros aspectos mais ou menos sutis se encon-
tram num roteiro baseado no romance homô-
nimo de Aguinaldo Silva, publicado em 1976. O
livro é um emaranhado de histórias da crônica
policial, do submundo que Aguinaldo conheceu
de perto na época em que atuou como jornalista.
A interrogação que nos convoca eticamente
é: afinal, que república é essa?
O filme coloca em cena uma figura que con-
densa em si parte da tensão da trama: Mariel
Mariscot, policial que fazia parte do famoso
“Esquadrão da Morte”. Elevada ao status de
grande problema nacional, a impunidade este-
ve no cerne da criação desse grupo de extermí-
nio e uniu policiais, comerciantes, bicheiros,
traficantes – e criminosos. O Esquadrão atribuía
a si mesmo uma função moralizadora da socie-
dade: limpar o banditismo a partir da execução
dos delinquentes.
A imprensa da época e toda a política higie-
nista declararam apoio ao Esquadrão, numa
espécie de gozo coletivo moralizador susten-
tado pela indústria da violência e pelos slogans
sedutores de uma pretensa “política do bem”
Miguel Faria Jr / RJ 1979 100'
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que incide no social como uma verdade totali- Cara de Cavalo, outro bandido extermi- ção da violência e de corpos destroçados, o que
tária. A identificação com o justiçamento e não nado pelos justiceiros, estampou a obra mais poderia terminar por nos tornar relativamente
com a lei simbólica é uma forma ampliada do famosa de Hélio Oiticica: “Seja marginal, seja indiferentes.
mesmo gozo que participa dos outros processos herói”. Eram as primeiras obras a refletir o sen- Na época, a estratégia sensacionalista na
de identificação. tido do Esquadrão para o imaginário urbano da divulgação dos crimes criou uma espécie de
O prazer de matar era evidente nas ações do época. Numa carta ao crítico de arte Frederico círculo vicioso: na medida em que as pessoas
Esquadrão. Para citar dois exemplos: em 1962, o Morais, em 1968, Oiticica explica o que o levou se acostumavam com a exposição a cenas mais
bandido Mineirinho foi assassinado com 13 tiros; à construção das obras em homenagem a Cara tenebrosas, apelava-se para efeitos espetacula-
em 1964, Cara de Cavalo foi morto com 52 tiros. de Cavalo: “foi um momento ético”. Aqui cabe res cada vez mais violentos, mais assustadores
Mineirinho foi tema de crônica de Clarice lembrar a barbárie da polícia carioca: 2.000 nas narrativas.
Lispector que, perplexa, se interroga sobre homens mobilizados para a caça ao inimigo O filme sintetizou muito bem nossa relação
cada bala que o matou e, na sua divisão sub- público número 1, com requintes de crueldade: com a violência institucionalizada e banalizada,
jetiva, nos devolve uma ética ao invocar uma foram encontrados no seu corpo aproximada- e toca numa ferida contemporânea: a discussão
justiça que olhe para a “lama viva” que somos mente 100 projéteis. sobre a desmilitarização da polícia e seus efei-
e, justo por isso, “nem mesmo a maldade de O Esquadrão da Morte traz em si outro pro- tos. Cabe pensar em como isso pode ser feito
um homem pode ser entregue à maldade de blema: a espetacularização da violência. Ima- numa cultura que ainda glorifica o autoritaris-
outro homem: para que este não possa come- gens na imprensa da época aplainam qualquer mo, a repressão, a força.
ter livre e aprovadamente um crime de fuzila- possibilidade de entrada que não seja o empuxo Uma sociedade que desconhece a história e
mento”. E termina fazendo uma convocação: ao justiçamento. O filme traz um contraponto enaltece com saudosismo os tempos mais auto-
“Uma justiça que não se esqueça de que nós ético interessante: um beijo gay entre Tonico ritários da curta história de liberdade da Repú-
todos somos perigosos, e que na hora em que Pereira e Anselmo Vasconcellos, em primeiro blica brasileira é a mesma que é conivente com
o justiceiro mata, ele não está mais nos prote- plano. E encontra saídas para não criar imagens a arbitrariedade de grupos de extermínio: uma
gendo nem querendo eliminar um criminoso, espetaculares que explorem a mera contempla- sociedade siderada na imagem e sem capaci-
ele está cometendo o seu crime particular, um dade crítica e ética para tratar a violência pela
longamente guardado. Na hora de matar um via simbólica. O impacto dessa violência do
criminoso – nesse instante está sendo morto imaginário está descrito em Freud, no texto “O
um inocente. Não, não é que eu queira o subli- Inconsciente”, em que o imaginário é apresen-
me, nem as coisas que foram se tornando as tado como o campo das “primeiras e verdadei-
palavras que me fazem dormir tranquila, mis- ras relações de objeto” que se forma antes que o
tura de perdão, de caridade vaga, nós que nos contato dos humanos com o real seja mediado
refugiamos no abstrato. O que eu quero é mui- pela palavra. O imaginário, nesse sentido, nos
to mais áspero e mais difícil: quero o terreno”. dispensa da falta. É o campo da certeza e das
Estar na existência com todas as aporias, na ilusões totalizantes, território sobre o qual se
possibilidade viva de mediação dessa violência ergue a fortaleza protetora do narcisismo. É
que nos constitui sem derrapar nas passagens campo das identidades, que sustentam a mira-
brutais ao ato, no curto-circuito da palavra, que gem do ser. O campo em que se constituem, por
retorna no real, como imperativo de aniquila- efeito de espelhamento, todas as identificações
ção do outro. humanas. O imaginário é essencial ao funcio-
A justiça, diferente do justiçamento do namento psíquico. Por outro lado, também não
Esquadrão da Morte, pressupõe ir além da riva- é possível viver sob o domínio absoluto de seu
lidade especular com o semelhante, além da efeito totalizador.
identificação imediata que conclama a matar no O filme revela a lógica de uma sociedade
outro aquilo que é insuportável. Trata-se de um que se organiza predominantemente pelo jogo
apelo ao simbólico, elemento pacificador dessa de visibilidade profundamente imaginário,
paranoia estrutural, que permite aos homens onde a relação com o outro fica marcada pela
viverem juntos, estando separados. paranoia em que é preciso expulsar, matar,

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aniquilar tudo aquilo que “descoincide” com a rio, de afirmá-la como uma violência passível de
própria imagem. ser inscrita na ordem humana e libidinal, com
Marie José-Mondzain escreveu um contun- o recurso da palavra, pela mediação simbólica.
dente ensaio, com um título que é uma inter- Há uma paranoia estrutural dos sujeitos vincu-
rogação – A imagem pode matar? –, sobre uma lada à constituição do eu, pela marca da relação
questão crucial e que dialoga agudamente com agressiva com o outro, mas há uma possibilida-
as questões trazidas pelo filme: o poder e a vio- de outra que acolhe a dimensão traumática da
lência da imagem. linguagem e do encontro com o outro sem, no
A imagem pode gerar violência e exemplo entanto, resvalar no império do imaginário e na
disto são os filmes nazistas que exaltavam a mortificação da diferença.
perfeição ariana e se alimentavam da fusão de A violência atual, que ainda é a mesma ence-
todos no ódio ao outro. Há uma responsabili- nada no filme, é forma de expressar de que algo
dade moral e ética da imagem, como detentora não vai bem na ordem instituída pela civiliza-
de poder sobre os atos humanos. Uma imagem ção. E é preciso, então, retomar a voz de Clarice
é uma coisa, e uma coisa não pode agir. Pode, Lispector: “É, suponho que é em mim, como
no entanto, fazer agir ou influenciar – “fazer um dos representantes do nós, que devo pro-
fazer”, como é referido no texto. O que faz com curar por que está doendo a morte de um fací-
que entidades produtoras e difusoras de ima- nora. E por que é que mais me adianta contar
gem tenham uma responsabilidade acrescida. os treze tiros que mataram Mineirinho do que
Sendo a imagem uma forma de comunicação os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o
é, neste sentido também, um “prolongamento que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a
dos gestos e das palavras”. Logo, é-lhes permi- pequena convulsão de um conflito, o mal-estar
tido não só representar coisas como também de não entender o que se sente, o de precisar
ideias, conceitos e simulacros. Assim, é inegá- trair sensações contraditórias por não saber
vel a sua capacidade de influenciar e promover como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas
a dialética da transformação das ideias. revolta irredutível também, a violenta compai-
A função ética do cinema deve ser convoca- xão da revolta. Sentir-se dividido na própria
da justamente aí: fazendo uso das imagens em perplexidade diante de não poder esquecer que
contraponto ao descuido com a dimensão sim- Mineirinho era perigoso e já matara demais; e,
bólica da vida que circulou e circula nos “íco- no entanto, nós o queríamos vivo”.
nes” da violência. Impossível não evocar aqui
a imagem do Esquadrão da Morte e a difusão Bianca Dias
da caveira, marca dos justiceiros, que depois
foi reencarnada no cinema no filme Tropa de
Elite, com a imagem e o slogan do Bope – “Faca
na Caveira” – exposta pelos meios de comuni-
cação à exaustão e transformada em produto
pela indústria cultural que, em seu discurso,
reduz a violência à objetividade de sua consta-
tação, contabilizando-a, demonstrando-a por
meio de estatísticas. O sentido que ela porta
pouco importa, pois convocar esta dimensão
seria assinalar o aspecto ético e as coordenadas
discursivas de poder e suas incidências sociais
e subjetivas.
Se a agressividade é constitutiva do eu, não
se trata de negar sua existência, mas, ao contrá-

120 curta circuito 2018 121


O novelesco macho da
danação e o romanesco diva
do luto tardio
Luiz Soares Junior
República dos Assassinos começa sua odisseia Estes são os vértices elementares de um Atlântida, “teatros filmados” em virtuosos
melo-patética – de “thriller foto-reportagem triângulo agora completo (no rewind vidente da e venais sentidos – ainda necessitamos da
novelesco” sobre o Esquadrão da Morte –, com revisão, tudo re-conheceremos) entre a Polí- jouissance clássica. Jouissance que consistiu
uma foto do policial Mateus (Tarcísio Meira), cia, a Política e o Imaginário. É preciso talvez essencialmente na cópula, à la Mateus e Eloína,
espécime de factótum criminoso onde exem- retomar nossos românticos de Iéna – que um entre a inocência e o divertimento, ambos ques-
plarmente se figura aquele funcionário corrom- hegelianismo de direita barbaramente sofis- tão de crença. Se tivesse permanecido, porém,
pido da Lei. Aquele que, até então às margens mou – para entender que esta é a indispensável nesta dimensão fascinante-encantatória, pro-
do sistema, adquiriu com o Sistema implantado mediação de todo fait divers. De natureza meta- vavelmente não teria chegado até nós, pois
pela ditadura militar os modi operandi de se tor- física (Poe, Kleist) ou não. Da Aurélia de Gérard seria um filme academicista que certamente
nar o agente legítimo da ilegalidade: hibridismo de Nerval ao Machão de Fassbinder, foi com a não mereceria constar desta mostra.
perverso entre a Política e a Polícia, em que o fil- Imaginação que os grandes folhetinistas sem- Esta jouissance, portanto, embora ainda
me, ao esposar diversas táticas de exploitation – pre contaram para “raccordar” – sim, uma ope- necessite crer e gozar (crer na possibilidade do
a novela de televisão, o pornô-candy caramelo, ração de montagem – a vida real, em geral mais gozo integral, elididas as mediações em jogo:
o sensacionalismo garrafal, e isto com a compli- árida seara para a emergência de possíveis, à vir- crença na plenitude do campo), e aposte no fait
cação suplementar de jamais estabelecer linha tual encenada, recitada, romanceada por Grace divers televisivo como plataforma para a ativa-
divisória formal entre estes domínios incendiá- Kelly e Delegado Fleury. Exato, pois cada povo ção masturbatória das projeções da recepção, o
rios de ultraficção –, vai figurar o imbróglio. tem a fábula que merece, ou que deseja merecer. faz com tanto aparato de Cena – cenários, perso-
Precisamente, este primeiro plano é um still Mas falemos de Eloína e Mateus. O casal mal- nagens: um teatro luxuoso de tapera atapetada
simbólico, onde as funções de leão de chácara, dito (pelo menos segundo a fórmula “do espíri- para a chegada do vice-rei, dicção empostada e
infiltrado “oficial”, torturador exímio, assassino to”, pois no filme é Carlinhos o par da travesti) continuidade deficitária “ato falho” – que nos
oficioso serão sincretizadas com aquela que estrutura o filme, menos segundo a regra leva a desconfiar da operação “inocente” em
água-forte terrorista que a aliança entre o close – mais clássica de dualismo alegorista da Virtu- jogo. Leva-nos a ver na mais-valia de recursos
petardo de insolência epifânica e nota de rodapé de “non troppo virtuosa”. Fulmina o vício que, melo-patéticos utilizados pelo filme não apenas
dialética na história do cinema – e o attaca! da segundo uma lógica mais polimorfo perversa da o gancho diegético para falar de uma História
manchete de jornal explorarão o poder de fogo ultra-ficção, pressupõe antes o Bild mais dester- do Brasil que soube raccordar com tão crimi-
entrecruzado. Mas este não será o único still de ritorializado da Máscara e do Simulacro. nosa eficiência a Política e a Polícia. Leva-nos
República dos Assassinos. Ele deve ser raccordado República dos Assassinos é um desses espé- também para a saturação dos códigos mais do
com o congelamento – em plano médio e vista cimes contrabandeados do final dos 70 nos que deslavados pela crônica televisual à épo-
-postal da Ilha Bela, que nos assombra “de nove- quais delituosamente – exato, culpados, por ca, incutindo-lhes certo “tardio de overdose”,
lesco” desde a Vera Cruz – com que o filme se querermos gozar ainda, apesar de todo este como os houve de boutique e tardios simples-
encerra. Agora a serviço da personagem oposta tempo decorrido desde a confecção de teatros mente (ou seja: natimortos).
mas complementar a Mateus: Eloína (Anselmo mais suturados, como Great Garrick de James Espécime tardio de cinema é uma rubrica
Vasconcelos). Sim, dois stars opostos e comple- Whale e George Cukor na época clássica, sem crítica que se refere a certo cinema contem-
mentares de um fait divers fotonovelesco. Mas que esqueçamos, é claro, entre nós a Hollywood porâneo desvitalizado, astênico por efeito de
será tão “segura” a equação acima descrita? cabocla da Vera Cruz e os carnavais in vitro da excessiva autoconsciência. Aqui se inverte

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em uma ceia de suntuosas “entradas”, reapro- narrativa do Desejo, e este espectro impeniten-
veitadas do banquete anterior. “Demi-faisan- te haverá sempre de espessar a seu bel-prazer
dé”, falam os franceses daqueles acepipes só (sim, seu luxuoso prazer, pois para preencher
reservados aos marqueses decadentes, pois, a ausência da presença talvez necessitemos de
sem dentes nem força para mastigar, só podem uma mais-valia de signo, de star, de mise/cadre,
ingerir com suficiência as carnes semiapodreci- scène) nossas convencionais estruturas teleoló-
das das caças outrora inocentes. gicas em nome do Fantasma a que ele se incum-
Mas e de Eloína e Mateus? Em que sentido be de dar voz. Sim, de dar voz a Carlinhos.
esta relação se configura estruturalmente num E então, o que nos dão as cenas “comanda-
espécime tardio, por indigestão, como Repúbli- das” por Eloína? A introdução liricamente lan-
ca dos Assassinos? cinante – um marco de beijo homoerótico, pois
Falei mais acima em mais-valia, não foi? sem sombra “de marca” queer, e num contexto
De luxo, da maniera de República ser um fil- mais hostil impossível – na varanda, em entente
me tardio, porém segundo a lógica invertida, giratória e ao som de Roberto Carlos; a oferta
com relação a este gênero mortuário de arte, de seu sangue diante do miché a quem jura
de um excedente de cinema. Acresça-se a esta enrabar toda noite; a apresentação carnavales-
mais-valia, porém, uma correção de espátula ca ao som de Elba Ramalho; o constrangimento
que antes intensifica que “corrige” a perver- pigarrento dos homens da Lei durante a sessão
são, pois, como em alguns filmes mascarados do tribunal; e finalmente o grand finale expiató-
que contrabandearam lautos banquetes Belair rio: dois, três, infinitos tiros?...
sob a máscara da ceia dietética Embrafilme, É disto que falo: de uma infinitude; mas
tudo, mas mantém-se o princípio da valoração: República dos Assassinos se equilibra mal e gos- uma Infinitude desejante que comparece com
a mortificação de aquarela crepuscular se con- tosamente (sim, ainda e sempre da jouissance) pontualidade no filme, e com o esquadro de
verte em tintas histéricas de sitcom escabroso, entre uma economia restrita (George Bataille) um bisturi secciona a sua estrutura “novelesco
e os meios-tons deliquescentes de tantos em de um “exploitation de tese”, com os indefectí- macho” de base com acordes de intimidante
scherzi de forró berrado. Não mata tanto quanto veis demonstrativo de roteiro, kuleshoviano de lirismo, angústia lacrimejante e – vocês repa-
a inanição a indigestão daqueles famintos onde atuação, crescendo de ritmo, e um excedente raram? – a interlocução de um Eu que se dirige
o crítico-sintomatologista deve ler o significa- propriamente dito. Excedente que, sob as figu- frontal e fatalmente para a câmera, e pode nos
do idêntico, mas de significante invertido, da ras atabalhoadas ou acidentais de um raccord interrogar como divinatórios arcanos antigos a
entropia (de uma época, modo de fazer cinema, que escorrega – como de uma sequência que se seus heróis malditos, incapazes de conjugar seu
recepção também)? alonga sem razão –, imprime ao filme conven- destino segundo o metro da Eternidade.
Neste sentido, a sequência onde mais cla- cional a cicatriz insuturável de uma parte maldi- Aqui a narrativa pertence “de direito” a Elo-
ramente se ilustra o delírio bulímico do filme ta (ainda Bataille), em que sentido? ína, porque é sob o signo da mais-valia desejan-
é aquela em que a personagem de Mariana vai Mas não, esperem… não falo ainda, não falo te que o filme se posta, embora, como espéci-
revelar a Gilberto que sua filha está tendo um sempre do “casal estrutural” Mateus e Eloína? me perverso, esteja “de fato” comandado pelo
caso com um bandido do porte de Mateus. O Se Mateus – debitário do star Tarcísio Meira e da novelesco de Mateus. Eloína é a fresta infantil
velho, indiferente, cheira carrada e meia de teleologia de um novelesco quod erat… – encam- da fechadura, a exceção brutalmente intempes-
cocaína diante da estarrecida atriz, arrasta-a pa no filme a economia mais restrita da conven- tiva sem a qual nenhuma conjugação novelesca
para o sofá, para um brandy for two lisérgico, ção, é Eloína quem introduz, em sequências terá o direito à voz, porque a arte, como o sonho
e a câmera ao final acaba por se identificar ao menos chave para a estrutura do que parecem e a psicose, é questão de Fantasma, agora pre-
estado mental do homem, dando-nos um ver- – e não consiste formalmente nisto a quota da sentificado na carne do signo.
tiginoso giro-plongée sobre o improvisado casal. part maudite? no acidente, no intempestivo da
República dos Assassinos se serve do populis- fresta perversa? –, a rusga crapulosa, a inflexão Luiz Soares Júnior
mo de seu tema para – acrescido de estridência desejante, o aliciamento do novelesco “macho”
de música, rugoso de gouache, fá desafinado da danação pelo romanesco da diva enlutada…
de melodrama das 8, aresta de pau-a-pique Lembram da associação, tantas vezes ilus-
de cenário reaproveitado da Boca do Lixo – trada de Sade a Proust, que René Girard fez
servir-nos o cadáver de certo thriller clássico entre romanesco e morte? O romanesco é a

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FICHA TÉCNICA
CA1324/001/2017

REALIZAÇÃO IDEALIZAÇÃO
Le Petit Associação Curta Minas/ABD-MG PATROCÍNIO

DIREÇÃO VINHETA
Daniela Fernandes Os Testas
Vinicius Testa e Vitor Testa
PRODUÇÃO EXECUTIVA
Cláudio Constantino COMUNICAÇÃO
Imprensa Bárbara Prado
CURADORIA Redes Sociais LE PETIT
Andrea Ormond Fotografia VAL+WANDER Fotografias
Vídeos e Making Of Mascote
PRODUÇÃO
Vinícius Correia MIMOS LE PETIT
Concepção Daniela Fernandes
EDITOR Designers Gustavo Gontijo e Rafael Amato PARCERIA

Alex Queiroz Ilustração Gustavo Gontijo


Execução Libretto e Sois Plato
PROJEÇÃO DIGITAL
FRAMES CADERNO DE CRÍTICA/PUBLICAÇÃO
Coordenação Editorial Daniela Fernandes
Receptivo Designers Gustavo Gontijo e Rafael Amato
Juliana Ito Ilustração Gustavo Gontijo
Colaborador Laly Cataguases APOIO CULTURAL APOIO INSTITUCIONAL
DESIGNERS Críticos Carlos Primati, Marcelo Carrard
Estúdio Copo Araújo, Adilson Marcelino, João Carlos
Gustavo Gontijo e Rafael Amato Rodrigues, Ailton Monteiro, Elpídio Rocha,
Fernando Oriente, Leandro Cesar Caraça,
Eduardo Haak, Beatriz Saldanha, Marcelo
ILUSTRAÇÃO
Miranda, Eliska Altmann, Fábio Leite, Felipe
Gustavo Gontijo M. Guerra, Bianca Dias e Luiz Soares Júnior
Fotos Agradecemos à Cinemateca Brasileira e APOIO
WEBSITE aos detentores das obras que exibiremos nesta
Vinicius Moore edição do Curta Circuito. Fica a certeza de que,
juntos, caminhamos em prol da permanência
CENOGRAFIA do audiovisual brasileiro, trabalhando pela
Estúdio Mira memória dos filmes e de todos aqueles que
Bárbara Schall os construíram.

Este caderno foi realizado com recursos da Lei CORREALIZAÇÃO REALIZAÇÃO INCENTIVO
Marcenaria
Municipal de Incentivo a Cultura de Belo Horizonte.
João Rosa do Carmo Fundação Municipal de Cultura.

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