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A nova mulher e a moral sexual

Alexandra Kollontai

Parte I

A nova mulher e a moral sexual

A mulher moderna

Quem são as mulheres modernas? Como as criou a vida? A mulher moderna, a mulher
que denominamos celibatária, é filha do sistema econômico do grande capitalismo. A
mulher celibatária, não como tipo acidental, mas uma realidade cotidiana, uma
realidade da massa, um fato que se repete de forma determinada, nasceu com o ruído
infernal das máquinas da usina e da sirene das fábricas. A imensa transformação que
sofreram as condições de produção no transcurso dos últimos anos, inclusive depois
da influência das constantes vitórias da produção do grande capitalismo, obrigou
também a mulher a adaptar-se às novas condições criadas pela realidade que a
envolve, O tipo fundamental da mulher está em relação direta com o grau histórico do
desenvolvimento econômico por que atravessa a humanidade. Ao mesmo tempo que
se experimenta uma transformação das condições econômicas, simultaneamente à
evolução das relações da produção, experimenta-se a mudança no aspecto psicológico
da mulher. A mulher moderna, como tipo, não poderia aparecer a não ser com o
aumento quantitativo da força de trabalho feminino assalariado. Há cinquenta anos,
considerava-se a participação da mulher na vida econômica como desvio do normal,
como infração da ordem natural das coisas. As mentalidades mais avançadas, os
próprios socialistas buscavam os meios adequados para que a mulher voltasse ao lar.
Hoje em dia, somente os reacionários, encerrados em preconceitos e na mais sombria
ignorância, são capazes de repetir essas opiniões abandonadas e ultrapassadas há
muito tempo.

Há cinquenta anos, as nações civilizadas não contavam nas fileiras da população ativa
com mais do que algumas dezenas, ou mesmo algumas centenas de milhares de
mulheres. Atualmente o crescimento da população trabalhadora feminina é superior
ao crescimento da população masculina. Os povos civilizados dispõem não de centenas
de milhares, mas sim de milhões de braços femininos. Milhões de mulheres pertencem
às fileiras proletárias; milhares de mulheres têm uma profissão, consagram suas vidas
à ciência ou à arte. Na Europa e nos Estados Unidos as estatísticas acusam mais de
sessenta milhões de mulheres inscritas na classe trabalhadora. Marcha grandiosa a
desse exército independente de mulheres! 50% desse exército é constituído por
mulheres do tipo celibatário, isto é, por mulheres que na luta pela s ubsistência contam
apenas com suas próprias forças; de mulheres que não podem, segundo a tradição,
viver unicamente dependendo de um marido que as mantenha.
As relações de produção, que durante tantos séculos mantiveram a mulher trancada
em casa e submetida ao marido, que a sustentava, são as mesmas que, ao arrancar as
correntes enferrujadas que a aprisionavam, impelem a mulher frágil e inadaptada à
luta do cotidiano e a submetem à dependência econômica do capital. A mulher
ameaçada de perder toda a assistência, diante do temor de padecer privações e fome,
vê-se obrigada a aprender a se manter sozinha, sem o apoio do pai ou do marido. A
mulher defronta-se com o problema de adaptar-se rapidamente às novas condições de
sua existência, e tem que rever imediatamente as verdades morais que herdou de suas
avós. Dá-se conta, com assombro, de toda inutilidade do equipamento moral com que
a educaram para percorrer o caminho da vida. As virtudes femininas - passividade,
submissão, doçura - que lhe foram inculcadas durante séculos, tornam-se agora
completamente supérfluas, inúteis e prejudiciais. A dura realidade exige outras
qualidades nas mulheres trabalhadoras. Precisa agora de firmeza, decisão e energia,
isto é, aquelas virtudes que eram consideradas como propriedade exclusiva do
homem. Privada da proteção que até então lhe prestara a família ao passar do
aconchego do lar para a batalha da vida e da luta de classes, a mulher não tem outro
remédio senão armar-se, fortificar-se, rapidamente, com as forças psicológicas
próprias do homem, de seu companheiro, que sempre está em melhores condições
para vencer a luta pela vida. Nesta urgência em adaptar-se às novas condições de sua
existência, a mulher se apodera e assimila as verdades, propriamente masculinas,
freqüentemente sem submetê-las a nenhuma crítica, e que, se examinadas mais
detalhadamente, são apenas verdades para a classe burguesa.(1)

A realidade capitalista contemporânea parece esforçar-se em criar um tipo de mulher


que, pela formação de seu espírito, se encontra incomparavelmente mais próxima do
homem do que da mulher do passado. Este tipo de mulher é uma consequência
natural e inevitável da participação da mulher na corrente da vida econômica e social.
O mundo capitalista só recebe as mulheres que souberam desprezar, a tempo, as
virtudes femininas e que assimilaram a filosofia da luta pela vida. Para as inadaptadas,
isto é, para aquelas mulheres pertencentes ao tipo antigo, não há lugar nas fileiras das
hostes trabalhadoras. Cria-se desta forma, uma espécie de seleção natural entre as
mulheres das diversas camadas sociais. As fileiras das trabalhadoras são sempre
formadas pelas mais fortes e resistentes, pelas mulheres de espírito mais disciplinado.
As de natureza frágil e passiva continuam fortemente vinculadas ao lar. Se as
necessidades materiais as arrancam do lar para lançá-las na tormenta da vida, estas
mulheres deixam-se levar pelo caminho fácil da prostituição legal ou ilegal, casam-se
por conveniência ou lançam-se à rua. As mulheres trabalhadoras constitue m a
vanguarda de todas as mulheres e integram em suas fileiras representantes das
diversas camadas sociais. Entretanto, a imensa maioria dessa vanguarda feminina não
se constitui de mulheres do tipo de Vera Niokdinovna, orgulhosas da sua
independência, mas, por milhões de Matildes envoltas em xales cinzentos, Tatianas, de
Riasan, com os pés descalços, empurradas pela miséria a novos caminhos.(2)

É um profundo erro pensar, no entanto, que o novo tipo de mulher, a celibatária, é


fruto de esforços heróicos de algumas individualidades fortes que tomaram
consciência de sua própria personalidade. Nem a vontade própria, nem o exemplo
audacioso de Magda, nem o da decidida Renata foram capazes de criar o novo tipo de
mulher. A transformação da mentalidade da mulher, de sua estrutura interior,
espiritual e sentimental, realizou-se primeiro e, principalmente, nas camadas mais
profundas da sociedade, ou seja, onde se produz necessariamente a adaptação ao
trabalho, nas condições radicalmente transformadas de sua existência.
Estas mulheres, as Matildes e as Tatianas, não resolvem nenhum problema.

Além disso, ainda tentam agarrar-se com todas as suas forças ao passado. Com muito
pesar se vêem obrigadas a curvar-se diante das leis da necessidade histórica - as forças
de produção - e a dar os primeiros passos pelo novo caminho. Caminham ao acaso,
dominadas pela tristeza, amaldiçoando seus passos e acariciando em seu interior o
sonho de um lar, onde possam desfrutar de tranqüilas e modestas alegrias. Ah, se
fosse possível abandonar o caminho, voltar atrás. Mas, isto é irrealizável, pois os
grupos de companheiras são cada vez mais densos e a corrente as empurra cada vez
para mais longe do passado. É preciso adaptar-se à angustiante falta de espaço,
preparar-se para a luta, ocupar o lugar correspondente a cada uma; têm que defender
o direito de viver.

A mulher da classe operária contempla como nasce e se fortalece dentro de si a


consciência de sua independente individualidade. Tem fé em suas próprias forças.
Gradualmente, de forma inevitável e poderosa, desenvolve-se o processo de
acumulação de novos caracteres morais e espirituais da mulher operária, caracteres
que lhe são indispensáveis como representantes de uma classe determinada. Há,
porém, algo ainda mais essencial; éque esse processo de transformação da estrutura
interior da mulher não se reduz unicamente a personalidades, mas corresponde a
grandes massas, a círculos muito grandes, cada vez maiores. A vontade individual
submerge e desaparece no esforço coletivo de milhões de mulheres da classe operária,
para adaptar-se às novas condições da vida. Também nesta transformação desenvolve
o capitalismo uma grande atividade. Ao arrancar do lar, do berço, milhares de
mulheres, o capitalismo converte essas mulheres submissas e passivas, escravas
obedientes dos maridos, num exército que luta pelos seus próprios direitos e pelos
direitos e interesses da comunidade humana. Desperta o espírito de protesto e educa
a vontade. Tudo isto contribui para que se desenvolva e fortaleça a individuali dade da
mulher.
Mas, desgraçada da operária, que crê na força invencível de uma individualidade
isolada. A pesada carga do capitalismo a esmagará, friamente, sem piedade. As fileiras.
de mulheres combatentes constituem a única força capaz de desviar de seu caminho a
pesada carga do capitalismo. Deste modo, ao mesmo tempo que se desenvolve a
consciência de sua personalidade e de seus direitos, nasce e evolui na mulher operária
do novo tipo o sentimento da coletividade, o sentimento do companheirismo, que só
se encontra, e muito levemente, na mulher do novo tipo pertencente a outras classes
sociais. Este é o sentimento fundamental, a esfera de sensações e pensamentos que
separa com uma linha divisória definitiva as trabalhadoras das mulheres burguesas,
pertencentes ao mesmo tipo celibatário. Nas mulheres do novo tipo, mas pertencentes
às distintas classes, é comum a distinção qualitativa das mulheres do passado. Como
parte integrante das hostes de mulheres trabalhadoras, sua estrutura interior
experimentou igual transformação, ou seja, logrou desenvolver sua inteligência,
reforçar sua personalidade e ampliar seu mundo espiritual. A esfera, porém, de
pensamentos e sentimentos, que derivam do conceito de classe, são os que separam,
fundamentalmente, as mulheres do novo tipo pertencentes às diversas camadas
sociais. As operárias sentem o antagonismo de classe com uma intensidade
infinitamente maior que as mulheres do tipo antigo, que não tinham consciência da
luta social. Para a operária, que deixou sua casa, que experimentou sobre si mesma
toda a força das contradições sociais e que se viu obrigada a participar ativamente na
luta de classes, uma ideologia de classe, clara e definida, adquire a importância de uma
arma na luta pela existência. A realidade capitalista separa de maneira absoluta a
Tatiana, de Gorki, da Tatiana de Nagrodskaia.

É esta realidade capitalista que leva a proprietária de uma oficina a encontrar-se, por
sua ideologia, muito mais separada de uma de suas operárias do que a boa dona de
casa com relação a sua vizinha, a mulher de um operário. Esta realidade capitalista
torna aguda a sensação do antagonismo social entre as mulheres trabalhadoras. Para
esta categoria de mulheres do novo tipo só pode haver um ponto comum: sua
distinção qualitativa da mulher do passado, as propriedades específicas que
caracterizam a mulher independente, do tipo que temos denominado celibatário. As
mulheres do novo tipo, pertencentes a estas duas classes sociais, passam por um
período de antagonismo: as duas classes lutam pela afirmação de sua personalidade;
as de uma classe, conscientemente, por princípio, as da outra classe, de forma
elementar, coletiva, sob o jugo do inevitável.

Mesmo, porém, que na nova mulher pertencente à classe operária a luta pela
afirmação de seu direito e de sua personalidade coincida com os interesses de sua
classe, as mulheres do novo tipo pertencentes a outras classes sociais têm
necessariamente que se defrontar com um obstáculo: a ideologia de sua classe, que é
hostil à reeducação do tipo de mulher. No meio burguês, a insurreição da mulher
adquire um caráter muito mais agudo e os dramas morais da mulher do novo tipo são
muito mais vivos, têm mais colorido, oferecem maiores complicações.(3)

No meio operário, não há nem podem existir conflitos agudos entre a psicologia da
mulher do novo tipo, em formação, e a ideologia de sua classe. Tanto sua psicologia
em formação como sua ideologia de classe encontram-se em um processo de
formação, em fase de desenvolvimento. O novo tipo da mulher, que é interiormente
livre e independente, corresponde, plenamente, à moral que elabora o meio operário
no interesse de sua própria classe. A classe operária necessita, para a realização de sua
missão social, de mulheres que não sejam escravas. Não quer mulheres sem
personalidade, no matrimônio e no seio da família, nem mulheres que possuam as
virtudes femininas - passividade e submissão. Necessita de companheiras com uma
individualidade capaz de protestar contra toda servidão, que possam ser consideradas
como um membro ativo, em pleno exercício de seus direitos, e, consequentemente,
que sirvam à coletividade e à sua classe.

A psicologia da mulher do novo tipo, da mulher independente e celibatária, reflete


sobre a das demais mulheres que permanecem ainda na retaguarda em relação a seu
tempo. Os traços característicos, formados na luta pela vida, das trabalhadoras
convertem-se pouco a pouco, gradativamente, nas características das outras mulheres
que ficaram atrasadas. Pouco importa que as mulheres trabalhadoras sejam apenas
minoria, que para cada mulher do novo tipo haja duas, talvez três mulheres
pertencentes ao tipo antigo. As mulheres trabalhadoras são as que dão tom à vida e
determinam a figura de mulher que caracteriza uma época determinada.
As mulheres do novo tipo, ao criar os valores morais e sexuais, destroem os velhos
princípios na alma das mulheres que ainda não se aventuraram a empreender a
marcha pelo novo caminho. São estas mulheres do novo tipo que rompem com os
dogmas que as escravizavam.

A influência das mulheres trabalhadoras estende-se muito além dos limites de sua
própria existência. As mulheres trabalhadoras contaminam com sua crítica a
inteligência de suas contemporâneas, destroem os velhos ídolos e hasteiam o
estandarte da insurreição para protestar contra as verdades que as submeteram
durante gerações. As mulheres do novo tipo, celibatário e independente, ao se
libertarem, libertam o espírito agrilhoado, durante séculos, de outras mulheres ainda
submissas.

É certo que a mulher do novo tipo já penetrou na literatura. Mas está ainda muito
longe de haver expulsado as heroínas de estrutura moral pertencentes aos tempos
passados. Tampouco conseguiu a mulher-individualidade descartar-se do tipo de
mulher esposa, eco do homem. Entretanto, é fácil observar que ainda nas heroínas do
tipo antigo se encontram, cada vez com maior frequência, as propriedades e os traços
psicológicos que possibilitaram a vida das mulheres do tipo celibatário e
independente. Os escritores dotam involuntariamente suas heroínas com sentimen tos
e características que não eram, de modo algum, próprios das heroínas da literatura do
período precedente.(4)

A literatura contemporânea é rica, sobretudo, em figuras de mulheres do tipo


transitório. É rica em heroínas que têm simultaneamente as características da mulher
antiga e da mulher nova. Por outro lado, ainda nas mulheres do tipo celibatário já
formado, observa-se um processo de transformação dos novos valores, que podem ser
abafados pela tradição e por uma série de pensamentos superados. A força dos
séculos é demasiado grande e pesa muito sobre a alma da mulher do novo tipo. Os
sentimentos atávicos perturbam e debilitam as novas sensações. As velhas concepções
da vida prendem ainda o espírito da mulher que busca sua libertação. O antigo e o
novo se encontram em continua hostilidade na alma da mulher. Logo, as heroínas
contemporâneas têm que lutar contra um inimigo que apresenta duas frentes: o
mundo exterior e suas próprias tendências, herdadas de suas mães e avós.
Como disse Hedwig Dohn, “os novos pensamentos já nasceram em nós, mas os antigos
ainda não morreram. Os restos das gerações passadas não perderam sua força, ainda
que possuamos a formação intelectual, a força de vontade da mulher do novo tipo.” A
reeducação da psicologia da mulher, necessária às novas condições de sua vida
econômica e social, não pode ser realizada sem luta. Cada passo dado nesse sentido
provoca conflitos, que eram completamente desconhecidos das heroínas antigas.
São esses conflitos que inundam a alma da mulher, os que pouco a pouco chamam a
atenção dos escritores e acabam por converter-se em manancial de inspiração
artística. A mulher transforma-se gradativamente. E de objeto da tragédia masculina
converte-se em sujeito de sua própria tragédia.

O amor e a nova moral

Nos anos de 1910 e 1911, período durante o qual diminuiu na Rússia o interesse pelos
problemas sexuais, apareceu na Alemanha um estudo psico-sociológico de Grete
Meisel-Hess sobre a crise sexual, livro que não foi um êxito público. O romance de
Karin Michaelis, A Idade Perigosa, publicado pouco depois, livro que carece de grande
valor artístico e cuja audácia não vai além dos limites permitidos pelas conveniências
de bom tom literário, relegou a segundo plano, com o seu imerecido êxito, a obra de
Meisel-Hess.(5)

Foi qualificado pela crítica como “um livro bem escrito, mas sem nenhum valor
científico.” Unicamente entre as altas rodas intelectuais, entre a nata da sociedade
alemã, este livro foi saudado com aplausos por alguns e com mostras de desagrado e
indignação por outros, sorte comum a todo sincero investigador da verdade.
O fato de que o livro de Meisel-Hess careça de uma série de qualidades científicas, o
fato de que se possa reprovar a falta de método e análise, o fato de que não siga um
procedimento sistemático, e que seu pensamento seja em alguns momentos inseguro
e sinuoso, e que repita coisas ja expostas, não pode diminuir de modo algum o valor
desse trabalho.

Um hálito de frescor se desprende do livro. A investigação da verdade enche as


páginas vivas e apaixonadas desta exposição, na qual se reflete uma vibrante alma de
mulher, que conhece perfeitamente a vida. Os pensamentos de Meisel-Hess não são
novos, flutuam no ambiente, enchem e saturam toda a nossa atmosfera moral.
Os problemas que Meisel examina nos são conhecidos. Todos nós temos meditado
sobre eles, vivêmo-los em toda a sua dor. Não há nenhuma pessoa que depois de
refletir sobre esse problema não haja chegado por um caminho ou por outro, às
conclusões gravadas nas páginas do livro A Crise Sexual. Mas, fiéis à hipocrisia que nos
domina, continuamos adorando publicamente o velho ídolo: a moral burguesa. O
mérito de Meisel-Hess é semelhante ao do menino do conto de Andersen. Meisel-Hess
atreveu-se a gritar à sociedade “que o rei está nu”, ou seja, que a moral sexual
contemporânea não passa de uma vã ficção.

Com efeito, as normas morais que regulam a vida sexual do homem não podem ter
mais do que duas finalidades, dois objetivos. Primeiro, assegurar à humanidade uma
descendência sã, normalmente desenvolvida: contribuir para a seleção natural no
interesse da espécie. Segundo, contribuir para o desenvolvimento da psicologia
humana, enriquecê-la com sentimentos de solidariedade, de companheirismo, de
coletividade. A moral sexual atual, como moral que serve unicamente aos interesses
da propriedade, não preenche nenhuma destas duas finalidades. Todo o código
complicado da moral sexual contemporânea, com o matrimônio monogâmico
indissolúvel, que raras vezes está baseado no amor, e a instituição da prostituição, tão
difundida e organizada, não só não contribui para o saneamento e o melhoramento da
espécie, como produz efeitos contraditórios, ou seja, favorece a seleção natural em
sentido inverso. A moral contemporânea não faz mais do que conduzir a humanida de
pelo caminho da degenerescência ininterrupta.

Os matrimônios tardios, a esterilidade forçada nos períodos mais favoráveis para a


concepção, o recurso da prostituição completamente inútil do ponto de vista do
interesse da espécie, a ausência de um fator tão importante como o êxtase amoroso
nos matrimônios convencionais, no matrimônio legal e indissolúvel; o fato de que os
modelos femininos mais formosos, os mais capacitados para provocar as emoções
eróticas dos homens fiquem reduzidos à esterilidade da prostituição; a condenação à
morte que pesa sobre os filhos do amor, produtos ilegais da espécie, freqüentemente
os mais valiosos por serem os mais sãos e vigorosos, tudo isto é resultado direto da
moral corrente, resultado que conduz irremediavelmente à realidade, decadência e
degenerescência física e moral da humanidade.

O propósito de Meisel-Hess, de harmonizar a moral sexual e o objetivo da higiene da


espécie, merece uma grande atenção e deve interessar principalmente aos partidários
da concepção materialista da história. A defesa da jovem geração trabalhadora, a
proteção da maternidade, da infância, a luta contra a prostituição e outras
reivindicações dos programas socialistas contêm, no essencial, a higiene da espécie na
sua mais ampla acepção. Tirar da moral sexual a auréola do inviolável imperativo
categorico, harmonizar a moral sexual com as necessidades vitais e práticas e com as
exigências da vanguarda da humanidade, é a tarefa que deve figurar na ordem do dia e
que requer forçosamente a atenção reflexiva e consciente de todos os programas
socialistas.

Por muito valiosos que sejam os pensamentos de Meisel-Hess sobre essa questão,
ultrapassaríamos indubitavelmente os limites do ensaio se nos dedicássemos a analisar
detalhadamente esta parte do livro. Portanto, somente examinaremos, aqui, a
segunda parte do problema sexual. Unicamente estudaremos as respostas, não menos
valiosas e interessantes de Meisel-Hess à segunda pergunta: atingem seus fins as
formas atuais da moral sexual? Ou seja, contribuem para desenvolver no homem
sentimentos de solidariedade, de companheirismo e consequentemente para o
enriquecimento da psicologia humana?

Depois de submeter a uma análise sistemática as três formas fundamentais da união


entre os sexos, o matrimônio legal, a livre união e a prostituição, Meisel-Hess chega a
uma conclusão pessimista, porém inevitável, de que no mundo capitalista todas essas
formas, tanto umas como outras, marcam e deformam a alma humana e contribuem
para a perda de qualquer esperança de se conseguir uma felicidade sólida e
duradoura, numa comunidade de almas profundamente humanas: no estado
invariável e estagnado da psicologia contemporânea não há solução possível para a
crise sexual.

Somente uma transformação fundamental da psicologia humana poderá transpor a


porta proibida, somente o enriquecimento da psicologia humana no potencial do amor
pode transformar as relações entre os sexos e convertê-las em relações impregnadas
de verdadeiro amor, dotadas de uma afinidade real, em uniões sexuais que nos tomem
felizes. Porém, uma transformação desse gênero exige inevitavelmente a
transformação fundamental das relações econômico-sociais: isto é, exige o
estabelecimento do regime comunista.

Quais são os defeitos fundamentais, as partes sombrias do matrimônio legal? O


matrimônio legal está fundado em dois princípios igualmente falsos: a
indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade, da posse absoluta de um
dos cônjuges pelo outro.

A indissolubilidade do matrimônio legal está baseada numa concepção contrária a


toda ciência psicológica; na invariabilidade da psicologia humana no transcurso de uma
longa vida. A moral contemporânea obriga o homem a encontrar sua felicidade a
qualquer preço e, ao mesmo tempo, exige dele que descubra esta felicidade na
primeira tentativa, sem equivocar-se nunca. A moral contemporânea não admite que o
homem se equivoque na sua escolha entre milhares de seres que o cercam.
Necessariamente o homem tem que encontrar uma alma que se harmonize com a sua,
um segundo único eu que o fará feliz no casamento. Quando um ser humano se
equivoca na sua escolha, principalmente se o ser que vacila e se perde na busca do
ideal é uma mulher, a sociedade, tão exigente e deformada pela moral
contemporânea, não o acode. Pouco importa à sociedade que a alma e o coração de
uma mulher que se equivoca, se destrocem no fragor das decepções. Não a ajudará,
mas, ao contrário, a perseguirá com fúria vingativa para, inexoravelmente, condená -la.

A delicada flor da moral sexual é uma felicidade adquirida à custa da escravidão da


mulher à sociedade. Uma leal separação do casal é considerada pela atual sociedade,
interessada unicamente na ideia da propriedade e não nos destinos da espécie, nem
sequer na felicidade individual, como a ofensa maior que se lhe pode infligir.
Entretanto, nada mais certo, observa com grande tristeza Meisel-Hess, do que a
semelhança entre o matrimônio e uma casa habitada. Suas más condições só são
descobertas após habitá-la por algum tempo. “Se nos vemos obrigados a mudar
frequentemente de casas sem conforto e pouco apropriadas a nossas necessidades,
sentimo-nos como perseguidos pela má estrela. Mas, indiscutivelmente, a situação se
toma muito mais terrível se a necessidade nos obriga a viver todo o resto da existência
em péssimas condições”. “A transformação das uniões amorosas no curso da vida
humana” - continua Meisel-Hess - “e durante o processo de evolução de uma
individualidade é um fato que terá que ser reconhecido pela sociedade futura como
algo normal e inevitável.”

“A indissolubilidade do matrimônio legal é ainda mais absurda se leva em conta que a


maioria dos casamentos se realizam às cegas, isto é, as duas partes, o homem e a
mulher, só têm uma ideia confusa uma da outra. Não é apenas o fato de que um dos
cônjuges desconheça completamente a natureza psicológica do outro, mas algo muito
mais grave. Os esposos ignoram, ao contrair o matrimônio legal, que será indissolúvel,
se existe entre eles uma afinidade física, harmonia sem a qual não é possível a
felicidade”.
As noites de provas, praticadas com tanta frequência na Idade Média, dizem Meisel-
Hess, não são de modo algum uma absurda indecência. Praticadas em outras
condições e tendo como finalidade o interesse da espécie e consideradas um meio de
assegurar a felicidade individual, poderiam, inclusive, conquistar direito à cidadania.
O segundo fator que envenena o matrimônio legal é a ideia de propriedade, de posse
absoluta de um dos cônjuges pelo outro. Não pode haver, na realidade, um contra -
senso maior.

Dois seres, cujas almas só têm raros pontos de contato, têm necessariamente que
adaptar-se um ao outro, em todos os diversos aspectos de seu múltiplo eu. O
absolutismo da posse encerra, irremediavelmente, a presença contínua desses dois
seres, associação que é tão doentia para um como para outro. A ideia da posse não
deixa livre o eu, não há momento de solidão para a própria vontade e, se a isto se
acrescenta a coação exercida pela dependência econômica, já não fica nem sequer um
pequeno recanto próprio. A presença contínua, as exigências inevitáveis que se fazem
ao objeto possuído são a causa de como um ardente amor se transforma em
indiferença, essa terrível indiferença que leva dentro de si raciocínios insuportáveis e
mesquinhos. Com efeito: temos necessariamente que estar de acordo com MeiselHess
quando diz que uma vida em comum demasiado limitada é a causa principal que faz
murchar a delicada flor primaveril do mais puro entusiasmo amoroso.

Quantas precauções uma alma deve ter com a outra, que imensas reservas de
afetuoso calor são necessárias para que se possa colher, já no outono, os frutos
saborosos de uma profunda e indissolúvel adesão entre duas pessoas!
Não é só isso. Os fatores de indissolubilidade e propriedade, fundamentos do
matrimônio legal, exercem um efeito nocivo sobre a alma humana. Estes dois fatores
exigem poucos esforços psíquicos para conservar o amor de um companheiro de vida,
porquanto se está ligado a ele, indissoluvelmente, por correntes exteriores. A forma
atual do matrimônio legal não faz, portanto, mais que empobrecer o espírito e não
contribui de modo algum para a acumulação na humanidade de reservas desse grande
amor que foi a profunda nostalgia de toda a vida do gênio russo Tolstoi.
Deforma-se, ainda mais, a psicologia humana com outro aspecto da união sexual: a
prostituição.

Pode haver algo mais monstruoso do que o fato amoroso degradado até ao ponto de
se fazer dele uma profissão? Deixemos de lado todas as misérias sociais que vêm
unidas à prostituição, os sofrimentos físicos, as enfermidades, as deformações e a
degenerescência da raça, e detenhamo-nos somente ante a questão da influência que
a prostituição exerce sobre a psicologia humana. Não há nada que prejudique tanto as
almas como a venda forçada e a compra de carícias de um ser por outro com que não
tem nada em comum. A prostituição extingue o amor nos corações.
A prostituição deforma as ideias normais dos homens, empobrece e envenena o
espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a capacidade de sentir
apaixonadamente o amor, essa paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos
sentimentos vividos. A prostituição deforma todas as noções que nos levam a
considerar o ato sexual como um dos fatores essenciais da vida humana, como o
acorde final de múltiplas sensações físicas, levando-nos a estimá-lo, em troca, como
um ato vergonhoso, baixo e grosseiramente bestial. A vida psicológica das sensações
na compra de carícias tem repercussões que podem produzir consequências muito
graves na psicologia masculina. O homem acostumado à prostituição, relação sexual
na qual estão ausentes os fatores psíquicos, capazes de enobrecer o verdadeiro êxtase
erótico, adquire o hábito de se aproximar da mulher com desejos reduzidos, com uma
psicologia simplista e desprovida de tonalidades. Acostumado com as carícias
submissas e forçadas, nem sequer tenta compreender a múltipla atividade a que se
entrega a mulher amada durante o ato sexual. Esse tipo de homem não pode perceber
os sentimentos que desperta na alma da mulher. É incapaz de captar seus múltiplos
matizes. Muitos dos dramas têm como causa essa psicologia simplista com que o
homem se aproxima da mulher, e que foi engendrada pelas casas de lenocínio. A
prostituição estende, de modo inevitável, suas asas sombrias tanto sobre a cabeça da
mulher livremente amada como sobre a esposa ingênua e amorosa e sobre a amante
intuitivamente exigente. A prostituição envenena implacavelmente a felicidade do
amor das mulheres que buscam no ato sexual o desfecho de uma paixão
correspondida, harmoniosa e onipotente.(6)

A mulher normal busca no ato sexual a plenitude e a harmonia. O homem, pelo


contrário, formado como está na prostituição, que extermina a múltipla vibração das
sensações do amor, entrega-se apenas a um pálido e uniforme desejo físico que deixa
em ambas as partes, insatisfação e fome psíquica. A incompreensão mútua cresce
quanto mais desenvolvida está a individualidade da mulher quanto maiores são suas
exigências psíquicas, o que traz como resultado uma grave crise sexual. Portanto, a
prostituição é perigosa, pois sua influência se estende muito além de seu próprio
domínio. Meisel-Hess diz:

“Deixando de lado a questão da degenerescência fisiológica da humanidade, as


enfermidades venéreas, o empobrecimento fisico da espécie, levaremos em conta
ainda outro fator psicológico que obscurece os impulsos morais, mancha e deforma o
sentimento erótico e impede que o homem e a mulher se compreendam cada vez
menos e não saibam gozar sem se enganar mutuamente.”

A terceira forma das relações sexuais, a união livre, traz dentro de si, também, muitos
aspectos igualmente sombrios. As imperfeições dessa forma sexual são de um caráter
reflexo: o homem de nossa época vê a união livre com uma psicologia já deformada
por uma moral falsa e doentia, fruto do matrimônio legal, por um lado, e do lúgubre
abismo da prostituição, por outro. O amor livre choca-se com dois obstáculos
inevitáveis: a incapacidade para sentir o amor verdadeiro, essência do nosso mundo
individualista, e a falta de tempo indispensável para entregar-se aos verdadeiros
prazeres morais. O homem atual não tem tempo para amar.

Nossa sociedade, fundada sobre o princípio da concorrência, sobre a luta, cada vez
mais dura e implacável, pela subsistência, para conquistar um pedaço de pão, um
salário ou um ofício, não deixa lugar ao culto do amor. A pobre Aspásia esperará,
inutilmente, nos dias de hoje, sobre o leito coberto de rosas, o companheiro de seus
prazeres. Aspásia não pode repartir seu leito com um homem grosseiro, de nível moral
indigno dela. Mas o homem moralmente nobre não tem tempo para passar as noites a
seu lado. Meisel-Hess observa, com toda razão, um fato que se dá com extraordinária
freqüência: o homem do nosso tempo considera o amor-paixão como a maior das
desgraças que lhe pode acontecer. O amor-paixão é um obstáculo para a realização
dos objetivos essenciais de sua vida: a conquista de uma posição, de um capital, de
uma colocação segura, da glória, etc. O homem tem medo dos laços de um amor forte
e sincero que o separaria, possivelmente, do principal objetivo de sua vida. A livre
união, no complicado ambiente que nos rodeia, exige por sua vez uma perda de tempo
e de forças morais infinitamente maiores do que um matrimônio legal ou do que as
carícias compradas.

Os encontros ocupam horas preciosas para os negócios. Ao mesmo tempo milhares de


demônios ameaçam o casal unido unicamente pelos laços do amor. Uma casualidade é
suficiente para que se origine um desacordo momentâneo e, imediatamente, se
produza a separação. O amor livre, nas condições atuais da sociedade, termina sempre
numa separação ou num matrimônio legal.

Segundo Meisel-Hess, não nasceu ainda o homem forte e consciente que seja capaz de
considerar o amor como parte integrante da totalidade de seus objetivos vitais. Por
esta razão, o homem atual, absorvido por sérios trabalhos, prefere abrir a bolsa e
manter uma amante ou comprometer-se com uma mulher, dando-lhe seu nome e
tomando sob sua responsabilidade a carga de uma família legal. Tudo isto é melhor do
que perder um tempo tão valioso e dilapidar suas energias nas horas entregues aos
prazeres do amor.

A mulher, particularmente as mulheres que vivem de um trabalho independente (este


tipo de mulher Constitui 40 ou 50%, em todos os países civilizados), tem que enfrentar
o mesmo dilema que o homem: veem-se obrigadas a escolher entre o amor e a
profissão. A situação da mulher que trabalha se complica ainda mais com a
maternidade. É suficiente determo-nos um momento na biografia das mulheres que se
distinguiram na vida, para convencermo-nos do conflito inevitável entre o amor e a
maternidade, por um lado, e a profissão e a vocação, por outro. Talvez o motivo pelo
qual as exigências da mulher independente, em relação ao homem, aumentem cada
vez mais, seja precisamente o fato de que esse tipo de mulher dep osita na balança da
felicidade do amor livre, além de sua alma, seu trabalho querido, uma profissão
conquistada. Devido a isto, esta mulher exige em troca, como compensação por tudo a
que renunciou, o mais rico dom: a alma do homem.

A união livre sofre as consequências da ausência de um fator moral, da falta de


consciência e um dever interior. No estado atual das relações sociais, não há motivo
para se acreditar que esta forma de união sexual seja bastante forte para ajudar a
humanidade a sair da encruzilhada em que se encontra a crise sexual, solução que
esperam, entretanto, os partidários do amor livre. A solução para este complicado
problema só é possível mediante uma reeducação fundamental de nossa psicologia,
reeducação esta que, por sua vez, só é possível por uma transformação de todas as
bases sociais que condicionam o conteúdo moral da Humanidade. As medidás e
reformas pertencentes ao domínio da política social, que indica Meisel -Hess como um
remédio, não contêm no fundamental nada essencialmente novo. Correspondem,
completamente, às reivindicações do programa socialista: independência econômica
da mulher, verdadeira proteção e segurança à maternidade e à infância, luta contra a
prostituição em sua base econômica, supressão da noção de filhos legítimos e
ilegítimos, substituição do matrimônio religioso pelo matrimônio civil, facilmente
anulável, reconstrução fundamental da sociedade segundo os princípios comunistas. O
mérito de Meisel-Hess não fica, pois, nas reivindicações político-sociais, que julga
necessárias e que são análogas às dos programas socialistas, O que é verdadeiramente
essencial em sua detalhada investigação em busca da verdade sexual, é que entrou
inconscientemente, sem ser socialista militante, no único caminho de solução possível
do problema sexual. Mas, todas as reformas sociais, condições indispensáveis para as
novas relações entre os sexos, serão insuficientes para resolver a crise sexual se, ao
mesmo tempo, não se forma uma força criadora poderosa, capaz de aumentar o
potencial de amor da humanidade.

A perspicácia intelectual de Meisel-Hess é o que leva esta escritora à mesma


conclusão, de modo completamente intuitivo. Meisel-Hess compreendeu que toda a
atenção da sociedade no que se refere à educação e à formação do espírito, no
domínio das relações sexuais, deve modificar-se. A união dos sexos, como a entende
Meisel-Hess, isto é, a união fundamentada numa profunda identificação, na
harmoniosa consonância de corpos e de almas, será por muito tempo o ideal da
humanidade fritura. Porque não se deve esquecer que o matrimônio baseado no
verdadeiro amor é algo que se dá raramente, O amor verdadeiro só ocorre a poucos.
Milhões de seres não conheceram na vida seus encantos. Qual será, pois, o destino
destes deserdados? Estarão para sempre condenados ao matrimônio de conveniência?
Não terão outro recurso, além da prostituição? Terão que se propor eternamente o
dilema, proposto à atual sociedade, de enfrentar o raro amor verdadeir o ou de
padecer de fome sexual?

Meisel-Hess prossegue na sua investigação e descobre nova solução. Onde não existe
o amor verdadeiro este é substituído pelo amor jogo. Para que o amor verdadeiro
chegue a ser patrimônio de toda a humanidade é preciso passar por difícil, porém
enobrecedora escola de amor. O amor jogo é também uma escola, é um meio de
acumulação do potencial do amor na psicologia humana.
Que será este amor jogo, no qual Meisel-Hess baseia tantas esperanças?
O amor jogo, em suas diversas formas, encontra-se em todas as épocas da história da
humanidade. Nas relações entre a antiga hetaira e seu amigo, no amor galante da
época da Renascença entre a cortesã e seu amante protetor, na amizade erótica da
modista, livre como um pássaro, e seu companheiro estudante. Em todas estas
relações podemos encontrar facilmente os elementos principais deste sentimento.
Não é o Eros que a tudo devora, que exige a plenitude e a posse absoluta, mas
tampouco é a brutal sexualidade reduzida meramente ao ato fisiológico. O amor jogo
que nos descreve Meisel-Hess não pode ser tampouco o amor nascido de uma
psicologia simplista.

O amor jogo é exigente. Seres que se aproximam unicamente por causa de uma
simpatia mútua, que só esperam um do outro a amabilidade e o sorriso da vida, não
podem permitir que se torture impunemente sua alma, não podem consentir que se
esqueça sua personalidade nem que se ignore seu mundo interior. O amor jogo, que
exige dos dois seres unidos maior atenção mútua, mais delicadezas em todas as suas
relações, pode acabar no homem, pouco a pouco, com o egoísmo profundo, que
marca hoje em dia, indelevelmente, todos os seus sentimentos amorosos. Uma atitude
solícita em relação à alma do outro, além de servir de estimulo aos sentimentos de
simpatia, desenvolve a intuição, a sensibilidade e a delicadeza.

Em terceiro lugar, o amor jogo, por não ter como ponto de partida o princípio da posse
absoluta, acostuma os homens a entregar à pessoa amada a parte mais agradável de
seu eu, a parte que faz a vida mais agradável e harmoniosa. Admite Meisel-Hess que
este amor jogo iniciaria os homens numa virtude superior. Ensiná-los-ia a não
entregar-se inteiramente, a não ser quando encontrassem um sentimento constante e
profundo. A tendência atual leva-nos a atentar contra a personalidade do outro, desde
o primeiro beijo. Estamos dispostos a entregar totalmente nosso coração, embora o
outro ainda não sinta nenhuma atração. E necessário não esquecer nunca que
unicamente o sagrado amor verdadeiro pode ter suficiente força para conceder
direitos.
Há ainda outras vantagens no amor jogo ou amizade erótica. Esta relação sexual
ensina os homens a resistir a paixão que degrada e oprime o indivíduo. Meisel-Hess
afirma: “este ato espantoso que podemos classificar de penetração pela violência no
eu do outro, não pode dar-se no amor jogo. O amor jogo exclui o pecado maior do
amor: “A perda da personalidade na corrente da paixão”. A humanidade
contemporânea vive sob o sombrio signo da paixão, sempre ávida a devorar o eu do
outro. No romance de Lasswitz, uma habitante de Marte replica à proposição de um
habitante da Terra: “Neste ligeiro jogo dos sentimentos, teria que descer e dobrar-me
à escravidão da paixão, perder minha liberdade, descer contigo à Terra... vossa terra é
maior, talvez, mais bela que nosso planeta, mas eu certamente morreria em sua densa
atmosfera. Pesados como vosso ar são vossos corações. E eu não sou mais que
Numa...”
A época atual caracteriza-se pela ausência da arte de amar. Os homens desconhecem
em absoluto a arte de saber conservar relações amorosas, claras, luminosas, leves.
Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O amor para os homens de
nossa época é uma tragédia que destroça a alma, ou um vaudeville. É preciso tirar a
humanidade desse atoleiro: ensinar aos homens a viver horas cheias de beleza, claras,
sem grandes cuidados. A psicologia do homem não estará aberta para receber o
verdadeiro amor, purificado de todos os seus aspectos sombrios, até que passe pela
escola da amizade amorosa. Cada novo amor (não nos referimos, naturalmente, ao ato
brutal, meramente fisiológico) em vez de empobrecer a alma humana, contribui para
enriquecê-la. “Um coração humano são e rico” - diz Meisel-Hess - “não é um pedaço
de pão que diminui à medida que nós o comemos”. O amor é uma força que quanto
mais se consome mais cresce. “Amar sempre, amar profundamente, em todos os
momentos da nossa vida, amar sempre e cada vez com maior abnegação, é o destino
ardente de todo grande coração.” O amor em si é uma grande força criadora.
Engrandece e enriquece a alma daquele que o sente, tanto como a alma de quem o
inspira.
Se a humanidade não tivesse o amor, sentir-se-ia roubada, deserdada e desgraçada. O
amor será seguramente o culto da humanidade futura. Hoje em dia o homem
necessita, para poder lutar, viver, trabalhar e criar, sentir-se afirmado, reconhecido, O
que se sente amado sabe que há alguém que reconhece sua personalidade, em todo
seu valor, e, precisamente pela consciência de sentir-se afirmado, nasce a suprema
alegria de viver. Mas, este reconhecimento do eu, esta vitória sobre o fantasma
ameaçador da solidão moral, não se pode alcançar, de modo algum, com a satisfação
brutal do desejo fisiológico. “Só o sentimento de uma total harmonia com o ser amado
pode extinguir esta sede”. Só o verdadeiro amor pode nos dar a plena satisfação.
Portanto, a crise sexual é muito mais aguda quando as reservas do potencial do amor
são menores, quando os laços sociais são mais limitados, quando a psicologia humana
é mais pobre em sentimentos de solidariedade.

Desenvolver este imprescindível potencial do amor, educar, preparar a psicologia


humana para que esteja em condições de receber o verdadeiro amor, esta é
precisamente a finalidade que deve cumprir o amor jogo ou amizade erótica.
Podemos dizer que o amor jogo não é mais que um substituto do verdadeiro amor.
“Isto não é suficiente”, dirão ainda alguns. Neste caso, responde Meisel-Hess, que se
atrevam a olhar em tomo de si e se deem conta com o que substituem na sociedade
moderna o verdadeiro amor! A prostituição disfarçada de verdadeiro amor! Que
grande hipocrisia, que terríveis reservas de mentiras sexuais se acumulam nesse
aspecto! Vejamos um exemplo da vida tomada ao acaso. Dois noivos se sentem
possuídos pelo mesmo desejo. A severa moral contemporânea proíbe sua satisfação e
lhes impõe um decisivo, ainda não. Portanto, o noivo vai à casa da prostituta, que não
deseja suas carícias, mas que tem que entregar-se a ele, enquanto a noiva se consome
na espera da autorização legal. Seria muito mais natural, e desde logo muito mais
moral, que estes dois seres, motivados por um mesmo desejo, encontrassem a mútua
satisfação de sua carne em si próprios, sem buscar a cumplicidade de uma terceira
pessoa, completamente alheia à situação que eles mesmos criaram.

Além dos aspectos fundamentais de caráter econômico-social, a prostituição implica


um fator psicológico determinante que está profundamente gravado no espírito
humano: a satisfação de uma necessidade erótica sem outra preocupação ulterior, a
liberdade de sua alma e de seu futuro, sem a necessidade de se colocar aos pés de um
ser interiormente alheio a seu eu. E necessário dar liberdade a esse instinto natural.
Não se pode enforcar um enamorado com a corda do matrimônio. O amor jogo indica
o caminho a seguir. “Se queremos ser sinceros, se não admitimos a hipocrisia da moral
e a mentira sexual, não há motivo para negar a possibilidade de uma solução
semelhante para a humanidade colocada em grau superior da evolução social” - diz
Meisel-Hess.

Diante de uma série de reformas sociais, que MeiselHess assinala como uma condiçã o
indispensável de todas as suas deduções morais, que delito pode haver no fato do
êxtase erótico - lançar um ser nos braços do outro? Finalmente, os limites da amizade
erótica são muito amplos e podem estender-se ainda mais. Ocorre com muita
frequência que dois seres que se aproximaram atraídos por uma livre simpatia
cheguem a conhecer-se mutuamente, ou seja, que do amor jogo nasça o amor
verdadeiro. Para que isto aconteça basta criar possibilidades objetivas. Quais são, pois,
as deduções e reivindicações práticas a que chega Meisel-Hess?
Em primeiro lugar, a sociedade terá que acostumar-se a reconhecer todas as formas de
união entre os sexos, mesmo que estas se apresentem diante dela com contornos
novos e desconhecidos. Mas sempre que correspondam a duas condições: que não
ofereçam perigo para a espécie e que seu fator determinante não seja o jugo
econômico. O ideal continuará sendo a união monogâmica baseada num amor
verdadeiro, porém sem as características de invariabilidade e indissolubilidade. A
mudança será tanto mais evitável quanto mais diversa for a psicologia do homem. O
concubinato ou monogamia sucessiva será a forma fundamental do matrimônio.

Porém, ao lado desta relação sexual existe toda uma série de aspectos diversos de
uniões amorosas sempre dentro dos limites da amizade erótica. A segunda exigência é
o reconhecimento real, não somente de palavras, mas de fato, da defesa da
maternidade. A sociedade tem a obrigação de estabelecer em todo o caminho da vida
da mulher, de todas as formas possíveis, postos de socorro que sustentem a mulher,
moral e materialmente, durante o período de maior responsabilidade em sua vida. Por
último, a fim de que as relações mais livres não pareçam o desenfreio total, torna -se
necessário rever todo o instrumental moral com que se equipa a mulher solteira
quando entra no caminho da vida.

A educação contemporânea somente tende a limitar, na mulher, os sentimentos de


amor. Esta educação é a causa dos corações destroçados, das mulheres desesperadas,
que se afogam na primeira tempestade. É preciso que se abram para a mulher as
múltiplas portas da vida. É preciso endurecer seu coração e forjar sua vontade. Já é
hora de ensinar à mulher a não considerar o amor como a única base de sua vida e sim
como uma etapa, como um meio de revelar seu verdadeiro eu. É necessário que a
mulher aprenda a sair dos conflitos do amor, não com as asas quebradas e sim como
saem os homens, com a alma fortalecida. É necessário que a mulher aceite o lema de
Goethe: “Saber desprezar o passado no momento em que se quer e receber a vida
como se acabasse de nascer”. Afortunadamente, já se distinguem os novos tipos
femininos, as mulheres celibatárias para as quais os tesouros que a vida pode oferecer
não se limitam ao amor. No domínio dos sentimentos do amor esse novo tipo de
mulher não permite que as correntes da vida sejam as que dirijam seu barco: o leme
está nas mãos do timoneiro experimentado, sua vontade enrijeceu na luta pela
subsistência. A velha exclamação: “É uma mulher com passado!”, é agora glosada pela
celibatária da seguinte forma: “Esta mulher não tem passado. Que triste destino o
seu!” É certo que na realidade o novo tipo de mulher ainda não existe em grande
número. É igualmente certo que a nova era sexual, fruto de uma organização mais
perfeita da sociedade, não começará imediatamente. A deprimente crise sexual não
poderá resolver-se de uma só vez, não poderá deixar o caminho livre à moral do
futuro, sem luta. Mas, é igualmente certo que o caminho já foi encontrado e que ao
longe brilha, de par em par, a porta desejada. O livro de Meisel-Hess nos facilita o fio
de Ariadne no labirinto complexo das relações sexuais, nos dramas psicológicos.

Não falta mais nada do que utilizar o precioso conjunto de pensamentos que nos
oferece e extrair as consequências em harmonia com as tarefas essenciais da classe
que se eleva ao primeiro posto na sociedade. Nossa tarefa será, portanto, após deixar
de lado pequenos detalhes sem importância, depois de sanar inexatidões
insignificantes, buscar também nesse problema, no domínio das relações entre os
sexos, na psicologia do amor, os princípios da nova cultura em marcha, cujo triunfo se
aproxima, inevitavelmente, isto é, os princípios da cultura proletária.

As relações entre os sexos

Entre os múltiplos problemas que perturbam a humanidade, ocupa, indiscutivelmente,


um dos primeiros postos, o problema sexual. Não há uma só nação, um só povo em
que a questão das relações entre os sexos não adquira cada dia um caráter mais
violento e doloroso. A humanidade contemporânea passa por uma crise sexual aguda.
Uma crise que se prolonga e que, portanto, é muito mais grave e difícil de resolver.
No curso da história da humanidade não encontraremos, seguramente, outra época na
qual os problemas sexuais tenham ocupado, na vida da sociedade, um lugar tão
importante, atraindo como por arte de magia, as atenções de milhões de homens. Em
nossa época, mais do que em nenhuma outra da história, os dramas sexuais
constituem fonte inesgotável de inspiração para os artistas de todos os gêneros da
Arte.
Como a terrível crise sexual se prolonga, seu caráter crônico adquire maior gravidade e
mais insolúvel nos parece a situação presente. Por isto, a humanidade contemporânea
lança-se ardentemente sobre todos os meios conjecturáveis que tomem possível uma
solução para o maldito problema. Mas, a cada nova tentativa de solução, mais se
complica o complexo emaranhado das relações entre os sexos, dando-nos a impressão
de que seria impossível descobrir o único fio que nos serviria para desatar o
complicado nó. A humanidade, atemorizada, precipita-se de um extremo ao outro.
Mas, o círculo mágico da questão sexual permanece tão hermeticamente fechado
como antes.

Os elementos conservadores da sociedade concluem que é imprescindível voltar aos


felizes tempos passados, restabelecer os velhos costumes familiares, dar novo impulso
às normas tradicionais da moral sexual. “É preciso destruir todas as proibições
hipócritas prescritas pelo código da moral sexual corrente. E chegado o momento de
se abandonar esta velharia inútil e incômoda...

A consciência individual, a vontade individual de cada ser é o único legislador em uma


questão de caráter tão íntimo” - ouve-se esta afirmação nas fileiras do individualismo
burguês. “A solução para os problemas sexuais só poderá ser encontrada com o
estabelecimento de uma nova ordem social e econômica, com uma transformação
fundamental de nossa atual sociedade” - afirmam os socialistas. Precisamente, porém,
este esperar pelo amanhã não indica que tampouco nós conseguimos apoderar-nos do
fio condutor?

A própria história das sociedades humanas nos oferece o caminho que devemos seguir
em nossa investigação; e que nos é ainda indicado pela história da ininterrupta luta de
classes e dos diversos grupos sociais, opostos por seus interesses e suas tendências.
Não é a primeira vez que a Humanidade atravessa um período de aguda crise sexual.
Não é a primeira vez que as aparentemente firmes e claras prescrições da moral
cotidiana, no domínio da união sexual, são destruídas pelo afluxo de novos ideais
sociais. A humanidade passou por uma época de crise sexual verdadeiramente aguda
durante os períodos do Renascimento e da Reforma, no momento em que uma
formidável modificação social relegava a segundo plano a aristocracia feudal,
orgulhosa de sua nobreza, acostumada ao dominar sem limitações, e em seu lugar
emergia uma nova força social, a burguesia ascendente, que crescia e se desenvolvia
cada vez mais, com maior impulso e poder. O código da moral sexual do mundo feudal,
nascido no seio da sociedade aristocrática, com um sistema de economia comunal e
baseado nos princípios autoritários de castas, devorava a vontade individual dos
membros dessa sociedade que tentavam permanecer isolados.

O velho código moral entrava em choque com novos princípios, que impunham à
classe burguesa em formação. A moral sexual da nova burguesia baseava -se em
princípios radicalmente opostos aos princípios morais mais essenciais do código
feudal. Em substituição ao princípio de castas, aparecia uma severa individualização:
os estreitos limites da pequena família burguesa. O fator de colaboração, essencial na
sociedade feudal, característica de sua economia comunal, tanto como da economia
regional, era substituído pelo princípio da concorrência. Os últimos vestígios de idéias
comunais, próprias dos diversos graus de evolução das castas, foram ultrapassados
pelo triunfante princípio da propriedade privada. A humanidade, perdida durante o
processo de transição, ficou em dúvida, durante vários séculos, entre os dois códigos
sexuais, de espírito tão diverso, e permaneceu ansiosa por adaptar-se à situação, até o
momento em que a vida transformou as velhas normas, alcançando, pelo menos, uma
forma harmoniosa, uma solução quanto ao aspecto externo.

Porém, durante esta época de transição, tão viva e cheia de colorido, a crise sexual,
apesar de revestida de caráter crítico, não se apresentou de uma forma tão grave e
ameaçadora como em nossa época. Isto se deveu ao fato de que, durante os gloriosos
dias do Renascimento, durante aquele novo século, iluminado pela nova cultura
espiritual, que coloria o agonizante mundo da Idade Média, pobre de conteúdo,
apenas uma parte relativamente reduzida da sociedade experimentou a crise sexual. O
campesinato, camada social mais considerável da época, do ponto de vista
quantitativo, sofreu as consequências da crise sexual de forma indireta, quando, por
lento processo secular se transformavam as bases econômicas em que esta classe se
fundamentava, isto é, unicamente à medida em que evoluíam as relações econômicas.
As duas tendências opostas lutavam nas camadas superiores da sociedade. Neste
terreno, enfrentavam-se os ideais e as normas das duas concepções diversas da
sociedade. E era onde, precisamente, a crise sexual, cada vez mais grave e
ameaçadora, fazia suas vítimas.

Os camponeses, rebeldes a qualquer inovação, classe apegada a seus princípios,


continuavam apoiando-se nos sustentáculos das tradições e o código da moral sexual
tradicional permanecia inalterável. Só se transformava, não se abrandava. Ada ptava-se
às novas condições da vida econômica, sob a pressão da grande necessidade. A crise
sexual, durante a luta entre o mundo burguês e o mundo feudal, não afetou a classe
tributária. E mais, ao arruinar-se, as tradições apegavam-se à classe camponesa com
maior força. Apesar de todas as tempestades que desabavam sobre sua cabeça, que
abalavam até o solo que pisavam, a classe camponesa, em geral, e particularmente, os
camponeses russos tentaram conservar, durante séculos e séculos, em sua forma
primitiva, os princípios essenciais de seu código moral sexual. O problema de nossa
época apresenta um aspecto totalmente distinto. A crise sexual não perdoa sequer a
classe camponesa. Como doença infecciosa, não reconhece nem graus, nem
hierarquias, contamina os palácios, as aldeias e os bairros operários, onde vivem
amontoados milhares de seres. Penetra nos lares burgueses, abre caminho até à
miserável e solitária aldeia russa, elege suas vitimas, tanto entre os habitantes da
cidade provinciana burguesa da Europa, quanto nos úmidos sótãos, onde se amontoa a
família operária, e nas enegrecidas choças do camponês.

Para a crise sexual não há obstáculos nem ferrolho. E um profundo erro acreditar que
a crise sexual só alcança os representantes das classes que têm uma pos ição
econômica materialmente segura. A indefinida inquietação da crise sexual franqueia,
cada vez com maior frequência, a porta das habitações operárias, causando tristes
dramas, que por sua intensidade de dor, não tem nada a dever aos conflitos
psicológicos do mundo burguês. Porém, justamente porque a crise sexual não ataca
somente os interesses dos que tudo possuem, precisamente porque estes problemas
sexuais afetam também uma classe social tão numerosa como o proletariado de
nossos tempos, é incompreensível e imperdoável que esta questão vital,
essencialmente violenta e trágica, seja considerada com tanta indiferença. Entre as
múltiplas idéias fundamentais que a classe trabalhadora deve levar em conta em sua
luta para a conquista da sociedade futura, deve estar, necessariamente, o
estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que, portanto, tomem a
humanidade mais feliz.

É imperdoável nossa atitude de indiferença diante de uma das tarefas essenciais da


classe trabalhadora. É inexplicável e injustificável que o vital problema sexual seja
relegado, hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas. Por que
negamos a este problema o auxílio da energia e da atenção da coletividade? As
relações entre os sexos e a elaboração de um código sexual que regulamente estas
relações aparecem na história da humanidade, de maneira invariável, como um dos
fatores da luta social. Nada mais certo do que a influência fundamental e decisiva das
relações sexuais de um grupo social e determinado no resultado da luta dessa classe
com outra, de interesses opostos.

O drama da humanidade atual é desesperador porque, enquanto diante de nossos


olhos são destruídas as formas banais de união sexual e são desprezados os princípios
que as regiam, das camadas mais baixas da sociedade se elevam frescos aromas
desconhecidos, que nos fazem conceber esperanças risonhas sobre uma nova forma
de vida e impregnam o espírito humano com a nostalgia de ideais futuros, mas cuja
realização não parece possível. Nós, homens do século em que domina a propriedade
capitalista, de um século onde transbordam as agudas contradições de classe; nós,
homens imbuídos da moral individualista, vivemos e pensamos sob o funesto símbolo
de invencível alheiamento moral. A terrível solidão que o homem sente nas imensas
cidades populosas, nas cidades modernas tão irrequietas e tentadoras; a solidão, que
não é dissipada pela companhia de amigos e companheiros, é que o impulsiona a
buscar, com avidez doentia, a sua ilusória alma gêmea, num ser do sexo oposto, visto
que só o amor possui o mágico poder de afugentar, embora momentaneamente, as
angústias da solidão.

Em nenhuma outra época da história os homens sentiram com tanta intensidade a


solidão moral. Necessariamente tem que ser assim. A noite é muito mais impenetrável
quando ao longe vemos brilhar uma luz. Os homens individualistas de nossa época,
unidos por débeis laços à comunidade ou a outras individualidades, veem brilhar ao
longe uma nova luz: a transformação das relações sexuais mediante a substituição do
cego fator fisiológico pelo novo fator criador da solidariedade, da camaradagem.

A moral da propriedade individualista de nossos tempos começa a afogar os homens.


O homem contemporâneo não se contenta em criticar as relações entre os sexos, em
negar as formas exteriores prescritas pelo código da moral vigente. Sua alma deseja a
renovação da essência das relações sexuais, deseja ardentemente encontrar o
verdadeiro amor, essa grande força confortadora e criadora que é a única capaz de
afugentar a solidão de que padecem os individualistas contemporâneos. Se é certo que
a crise sexual está condicionada em suas três partes pelas relações externas de caráter
econômico-social, não é menos certo que a outra quarta parte de sua intensidade é de
vida, à nossa refinada psicologia individualista, que com tanto cuidado a dominante
ideologia burguesa cultivou. A humanidade contemporânea, como disse,
acertadamente, Meisel-Hess, é muito pobre em potencial de amor. Cada um dos sexos
busca o outro com a única esperança de conseguir a maior satisfação possível de
prazeres espirituais e físicos para si. Cada um utiliza o outro como simples
instrumento. O amante ou o noivo não pensa nos sentimentos, no trabalho psicológico
que se efetua na alma da mulher amada.

Talvez não haja nenhuma outra relação humana como as relações entre os sexos, na
qual se manifeste com tanta intensidade o individualismo grosseiro que caracteriza
nossa época. Absurdamente se imagina que basta ao homem, para escapar à solidão
moral que o rodeia, o amor, exigir seus direitos sobre a outra pessoa. Espera assim,
unicamente, obter esta sorte rara: a harmonia da afinidade moral e a compreensão
entre dois seres. Nós, os indivíduos dotados de uma alma que se fez grosseira pelo
constante culto de nosso eu, cremos que podemos conquistar sem nenhum sacrifício a
maior das sortes humanas, o verdadeiro amor, não só para nós, como também para
nossos semelhantes. Cremos poder conquistar isso sem dar em troca a nossa própria
personalidade.

Pretendemos conquistar a totalidade da alma do ser amado mas, em compensação,


somos incapazes de respeitar a mais simples fórmula do amor: acercarmo-nos do
outro dispostos a dispensar-lhe todo o gênero de considerações. Esta simples fórmula
nos será unicamente inculcada pelas novas relações entre os sexos, relações que já
começaram a se manifestar e que estão baseadas também, em dois princípios novos:
liberdade absoluta, por um lado, e igualdade e verdadeira solidariedade entre
companheiros, por outro. Entretanto, por enquanto, a humanidade tem que sofrer,
ainda, a solidão moral e não há outro remédio senão sonhar com uma época melhor
na qual todas as relações humanas se caracterizem por sentimentos de solidariedade,
que serão possíveis por causa das novas condições da existência. A crise sexual é
insolúvel sem que haja uma transformação fundamental da psicologia humana; a crise
sexual só pode ser vencida pela acumulação de potencial de amor. Mas, essa
transformação psíquica depende completamente da reorganização fundamental das
relações econômicas sobre os fundamentos comunistas. Se recusarmos esta velha
verdade, o problema sexual não terá solução.

Apesar de todas as formas de união sexual que a humanidade experimenta hoje em


dia, a crise sexual não se resolveu em nenhum lugar. Não se conheceu em nenhuma
época da história tantas formas diversas de união entre os sexos. Matrimônio
indissolúvel, com uma família solidamente constituída, e a seu lado a união livre,
passageira; o adultério conservado no maior segredo, ao lado do matrimônio e da vida
em comum de uma moça solteira com o seu amante; o matrimônio por trás da Igreja,
o matrimônio de dois, o matrimônio triângulo e, inclusive, a forma complicada do
matrimônio de quatro, sem contar as múltiplas variantes da prostituição. Ao lado
destas formas de união, entre os camponeses e a pequena burguesia, encontramos
vestígios dos velhos costumes de casta, mesclados com os princípios em decomposição
da família burguesa e individualista; a vergonha do adultério, a vida em concubinato
entre o sogro e a nora e a liberdade absoluta para a jovem solteira. Sempre a mesma
moral dupla.

As formas atuais de união entre os sexos são contraditórias e complicadas, de tal


modo, que nos interrogamos como é possível que o homem que conservou em sua
alma a fé na firmeza dos princípios morais possa continuar admitindo essas
contradições e salvar esses critérios morais irreconciliáveis, que necessariamente se
destroem um ao outro. Precisamente, o trabalho a realizar consiste em fazer com que
suja essa nova moral: é preciso extrair do caos as normas sexuais contraditórias da
época presente, as premissas dos princípios que correspondem ao espírito da classe
revolucionária em ascensão.

Além do individualismo extremado, defeito fundamental da psicologia da época atual,


de um egocentrismo transformado em culto, a crise sexual agrava-se muito mais com
outros dois fatores da psicologia contemporânea: a ideia do direito de propriedade de
um ser sobre o outro e o preconceito secular da desigualdade entre os sexos em todas
as esferas da vida. A ideia da propriedade inviolável do esposo foi cultivada com todo o
esmero pelo código moral da classe burguesa, com sua família individualista encerrada
em si mesma, construída totalmente sobre as bases da propriedade privada. A
burguesia conseguiu com perfeição inocular essa ideia na psicologia humana. O
conceito de propriedade dentro do matrimônio vai hoje em dia muito além do que ia o
conceito da propriedade nas relações sexuais do código aristocrático. No curso do
longo período histórico que transcorreu sobre o signo do princípio de casta, a ideia da
posse da mulher pelo marido (a mulher carecia de direitos de propriedade sobre o
marido) não se estendia além da posse física, mas sua personalidade lhe pertencia
completamente.
Os cavaleiros da Idade Média chegavam inclusive a reconhecer nas suas esposas o
direito de ter admiradores platônicos e de receber o testemunho desta adoração pelos
cavaleiros e menestréis. O ideal da posse absoluta, da posse não só do eu físico, mas
também do eu espiritual por parte do esposo, o ideal, que admite uma reivindicação
de direitos de propriedade sobre o mundo espiritual e moral do ser amado, é que se
formou na mente e foi cultivado pela burguesia com o objetivo de reforçar os
fundamentos da família, para assegurar sua estabilidade e sua força durante o período
de luta para conquista de seu predomínio social. Esse ideal não só o recebemos como
herança, como também chegamos a pretender que seja considerado um imperativo
moral indestrutível.

A ideia da propriedade se estende muito além do matrimônio legal. É um fator


inevitável que penetra até na união amorosa mais livre. Os amantes de nossa época,
apesar de seu respeito teórico pela liberdade, só se satisfazem com a consciência da
fidelidade psicológica da pessoa amada. Com o fim de afugentar o fantasma
ameaçador da solidão, penetramos, violentamente, na alma do ser amado, com uma
crueldade e uma falta de delicadeza que será incompreensível à humanidade fritura.
Da mesma forma pretendemos fazer valer nossos direitos sobre o seu eu espiritual
mais intimo. O amante contemporâneo está disposto a perdoar mais facilmente ao ser
querido uma infidelidade física do que uma infidelidade moral e pretende que lhe
pertença cada partícula da alma da pessoa amada, que se estenda mais além dos
limites de sua união livre. Considera tudo isto como um desperdício, como um roubo
imperdoável de tesouros que lhe pertenciam, exclusivamente e, portanto, como um
saque cometido à sua revelia.

Tem a mesma origem a absurda indelicadeza que cometem constantemente dois


amantes com relação a uma terceira pessoa. Todos tivemos ocasião de observar um
fato curioso que se repete continuamente: dois amantes, que mal tiveram tempo de
conhecer-se em suas relações múltiplas, apressam-se a estabelecer seus direitos sobre
as relações sexuais do outro e intervir no mais sagrado e no mais intimo de sua vida.
Seres que ontem eram dois estranhos, hoje, unicamente porque os unem sensações
eróticas, apressam-se a apossar-se da alma do outro, a dispor da alma desconhecida e
misteriosa sobre a qual o passado gravou imagens inapagáveis e a instalar-se no seu
interior como se estivesse em sua própria casa. Esta ideia da posse recíproca de um
casal amoroso estende seu domínio de tal forma que pouco nos surpreende um fato
tão anormal quanto o seguinte: dois recém-casados viviam até ontem cada um com a
sua própria vida; no dia seguinte à sua união, cada um deles abre sem o menor
escrúpulo a correspondência do outro inteirando-se consequentemente, do conteúdo
da carta procedente de uma terceira pessoa que só tem relação com um dos esposos e
se converte em propriedade comum. Uma intimidade desse gênero só se pode adquirir
como resultado de uma verdadeira união entre as almas no curso de uma longa vida
em comum, de amizade posta à prova. O que se busca, em geral, é legitimar essa
intimidade, baseando-se na ideia equivocada de que comunhão sexual entre dois seres
é suficiente para estender o direito de propriedade sobre o ser moral da pessoa
amada.
O segundo fator que deforma a mentalidade do homem contemporâneo e que agrava
a crise sexual é a ideia de desigualdade entre os sexos, desigualdade de direitos e
desigualdade no valor de suas sensações psicofisiológicas. A moral dupla, característica
do código burguês e do código aristocrático, envenenou durante séculos a psicologia
de homens e mulheres e tomou muito mais difícil livrar-se de sua influência venenosa
do que das ideias referentes à propriedade de um esposo sobre o outro, herdadas da
ideologia burguesa.

A concepção de desigualdade entre os sexos, até no domínio psicofisiológico, obriga à


aplicação constante de medidas diversas para atos idênticos, segundo o sexo que os
haja realizado. Um homem de ideias avançadas no campo burguês, que soube desde
algum tempo superar as perspectivas do código da moral em uso, será incapaz de
subtrair-se à influência do meio ambiente e emitirá um juízo completamente distinto,
segundo se trate do homem ou da mulher. Basta um exemplo vulgar: imaginemos que
um intelectual burguês, um cientista, um político, um homem de atividades sociais, ou
seja, uma personalidade, se enamore de sua cozinheira (fato que, aliás, se dá com
bastante frequência) e chegue, inclusive, a casar-se com ela. Modificará a sociedade
burguesa por este fato sua conduta em relação à personalidade desse homem? Porá
em questão sua personalidade? Duvidará de suas qualidades morais?

Naturalmente, não. Agora vejamos outro exemplo: uma mulher pertencente à


sociedade burguesa, uma mulher respeitável, considerada, uma professora, médica ou
escritora; uma mulher, em suma, com personalidade, se enamora de um criado e
chega ao clímax do escândalo, consolidando esta questão com um matrimônio legal.
Qual será a atitude da sociedade burguesa em relação a esta pessoa até agora
respeitada? A sociedade, naturalmente, a mortificará com seu desprezo. Mas, será
muito mais terrível se seu marido, o criado, possui uma bela fisionomia e outros
atrativos de caráter físico. Nossa hipócrita sociedade burguesa julgará sua escolha da
seguinte forma: até onde desceu essa mulher?

A sociedade burguesa não pode perdoar a mulher que se atreve a dar à escolha do
marido um caráter individual. Segundo a tradição herdada dos costumes de casta, a
sociedade pretende que a mulher continue levando em conta, no momento de
entregar-se, uma série de considerações de graus e hierarquias sociais, a respeito do
meio familiar e dos interesses da família. A sociedade burguesa não pode considerar a
mulher independente da célula da família; é-lhe completamente impossível apreciá-la
como personalidade fora do círculo estreito das virtudes e deveres familiares.
A sociedade contemporânea vai muito mais longe que a ordem antiga na tutela que
exerce sobre a mulher. Não só lhe prescreve casar-se unicamente com homens dignos
dela, como lhe proíbe, inclusive, que chegue a amar um ser que lhe é socialmente
inferior. Estamos acostumados a ver como homens, de nível moral e intelectual muito
elevado, escolhem para companheira de vida uma mulher insignificante e vazia, sem
nenhum valor comparado ao valor do esposo.

Apreciamos este fato como completamente normal e que, portanto, não merece
sequer nossa consideração. Tudo que pode suceder é que os amigos “lamentem que
Ivan Ivanitch tenha se casado com uma mulher insuportável”. O caso varia tratando-se
de uma mulher. Então, nossa indignação não tem limites e a expressamos com frases
como a seguinte: “Como é possível que uma mulher tão inteligente como Maria
Petrovna possa amar uma nulidade assim!... Teremos que por em dúvida sua
inteligência...” Que determina essa maneira diferente de julgar as coisas? A que
princípio obedece uma apreciação tão contraditória? Essa diversidade de critérios tem
origem na ideia da desigualdade entre os sexos, ideia que tem sido inculcada na
humanidade durante séculos e séculos e que acabou por apoderar-se de nossa
mentalidade, organicamente. Estamos acostumados a valorizar a mulher, não como
personalidade, com qualidades e defeitos individuais, independente de suas sensações
psicofisiológicas. Para nós, a mulher só tem valor como acessório do homem. O
homem, marido ou amante, projeta sobre a mulher sua luz; é a ele e não a ela que
tomamos em consideração como o verdadeiro elemento determinante da estrutura
espiritual e moral da mulher. Em troca, quando valorizamos a personalidade do
homem, fazemos por antecipação uma total abstração de seus atos no que di z respeito
às relações sexuais.

A personalidade da mulher, pelo contrário, valoriza-se em relação à sua vida sexual.


Este modo de apreciar o valor de uma personalidade feminina deriva do papel que
representou a mulher durante séculos. A revisão de valores, neste domínio essencial,
só se faz, ou melhor dizendo, só se indica, de modo gradual. A atenuação dessas falsas
e hipócritas concepções só se realizará com a transformação do papel econômico da
mulher na sociedade, com sua entrada nas fileiras do trabalho. Os três fatores
fundamentais que deformam a psicologia humana são os seguintes: o egocentrismo
extremado, a ideia do direito de propriedade dos esposos entre si e o conceito da
desigualdade entre os sexos no aspecto psicofisiológico. Esses três fatores são os que
travam o caminho que conduz à solução do problema sexual. A humanidade não
encontrará solução para este problema até que haja acumulado em sua psicologia
suficientes reservas de sensações depuradas, até que se haja apoderado de sua alma o
potencial do amor, até que o conceito da liberdade no matrimônio e na união livre seja
um fato consolidado, em suma, até que o princípio da camaradagem haja triunfado
sobre os conceitos tradicionais de desigualdade e de subordinação nas relações entre
os sexos. Sem uma reconstrução total e fundamental da psicologia humana é insolúvel
o problema sexual.

Mas, não será essa condição prévia uma utopia desprovida de base, utopia na qual os
idealistas sonhadores baseiam suas considerações ingênuas? Tentemos aumentar o
potencial de amor da humanidade. Acaso os sábios de todos os povos, desde Buda e
Confúcio até Cristo, não se entregaram desde tempos remotos a essa tarefa?

Entretanto, há alguém que creia que o potencial do amor aumentou na humanidade?


Reduzir a questão da crise sexual a utopias desse tipo, por muito bem intencionadas
que sejam, não significará praticamente um reconhecimento de impotência e uma
renúncia à busca de soluções possíveis? Vejamos se isto é certo. A reeducação
fundamental do ser humano no domínio das relações sexuais não é algo impossível de
se conseguir. A reeducação é possível porque não é algo que esteja em contraposição
com a vida real. Precisamente, nos momentos atuais, observamos como se inicia um
poderoso deslocamento social e econômico, suficiente para engendrar novas bases de
vida no campo dos sentimentos e que, pelas condições que surgiram, estão de acordo
com as exigências assinaladas acima.
Na sociedade atual avança um novo grupo social que tenta ocupar o primeiro posto e
deixar de lado a burguesia, com sua ideologia de classe e seu código de moral sexual
individualista. Esta classe ascendente, de vanguarda, leva necessariamente em seu
seio os germens de novas relações entre os sexos, relações que, forçosamente, estarão
ligadas a seus objetivos sociais de classe. A complexa evolução das relações
econômico-sociais, que se verifica diante de nossos olhos, que transtorna todas as
nossas concepções sobre o papel da mulher na vida sexual e destrói os fundamentos
da moral sexual burguesa, traz consigo dois fatos que, à primeira vista, parecem
contraditórios. Por um lado, observamos os esforços infatigáveis da humanidade para
adaptar-se às novas condições da economia social transformada, esforços que tendem
ou a conservar as formas antigas, dando-lhe um novo conteúdo (manutenção da forma
exterior do matrimônio indissolúvel e monógamo, mas ao mesmo tempo, o
reconhecimento de fato da liberdade dos esposos), ou ao contrário a a ceitação de
novas formas que tragam em seu interior, ao mesmo tempo, todos os elementos do
código moral do matrimônio burguês (a união livre na qual o direito de propriedade
dos dois esposos unidos livremente ultrapassa os limites do direito de propriedade do
matrimônio legal). Por outro lado, não podemos deixar de assinalar o aparecimento,
vagaroso porém invencível, de novas formas de união entre os sexos.

Novas, não tanto pela forma, como pelo caráter que anima os seus preceitos.
A humanidade sonda com inquietação os novos ideais. Mas, basta examiná-los um
pouco, detalhadamente, para neles reconhecer, apesar de seus limites não estarem
suficientemente demarcados, os traços característicos, pelos quais se unem as tarefas
do proletariado, classe social incumbida de se apoderar da fortaleza do futuro. Aquele
que quer encontrar, no labirinto das normas sexuais contraditórias, os germens de
relações futuras entre os sexos, mais sadias e que prometam libertar a humanidade da
crise sexual, tem, necessariamente, que abandonar os bairros onde habitam as elites,
com sua refinada psicologia individualista, e olhar as casas amontoadas dos operários,
nas quais, em meio à obscuridade e, ao horror gerados pelo capitalismo, surgem,
apesar de tudo, fontes que vivificam o amor e abrem caminho a um novo tipo de
entendimento entre homens e mulheres.

Entre a classe operária, sob a pressão de duras condições econômicas e o jugo


implacável da exploração capitalista, observa-se o duplo processo a que nos referimos.
A influência destruidora do capitalismo, que aniquila todos os fundamentos da família
operária, obriga o proletariado a adaptar-se, instintivamente, às condições do mundo
que o cerca e provoca, portanto, uma série de fatos referentes às relações entre os
sexos, análogos aos que se produzem, também, em outras camadas da sociedade.
Devido aos salários reduzidos, retarda-se, contínua e inevitavelmente, a idade de
contrair matrimônio do operário. Há um quarto de século, um operário podia casar-se
dos vinte e dois aos vinte e cinco anos. Hoje em dia, o proletariado não pode
estabelecer um lar antes dos trinta anos, aproximadamente (7) .

Além disso, quanto mais desenvolvidas estão as necessidades culturais entre os


operários, mais valor concedem à possibilidade de seguir o ritmo na vida cultural, de ir
ao teatro, de assistir conferências, ler jornais, consagrar o tempo que o trabalho não
consome à luta sindical, à política, a uma atividade pela qual sentem atração, à arte, à
leitura, etc. Tudo isto contribui para que o operário contraia matrimônio com maior
idade. Entretanto as necessidades fisiológicas não levam em conta o estado do bolso.
São necessidades vitais das quais não se pode prescindir e o operário solteiro, tanto
quanto o burguês solteiro, resolve seu problema na prostituição.

Este fato é um sintoma da adaptação passiva da classe operária às condições


desfavoráveis de existência. E, por causa do nível bastante baixo dos salários, a família
operária vê-se obrigada a resolver o problema do nascimento dos filhos do mesmo
modo que as famílias burguesas. A frequência dos infanticídios e o desenvolvimento da
prostituição são fatos que podem classificar-se dentro de uma só ordem. Ambos são
meios de adaptação passiva do operário à espantosa realidade que o cerca. Mas, o que
não se pode esquecer é que nesse processo não há nada que caracterize,
propriamente, o proletariado. Essa adaptação passiva é própria de todas as classes
sociais envolvidas pela evolução mundial do capitalismo.

A linha de diferenciação começa, precisamente, quando entram em jogo os princípios


ativos e criadores. A delimitação começa onde já não se trata de uma adaptação, mas
de uma reação à realidade que oprime. Começa onde nascem e se expressam novos
ideais, onde surgem tímidas tentativas de relações sexuais dotadas de um espírito
novo. Ainda mais: devemos assinalar que o processo de reação se inicia, unica mente,
entre a classe operária. Isto não quer dizer, de modo algum, que as outras classes e
camadas da sociedade, principalmente a dos intelectuais burgueses que, pelas
condições de sua existência social, se encontra mais próxima da classe operária, não se
apoderem dos elementos novos que o proletariado cria e desenvolve. A burguesia,
impulsionada pelo desejo instintivo de injetar vida nova às suas formas agonizantes, e
diante da impotência de suas diversas formas de relações sexuais, aprende
rapidamente novas formas com a classe operária. Mas, desgraçadamente, nem os
ideais nem o código da moral sexual, elaborados gradativamente pelo proletariado,
correspondem à moral das exigências burguesas de classe. Portanto, enquanto a moral
sexual, nascida das necessidades da classe operária, converte-se para ela num
instrumento novo da luta social, os modernismos de segunda mão que dessa moral
extrai a burguesia, não fazem mais do que destruir, definitivamente, as bases de sua
superioridade social.

A tentativa dos intelectuais burgueses de substituir o matrimônio indissolúvel pelos


laços mais livres, mais facilmente desligáveis do matrimônio civil, atinge as bases da
estabilidade social da burguesia, bases que não podem ser outras senão a família
monogâmica baseada no conceito da propriedade.
Na classe operária, sucede tudo ao contrário. A maior liberdade na união entre os
sexos condiz, totalmente, com as suas tarefas históricas fundamentais. E até podemos
dizer que derivam diretamente dessas tarefas. O mesmo sucede com a negação do
conceito de subordinação, no matrimônio, rompendo os últimos laços artificiais da
família burguesa. O contrário acontece, na classe proletária. O fator de subordinação
de um membro desta classe social a um outro é o mesmo que o conceito de
proletariado. Não convém, de modo algum, aos interesses da classe revolucionária
atar um de seus membros, visto que cada um de seus representantes, independentes
diante de tudo, tem a incumbência e o dever de servir aos interesses de sua classe e
não aos de uma célula familiar isolada. O dever do membro da sociedade proletária é
antes de tudo contribuir para o triunfo dos interesses de sua classe, por exemplo,
atuar nas greves e participar em todo o momento da luta. A moral com que a classe
trabalhadora julga todos estes atos caracteriza com perfeita clareza a base da nova
moral.
Suponhamos que um reputado financista, movido unicamente por seus interesses
familiares, retire dos negócios seu capital, num momento crítico para a empresa. Sua
ação, avaliada do ponto de vista da moral burguesa não pode ser mais evidente,
porque os interesses da família devem estar em primeiro lugar. Comparemos agora
este ato com a atitude dos operários diante do fura-greves, que retorna ao trabalho
durante o conflito, para que sua família não passe fome.

Os interesses da classe figuram em primeiro lugar, neste exemplo. Referimo-nos agora


a um marido burguês que conseguiu, por amor e devoção à família, manter afastada a
mulher de seus interesses, à exceção dos deveres de dona de casa e de mulher
dedicada completamente aos cuidados dos filhos. O julgamento da sociedade
burguesa será: um marido ideal que soube criar uma família ideal. Mas, qual seria a
atitude dos operários para um membro consciente de sua classe que tentasse manter
sua mulher afastada da luta social? A moral da classe exige, a custo inclusive da
felicidade individual, a custo da família, a participação da mulher na luta pela vida que
transcorre fora dos muros de seu lar. Manter a mulher em casa, colocar em primeiro
lugar os interesses familiares, propagar a ideia dos direitos de propriedade absoluta de
um esposo sobre sua mulher, são atos que violam o princípio fundamental da ideologia
da classe operária, que destroem a solidariedade e o companheirismo, que rompem a
união de todo o proletariado.

O conceito de posse de uma personalidade sobre a outra, a ideia de subordinação e de


desigualdade dos membros de uma só e mesma classe, são conceitos que contrariam a
essência do conceito de camaradagem, que é o princípio mais fundamental do
proletariado. Este princípio básico da ideologia da classe ascendente é o que dá
colorido e determina o novo código em formação da moral sexual do proletário, pelo
qual se transforma a psicologia da humanidade, chegando a adquirir uma acumulação
de sentimentos de solidariedade e de liberdade, ao invés do conceito de propriedade:
uma acumulação de companheirismo ao invés dos conceitos de desigualdade e de
subordinação.
Toda classe ascendente, nascida como consequência de uma cultura material distinta
daquela que a antecedeu no grau anterior da evolução econômica, enriquece toda a
humanidade com uma nova ideologia que lhe é característica. Esta afirmativa
corresponde a uma velha verdade.

O código da moral sexual constitui parte integrante da nova ideologia. Portanto, basta
pronunciar as expressões ética proletária e moral proletária, para escapar da trivial
argumentação: a moral sexual proletária não é no fundo mais do que uma
superestrutura. Enquanto não se experimenta a total transformação da base
econômica, não pode haver lugar para ela. Como se uma ideologia, seja qual for o seu
gênero, não se formasse até que se produzisse a transformação das relações
econômico-sociais necessárias para assegurar o domínio da classe que a gerou! A
experiência da história ensina que a ideologia de um grupo social e,
consequentemente, a moral sexual se elaboram durante o próprio processo da luta
contra as forças sociais que se lhe opõem.

A classe revolucionária só pode fortalecer suas posições sociais com a ajuda de novos
valores espirituais tirados de seu próprio seio e que correspondam totalmente às suas
tarefas de força em ascensão. Só mediante novas normas e ideais pode esta classe
arrebatar o poder dos grupos sociais opostos. A tarefa que corresponde, portanto, aos
ideólogos da classe operária é buscar o critério moral fundamental, produto dos
interesses específicos da classe operária, e harmonizar com este critério as nascentes
normas sexuais.

Já é hora de compreender que, unicamente depois de haver ensaiado o processo


criador que se realiza mais embaixo, nas profundas camadas sociais, processo que
engendra necessidades novas, novos ideais e formas, será possível visualizar o
caminho, no caos contraditório das relações sexuais e desemaranhar a embaraçada
meada do problema sexual.

Devemos recordar que o código da moral sexual, em harmonia com as tarefas


fundamentais da classe, pode converter-se em poderoso instrumento, que reforce a
posição de combate da classe revolucionária. Por que não utilizar este instrumento no
interesse da classe operária, em sua luta para o estabelecimento do regime comunista
e, por sua vez, também, estabelecer relações novas entre os sexos, que sejam mais
perfeitas e felizes?

A nova mulher na literatura

O problema da existência de um novo tipo de mulher, isto é, da mulher moderna, é de


palpitante atualidade. Mas, será que existe, na realidade, este novo tipo de mulher?
Não será por acaso, um produto da imaginação criadora dos literatos, sempre em
busca de novidades sensacionais? E, no caso de existir, como será e quem será esta
mulher moderna?

Para constatar sua existência basta olhar a nossa volta. Uma breve análise, uma não
muito prolongada reflexão, é o suficiente para mostrar que a mulher do novo tipo vive
e que a encontramos na realidade. A mulher moderna atua ao nosso lado. Fácil é
conhecê-la. Nós nos acostumamos a vê-la e a encontramos com grande frequência na
vida, em todas as classes sociais, tanto entre as operárias como entre as mulheres
dedicadas ao estudo das ciências, como na modesta empregada e na artista genial. O
que surpreende é que esta nova mulher, que se dedica cada dia com maior frequência
a todas as manifestações da vida, não aparece na literatura com seus traços próprios,
como heroína, nem nas novelas dos últimos tempos. A vida, nas últimas décadas,
forjou, na luta pesada da necessidade vital, outra mulher de tipo psicológico
completamente desconhecido até agora. Uma mulher com novas necessidades e
emoções. Enquanto a literatura continuava apresentando mulheres do velho tipo;
enquanto os literatos se esforçavam em desenhar tipos de mulheres do passado, que a
vida fazia desaparecer, a realidade russa do período compreendido entre 1870 e 1880
produzia figuras do novo tipo de mulher que nascia para a vida, plenas de
luminosidade e encanto. Mas os escritores passavam ao seu lado sem senti -las nem
ouvi-las; eram incapazes de assimilá-las e distingui-las... Turguenev é o único escritor
que se atreveu a esboçar estas figuras, mas as imagens que nos apresenta são muito
mais inexpressivas, muito mais pobres do que a realidade. No poema em prosa
dedicado à moça russa, Turguenev inclina-se ante a comovedora figura da mulher que
se atreveu a transpor o umbral sagrado.

As mulheres heroicas, cujos nomes ficaram gravados nas páginas da história, foram
seguidas por uma grande quantidade de desconhecidas que pereceram como abelhas
em um favo de mel destroçado. Seus cadáveres semearam no caminho ped regoso que
leva ao perfeito, ao desejado futuro. O número de mulheres do novo tipo aumentava,
multiplicava-se no transcurso dos anos, mas os escritores e os poetas passavam a seu
lado sem vê-las, como se uma espessa venda lhes cobrisse os olhos. A visão do
escritor, apaixonada pelos tipos tradicionais de mulher, não podia penetrar nem
compreender a nova realidade que passava diante de seus olhos. A literatura evoluía,
aperfeiçoava-se e seguia novos caminhos; enriquecia seus meios de expressão com
novos matizes e palavras. Mas, em compensação, continuava obstinada em nos
apresentar débeis criaturas enganadas, mulheres abandonadas, entregues à dor,
esposas ávidas de vingança, fêmeas sedutoras, almas “sem vontade, não
compreendidas”, e encantadoras jovens “puras e sem personalidade”.
Na mesma época em que Flaubert escrevia Madame Bovary, vivia a seu lado em carne
e osso Jorge Sand, a mais luminosa precursora do novo tipo de mulher que despertava
para a vida.

Tolstoi estudava a psicologia estreita e limitada da mulher, produto da escravidão de


que foi vítima no correr dos anos, em Ana Karenina. Sentia prazer em acariciar a
imagem encantadora da inofensiva Ketty; divertia-se com a ardente natureza de
mulher de Natacha Rostova, enquanto a seu lado a implacável realidade acorrentava
duramente as mulheres do novo tipo em formação, cujo número crescia sem cessar.
Os grandes talentos do século XIX não sentiram a necessidade de substituir a graça
sedutora de suas heroínas pelas qualidades características da nova mulher em
formação. Os escritores mais modernos dos últimos dez ou quinze anos,
particularmente as mulheres escritoras, no entanto não podiam deixar passar em
silêncio o novo tipo feminino que se afirmava ao seu redor: a nova mulher acaba
sendo retratada nas páginas de suas últimas obras.

Atualmente a nova mulher não é mais uma novidade sensacional. Encontramo-la na


novela de tese de vanguarda, em que se estuda um complicado problema e também
na narração moderna, na narração sem nenhuma pretensão literária. O tipo de mulher
nova varia, como é natural, de um a outro país. A classe social a que pertencem essas
novas mulheres lhes imprime igualmente um caráter particular. Também podem
variar, consideravelmente, os traços psicológicos, os desejos e a finalidade vital da
heroína. Mas, por muito diferente que se apresentem diante de nós estas novas
mulheres, é certo que encontramos em todas elas um traço comum, algo que
podemos considerar “racial” e que nos permite diferenciá-las imediatamente das
mulheres do passado. As mulheres do passado viam o mundo de maneira distinta e
reagiam diante dele de outra forma; encaravam a vida de modo igualmente distinto.
Não é necessário possuir conhecimentos especiais, históricos ou literários, para
reconhecer a fisionomia da nova mulher, no meio da densa multiplicidade do passado
que a circundava. Nem sempre nos damos conta de quais são esses novos traços, nem
em que consiste a diferença; mas é um fato evidente que em alguma parte, na região
do subconsciente possivelmente, temos nosso juízo plenamente formado, e com ele
podemos classificar e determinar os novos caracteres femininos. Determinemos, pois,
quem são essas mulheres que constituem o novo tipo feminino.

Desde logo, não são as encantadoras e “puras” jovens cujas novelas terminam com o
matrimônio feliz, nem as esposas que sofrem resignadamente as infidelidades do
marido, nem as casadas culpadas de adultério. Não são, tampouco, as solteironas que
dedicaram toda a sua vida a chorar um amor desgraçado de juventude, nem as
“sacerdotisas do amor”, vítimas das tristes condições da vida ou de sua própria
natureza viciada. Não. Estas mulheres são algo novo, isto é, um quinto tipo de heroína
desconhecida anteriormente, heroínas que se apresentam à vida com exigências
próprias, heroínas que afirma m sua personalidade; heroínas que protestam contra a
submissão da mulher dentro do Estado, no seio da família, na sociedade; heroínas que
sabem lutar por seus direitos. Representam um novo tipo de mulher.

São mulheres celibatárias, a denominação mais apropriada que podemos dar a este
novo tipo. O tipo essencial da mulher do passado recente era a esposa, a mulher
somente eco, instrumento, apêndice do marido. A nova mulher, celibatária, está bem
longe de ser um eco do marido. Cessou de ser um simples reflexo do homem. Esta
mulher possui seu próprio mundo interior, vive entregue a interesses humanos
generosos. É independente, exterior e interiormente. Há vinte e cinco anos, uma
definição desta classe carecia de sentido, era vazia de significado. Os quadros eram
simples e definidos: a jovem, a mãe, a literata, a amante ou a mundana do gênero de
Elena Kurakin, na novela Guerra e Paz, de Tolstoi. Esses tipos eram modelos correntes,
claros e compreensíveis. Para a mulher não havia lugar, na literatura nem na vida.
Quando a história produzia mulheres com tipos semelhantes às heroínas
contemporâneas, consideravam-se desvios puramente acidentais da norma,
verdadeiros fenômenos psicológicos.

A vida, porém, não pode permanecer imóvel e a roda da história, ao girar cada vez com
ritmo mais acelerado, obriga aos homens de uma mesma geração a aceitar noções
diferentes, enriquece-lhes o vocabulário com material novo. A nova mulher, a mulher
celibatária desconhecida de nossa época e até mesmo de nossas mães, é em nossa
época um fato real, um ser vivo, com existência própria. Elas são milhões de figuras,
envoltas em trajes cinzentos, que se movem desde as primeiras horas da aurora em
intermináveis filas desde os bairros operários até os armazéns, as fábricas e estações,
que enchem os trens, a caminho do trabalho. São essas milhares de moças ou de
mulheres já maduras que, nas grandes cidades, fazem aumentar as estatísticas de lares
independentes. São as moças e mulheres que sustentam uma surda e contínua luta
pela vida, que passam toda sua existência sentadas diante da mesa dos escritórios,
junto aos aparelhos telegráficos e atrás dos balcões.
São essas jovens de alma alegre que, com a cabeça cheia de sonhos e projetos
audazes, se atrevem a assomar à porta dos templos da ciência e da arte, são as que,
com passo firme, quase masculino, percorrem as ruas da cidade em busca de uma aula
mal remunerada ou de algum trabalho ocasional. Elas estão sentadas diante da mesa
de trabalho, no laboratório, entregues a uma experiência científica, nos arquivos,
folheando livros, executando o trabalho de sua clínica ou dedicadas a preparar um
discurso político.

Essas figuras não se parecem em nada às heroínas do passado próximo, àquelas


sedutoras e comovedoras mulheres de Turguenev, de Tchekov, às heroínas de Zola e
Maupassant, aos tipos femininos de virtude impessoal da literatura inglesa e alemã de
1880 até a última década do século passado. A vida criou estas novas mulheres, que a
literatura depois transcreveu.

Como numa longa fita de matizes coloridos, surge diante de nós a vanguarda dessas
heroínas diferentes à frente, sem deter-se diante da espessa barreira que formam as
plantas espinhosas da realidade contemporânea, adianta-se com passo tranquilo,
valente e resoluta, a operária Matilde. (8)

As plantas espinhosas do caminho da vida fazem sangrar as mãos e os pés de Matilde,


e dilaceram seu peito. Mas sua fisionomia endurecida, temperada nas desgraças e
sofrimentos, não expressa a menor vacilação. Somente rugas amargas se formam mais
profundamente no canto da boca: unicamente sua expressão invencivelmente
desafiadora brilha com uma expressão mais fria. Uma nova dor, um novo esplendor de
alegria, dessa rara visitante do mundo operário, passam por Matilde, sem comovê-la.
Envolta em seu xale cinzento, mantém-se firme sobre a montanha, valente e
invencível, como estátua da tristeza. Somente seus olhos fixos no desconhecido veem
um distante futuro, no qual acredita com a alma temperada pelos choques com a vida;
Matilde vai à cidade alegre, jovem, transbordante de saúde. Chega à porta da fábrica e
entra na oficina, O monstro de tijolo tragou mais uma vítima. Matilde, porém, não tem
medo. Com passo seguro e firme, desfaz-se dos ardis que o destino traiçoeiro estende
à jovem que caminha só, sem rumo. A lama e as baixezas da vida não mancham seu
lindo vestido. Matilde conduz sua inquebrantável fé, com ignorância ingênua, seu eu
humano, claro e puro. Não é mais que “uma jovem operária, só e pobre”. Mas, sente-
se orgulhosa de ser o que é, satisfeita de sua força interior e de sua independência.
Surge, mais tarde, o primeiro amor, terno e claro, como a própria juventude. Vem a
primeira alegria da maternidade. A primeira sensação de dependência amorosa, a
tímida rebelião pela liberdade perdida. Depois, a inquietude de uma nova paixão. Os
sofrimentos e os tormentos do amor: desejo, dor e decepção. Outra vez a maternidade
e, outra vez, o abandono. Agora, não temos diante de nós uma jovem abandonada,
perdida, um pobre ser oprimido, mas sim toda uma individualidade, mãe dig na, só e
encerrada em si mesma. A personalidade de Matilde cresce, faz-se mais forte. A nova
dor não é mais do que uma nova página em sua vida, que revela com maior clareza seu
eu poderoso e inquebrantável.

Ao lado de Matilde, Tatiana caminha com passo suave. A jovem de Riasan, com os pés
descalços, curtidos e feridos pelo calor e pelo mau tempo. Tatiana anda com os
vagabundos, sem abrigo, sem lar, como ela. “Pedaço de cobre entre um montão de
sucata carcomida pela ferrugem”. Algumas vezes trabalhando em Maikope, durante o
período da ceifa; outras, vagando sem rumo pelas margens do Don, com um grupo de
companheiros de sorte, homens à espreita de um modesto salário.
Tatiana caminha com eles, livre como o vento, solitária como a erva da estepe.
Ninguém a quer, ninguém a defende. Mantém uma luta, contínua e interminável,
frente a frente, corpo a corpo, com o destino, que a atormenta, implacavelmente. Para
as mulheres do tipo celibatário, como Tatiana e Matilde, não há ternura no mundo.
Para elas a vida só reserva asperezas.

Tatiana tampouco se dobra aos castigos da vida. Sua alma traz profundamente
escondido o sonho de um futuro, de transparente inocência; Tatiana caminha pelo
mundo em busca de sorte. Mas esta, como se quisesse dela zombar, toma-se cada vez
mais distante. E a doce e sonhadora Tatiana de Riasan, ávida de vida, ardentemente
esperada, somente recolhe as sobras das poucas alegrias que a terra lhe proporciona.
Um caminhante comove sua alma, fá-la chorar, anima-a e ela se entrega,
singelamente, com toda a sinceridade, por necessidade, como somente se dão as
mulheres solitárias e celibatárias, operárias nômades, a fim de arrancar da vida
pequenos prazeres. Entretanto Tatiana nega-se a unir sua vida ao estranho. “Isto não é
para mim; não o quero. Talvez, se fosses um camponês; mas, assim, não tem sentido.
Não se mede a vida por uma hora, mas, sim, por anos.”

E Tatiana, com um sorriso de adeus, parte em busca de seus sonhos, parte com seus
pensamentos, como se estivesse só no mundo e como se lhe estivesse destinada,
unicamente, a tarefa de recriá-lo completamente. Assim, vivem Matilde e Tatiana,
traçando com o peito e as mãos um novo caminho para o futuro. Seguindo-as, de
perto, vêm as mulheres do novo tipo, pertencentes a outras classes sociais, desejosas
de encontrar a trilha aberta. Os espinhos as prendem e as ferem; seus pés, não
acostumados a caminhar sobre pontas afiadas, cobrem-se de chagas e suas pegadas
ficam marcadas por filetes rubros de sangue. Mas, não é mais possível deter-se. Uma
multidão compacta, cada vez mais densa, avança. Débeis desgraçadas! Imediatamente
são lançadas à margem da estrada pelas fileiras comprimidas que apressam sua
marcha. As companheiras, que se aventuraram a lançar um olhar ao castelo cinzento
da escravidão do passado, continuam sua marcha com a cabeça baixa, na ignorância
do novo caminho.

Na densa multidão das novas mulheres podemos encontrar heroínas de todas as


nacionalidades e classes sociais. Destaca-se, na primeira fila, a fina silhueta da atriz
Magda (9) , jovem orgulhosa de sua arte, de suas lutas e de seu audaz lema: “eu sou eu
e tudo que sou devo-o a meu esforço”. Magda soube vencer as tradições limitadas de
um lar, de uma pequena província. Atreveu-se a lançar um desafio à moral burguesa.
Mantém seu ar de orgulho, ela que pecou na casa patema, na sua terra. Magda tem
plena consciência do que vale sua individualidade e defende inflexivelmente seu
direito de ser o que é. “Elevar-se acima do pecado vale muito mais do que a pureza
que aqui se pratica”.
Entra no novo caminho a audaz, inteligente e resoluta Olga, arrancada do seio de uma
família judia de costumes tradicionais. Após vencer uma série de obstáculos, lança -se
no turbilhão de uma grande cidade europeia. Olga participa de um círculo intelectual
seleto, a nata da sociedade.

A vida afigura-se-lhe cheia dos atrativos de um centro cultural capitalista. Na sua luta
pela subsistência, na luta contra a ausência de trabalho para os intelectuais, na luta
pela afirmação de si mesma como individualidade humana e como mulher, Olga vive
como vivem milhares de moças numa grande cidade civilizada, uma vida de solidão e
de trabalho. Não teme a vida e audaciosamente pede ao destino sua quota de sorte
pessoal. Olga sente que o homem que ama está ao mesmo tempo muito perto e muito
longe dela. Seus destinos se cruzam apenas em um momento. Uma vida em comum,
porém, não corresponde a seus interesses particulares.

O amor é somente uma parte de sua intensa e complexa vida. A paixão esmorece.
Extingue-se. O amor também se esvai. Separam-se. Não temos diante de nós, uma vez
mais, uma frágil jovem abandonada, mas sim toda uma individualidade que conheceu
o prazer, na qual o vinho estava misturado com veneno. Olga é mais forte que o
homem por ela escolhido. Nos seus momentos de tristeza, inclusive naquelas de seus
sofrimentos amorosos, ele vai em busca de Olga, que soube distinguir corno sua única
amiga fiel. Na complicada vida de Olga, rica em acontecimentos e lutas, o amor não
constitui mais que um episódio.

Entre a multidão de novas mulheres, ergue sua formosa cabeça, adiantando-se, com
segurança, Lansovelo (10), a médica, heroína típica da mulher celibatária. Toda sua
vida está dedicada à ciência e à prática da medicina. As clínicas representam, ao
mesmo tempo, seu templo e seu lar. Conquistou, por parte de seus colegas de
trabalho, a estima e o reconhecimento de seu valor. Soube recusar, com doçura,
porém com obstinação, suas propostas matrimoniais. Lansovelo necessita de liberdade
e solidão para dedicar-se completamente ao trabalho, sem o que não conseguiria viver
nem respirar. Diante dessa figura de mulher emancipada, vestida sobriamente, cuja
vida está dividida em horas de trabalho, que luta pelo exercício de sua profissão e
obtém triunfos de amor próprio ao emitir um diagnóstico exato, o leitor se sente
surpreendido por uma corrente de frieza. Repentinamente, porém, como cena
observada casualmente, a doutora nos revela um aspecto completamente distinto.
Quando chegam as férias, Lansovelo descansa no campo com seu amigo, médico como
ela. Nesse lugar, revela-se-nos a mulher: reina agora seu eu feminino. Seus vestidos
são vaporosos e claros, seu riso alegre. Não esconde seus amores. Em Paris não vive
com seu amante, porque lhes é mais conveniente, a ambos, e a seu trabalho
profissional.
Deixando para trás a doutora, surge Teresa (11), toda desejo e paixão. Teresa é uma
socialista austríaca, uma valente propagandista. Esteve presa, trabalha com toda sua
alma pelo partido. Mas, quando dela se apodera a paixão, Teresa não renuncia a este
esplendor que alegra a vida, não se envolve hipocritamente no manto desbotado da
virtude feminina. Muito pelo contrário. Teresa estende a mão ao eleito e parte com ele
por várias semanas para sorver até a última gota do prazer e convencer-se de sua
profundidade. Quando Teresa, porém, percebe sua vulgaridade, despreza-o sem
remorsos e sem amargura. Pobre Teresa! Para ela, assim como para a maioria de seus
companheiros, o amor não pode ser mais que uma etapa, um ato momentâneo no
caminho da vida. O partido, seus ideais, a propaganda e o trabalho são o fim de sua
existência, todo o seu conteúdo.

Agnes Petrovna, outra mulher, uma das primeiras heroínas russas do tipo celibatário,
elege, após amadurecida reflexão, o novo caminho para sua vida. Agnes é escritora e
secretária de redação; é antes de tudo, uma mulher que ama o trabalho. Diante de sua
mesa de trabalho, quando em sua mente se forma um pensamento, uma ideia, nada
nem ninguém existe para ela. “Não poderia repartir esses momentos com ninguém -
diz. - Por isso necessito de minha liberdade. Porém, quando Agnes retorna a sua casa,
deixando a redação, trocando seu simples vestido de trabalho por um cômodo roupão,
encanta-se ao se sentir somente mulher e experimentar a influência de seus atrativos
sobre o homem. Não busca no amor o conteúdo e o fim da vida, e sim, somente, o que
é comum nos homens: o repouso, a poesia, a luz.

Agnes não reconhece, nem ao homem amado o menor direito sobre ela, sobre o seu
eu”.“Pertencer a um homem como uma coisa, entregar-lhe a vontade e o coração,
consagrar toda a inteligência e todos os esforços para fazer sua felicidade,
conscientemente, isto talvez possa fazer uma mulher feliz. Mas, por que dedicar todos
esses esforços a um homem somente? Se é preciso esquecer-se de si mesma, não o
faria por um homem, não lhe proporcionaria, a ele unicamente, uma boa comida e
uma vida tranquila. Fá-lo-ia, também, por muitos outros desgraçados... “E, quando
Miatlev tenta acabar com a liberdade de Agnes, quando exige que escolha entre seu
amor e o trabalho, Agnes considera finda sua união. Separam-se os caminhos.
Segue Agnes, sem pressa, com certa vacilação e dúvida, sem tanto amadurecimento,
outra figura de mulher; Vera Nikodinovna (12) pertence à antiga geração com ligeiros
traços de modernismo. Vera é a mulher com um passado que deixou fortes vestígios
sombrios em sua alma. Não é precisamente a necessidade fisiológica que lançou a fria
e calculada Vera nos braços de um homem. “Ninguém consegue imaginar quão longe
estava meu ato da sexualidade, quão longe estava de deixar-me levar”, declara Vera à
sua jovem amiga. Algo distinto a impulsionou. Sede de maternidade? Talvez, somente
o desejo de encontrar uma alma semelhante à sua, um ser capaz de compreendê-la;
perigoso anzol em que se deixam prender até as mulhe res do tipo celibatário, nas
quais predomina o racional. Depois daquilo Vera vê-se assediada de homens que a
desejam, mas evita aproximar-se deles, ainda que mantenha suas esperanças de um
hábito adquirido das gerações passadas. A sedução é a especialidade de Vera.
Entretanto, liberta-se do passado ao manter antes de tudo sua liberdade. Afastada da
vaidade dos salões, Vera é a mulher-individualidade de pensamento e trabalho.
Com seu sorriso triste, segue também a figura da tuberculosa Mary (13).

Continuando, a pequena Talia (14), intrépida lutadora, que corre em busca de


trabalho, arrastando seus desgastados sapatos. Logo após, ouve-se o riso mesquinho
da inconstante Annette (15), pobre de espírito, espécie de paródia do tipo de mulher
celibatária. A heroína de Sangar, Anna (16) avança com ingenuidade brutal pela nova
senda. De mãos dadas, caminham Mira, Lydia e Nolly (17). Cada uma delas é
interessante por seu algo “sagrado” que não é somente qualidade propriamente
feminina. Até a pequena Lydia, insignificante na aparência, possui vaidade e ambições.
Quando se apresenta o amor, quando sua natureza de mulher faz suas exigências,
todas essas moças superam o tabu proibido às jovens solteiras, sem o medo
sentimental de si mesmas que sentiam as mulheres do passado. Arrastadas pelos
múltiplos interesses da vida, o amor para essas mulheres não é mais do que uma
melodia iniciadora.

Embevecendo nosso olhar com a finura de sua alma, tingida de tons suaves, a atriz de
variedades, Renée (18), anda com cuidado para não pisar pedras pontiagudas. Com as
ilusões perdidas e o coração ferido, deixa seu marido e lança um desafio ao mundo
que até então lhe pertencia. Toda a sua vida está agora na arte, na dança, nas
pantomimas que sabe criar. Uma vida errante, fatigante, consagrada ao trabalho. Não
vai em busca de aventuras. Evita-as, porque seu coração já sofreu demasiado. A
liberdade, a independência e a solidão constituem o conteúdo de todos os seus
desejos individuais. Entretanto, quando Renée se senta junto à chaminé de seu la r
solitário, depois de uma jornada de duro trabalho, experimenta a sensação de que a
melancolia e a solidão, com seus olhos frios, penetraram na sua casa e se instalaram
atrás da banqueta em que estava sentada.

“Estou acostumada a viver só - anota em seu diário. - Hoje, porém, me sinto tão
solitária! Não sou livre, independente?... Sim. Mas terrivelmente só.” Nesta queixa há
algo da mulher do passado, acostumada a escutar ao seu redor vozes conhecidas e
amadas, a se sentir rodeada pela ternura que lhe é necessária. Assim, quando Renée
encontra em seu caminho um amor obstinado, deixa-se prender, mergulhada no vazio
cada vez mais profundo em que vive. Mas a paixão não a cega, não obscurece seu
cérebro, acostumado à reflexão.

“Os únicos atacados são meus sentidos”, declara com um arrependimento repleto de
melancolia. “Não sinto nenhum prazer, a não ser físico.” Renée volta a ser o que era. O
novo amor não lhe deu o que sua alma buscava. Nos braços do amado se sente tão só
quanto antes. A vagabunda foge, foge de seu amor, foge porque sua paixão está muito
longe, não tem a menor relação com as exigências delicadas do amor.
A carta de despedida de Renée ao homem que abandona é um documento revelador
da mulher contemporânea, das novas exigências que este tipo de mulher faz à vida.

Atrás de Renée, segue a heroína de Bennet (19), uma escritora. Uma ânsia de êxtase,
de adoração leva-a aos braços de um grande músico. Esta paixão, entretanto, só serve
para que se encontre a si mesma, para afirmar sua personalidade, para revelar seu
talento de escritora e enfrentar a vida com mais calma, com maior reflexão, de modo
mais consciente. Algum tempo depois, quando um novo amor a cerca, não foge
assustada, como faziam as heroínas das velhas novelas inglesas, por se considerarem
indignas, perdidas: Não, ao contrário, vai sorridente ao seu encontro.
Cheia de dor, adianta-se a inquieta, apaixonada Maia (20), a de espírito irônico. Todos
os acontecimentos de sua vida não são mais do que etapas na busca de si mesma, no
desenvolvimento de sua personalidade. A luta com sua família para conquistar a
independência; a ruptura com seu primeiro marido; um curto idílio com um herói
oriental; um segundo matrimônio, cheio de complicações psicológicas; a luta ardente
na alma de Maia entre a mulher do passado e a nova mulher que vive dentro de seu
ser; outra vez a ruptura e de novo a busca, até encontrar o homem que sabe respeitar
sua voz interior, símbolo da personalidade, homem que reconhece seu valor e que
pode criar a união amorosa, interiormente livre com a qual Maia sonhou durante toda
a sua vida.

A vida de Maia está cheia de complicações psicológicas e de diversos acontecimentos.


O que prontamente arrasava a mulher do passado, a traição do homem amado, a
separação de seus dois maridos, serve a Maia como uma “lição”, através da qual pode
melhor compreender e examinar a si mesma. De modo inconsciente, Maia segue o
conselho de Goethe: “Começar, todos os dias a vida, como se de novo realmente, a
começasse...” “Minha forte e inquebrantável vontade, que nada conseguiu romper foi
o que me salvou. Minha vontade de conservação inconsciente, como se fosse um anjo
da guarda, conduziu-me pela vida”, diz Maia.

A nova mulher, independente, interiormente livre, tem que lutar continuamente com
uma tendência atávica, que a põe em perigo de converter-se em sombra do marido,
em seu eco. São bem conhecidos os esforços ingênuos e conscientes da mulher para
adaptar-se, inclusive interiormente, ao gosto do homem amado; para corrigir-se,
segundo o ideal do seu eleito. Como se a mulher, por si mesma, não tivesse nenhum
valor, como se sua personalidade só se medisse pela atitude dos homens que a ela se
dirigiam. É este traço feminino, atávico que fez uma personalidade tão magnífica,
luminosa e sedutora, como a de Jorge Sand, tentar, algumas vezes, abandonar a terra,
em companhia de Musset, e, outras, a renunciar ao mundo da criação artística. Mas, a
sua forte individualidade de Jorge Sand era o que limitava estas experiências.

Chegava o momento em que Jorge Sand sentia esvair-se a sua personalidade e que, em
consequência de sua adaptação, Aurora Dudevant, seu eu feminino, acabaria por
devorar, por apagar o audaz, o rebelde, o ardente sonhador, o poeta Jorge Sand.
Refazia-se completa, repentinamente, e rompia implacável a antiga união. Quando sua
alma havia amadurecido esta decisão, não havia força humana, nem sequer sua
própria paixão, capaz de modificá-la. Quando Aurora Dudevant, num sombrio outono,
deixou sua morada para travar o último e breve encontro com seu amante, decidi da a
romper com ele, não sentimos medo por Jorge Sand, pois sabemos que o encontro não
poderá fazê-la recuar, porque a ela se evidencia, como último tributo, a agonizante
paixão que Jorge Sand lança à soluçante Aurora. A etapa foi concluída. Um ponto
termina o episódio.

A Maia de Meisel-Hess é, naturalmente, muito menor e mais frágil do que Jorge Sand.
Mas nela também descobre-se o desejo de adaptar-se aos gostos do homem amado, e
a tendência atávica de renunciar a si mesma, de desaparecer, de dissolver-se no amor,
que choca com a personalidade humana que se desenvolveu e que nela se apresenta
de modo específico. No momento preciso, Maia também sabe como refazer-se e partir
para salvar sua voz.

Mesmo para a mulher de nossos dias é muito difícil libertar-se da tendência, formada
no transcurso de séculos, de assimilação ao homem que o destino lhe deu por amo e
senhor. Quão difícil é convencer-se de que para a mulher é também um crime
renunciar a si mesma, ainda que em favor do homem amado, em nome do amor!
Ao lado de Maia, segue a ambiciosa Outa, a calculista. Outa é atriz, mas consagra toda
a sua vida a valorizar e enfeitar seu eu, que para ela é o melhor do mundo. Parece que
somente ama a arte, porque é um meio de desenvolver e revelar, com maior grandeza
e variedade, sua forte personalidade. Há em Quta, como reação natural ante a secular
humilhação da mulher, um protesto contra sua renúncia ao direito de ser uma
personalidade com valor próprio.

Uma forte e apaixonada ambição, uma razão calculista, um imenso eg oísmo e um


excepcional talento de atriz fazem-na relegar a mulher, Outa, a um lugar obscuro.
Passa indiferentemente ao lado da felicidade, ao lado da infinita devoção de Klodt.
Aprecia este amor, porque lhe satisfaz contemplar o reflexo, como se se olhasse no
espelho. Quando Klodt, impulsionado pelo desespero, atormentado por sua
indiferença, a trai, Outa chora. Porém, não é a mulher que sente a ofensa, mas sim a
artista, exposta aos olhares de todos, a que sofre, porque seu admirador se atreveu a
deixá-la por uma rival. E por orgulho ferido e não por amor humilhado que Outa
soluça. Esta mulher continua até ao fim, fiel a si mesma. Pela vida, acompanham-na a
alma fria e a admiração pelo seu eu. Precisamente porque carece do fogo sagrado que
alimenta os grandes artistas, é derrotada por uma mulherzinha insignificante e
apaixonada; a fina e inteligente Outa, “grande artista na compreensão da arte, mas à
qual falta a paixão criadora”.

Entre a multidão de novas mulheres, passa a artista Tânia, para quem a vida reserva
todas as suas carícias. Tânia, embora casada, pertence à categoria das mulheres
celibatárias e, assim como Maia, casou-se três vezes. Este aspecto de sua vida
corresponde completamente à sua fisiologia. Ainda que Tânia viva sob o mesmo teto
que seu marido, continua sendo, como antes de casar-se, uma individualidade livre e
independente. Tânia franze as sobrancelhas quando ele a apresenta a seus amigos
como sua mulher, sem designá-la por seu nome de solteira.
Marido e mulher vivem seu próprio mundo. Ela, consagrada à arte, e ele, dedicado à
investigação científica. Constituem um casal de bons companheiros, unidos por laços
espirituais sólidos, que não impedem sua mútua liberdade.
A clara atmosfera em que vivem se rompe pela cega paixão física que Tânia sente pelo
formoso e másculo Stark. Tânia não ama em Stark o eterno masculino que a arrastou
para ele desde seu primeiro encontro. Tânia não tem nenhum interesse pela vida
espiritual do homem amado, assim como para os homens, mesmo os mais modernos,
não tem importância a alma da mulher apaixonadamente amada. Quando Ana, Maia,
ou Lisa lançam ao homem amado a reprovação habitual: “Eu quero tua alma, que
nunca me entregas..., ele se sente desconcertado.

A atitude de Tânia, com respeito a Stark, tem, portanto, algo de masculino. Sentimos
que a personalidade de Tânia é mais forte, está mais desenvolvida que a de seu
amado. Tânia é demasiado humana, pouco fêmea, para que uma simples paixão possa
satisfazê-la. Reconhece que a paixão que sente por Stark empobrece e seca sua alma,
ao invés de enriquecê-la. Mulheres como Tânia não sofrem tanto com o pensamento
de uma infidelidade feita ao marido, como diante da possibilidade de conciliar a paixão
com o trabalho paciente e metódico que constitui a sua vida. A paixão devora suas
energias e rouba o tempo que deve consagrar ao trabalho. A paixão entrava seu livre
trabalho criador. Tânia sente que começa a perder a si mesma e a perder o que mais
aprecia em sua vida. Parte. Volta para o lado do marido, não impulsionada pelo
sentimento do dever, mas, para salvar a sua personalidade. (21).

Ao lado de Stark acabará por perder a si mesma. Abandona-o, levando em seu ventre
um filho, quando a paixão ainda não estava totalmente extinta. Que heroína de
romance dos bons tempos passados tivera coragem para agir como Tânia?
Tânia tem que enfrentar o mesmo dilema que a Ellida de Ibsen, uma das primeiras
mulheres do novo tipo psicológico. Quando o homem do mar exige de Ellida que se vá
com ele, ela fica ao lado de seu marido que lhe havia dado toda liberdade para decidir-
se. Ellida permanece consciente de que assim poderá conservar sua liberdade interior,
que perderia ao lado do homem do mar. Dá-se conta de que está ameaçada pela mais
terrível escravidão: a escravidão da paixão. Compreende a superioridade de quem tem
preso entre as mãos seu coração de mulher Josefa (22), a de alma firme, forte de
espírito, abre o caminho da vida modestamente. Avança por entre as dificuldades que
obstruem todas as margens do caminho. Rasga a estrada que leva à independência
econômica das mulheres da classe burguesa. E prepara-se para as profissões liberais.

Indecisa, vai tateando o novo caminho, a fina e prudente Christa Rouland (23),
deliciosa figura espiritual de mulher que desperta, que interroga o mundo com
grandes olhos extraordinariamente abertos, que busca a nova verdade; figura de
mulher que pela primeira vez se dá conta e toma consciência de si mesma.
“Eu sou eu e tu és tu, e somente no amor podemos fundir-nos,” é seu lema.
A heroína de Yuchkevitch, a estranha e oprimida Elena (24), passa timidamente à beira
do caminho com os olhos fechados para a nova verdade, enquanto procura ocultar a
tragédia de sua alma, sua grande tristeza humana, incompreensível para ela mes ma.
Flena não é celibatária. Não é uma nova mulher.

Os traços do velho e do novo tipo nela se fundem em complicado nó. Um pujante


eterno feminino, equilibrado pelo espírito, por um eu humano, debate-se em sérios
problemas. Sua doce alma de mulher carinhosa, amante, está cheia de contradições, e
até de mentiras de escrava, ainda que seu espírito rebelde, investigador, em um
contínuo interrogar-se, faça de Elena uma figura de novo tipo. Yuchkevitch soube
pintar sua heroína com tons suaves. Expressou sua imagem com tanto cuidado e
carinho como se temesse quebrar com uma palavra esta delicada alma de mulher, que
se perde na tragédia de seu espírito. Entre a multidão de mulheres novas, destaca-se
Renata Fuchs (25), alma rebelde que soube conservar a pureza de sua alma em meio à
vergonha e à degradação. Na fisionomia de Renata denota-se uma calma majestosa.
Em seus braços de moça solteira descansa uma criança que era um novo homem.

Ao lado de Renata caminha a heroína de Grent Aliena (26), que cheia de orgulho leva
nas mãos sua filha ilegítima, fruto de uma união que explicitamente recusou a forma
legal. Com expressão atarefada, apressa seus passos em direção ao laboratório,
Maia (27), do claro sorriso, que encontrou harmonia na vida. Com a cabeça erguida, a
prostituta Myiada (28)sustenta sua missão sagrada em meio à lama da vida que a
rodeia. A socialista revolucionária Anna Siemenovna (29) sabe sobrepujar sua própria
paixão, escondida sob a máscara de coquete. A estudante inglesa Fanny (30), que
zomba dos preconceitos do mundo, desfila também com passos ligeiros. A imagem da
estudante do longínquo norte Anna Mahr (31) também nos acena ao passar. As
heroínas de Bjornson, de Jonas Lie, as filhas do comandante Jakobson, de Loffler,
também querem entrar no novo caminho. Repleta de inquietação, avança indecisa
Jenny, como se ainda escutas;e em sua alma a voz da mulher do passado. Como Tânia
de Nadgrodskaia, Jenny (32) abandona o pai do filho que espera, temendo que a
maternidade estreite mais fortemente os laços que já começam a aprisioná -la.
Audaciosamente continua, mas a voz mulher do velho tipo lhe Faz recordar o passado,
despertando nela sentimentos e concepções já esquecidos. Jeriny detém sua marcha ,
olha para trás e desfalece...

A seu lado, porém, passam figuras sempre novas de mulheres que despertam, que se
rebelam, que buscam o novo caminho. A doce e encantadora figura de Françoise
Houdonn (33), a que sabe sentir um amor-amizade por Christophe e uma paixão por
outro; a de temperamento ardente, ambição insaciável de artista, vontade de ferro e
alma sensível e delicada. A seu lado o tipo cheio de vida e tão real da trabalhadora
Cecília (34), a de forças equilibradas que ignora que em sua tranqüila conquista, está
contida toda a nova verdade. A sufragista Júlia France (35) a emigrante russa Marie
Antine (36), a moça judia que goza dos direitos da cidadania norte-americana e luta
para conquistar uma posição segura; igualmente todas as heroínas de Rikarda
Huch (37), Gabriela Reuther, Sarah Grande e até as heroínas do mundano Marcel
Prevost. (38)
São tantas as heroínas do novo tipo que é completamente impossível citá-las neste
breve estudo. Precisamente pelo fato de que sejam tantas as mulheres que pertencem
a este novo tipo, que cresce todos os dias com outras forças, ainda que algumas dessas
figuras apareçam sob forma banal e em literatura dos boletins, é sinal de que a vida
cria e forma sem descanso o novo tipo de mulher.

A nova mulher traz consigo algo que nos é completamente estranho, que às vezes
chega inclusive a repugnar-nos por sua originalidade. Contemplamos e buscamos
nesse novo tipo de mulher os traços queridos e conhecidos de nossas mães e avós.
Diante de nós, ergue-se, cobrindo totalmente o passado, um mundo de emoções, de
sentimentos, de necessidades completamente distintas. Onde encontrar a
encantadora submissão feminina, a doçura de nossas mulheres do passado? Onde
estará aquele seu talento especial para adaptar-se ao matrimônio, para se submeter
até a um homem insignificante, para ceder-lhe sempre o primeiro posto na vida?

Temos diante de nós a mulher-individualidade, uma personalidade que tem valor


próprio, com um mundo interior todo seu, personalidade que se afirma, em suma, a
mulher que arranca as enferrujadas algemas que aprisionam o sexo.
Quais são, pois, os traços característicos, os sentimentos, as qualidades psicológicas da
mulher que nos permitem classificá-la, de acordo com sua aparência interna, como
fazendo parte da classe de mulheres celibatárias? A direitos conquistados, a mulher
tem que realizar um trabalho de autoeducação, muito mais profundo que o do
homem. Nova característica típica da mulher do passado, considerada seu maior
ornamento e defeito, era o predomínio do sentimento. A realidade contemporânea,
que arrastou a mulher à ativa luta pela existência, exige, antes de tudo, a ciênci a de
saber vencer seus sentimentos e os numerosos obstáculos de ordem social que se
interpõem no seu caminho, assim como a capacidade de fortalecer seu espírito pouco
resistente, seu espírito que cede com demasiada facilidade, por meio da vontade.

Para conservar seus novos romance de Ilse Frapan, Trabalho, recaem sobre Josefa
sombrios pensamentos, graves cuidados. Josefa gostaria de poder soluçar, chorar por
si mesma, entregar-se a sua dor como o faziam as mulheres do passado. Mas, o
trabalho na clínica, seu trabalho, organizado, dividido em horas, não admite espera. O
trabalho da clínica não é um trabalho que se possa deixar para outro dia, como os
afazeres de casa ou o remendar a roupa das crianças. Josefa tem que ter força de
vontade sobre si mesma, coisa a que o homem está acostumado, esforço
completamente desconhecido das mulheres dos tempos passados; tem que fazer um
esforço para esconder sua vida privada atrás de um muro e apresentar-se no trabalho
sempre à hora certa.

Matilde assiste à morte de seu filho, que constitui toda alegria, era tudo o que havia
restado de seu ardente amor. Porém, seu ofício amarra-a com todas as suas forças à
oficina e seus dedos práticos trabalham, como sempre, sem romper o fio.
A realidade contemporânea exige de uma maneira implacável que toda mulher que se
vê obrigada a trabalhar num ofício ou profissão em qualquer trabalho que a leve a do
lar, possua autodisciplina e força de vontade para saber vencer seus sentimentos,
qualidade que somente poderíamos encontrar, excepcionalmente, nas mulheres do
tipo antigo.

O ciúmes, a desconfiança, a absurda “vingança feminina” eram as características


próprias da mulher do tipo antigo. Os ciúmes constituem o sentimento que origina
todas as tragédias da alma feminina. É certo que os ciúmes constituem, também, uma
estratégia para o homem porém, não devemos esquecer que Shakespeare não
escolheu para seu Otelo um inglês disciplinado, educado, nem um veneziano de
inteligência refinada, mas sim um mouro dominado pelas paixões.
Precisamente é a dependência da mulher com relação a seus sentimentos o que a
levou a expressar seu ódio por uma rival de maneira verdadeiramente monstruosa,
fazendo-a trazer à superfície suas qualidades mais mesquinhas de “escrava”. Se a
heroína não desfigurava sua rival com ácido, não deixava, entretanto, de lançar sobre
o veneno da calúnia.

As mulheres do novo tipo não reivindicam a propriedade de seu amor. Ao exigir o


respeito à sua própria liberdade de sofrimento, têm que aprender a admitir esta
mesma liberdade nos demais. E realmente interessante observar a atitude das
heroínas de uma série de romances contemporâneos no que se refere a uma rival. As
mulheres do novo tipo não empregam ácido nem a calúnia. Ao invés disso , educado
demonstram delicadeza e compreensão para com a outra mulher, para com a rival. No
romance Voz, por exemplo, a heroína Maia e a primeira mulher do homem que ama
não só não se odeiam como chegam a encontrar uma linguagem comum e descobrem
que em muitos pontos se encontram mais intimamente unidas do que com o homem
que as duas amam. Maia chora quando percebe como ele feriu o coração de sua rival.
Maia se sente pessoalmente humilhada quando conhece os sofrimentos de sua rival,
que lhe conta que o homem amado a considerava uma coisa que lhe pertencia
legalmente, e que não tinha para com ela a menor ternura confortadora. Maia sente-
se ofendida pelo menosprezo à mulher, porque sabe sentir além dos limites
propriamente individuais. Em Maia se manifesta um sentimento completamente
desconhecido da mulher do passado: o sentimento de coletividade, de
companheirismo.

Igualmente característica é a atitude que Maia adota diante da absurda e inútil traição
de seu segundo marido. Maia não desfalece, nem arma um escândalo. Refugia -se ao
lado das camas dos filhos da primeira mulher de seu marido. As cabecinhas
adormecidas têm o poder de dissipar sua tristeza. Regressa depois ao seu lar solitário.
Maia sente frio. Acende a lareira, se enrola em um xale e se impõe a leitura de um livro
interessante. Assim, conseguirá libertar-se, o mais rapidamente possível, de si mesma,
de seus próprios pensamentos; assim recuperará o equilíbrio necessário.
Irina, a heroína do romance de Kredo, Na Névoa da Vida, não somente aceita a antiga
união de Victor, como exige dele para com sua rival, uma atitude delicada. O contrário
sucede quando Victor, ao tomar conhecimento do passado de Irina, lhe disse com ares
de macho ofendido: “que número sou eu? Quero saber... Foram muitos?” Victor é um
homem de vanguarda, um escritor, porém dentro dele, como dentro dos outros, a
besta é mais forte que na insignificante Irina, que só é interessante por estender seus
braços para a nova verdade da vida.

No novo tipo de nova mulher, a ciumenta é vencida cada vez com maior frequência
pela mulher-individualidade. Outro traço característico da mulher contemporânea
consiste nas exigências, cada vez maiores, que faz ao homem. A mulher do passado
estava acostumada por seu amo e senhor, durante séculos e séculos, a esquecer-se de
si mesma, a descuidar completamente seu pequeno mundo espiritual. A mulher do
passado não dava nenhum valor a sua própria personalidade, acostumada aos sorrisos
indulgentes que os homens tinham para com suas debilidades e sofrimentos de
mulher. Por isto resignava-se, sem protestar, a que seu companheiro não prestasse a
menor atenção ao que pensava e sentia. Ainda, em nossos tempos, admiramo-nos de
que somente alguns homens extraordinários saibam compreender a mulher, ainda que
nos momentos de maior intimidade. A causa de quase todas as tragédias familiares, de
todas as épocas, tem sido a atitude superficial, de abandono, do homem diante do eu
feminino.
Com sua experiência, os Don Juan sabiam possuir o corpo da mulher; mas
apoderavam-se também de sua alma, para o que representavam hipocritamente a
comédia da compreensão; deixavam transparecer um interesse cheio de amor pelo eu
insignificante da mulher, ao qual seu marido, embora mais sincero, não prestava a
menor atenção. Como os Don Juan, porém, surgiam e desapareciam e o senhor
legítimo permanecia, a mulher acabava reduzindo suas necessidades e exigências,
obrigada durante séculos e séculos a adaptar-se à vida, até chegar a converter sua
concepção de felicidade à satisfação das coisas exteriores e concretas. Ele
presenteava-a com anéis e brincos; levava-lhe flores e bombons. Não havia
necessidade de outra prova de seu amor. Se se portava com relação a ela de modo
grosseiro e despótico, se lhe impunha uma série de proibições e exigências, era seu
direito, direito de dono do seu coração.

A mulher contemporânea torna-se exigente. Deseja e exige respeito à sua


personalidade, à sua alma; pretende que se leve em consideração seu eu. Não admite
o despotismo. Quando o amante de Maia a proíbe de cantar em concertos e ela não o
obedece, ele decide, para castiga-la, não lhe escrever durante duas semanas. Este ato
exterminou em Maia todo sentimento para com seu amante. “Como pode castigá -la,
logo a ela, que lhe entregou livremente seu coração?”

Na luta da mulher moderna para proteger sua liberdade interior, há algo que lembra as
mulheres das antigas lendas, as mulheres dos tempos heroicos. “Cumpriu-se tua
vontade, porém, já não sou tua mulher”, afirma Rosamunda a seu real esposo quando
este a obriga a beber no crânio de seu pai, que assassinara. Na boca de Rosamun da
estas palavras não são uma simples ameaça. Rosamunda mata seu marido, a quem
havia amado apaixonadamente até aquele momento.

A mulher contemporânea perdoa muitas coisas que para a mulher do passado eram
mais amargas de perdoar. Perdoa a incapacidade do homem para proporcionar-lhe um
bem-estar material; perdoa uma falta de atenção de ordem exterior para com ela;
inclusive pode perdoar uma infidelidade; em troca, porém, não esquecerá nunca, nem
aceitará uma falta de atenção para com seu eu espiritual, para com sua alma. Se seu
amigo não é capaz de compreendê-la, suas relações perdem, para a mulher moderna,
a metade do valor.

Quando Christa Rouland pergunta a seu amante o que pensa sobre as mulheres, e este
lhe responde primeiro com gracejos ligeiros e logo depois de forma corriqueira, Christa
experimenta um alheamento involuntário. Não pode compreender como o homem
que soube conquistar seu coração, devido ao interesse que demonstrou por sua
personalidade, por seu eu espiritual, pode mostrar-se tão insensível e não
compreender a enorme importância que para ela teria ouvi-lo expressar-se de outra
forma. O que Christa não pode perdoar a Frank, e o mesmo sucede a todas as
mulheres do novo tipo, é a transformação que sofre o homem depois da posse. O
homem temeroso de perder a mulher amada precisa nela extinguir, ainda que seja
precisamente na mulher querida pelo espírito audaz, pela independência de seu
pensamento, o fogo sagrado da investigação. Esforça-se, cumulando-a de carinhos, por
convertê-la apenas em objeto de seu prazer, de seu gozo.

Christa Rouland observa, cheia de assombro, como o mesmo Frank, que queria levá -la
à esfera de seus próprios interesses espirituais, que sonhava sempre com uma
atividade realizada em comum, começa a se separar, a viver em um mundo intelectual
exclusivamente seu. Já não se trata de um trabalho realizado em colaboração. Nos
momentos em que Christa toma parte, com grande interesse, no trabalho de seu
pensamento, Frank vê nela somente a mulher, tanto mais sedutora por ser fina e
espiritual. Christa sente que seu espírito e sua capacidade para elevar-se com ele às
altas regiões do pensamento não fazem mais do que aumentar seu desejo sexual para
com ela. A nova mulher perdoará a ofensa feita à fêmea, mas ser-lhe-áimpossível
esquecer uma simples falta de atenção para com sua personalidade. O mesmo sucede
com a exigência da mulher moderna de que o homem eleito tenha uma formação
espiritual, questão de que nos fala também Vera Nikodinovna. “Na mulher - pensa
Vera - a inteligência, ainda que seja da melhor qualidade, não desempenha mais do
que um papel secundário. O essencial na mulher é a base moral. Precisamente o
estudo e as leituras desenvolvem esta base moral, a tornam mais refinada e aguda.
Nos homens esta base moral, ao contrário, se cristaliza, e quando se desenvolve é de
forma débil. Esta é a causa de sermos desgraçadas... os homens não compreendem
quase nunca o que nos separa deles.”

A necessidade que tem a mulher de sentir-se amada, não tanto pelo eterno feminino,
e sim pelo conteúdo espiritual de seu eu, torna-se muito mais intensa, como é natural,
quanto mais consciência tem de si mesma, como individualidade. “Maldigo meu corpo
de mulher por sua culpa. Não podeis ver que há dentro de mim algo muito mais
valioso...” Isto se manifesta em todas as páginas do livro Notas de Ana, de Nadejda
Sanjar.

Este protesto, expresso de uma ou de outra forma, repetem-no as heroínas de todas


as nacionalidades. Até a alma simples da Tatiana de Gorki protesta por quererem fazer
dela simplesmente um instrumento de prazer. “Possuíram-me... Porém eu não quero,
eu não quero que seja assim, sem carinho, como os cães... Que seres tão baixos são
todos os homens!” Quanto mais viva é a personalidade da mulher, quando se sente
com maior intensidade como ser humano, mais fortemente sente, também, a ofensa
do homem que, com a mentalidade formada através dos séculos, não sabe perceber
por trás da mulher desejada uma individualidade que desperta. As exigências que, com
respeito ao homem, têm as mulheres contemporâneas, são a causa de que as heroínas
dos romances de nossa época se entregam de uma paixão a outra, deixem um amor
por outro, numa dolorosa luta para alcançar um ideal inacessível: a harmonia da
paixão e a afinidade espiritual, a conciliação entre o amor e a liberdade, a união
nascida do companheirismo e da independência recíproca.

Maia, a infatigável exploradora da sorte, exclama: “Meu mais ardente desejo é


encontrar um homem do qual jamais queira separar-me.” E aquela mulher errante
termina as relações com seu amigo, unicamente porque aspira a alcançar o
inextinguível ideal de uma união amorosa mais completa. A realidade presente engana
todas essas mulheres, ansiosas por encontrar um amor perfeito e cheio de harmonia.
Implacavelmente, têm que romper os laços do amor e partir novamente em busca da
realização de seu sonho. É que estas infatigáveis sonhadoras esquecem que o que
buscam, atualmente, com tanto afã, só poderá realizar-se em um futuro longínquo,
quando os homens modelarem de novo suas almas, quando os homens chegarem a
assimilar organicamente a ideia de que, em toda união amorosa, o primeiro lugar
corresponde ao companheirismo e à liberdade.

A mulher do passado não sabia apreciar a independência pessoal. Mas, ter-lhe-ia


servido para alguma coisa apreciá-la? Não há nada mais doloroso, nada que dê maior
sensação de impotência do que uma esposa, ou uma amante do tipo da mulher do
passado, abandonada. Quando o homem a abandonava, ou morria, a mulher não
somente perdia a sua subsistência material, mas também, seu único apoio moral. A
mulher do passado, incapaz de enfrentar a vida sozinha, tinha medo da solidão, e por
isso estava sempre disposta a renunciar, quando se lhe apresentava a menor ocasião, à
sua inútil e desagradável independência.

A mulher do novo tipo não somente não tem medo da independência, como cada dia
aprecia mais seu valor, à medida que seus interesses se sobrepõem aos limites
impostos pela família, pelo lar e pelo amor. Assim, não há nada mais espantoso para
Vera Nikodinovna que a dependência material com respeito ao homem: “Oh, se eu
viesse a depender de um homem, se eu viesse a precisar escolher um, para que fosse
meu marido e para que me mantivesse, seria minha maior desgraça...” disse a uma
amiga. Para Vera, ter um marido “proprietário e dono de sua alma” é um pensamento
tão terrível como o cárcere para o prisioneiro que chegou a conquistar a liberdade com
a fuga. “Jamais” - continua Vera - “adaptar-me-ei a essa escravidão. Já havia passado
por uma experiência semelhante...”

“Esteve casada?” “Não, não me casei nunca; mas vivi meu romance, tive uma paixão.”
A nova mulher se sente presa no matrimônio, ainda que este não seja mais do que
laços exteriores. A mentalidade do homem do passado, que ainda permanece viva, cria
laços morais que não são menos sólidos que as cadeias exteriores.
Portanto, as novas heroínas de nossa literatura fogem obstinadamente de tudo aquilo
que possa prendê-las, ainda que seja só exteriormente, ao homem amado.

A dependência material da mulher em relação ao homem, sua completa impotência


para enfrentar o mundo sem se apoiar no braço de um homem, obrigava a mulher do
passado a preocupar-se antes de tudo em concretizar suas relações com o homem, em
consolidar de alguma forma as relações amorosas. Só então sentia-se segura. A nova
mulher, obrigada a suprir por si só as necessidades materiais da vida, toma atitude
negativa ou indiferente diante de todas essas formalidades que para ela não têm
objetivo. Este novo tipo não tem nenhuma pressa em dar uma forma determinada às
suas relações amorosas.

Quando a amiga de Renée, em A Vagabunda, a interroga sobre que tipo de relações


mantém com o homem amado, se uma união legal ou simplesmente uma união
passageira, ela só pode responder com um movimento de ombros. -Nós?
Simplesmente nos amamos. -“Muito bem, mas, e no futuro?”
“Oh, Margot” - exclama Renée - “eu não penso no futuro!”

Até agora o conteúdo fundamental da vida da maioria das heroínas se reduzia aos
sentimentos do amor. Este bastava para dar colorido até a uma vida cheia de privações
de ordem material. Ao contrário, a ausência do amor tornava pobre e vazia a vida de
uma mulher. Nem as riquezas exteriores, nem as honras, nem sequer as alegrias da
maternidade podiam substituir para a mulher a perda de um amor venturoso. (39)
Se uma mulher não amava, a vida parecia-lhe tão vazia como seu coração. Esta é uma
das características que estabelecem uma diferença nítida entre a mulher do passado e
o homem. No homem, ao lado dos acontecimentos amorosos, existia sempre uma
atividade particular. Enquanto a mulher enlouquecia languescia esperando por ele, o
homem lutava contra o destino, em um mundo desconhecido e incompreensível para
a mulher.

A maioria das tragédias psicológicas das relações entre o homem e a mulher eram
causadas pelo fato de que o homem, ansiosamente esperado ao regressar à casa
depois de uma ausência, devido aos negócios ou ao trabalho, retirava os papéis da
pasta, comia depressa e apressava-se para alguma reunião ou se entregava
avidamente à leitura de um livro, ao invés de dedicar toda sua atenção à mulher que
com tanto afã o havia esperado.

A mulher não podia compreender esta atitude do homem, e seu coração explodia em
reprovações. Ela havia deixado por acabar, uma blusa, para esperá-lo; havia
abandonado a comida por fazer; havia adormecido as crianças com o único fim de ficar
sozinha a seu lado, para fazê-lo esquecer os assuntos, os trabalhos e a política. As
mulheres de todas as classes sofriam igualmente com esta incompreensão do homem
e de seus interesses; porque tanto o homem como suas atividades estavam situados,
para elas, em um mundo totalmente desconhecido, muito distante dos limites do
aconchego familiar. A falta de compreensão da psicologia do homem era igual na
mulher do professor e na mulher do funcionário, na mulher do operário e na mulher
do empregado.

A exclamação da esposa ofendida: “Vais outra vez a tua aborrecida reunião”


acompanhava e ainda acompanha da mesma forma o marido banqueiro e o proletário.
Entretanto, à medida que a mulher intervém no movimento da vida social, à medida
que se converte em mola ativa do mecanismo da vida econômica, seu horizonte se
alarga. Os muros de sua casa, que antes encerravam para ela todo o seu mundo,
derrubam-se, e a mulher se apodera, inconscientemente no início, acabando por
assimilá-los, dos interesses que pouco antes lhe eram completamente desconhecidos e
incompreensíveis.
O amor deixa de ser para a mulher o conteúdo único de sua vida, começa a ficar
relegado a um lugar secundário, como sucede com a maioria dos homens. E certo que
as mulheres do novo tipo passam alguns períodos de sua vida, nos quais o amor ou a
paixão tomam completamente sua alma, sua inteligência, seu coração e até sua
vontade; épocas em que todos os outros interesses da vida empalidecem ou ficam
relegados a um segundo plano. Nestes momentos as mulheres do novo tipo podem
viver também como as mulheres do passado.

Mas, na mulher moderna, a paixão e o amor constituem apenas uma parte de sua vida,
cujo verdadeiro conteúdo é algo mais sagrado e a cuja realização se entrega, isto é, um
ideal social, o estudo da ciência, uma vocação ou o trabalho criador. A finalidade de
sua vida é, geralmente, para a mulher moderna, algo muito mais importante, muito
mais apreciado, muito mais sagrado que todas as alegrias do amor e todos os prazeres
da paixão.

Disto nasce a atitude, completamente nova, da mulher com respeito ao trabalho,


atitude que era impossível encontrar na~ heroínas dos bons tempos passados.
A heroína de Bennet teve seu primeiro encontro amoroso com o homem. Quando este
lhe pergunta se pode ir vê-la na manhã seguinte, ela o interrompe quase com espanto,
apesar de seu amor e de sua felicidade: - “Só venha depois do almoço”. - “Depois do
almoço, por quê?” “Ele não sabia o que pensar.” “É que durante os últimos cinco anos
de minha vida eu me acostumei a ser a dona de meus próprios atos. Todos os meus
gostos, meus costumes, meu regime de vida já estão estabelecidos. Nunca recebo
ninguém antes do almoço. Amanhã, precisamente amanhã, tenho muito que fazer.”
“Será que este homem, como um conquistador, virá roubar minhas manhãs de
trabalho? Sem que me desse conta despertou em mim uma surda inquietação pela
minha liberdade e independência.”

Esta confissão nos revela uma nova característica da psicologia da mulher moder na.
Uma mulher é capaz de retardar por sua própria vontade um encontro desejado e que
a faria feliz. E faz isto unicamente porque está acostumada a escrever pela manhã,
porque lhe doem as horas perdidas, roubadas ao trabalho. Para a mulher do passado,
como seria possível que as horas entregues ao amor fossem horas perdidas? Tânia, a
heroína do romance de Nagrodsafla, durante a lua de mel com Stark, sente-se
continuamente atormentada pela consciência de sua ociosidade.
“Decididamente, reservar-me-ei o dia de hoje. Pedirei a Stark que me deixe só.” Porém
Stark indigna-se e protesta diante de sua proposta. Este era o papel reservado, no
passado, às heroínas dos romances.

“Todo um dia sem você”, diz-lhe em tom de criança caprichosa. “Não a molestarei.
Ficarei quieto.” E prossegue logo depois: “Começo a odiar sua arte. E uma rival com a
qual é difícil lutar.” Tânia cede uma vez mais, porém a consciência do trabalho
abandonado a martiriza. Não é possível para ela entregar-se inteiramente ao prazer,
encontrar calma em seus gozos amorosos, tendo seu trabalho que sofrer as
consequências. “Hoje trabalhei - escreve Târtia, feliz; trabalhei avidamente, com
alegria, quase ininterruptamente, desde as primeiras horas da manhã.” E a descrição
deste dia de trabalho está escrita de maneira clara e alegre. Sente-se ao ler estas linhas
que o ser de Tânia se libertou temporariamente da embriaguez da paixão e encontrou
de novo a si mesmo. Com a paleta na mão, Tânia, entregue ao trabalho, despertou de
seu sonho e se deu conta, de repente, de que independentemente dela e de Stark,
além de sua atmosfera de paixão que os leva até o êxtase, existe um mundo, cheio de
cores e prazeres, com suas próprias alegrias e sofrimentos. De repente se recorda de
seu amigo Weber e lamenta seu abandono.

Não se encontra uma mulher do tipo antigo, capaz de lançar um suspiro de alívio, à
maneira dos homens, ao ver-se livre da embriaguez da paixão, ao retomar o trabalho
abandonado, ao apreciar de novo o valor de sua existência independente, sua própria
individualidade. A maior tragédia para a mulher do passado era a perda ou a traição do
homem amado. Para a nova mulher, a maior desgraça é a perda de si mesma, a
renúncia ao seu próprio eu, sacrificado ao homem amado, à felicidade do amor. As
mulheres do novo tipo se sublevam, não somente contra as correntes exteriores, mas,
também contra a “escravidão do amor por si só”. Têm medo das correntes do amor
com que a psicologia deformada de nossa época aprisiona os amantes. Acostumada a
perder-se totalmente nos tormentos da paixão, a mulher, mesmo a mulher do novo
tipo, vai ao encontro do amor quase sempre com um sentimento de ansiedade,
temerosa de que a força do sentimento desperte nela as tendências atávicas, da
mulher eco do homem, temerosa de que a paixão a obrigue a renunciar a si mesma, a
abandonar seu trabalho, sua vocação e a finalidade de sua vida. Já não se trata da luta
pelo direito ao amor, mas sim, do protesto contra a escravidão moral de um
sentimento que exteriormente pode ser livre. Tudo isto significa a rebelião das
mulheres de nosso período de transição, as quais, todavia, não aprenderam a conciliar
a independência e a liberdade interior, com a força renovadora do amor.
A mulher do passado, quando se desligava do amor, submergia no mundo incolor de
sua vida cinzenta e pobre de conteúdo. A mulher do novo tipo, quando escapa do
cativeiro do amor, recobra sua liberdade com alegria e surpresa. “Terminou a
submissão do pensamento”, escreve triunfalmente a heroína de Kredo, depois de
haver-se convencido de que havia passado a embriaguez da paixão, de que já
terminaram todos os sofrimentos, agitação e temores.

Outra vez sente-se livre e seu coração não está destroçado, apesar de o homem
amado ter desaparecido repentinamente de sua alma Irina regozija-se quando “sente
que recupera as forças e a energia que diminuíam sempre que tentava penetrar nas
profundezas de uma alma estranha a sua, esforço que lhe dava uma sensação de
humilhação. Por isso o despertar de Irina é alegre.” Libertar-se do cativeiro de um
pensamento alheio, escapar à dor e ao sofrimento, voltar a si mesma, encontrar de
novo a personalidade perdida, constitui a maior felicidade para a mulher-
individualidade; sentimentos estes incompreensíveis e desconhecidos para as
mulheres do passado.

Foi necessário, para não fracassarem todos os sentimentos da mulher, nos momentos
em que o homem se afastava de sua vida, que se produzisse uma enorme
transformação em sua alma; foi preciso que enriquecesse poderosamente sua vida
intelectual e que chegasse a acumular um grande capital de valores próprios.
Precisamente porque a vida da nova mulher não se reduz a amar, porque tem em sua
alma uma reserva de necessidades e interesses que a tomam uma individualidade,
mudamos nosso critério de apreciação sobre a personalidade da mulher. Durante
muitos séculos a mulher foi valorizada, não pelas propriedades de sua alma, mas sim,
pelas virtudes femininas que exigia a moral burguesa da propriedade: a pureza, a
virtude sexual. Não haveria perdão para a mulher que pecasse segundo o código da
moralidade sexual. Por isso, os romancistas evitavam, com todas as precauções, a
queda de suas heroínas preferidas, enquanto deixavam que as outras pecassem como
os homens, ainda que estes não perdessem por isto seu valor moral.

As heroínas dos romances contemporâneos, as mulheres celibatárias, frequentemente


infringem as proibições do código corrente da virtude sexual, sem que o autor nem o
leitor considerem essas heroínas como tipos viciados. Admiramos a audaciosa Magda,
de Sudermann, mesmo tendo esta moça pecado várias vezes. Matilde, a heroína de
Hauptmann, comove-nos apesar de seus amores ilegítimos e de possuir filhos de vários
amantes. (40). Apesar destes fatos ocorrerem com a maioria dos homens, nós os
respeitamos assim mesmo. Sem nos darmos conta disto, experimentamos uma
modificação em nossa psicologia no que se refere à nova moral em formação. O que
há cinqüenta anos classificávamos como uma mancha indelével em uma moça solteira
ou em uma mulher, hoje consideramos como um fato que não necessita nem de
justificativa nem de perdão. Jorge Sand teve que defender o direito da mulher de
abandonar seu marido por um amante que elegeu livremente. Na paradisíaca
Inglaterra, Grent Allan, não faz muito tempo, teve que tomar sob sua proteção a mãe
solteira. À medida porém, que a mulher se torna independente, que deixa de
depender de um pai ou de um marido, à medida que participa ao lado do homem da
luta social, o velho critério torna-se completamente inútil.

A acumulação gradativa na mulher de características e sentimentos morais humanos


nos ensina a nela apreciar não somente a representante do sexo, mas também uma
individualidade. Ao mesmo tempo desaparece o antigo critério, que considerava a
mulher como a fêmea, capaz de assegurar ao marido um rebento legítimo.
Primeiramente a vida nos ensinou a aplicar estes critérios somente às almas
superiores; por isto perdoamos as infrações do código corrente da moral sexual às
artistas, às mulheres de talento. “Mas, por que hão de ser as almas superiores as
únicas que gozam desses direitos?”, pergunta com razão Bebel.

“Se Goethe e Jorge Sand - tomemos estas duas personalidades como exemplo, ainda
que sejam muitas as que agiram da mesma forma - atreveram-se a viver conforme os
desejos de seu coração; se as aventuras amorosas de Goethe ocupam volumes
inteiros, devorados com entusiasmo respeitoso por admiradores de ambos os sexos,
por que, então, condenar em outros o que precisamente nos encanta em Goethe e
Jorge Sand?” (41). Seguramente riríamos dos hipócritas que fossem capazes de negar
um aperto de mão a Sarah Bernhardt ou de abandonar um espetáculo por imoral. Mas,
quando se trata de simples mortais, vacilamos frequentemente antes de reconhecer
uma personalidade, duvidamos da atitude que devemos adotar ante a mulher livre do
tipo celibatário. Se verdadeiramente estivéssemos decididos a aplicar a estas mulheres
a medida moral dos tempos passados, seríamos obrigados a abandonar todas as
figuras das mulheres mais belas e humanas da literatura contemporânea.

Enquanto as mulheres do passado, educadas no respeito à pureza imaculada da


virgem, se esforçavam em conservar sua virtude, tinham necessariamente que
esconder e dissimular os sentimentos reveladores das necessidades naturais de seu
corpo, o traço característico da mulher do novo tipo é a afirmação de si mesma, não
somente como individualidade, mas também como representante de seu sexo. A
rebelião das mulheres contra a falsidade da moral sexual é um dos traços mais vivos da
nova mulher. Tem que ser assim, porque na mulher, na mãe, a vida fisiológica ocupa,
contrariamente às concepções que lhe foram inculcadas de maneira hipócrita, um
papel muito mais importante que no homem.

A liberdade de sentimento, a liberdade de eleger o homem amado, que pode chegar a


ser o pai de seus filhos, a luta contra o fetiche da moral hipócrita, tais são os pontos do
programa que realizam, silenciosamente, as mulheres do novo tipo. O traço típico da
mulher do passado era a renúncia à atração da carne, a máscara da pureza, inclusive
no matrimônio. A nova mulher não abdica da sua natureza de mulher, não foge da
vida, nem de suas alegrias terrenas, que a realidade, tão avara em sorrisos, lhe
concede. As heroínas modernas são mães sem estar casadas; abandonam o marido ou
o amante; sua vida pode ser rica em aventuras amorosas, e, entretanto, nem elas
mesmo, nem o autor ou leitor contemporâneo as consideram criaturas perdidas. As
aventuras do amor livre e sincero de Matilde, de Olga, de Maia, têm uma ética própria,
talvez mais perfeita que a passiva virtude da Tatiana, de Puchkin (42), ou a moral
negligente de Lisa, de Turguenev. (43) Esta é a mulher moderna: a autodisciplina, ao
invés de um sentimentalismo exagerado; a apreciação da liberdade e da
independência, ao invés de submissão e de falta de personalidade; a afirmação de sua
individualidade e não os estúpidos esforços por identificar-se com o homem amado; a
afirmação do direito a gozar dos prazeres terrenos e não a máscara hipócrita da
“pureza”, e finalmente, o relegar das aventuras do amor a um lugar secundário na
vida. Diante de nós temos, não uma fêmea, nem uma sombra do homem, mas sim
uma mulher-individualidade.

Notas

1 Tomemos co mo exemplo a moral simplista do homem em suas rela ções sexuais, mo ral que consid era
como um fa to natural e in evitável... a prostituição. Dora, a heroína de vanguarda da novela de
Winitchenco, A Autolealdade, é uma mulher que se sen te en teriormente livre e que assilimila sem
submeter à crítica essa verdade masculina do mundo burguês. Co m uma finalidade superior, pa ra
demonstrar a profundidade de seu sentimento pelo homem que a ma, para afirma r sua personalidade e
evidencia r quâo separados estão seus sentimentos de u ma simples agita ção sangüínea, Dora compra u m
homem... A falsa veracidade masculina de classe é a ceita n este caso por u ma mulher que aspira a
libertar-se, buscando uma verdade superior.
2 Ver capítulo A nova mulher na literatura.
3 Isto explica porque os ro mancistas contempo râneos elegem suas heroínas en tre as mulh eres
representantes do meio burguês. Apenas en contra mos uma heroína perten cente à classe operá ria.
Entretanto , os escritores encontrariam um rico ma terial se decidissem d escer a té estas camadas da
sociedade, onde a dura realidade contemporânea cria, não isoladamente, mas em massa, o tipo de
mulheres dotadas de uma nova estrutura moral, com novas necesidades e emoções.
4 Os traços psicológicos isolados, característicos da nova mulher, se en contram nas heroínas de Go rki
muito mais frequentemente do que nos outros escritores russo s. Sua alma sensível d e a rtista, aberta à
realidade futura, sabe apoderar-se co m muito mais fa cilidade do que a dos outros escrito res, dos traços
que escapam aos olhos dos demais e que se en contram mais estreita mente ligados à realidade
capitalista.
5 Grete Meisel – Hess – A Crise sexual.
6 Convém assinalar que as considerações expostas por Meissel – Hess sobre a defo rma ção da psicologia
masculina, dão a chave de outro problema que a té agora havia permanecido obscuro. O pouco costu me
que os homens têm de levar em consideração a psicologia faminina – a incapacidade para comp reend er
seus sentimentos – não somente os conduz a não prestar a meno r aten ção à alma da mulher, como vai
ainda muito mais além: conduz os homens a ignora r to talmente, co m a mais su rpreendente ignorânica,
as sensações fisiológicas da mulh er durante o ato mais íntimo de suas relaçõ es. Os médicos sbem, a
insatisfação das mulh eres no ato sexual provoca , freqüentemen te, doen ças nervosas. É surp reenden te
que a literatura impregnada pela psicologia masculina haja deix ado passar em silêncio este fato que
explica toda uma série de dramas familia res e de amo r. Quando Maupassant se a treve a abordar a
questão na novela “Uma Vida”, sua “revelação ” provoca uma ingênua su rpresa na maioria dos homens.
7 Este ensaio foi escrito em 1918.
8 Matilde, novela de Karl Hauptmann.
9 Suderman: A Pátria.
10 Colette Iver: Prin cesas da Ciência.
11 Schnitzler: Caminho da liberdade.
12 Potapenko: Na Névoa.
13 Wimitchenko : Na Balança da Vida.
14 Idem.
15 Id.
16 Sangar: Notas de Anna.
17 Grigoriev: O Ocaso.
18 Colette e Willy: A Vagabunda.
19 Bennet: O Amo r Sagrado.
20 Grete Meisel: A Voz.
21 Ilsa Frapan: Trabalho.
22 Hedwing Dohm: Christa Rouland.
24 Yuchkevitch: Saída do Círculo.
25 Wassermann: Renata Fu chs.
26 Grent Allena: A mulher que se atreveu.
27 Winnichenko: Na Balança da Vida.
28 Else Jerusalén: O escaravelho sagrado.
29 O. Rounow: Luta.
30 Bernard Shaw: O primeiro trabalho de Fanny.
31 Hauptman: Solitárias.
32 S. Undset: Jenny.
33 Romain Rolland: Jean Christophe.
34 Idem.
35 G. Aterton: Julia France e sua épo ca.
36 Marie Antine: A Terra Prometida.
37 Por exemplo, Rosa de Vita Omnium Breve.
38 A maioria dos autores citados nestas páginas são mulheres. Muita s de suas obras carecem de
verdadeiro valo r artístico; mas, para o fim a que nos propomos n estas páginas, elas nos oferecem u m
ponto de vista inco mparavelmente mais exato do que as obras dos escrito res de sexo masculino, que são
superiores, em geral, po r seu valor literário . Quase todos os romances escritores por mulheres contêm
trechos puramente biográficos que são precisamente os que maio r interesse apresen tam para o nosso
trabalho. As obras que refletem sem artifícios a verdade da vida, as que nos mostra m mais exatamen te a
psicologia da mulher contemporânea, suas dores, seus p roblema s, seus desejo s, con tradições,
complicações e tendências, serão as que melho r nos servem para en riquecer nosso material no estudo do
novo tipo de mulher em fo rmação. Desde que as mulheres escritoras deixaram d e imitar cegamente os
modelos criados pelos homens e se atreveram a descobrir os mistérios da alma feminina que até en tão
haviam permanecido ocultos, in clusive para os a rtistas mais geniais, desde qua as escritoras
começarama expressar na sua própria língua sobre os p roblemas da mulher, suas obras, ainda que
careçam algumas vezes da beleza exterior da cria ção artística, têm u m valor e u ma significa ção especial.
Em suma todos esses trabalhos nos ajudam a conhecer a mulher celibatá ria, a mulher do novo tipo, em
formação .
39 É característico observar como a maternidade tem sido semp re considerada co mo último refúgio da
felicidade da mulh er. Se o matrimônio não a tornara feliz, se a mulher se via obrigada a renuncia r a uma
união amorosa ou se tinha enviuvado, restavam então, como último refúgio, os cuidados e as alegrias da
maternidade. A maternidade raramente era consid erada co mo um fim em si mesma. Somente p erto da
velhice, despertavam na mulher sentimentos atávicos da espécie, só então aparecia a família com algum
sentido na vida, e se convertia em um ídolo, que ado rava, e para o qual exigia, despoficamente, a
adoração dos outros membros da família .
40 As aventuras amorosas de Matild e não nos impedem de respeitar sua personalidade íntegra e pu ra.
Assim co mo Matild e, sentimo s piedade e desprezo por sua irmã Ma rta, operária como ela, mas que
regressa com dinheiro de cada aventura. Há todo um abismo en tre a liberdade de Matilde e a venalidade
de Marta.
41 A. Bebel: A Mulher
42 Puchkin: Eugenia Onieguin
43 Turguenev: Ninho de fidalgos

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