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Alexandra Kollontai
Parte I
A mulher moderna
Quem são as mulheres modernas? Como as criou a vida? A mulher moderna, a mulher
que denominamos celibatária, é filha do sistema econômico do grande capitalismo. A
mulher celibatária, não como tipo acidental, mas uma realidade cotidiana, uma
realidade da massa, um fato que se repete de forma determinada, nasceu com o ruído
infernal das máquinas da usina e da sirene das fábricas. A imensa transformação que
sofreram as condições de produção no transcurso dos últimos anos, inclusive depois
da influência das constantes vitórias da produção do grande capitalismo, obrigou
também a mulher a adaptar-se às novas condições criadas pela realidade que a
envolve, O tipo fundamental da mulher está em relação direta com o grau histórico do
desenvolvimento econômico por que atravessa a humanidade. Ao mesmo tempo que
se experimenta uma transformação das condições econômicas, simultaneamente à
evolução das relações da produção, experimenta-se a mudança no aspecto psicológico
da mulher. A mulher moderna, como tipo, não poderia aparecer a não ser com o
aumento quantitativo da força de trabalho feminino assalariado. Há cinquenta anos,
considerava-se a participação da mulher na vida econômica como desvio do normal,
como infração da ordem natural das coisas. As mentalidades mais avançadas, os
próprios socialistas buscavam os meios adequados para que a mulher voltasse ao lar.
Hoje em dia, somente os reacionários, encerrados em preconceitos e na mais sombria
ignorância, são capazes de repetir essas opiniões abandonadas e ultrapassadas há
muito tempo.
Há cinquenta anos, as nações civilizadas não contavam nas fileiras da população ativa
com mais do que algumas dezenas, ou mesmo algumas centenas de milhares de
mulheres. Atualmente o crescimento da população trabalhadora feminina é superior
ao crescimento da população masculina. Os povos civilizados dispõem não de centenas
de milhares, mas sim de milhões de braços femininos. Milhões de mulheres pertencem
às fileiras proletárias; milhares de mulheres têm uma profissão, consagram suas vidas
à ciência ou à arte. Na Europa e nos Estados Unidos as estatísticas acusam mais de
sessenta milhões de mulheres inscritas na classe trabalhadora. Marcha grandiosa a
desse exército independente de mulheres! 50% desse exército é constituído por
mulheres do tipo celibatário, isto é, por mulheres que na luta pela s ubsistência contam
apenas com suas próprias forças; de mulheres que não podem, segundo a tradição,
viver unicamente dependendo de um marido que as mantenha.
As relações de produção, que durante tantos séculos mantiveram a mulher trancada
em casa e submetida ao marido, que a sustentava, são as mesmas que, ao arrancar as
correntes enferrujadas que a aprisionavam, impelem a mulher frágil e inadaptada à
luta do cotidiano e a submetem à dependência econômica do capital. A mulher
ameaçada de perder toda a assistência, diante do temor de padecer privações e fome,
vê-se obrigada a aprender a se manter sozinha, sem o apoio do pai ou do marido. A
mulher defronta-se com o problema de adaptar-se rapidamente às novas condições de
sua existência, e tem que rever imediatamente as verdades morais que herdou de suas
avós. Dá-se conta, com assombro, de toda inutilidade do equipamento moral com que
a educaram para percorrer o caminho da vida. As virtudes femininas - passividade,
submissão, doçura - que lhe foram inculcadas durante séculos, tornam-se agora
completamente supérfluas, inúteis e prejudiciais. A dura realidade exige outras
qualidades nas mulheres trabalhadoras. Precisa agora de firmeza, decisão e energia,
isto é, aquelas virtudes que eram consideradas como propriedade exclusiva do
homem. Privada da proteção que até então lhe prestara a família ao passar do
aconchego do lar para a batalha da vida e da luta de classes, a mulher não tem outro
remédio senão armar-se, fortificar-se, rapidamente, com as forças psicológicas
próprias do homem, de seu companheiro, que sempre está em melhores condições
para vencer a luta pela vida. Nesta urgência em adaptar-se às novas condições de sua
existência, a mulher se apodera e assimila as verdades, propriamente masculinas,
freqüentemente sem submetê-las a nenhuma crítica, e que, se examinadas mais
detalhadamente, são apenas verdades para a classe burguesa.(1)
Além disso, ainda tentam agarrar-se com todas as suas forças ao passado. Com muito
pesar se vêem obrigadas a curvar-se diante das leis da necessidade histórica - as forças
de produção - e a dar os primeiros passos pelo novo caminho. Caminham ao acaso,
dominadas pela tristeza, amaldiçoando seus passos e acariciando em seu interior o
sonho de um lar, onde possam desfrutar de tranqüilas e modestas alegrias. Ah, se
fosse possível abandonar o caminho, voltar atrás. Mas, isto é irrealizável, pois os
grupos de companheiras são cada vez mais densos e a corrente as empurra cada vez
para mais longe do passado. É preciso adaptar-se à angustiante falta de espaço,
preparar-se para a luta, ocupar o lugar correspondente a cada uma; têm que defender
o direito de viver.
É esta realidade capitalista que leva a proprietária de uma oficina a encontrar-se, por
sua ideologia, muito mais separada de uma de suas operárias do que a boa dona de
casa com relação a sua vizinha, a mulher de um operário. Esta realidade capitalista
torna aguda a sensação do antagonismo social entre as mulheres trabalhadoras. Para
esta categoria de mulheres do novo tipo só pode haver um ponto comum: sua
distinção qualitativa da mulher do passado, as propriedades específicas que
caracterizam a mulher independente, do tipo que temos denominado celibatário. As
mulheres do novo tipo, pertencentes a estas duas classes sociais, passam por um
período de antagonismo: as duas classes lutam pela afirmação de sua personalidade;
as de uma classe, conscientemente, por princípio, as da outra classe, de forma
elementar, coletiva, sob o jugo do inevitável.
Mesmo, porém, que na nova mulher pertencente à classe operária a luta pela
afirmação de seu direito e de sua personalidade coincida com os interesses de sua
classe, as mulheres do novo tipo pertencentes a outras classes sociais têm
necessariamente que se defrontar com um obstáculo: a ideologia de sua classe, que é
hostil à reeducação do tipo de mulher. No meio burguês, a insurreição da mulher
adquire um caráter muito mais agudo e os dramas morais da mulher do novo tipo são
muito mais vivos, têm mais colorido, oferecem maiores complicações.(3)
No meio operário, não há nem podem existir conflitos agudos entre a psicologia da
mulher do novo tipo, em formação, e a ideologia de sua classe. Tanto sua psicologia
em formação como sua ideologia de classe encontram-se em um processo de
formação, em fase de desenvolvimento. O novo tipo da mulher, que é interiormente
livre e independente, corresponde, plenamente, à moral que elabora o meio operário
no interesse de sua própria classe. A classe operária necessita, para a realização de sua
missão social, de mulheres que não sejam escravas. Não quer mulheres sem
personalidade, no matrimônio e no seio da família, nem mulheres que possuam as
virtudes femininas - passividade e submissão. Necessita de companheiras com uma
individualidade capaz de protestar contra toda servidão, que possam ser consideradas
como um membro ativo, em pleno exercício de seus direitos, e, consequentemente,
que sirvam à coletividade e à sua classe.
A influência das mulheres trabalhadoras estende-se muito além dos limites de sua
própria existência. As mulheres trabalhadoras contaminam com sua crítica a
inteligência de suas contemporâneas, destroem os velhos ídolos e hasteiam o
estandarte da insurreição para protestar contra as verdades que as submeteram
durante gerações. As mulheres do novo tipo, celibatário e independente, ao se
libertarem, libertam o espírito agrilhoado, durante séculos, de outras mulheres ainda
submissas.
É certo que a mulher do novo tipo já penetrou na literatura. Mas está ainda muito
longe de haver expulsado as heroínas de estrutura moral pertencentes aos tempos
passados. Tampouco conseguiu a mulher-individualidade descartar-se do tipo de
mulher esposa, eco do homem. Entretanto, é fácil observar que ainda nas heroínas do
tipo antigo se encontram, cada vez com maior frequência, as propriedades e os traços
psicológicos que possibilitaram a vida das mulheres do tipo celibatário e
independente. Os escritores dotam involuntariamente suas heroínas com sentimen tos
e características que não eram, de modo algum, próprios das heroínas da literatura do
período precedente.(4)
Nos anos de 1910 e 1911, período durante o qual diminuiu na Rússia o interesse pelos
problemas sexuais, apareceu na Alemanha um estudo psico-sociológico de Grete
Meisel-Hess sobre a crise sexual, livro que não foi um êxito público. O romance de
Karin Michaelis, A Idade Perigosa, publicado pouco depois, livro que carece de grande
valor artístico e cuja audácia não vai além dos limites permitidos pelas conveniências
de bom tom literário, relegou a segundo plano, com o seu imerecido êxito, a obra de
Meisel-Hess.(5)
Foi qualificado pela crítica como “um livro bem escrito, mas sem nenhum valor
científico.” Unicamente entre as altas rodas intelectuais, entre a nata da sociedade
alemã, este livro foi saudado com aplausos por alguns e com mostras de desagrado e
indignação por outros, sorte comum a todo sincero investigador da verdade.
O fato de que o livro de Meisel-Hess careça de uma série de qualidades científicas, o
fato de que se possa reprovar a falta de método e análise, o fato de que não siga um
procedimento sistemático, e que seu pensamento seja em alguns momentos inseguro
e sinuoso, e que repita coisas ja expostas, não pode diminuir de modo algum o valor
desse trabalho.
Com efeito, as normas morais que regulam a vida sexual do homem não podem ter
mais do que duas finalidades, dois objetivos. Primeiro, assegurar à humanidade uma
descendência sã, normalmente desenvolvida: contribuir para a seleção natural no
interesse da espécie. Segundo, contribuir para o desenvolvimento da psicologia
humana, enriquecê-la com sentimentos de solidariedade, de companheirismo, de
coletividade. A moral sexual atual, como moral que serve unicamente aos interesses
da propriedade, não preenche nenhuma destas duas finalidades. Todo o código
complicado da moral sexual contemporânea, com o matrimônio monogâmico
indissolúvel, que raras vezes está baseado no amor, e a instituição da prostituição, tão
difundida e organizada, não só não contribui para o saneamento e o melhoramento da
espécie, como produz efeitos contraditórios, ou seja, favorece a seleção natural em
sentido inverso. A moral contemporânea não faz mais do que conduzir a humanida de
pelo caminho da degenerescência ininterrupta.
Por muito valiosos que sejam os pensamentos de Meisel-Hess sobre essa questão,
ultrapassaríamos indubitavelmente os limites do ensaio se nos dedicássemos a analisar
detalhadamente esta parte do livro. Portanto, somente examinaremos, aqui, a
segunda parte do problema sexual. Unicamente estudaremos as respostas, não menos
valiosas e interessantes de Meisel-Hess à segunda pergunta: atingem seus fins as
formas atuais da moral sexual? Ou seja, contribuem para desenvolver no homem
sentimentos de solidariedade, de companheirismo e consequentemente para o
enriquecimento da psicologia humana?
Dois seres, cujas almas só têm raros pontos de contato, têm necessariamente que
adaptar-se um ao outro, em todos os diversos aspectos de seu múltiplo eu. O
absolutismo da posse encerra, irremediavelmente, a presença contínua desses dois
seres, associação que é tão doentia para um como para outro. A ideia da posse não
deixa livre o eu, não há momento de solidão para a própria vontade e, se a isto se
acrescenta a coação exercida pela dependência econômica, já não fica nem sequer um
pequeno recanto próprio. A presença contínua, as exigências inevitáveis que se fazem
ao objeto possuído são a causa de como um ardente amor se transforma em
indiferença, essa terrível indiferença que leva dentro de si raciocínios insuportáveis e
mesquinhos. Com efeito: temos necessariamente que estar de acordo com MeiselHess
quando diz que uma vida em comum demasiado limitada é a causa principal que faz
murchar a delicada flor primaveril do mais puro entusiasmo amoroso.
Quantas precauções uma alma deve ter com a outra, que imensas reservas de
afetuoso calor são necessárias para que se possa colher, já no outono, os frutos
saborosos de uma profunda e indissolúvel adesão entre duas pessoas!
Não é só isso. Os fatores de indissolubilidade e propriedade, fundamentos do
matrimônio legal, exercem um efeito nocivo sobre a alma humana. Estes dois fatores
exigem poucos esforços psíquicos para conservar o amor de um companheiro de vida,
porquanto se está ligado a ele, indissoluvelmente, por correntes exteriores. A forma
atual do matrimônio legal não faz, portanto, mais que empobrecer o espírito e não
contribui de modo algum para a acumulação na humanidade de reservas desse grande
amor que foi a profunda nostalgia de toda a vida do gênio russo Tolstoi.
Deforma-se, ainda mais, a psicologia humana com outro aspecto da união sexual: a
prostituição.
Pode haver algo mais monstruoso do que o fato amoroso degradado até ao ponto de
se fazer dele uma profissão? Deixemos de lado todas as misérias sociais que vêm
unidas à prostituição, os sofrimentos físicos, as enfermidades, as deformações e a
degenerescência da raça, e detenhamo-nos somente ante a questão da influência que
a prostituição exerce sobre a psicologia humana. Não há nada que prejudique tanto as
almas como a venda forçada e a compra de carícias de um ser por outro com que não
tem nada em comum. A prostituição extingue o amor nos corações.
A prostituição deforma as ideias normais dos homens, empobrece e envenena o
espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a capacidade de sentir
apaixonadamente o amor, essa paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos
sentimentos vividos. A prostituição deforma todas as noções que nos levam a
considerar o ato sexual como um dos fatores essenciais da vida humana, como o
acorde final de múltiplas sensações físicas, levando-nos a estimá-lo, em troca, como
um ato vergonhoso, baixo e grosseiramente bestial. A vida psicológica das sensações
na compra de carícias tem repercussões que podem produzir consequências muito
graves na psicologia masculina. O homem acostumado à prostituição, relação sexual
na qual estão ausentes os fatores psíquicos, capazes de enobrecer o verdadeiro êxtase
erótico, adquire o hábito de se aproximar da mulher com desejos reduzidos, com uma
psicologia simplista e desprovida de tonalidades. Acostumado com as carícias
submissas e forçadas, nem sequer tenta compreender a múltipla atividade a que se
entrega a mulher amada durante o ato sexual. Esse tipo de homem não pode perceber
os sentimentos que desperta na alma da mulher. É incapaz de captar seus múltiplos
matizes. Muitos dos dramas têm como causa essa psicologia simplista com que o
homem se aproxima da mulher, e que foi engendrada pelas casas de lenocínio. A
prostituição estende, de modo inevitável, suas asas sombrias tanto sobre a cabeça da
mulher livremente amada como sobre a esposa ingênua e amorosa e sobre a amante
intuitivamente exigente. A prostituição envenena implacavelmente a felicidade do
amor das mulheres que buscam no ato sexual o desfecho de uma paixão
correspondida, harmoniosa e onipotente.(6)
A terceira forma das relações sexuais, a união livre, traz dentro de si, também, muitos
aspectos igualmente sombrios. As imperfeições dessa forma sexual são de um caráter
reflexo: o homem de nossa época vê a união livre com uma psicologia já deformada
por uma moral falsa e doentia, fruto do matrimônio legal, por um lado, e do lúgubre
abismo da prostituição, por outro. O amor livre choca-se com dois obstáculos
inevitáveis: a incapacidade para sentir o amor verdadeiro, essência do nosso mundo
individualista, e a falta de tempo indispensável para entregar-se aos verdadeiros
prazeres morais. O homem atual não tem tempo para amar.
Nossa sociedade, fundada sobre o princípio da concorrência, sobre a luta, cada vez
mais dura e implacável, pela subsistência, para conquistar um pedaço de pão, um
salário ou um ofício, não deixa lugar ao culto do amor. A pobre Aspásia esperará,
inutilmente, nos dias de hoje, sobre o leito coberto de rosas, o companheiro de seus
prazeres. Aspásia não pode repartir seu leito com um homem grosseiro, de nível moral
indigno dela. Mas o homem moralmente nobre não tem tempo para passar as noites a
seu lado. Meisel-Hess observa, com toda razão, um fato que se dá com extraordinária
freqüência: o homem do nosso tempo considera o amor-paixão como a maior das
desgraças que lhe pode acontecer. O amor-paixão é um obstáculo para a realização
dos objetivos essenciais de sua vida: a conquista de uma posição, de um capital, de
uma colocação segura, da glória, etc. O homem tem medo dos laços de um amor forte
e sincero que o separaria, possivelmente, do principal objetivo de sua vida. A livre
união, no complicado ambiente que nos rodeia, exige por sua vez uma perda de tempo
e de forças morais infinitamente maiores do que um matrimônio legal ou do que as
carícias compradas.
Segundo Meisel-Hess, não nasceu ainda o homem forte e consciente que seja capaz de
considerar o amor como parte integrante da totalidade de seus objetivos vitais. Por
esta razão, o homem atual, absorvido por sérios trabalhos, prefere abrir a bolsa e
manter uma amante ou comprometer-se com uma mulher, dando-lhe seu nome e
tomando sob sua responsabilidade a carga de uma família legal. Tudo isto é melhor do
que perder um tempo tão valioso e dilapidar suas energias nas horas entregues aos
prazeres do amor.
Meisel-Hess prossegue na sua investigação e descobre nova solução. Onde não existe
o amor verdadeiro este é substituído pelo amor jogo. Para que o amor verdadeiro
chegue a ser patrimônio de toda a humanidade é preciso passar por difícil, porém
enobrecedora escola de amor. O amor jogo é também uma escola, é um meio de
acumulação do potencial do amor na psicologia humana.
Que será este amor jogo, no qual Meisel-Hess baseia tantas esperanças?
O amor jogo, em suas diversas formas, encontra-se em todas as épocas da história da
humanidade. Nas relações entre a antiga hetaira e seu amigo, no amor galante da
época da Renascença entre a cortesã e seu amante protetor, na amizade erótica da
modista, livre como um pássaro, e seu companheiro estudante. Em todas estas
relações podemos encontrar facilmente os elementos principais deste sentimento.
Não é o Eros que a tudo devora, que exige a plenitude e a posse absoluta, mas
tampouco é a brutal sexualidade reduzida meramente ao ato fisiológico. O amor jogo
que nos descreve Meisel-Hess não pode ser tampouco o amor nascido de uma
psicologia simplista.
O amor jogo é exigente. Seres que se aproximam unicamente por causa de uma
simpatia mútua, que só esperam um do outro a amabilidade e o sorriso da vida, não
podem permitir que se torture impunemente sua alma, não podem consentir que se
esqueça sua personalidade nem que se ignore seu mundo interior. O amor jogo, que
exige dos dois seres unidos maior atenção mútua, mais delicadezas em todas as suas
relações, pode acabar no homem, pouco a pouco, com o egoísmo profundo, que
marca hoje em dia, indelevelmente, todos os seus sentimentos amorosos. Uma atitude
solícita em relação à alma do outro, além de servir de estimulo aos sentimentos de
simpatia, desenvolve a intuição, a sensibilidade e a delicadeza.
Em terceiro lugar, o amor jogo, por não ter como ponto de partida o princípio da posse
absoluta, acostuma os homens a entregar à pessoa amada a parte mais agradável de
seu eu, a parte que faz a vida mais agradável e harmoniosa. Admite Meisel-Hess que
este amor jogo iniciaria os homens numa virtude superior. Ensiná-los-ia a não
entregar-se inteiramente, a não ser quando encontrassem um sentimento constante e
profundo. A tendência atual leva-nos a atentar contra a personalidade do outro, desde
o primeiro beijo. Estamos dispostos a entregar totalmente nosso coração, embora o
outro ainda não sinta nenhuma atração. E necessário não esquecer nunca que
unicamente o sagrado amor verdadeiro pode ter suficiente força para conceder
direitos.
Há ainda outras vantagens no amor jogo ou amizade erótica. Esta relação sexual
ensina os homens a resistir a paixão que degrada e oprime o indivíduo. Meisel-Hess
afirma: “este ato espantoso que podemos classificar de penetração pela violência no
eu do outro, não pode dar-se no amor jogo. O amor jogo exclui o pecado maior do
amor: “A perda da personalidade na corrente da paixão”. A humanidade
contemporânea vive sob o sombrio signo da paixão, sempre ávida a devorar o eu do
outro. No romance de Lasswitz, uma habitante de Marte replica à proposição de um
habitante da Terra: “Neste ligeiro jogo dos sentimentos, teria que descer e dobrar-me
à escravidão da paixão, perder minha liberdade, descer contigo à Terra... vossa terra é
maior, talvez, mais bela que nosso planeta, mas eu certamente morreria em sua densa
atmosfera. Pesados como vosso ar são vossos corações. E eu não sou mais que
Numa...”
A época atual caracteriza-se pela ausência da arte de amar. Os homens desconhecem
em absoluto a arte de saber conservar relações amorosas, claras, luminosas, leves.
Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O amor para os homens de
nossa época é uma tragédia que destroça a alma, ou um vaudeville. É preciso tirar a
humanidade desse atoleiro: ensinar aos homens a viver horas cheias de beleza, claras,
sem grandes cuidados. A psicologia do homem não estará aberta para receber o
verdadeiro amor, purificado de todos os seus aspectos sombrios, até que passe pela
escola da amizade amorosa. Cada novo amor (não nos referimos, naturalmente, ao ato
brutal, meramente fisiológico) em vez de empobrecer a alma humana, contribui para
enriquecê-la. “Um coração humano são e rico” - diz Meisel-Hess - “não é um pedaço
de pão que diminui à medida que nós o comemos”. O amor é uma força que quanto
mais se consome mais cresce. “Amar sempre, amar profundamente, em todos os
momentos da nossa vida, amar sempre e cada vez com maior abnegação, é o destino
ardente de todo grande coração.” O amor em si é uma grande força criadora.
Engrandece e enriquece a alma daquele que o sente, tanto como a alma de quem o
inspira.
Se a humanidade não tivesse o amor, sentir-se-ia roubada, deserdada e desgraçada. O
amor será seguramente o culto da humanidade futura. Hoje em dia o homem
necessita, para poder lutar, viver, trabalhar e criar, sentir-se afirmado, reconhecido, O
que se sente amado sabe que há alguém que reconhece sua personalidade, em todo
seu valor, e, precisamente pela consciência de sentir-se afirmado, nasce a suprema
alegria de viver. Mas, este reconhecimento do eu, esta vitória sobre o fantasma
ameaçador da solidão moral, não se pode alcançar, de modo algum, com a satisfação
brutal do desejo fisiológico. “Só o sentimento de uma total harmonia com o ser amado
pode extinguir esta sede”. Só o verdadeiro amor pode nos dar a plena satisfação.
Portanto, a crise sexual é muito mais aguda quando as reservas do potencial do amor
são menores, quando os laços sociais são mais limitados, quando a psicologia humana
é mais pobre em sentimentos de solidariedade.
Diante de uma série de reformas sociais, que MeiselHess assinala como uma condiçã o
indispensável de todas as suas deduções morais, que delito pode haver no fato do
êxtase erótico - lançar um ser nos braços do outro? Finalmente, os limites da amizade
erótica são muito amplos e podem estender-se ainda mais. Ocorre com muita
frequência que dois seres que se aproximaram atraídos por uma livre simpatia
cheguem a conhecer-se mutuamente, ou seja, que do amor jogo nasça o amor
verdadeiro. Para que isto aconteça basta criar possibilidades objetivas. Quais são, pois,
as deduções e reivindicações práticas a que chega Meisel-Hess?
Em primeiro lugar, a sociedade terá que acostumar-se a reconhecer todas as formas de
união entre os sexos, mesmo que estas se apresentem diante dela com contornos
novos e desconhecidos. Mas sempre que correspondam a duas condições: que não
ofereçam perigo para a espécie e que seu fator determinante não seja o jugo
econômico. O ideal continuará sendo a união monogâmica baseada num amor
verdadeiro, porém sem as características de invariabilidade e indissolubilidade. A
mudança será tanto mais evitável quanto mais diversa for a psicologia do homem. O
concubinato ou monogamia sucessiva será a forma fundamental do matrimônio.
Porém, ao lado desta relação sexual existe toda uma série de aspectos diversos de
uniões amorosas sempre dentro dos limites da amizade erótica. A segunda exigência é
o reconhecimento real, não somente de palavras, mas de fato, da defesa da
maternidade. A sociedade tem a obrigação de estabelecer em todo o caminho da vida
da mulher, de todas as formas possíveis, postos de socorro que sustentem a mulher,
moral e materialmente, durante o período de maior responsabilidade em sua vida. Por
último, a fim de que as relações mais livres não pareçam o desenfreio total, torna -se
necessário rever todo o instrumental moral com que se equipa a mulher solteira
quando entra no caminho da vida.
Não falta mais nada do que utilizar o precioso conjunto de pensamentos que nos
oferece e extrair as consequências em harmonia com as tarefas essenciais da classe
que se eleva ao primeiro posto na sociedade. Nossa tarefa será, portanto, após deixar
de lado pequenos detalhes sem importância, depois de sanar inexatidões
insignificantes, buscar também nesse problema, no domínio das relações entre os
sexos, na psicologia do amor, os princípios da nova cultura em marcha, cujo triunfo se
aproxima, inevitavelmente, isto é, os princípios da cultura proletária.
A própria história das sociedades humanas nos oferece o caminho que devemos seguir
em nossa investigação; e que nos é ainda indicado pela história da ininterrupta luta de
classes e dos diversos grupos sociais, opostos por seus interesses e suas tendências.
Não é a primeira vez que a Humanidade atravessa um período de aguda crise sexual.
Não é a primeira vez que as aparentemente firmes e claras prescrições da moral
cotidiana, no domínio da união sexual, são destruídas pelo afluxo de novos ideais
sociais. A humanidade passou por uma época de crise sexual verdadeiramente aguda
durante os períodos do Renascimento e da Reforma, no momento em que uma
formidável modificação social relegava a segundo plano a aristocracia feudal,
orgulhosa de sua nobreza, acostumada ao dominar sem limitações, e em seu lugar
emergia uma nova força social, a burguesia ascendente, que crescia e se desenvolvia
cada vez mais, com maior impulso e poder. O código da moral sexual do mundo feudal,
nascido no seio da sociedade aristocrática, com um sistema de economia comunal e
baseado nos princípios autoritários de castas, devorava a vontade individual dos
membros dessa sociedade que tentavam permanecer isolados.
O velho código moral entrava em choque com novos princípios, que impunham à
classe burguesa em formação. A moral sexual da nova burguesia baseava -se em
princípios radicalmente opostos aos princípios morais mais essenciais do código
feudal. Em substituição ao princípio de castas, aparecia uma severa individualização:
os estreitos limites da pequena família burguesa. O fator de colaboração, essencial na
sociedade feudal, característica de sua economia comunal, tanto como da economia
regional, era substituído pelo princípio da concorrência. Os últimos vestígios de idéias
comunais, próprias dos diversos graus de evolução das castas, foram ultrapassados
pelo triunfante princípio da propriedade privada. A humanidade, perdida durante o
processo de transição, ficou em dúvida, durante vários séculos, entre os dois códigos
sexuais, de espírito tão diverso, e permaneceu ansiosa por adaptar-se à situação, até o
momento em que a vida transformou as velhas normas, alcançando, pelo menos, uma
forma harmoniosa, uma solução quanto ao aspecto externo.
Porém, durante esta época de transição, tão viva e cheia de colorido, a crise sexual,
apesar de revestida de caráter crítico, não se apresentou de uma forma tão grave e
ameaçadora como em nossa época. Isto se deveu ao fato de que, durante os gloriosos
dias do Renascimento, durante aquele novo século, iluminado pela nova cultura
espiritual, que coloria o agonizante mundo da Idade Média, pobre de conteúdo,
apenas uma parte relativamente reduzida da sociedade experimentou a crise sexual. O
campesinato, camada social mais considerável da época, do ponto de vista
quantitativo, sofreu as consequências da crise sexual de forma indireta, quando, por
lento processo secular se transformavam as bases econômicas em que esta classe se
fundamentava, isto é, unicamente à medida em que evoluíam as relações econômicas.
As duas tendências opostas lutavam nas camadas superiores da sociedade. Neste
terreno, enfrentavam-se os ideais e as normas das duas concepções diversas da
sociedade. E era onde, precisamente, a crise sexual, cada vez mais grave e
ameaçadora, fazia suas vítimas.
Para a crise sexual não há obstáculos nem ferrolho. E um profundo erro acreditar que
a crise sexual só alcança os representantes das classes que têm uma pos ição
econômica materialmente segura. A indefinida inquietação da crise sexual franqueia,
cada vez com maior frequência, a porta das habitações operárias, causando tristes
dramas, que por sua intensidade de dor, não tem nada a dever aos conflitos
psicológicos do mundo burguês. Porém, justamente porque a crise sexual não ataca
somente os interesses dos que tudo possuem, precisamente porque estes problemas
sexuais afetam também uma classe social tão numerosa como o proletariado de
nossos tempos, é incompreensível e imperdoável que esta questão vital,
essencialmente violenta e trágica, seja considerada com tanta indiferença. Entre as
múltiplas idéias fundamentais que a classe trabalhadora deve levar em conta em sua
luta para a conquista da sociedade futura, deve estar, necessariamente, o
estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que, portanto, tomem a
humanidade mais feliz.
Talvez não haja nenhuma outra relação humana como as relações entre os sexos, na
qual se manifeste com tanta intensidade o individualismo grosseiro que caracteriza
nossa época. Absurdamente se imagina que basta ao homem, para escapar à solidão
moral que o rodeia, o amor, exigir seus direitos sobre a outra pessoa. Espera assim,
unicamente, obter esta sorte rara: a harmonia da afinidade moral e a compreensão
entre dois seres. Nós, os indivíduos dotados de uma alma que se fez grosseira pelo
constante culto de nosso eu, cremos que podemos conquistar sem nenhum sacrifício a
maior das sortes humanas, o verdadeiro amor, não só para nós, como também para
nossos semelhantes. Cremos poder conquistar isso sem dar em troca a nossa própria
personalidade.
A sociedade burguesa não pode perdoar a mulher que se atreve a dar à escolha do
marido um caráter individual. Segundo a tradição herdada dos costumes de casta, a
sociedade pretende que a mulher continue levando em conta, no momento de
entregar-se, uma série de considerações de graus e hierarquias sociais, a respeito do
meio familiar e dos interesses da família. A sociedade burguesa não pode considerar a
mulher independente da célula da família; é-lhe completamente impossível apreciá-la
como personalidade fora do círculo estreito das virtudes e deveres familiares.
A sociedade contemporânea vai muito mais longe que a ordem antiga na tutela que
exerce sobre a mulher. Não só lhe prescreve casar-se unicamente com homens dignos
dela, como lhe proíbe, inclusive, que chegue a amar um ser que lhe é socialmente
inferior. Estamos acostumados a ver como homens, de nível moral e intelectual muito
elevado, escolhem para companheira de vida uma mulher insignificante e vazia, sem
nenhum valor comparado ao valor do esposo.
Apreciamos este fato como completamente normal e que, portanto, não merece
sequer nossa consideração. Tudo que pode suceder é que os amigos “lamentem que
Ivan Ivanitch tenha se casado com uma mulher insuportável”. O caso varia tratando-se
de uma mulher. Então, nossa indignação não tem limites e a expressamos com frases
como a seguinte: “Como é possível que uma mulher tão inteligente como Maria
Petrovna possa amar uma nulidade assim!... Teremos que por em dúvida sua
inteligência...” Que determina essa maneira diferente de julgar as coisas? A que
princípio obedece uma apreciação tão contraditória? Essa diversidade de critérios tem
origem na ideia da desigualdade entre os sexos, ideia que tem sido inculcada na
humanidade durante séculos e séculos e que acabou por apoderar-se de nossa
mentalidade, organicamente. Estamos acostumados a valorizar a mulher, não como
personalidade, com qualidades e defeitos individuais, independente de suas sensações
psicofisiológicas. Para nós, a mulher só tem valor como acessório do homem. O
homem, marido ou amante, projeta sobre a mulher sua luz; é a ele e não a ela que
tomamos em consideração como o verdadeiro elemento determinante da estrutura
espiritual e moral da mulher. Em troca, quando valorizamos a personalidade do
homem, fazemos por antecipação uma total abstração de seus atos no que di z respeito
às relações sexuais.
Mas, não será essa condição prévia uma utopia desprovida de base, utopia na qual os
idealistas sonhadores baseiam suas considerações ingênuas? Tentemos aumentar o
potencial de amor da humanidade. Acaso os sábios de todos os povos, desde Buda e
Confúcio até Cristo, não se entregaram desde tempos remotos a essa tarefa?
Novas, não tanto pela forma, como pelo caráter que anima os seus preceitos.
A humanidade sonda com inquietação os novos ideais. Mas, basta examiná-los um
pouco, detalhadamente, para neles reconhecer, apesar de seus limites não estarem
suficientemente demarcados, os traços característicos, pelos quais se unem as tarefas
do proletariado, classe social incumbida de se apoderar da fortaleza do futuro. Aquele
que quer encontrar, no labirinto das normas sexuais contraditórias, os germens de
relações futuras entre os sexos, mais sadias e que prometam libertar a humanidade da
crise sexual, tem, necessariamente, que abandonar os bairros onde habitam as elites,
com sua refinada psicologia individualista, e olhar as casas amontoadas dos operários,
nas quais, em meio à obscuridade e, ao horror gerados pelo capitalismo, surgem,
apesar de tudo, fontes que vivificam o amor e abrem caminho a um novo tipo de
entendimento entre homens e mulheres.
O código da moral sexual constitui parte integrante da nova ideologia. Portanto, basta
pronunciar as expressões ética proletária e moral proletária, para escapar da trivial
argumentação: a moral sexual proletária não é no fundo mais do que uma
superestrutura. Enquanto não se experimenta a total transformação da base
econômica, não pode haver lugar para ela. Como se uma ideologia, seja qual for o seu
gênero, não se formasse até que se produzisse a transformação das relações
econômico-sociais necessárias para assegurar o domínio da classe que a gerou! A
experiência da história ensina que a ideologia de um grupo social e,
consequentemente, a moral sexual se elaboram durante o próprio processo da luta
contra as forças sociais que se lhe opõem.
A classe revolucionária só pode fortalecer suas posições sociais com a ajuda de novos
valores espirituais tirados de seu próprio seio e que correspondam totalmente às suas
tarefas de força em ascensão. Só mediante novas normas e ideais pode esta classe
arrebatar o poder dos grupos sociais opostos. A tarefa que corresponde, portanto, aos
ideólogos da classe operária é buscar o critério moral fundamental, produto dos
interesses específicos da classe operária, e harmonizar com este critério as nascentes
normas sexuais.
Para constatar sua existência basta olhar a nossa volta. Uma breve análise, uma não
muito prolongada reflexão, é o suficiente para mostrar que a mulher do novo tipo vive
e que a encontramos na realidade. A mulher moderna atua ao nosso lado. Fácil é
conhecê-la. Nós nos acostumamos a vê-la e a encontramos com grande frequência na
vida, em todas as classes sociais, tanto entre as operárias como entre as mulheres
dedicadas ao estudo das ciências, como na modesta empregada e na artista genial. O
que surpreende é que esta nova mulher, que se dedica cada dia com maior frequência
a todas as manifestações da vida, não aparece na literatura com seus traços próprios,
como heroína, nem nas novelas dos últimos tempos. A vida, nas últimas décadas,
forjou, na luta pesada da necessidade vital, outra mulher de tipo psicológico
completamente desconhecido até agora. Uma mulher com novas necessidades e
emoções. Enquanto a literatura continuava apresentando mulheres do velho tipo;
enquanto os literatos se esforçavam em desenhar tipos de mulheres do passado, que a
vida fazia desaparecer, a realidade russa do período compreendido entre 1870 e 1880
produzia figuras do novo tipo de mulher que nascia para a vida, plenas de
luminosidade e encanto. Mas os escritores passavam ao seu lado sem senti -las nem
ouvi-las; eram incapazes de assimilá-las e distingui-las... Turguenev é o único escritor
que se atreveu a esboçar estas figuras, mas as imagens que nos apresenta são muito
mais inexpressivas, muito mais pobres do que a realidade. No poema em prosa
dedicado à moça russa, Turguenev inclina-se ante a comovedora figura da mulher que
se atreveu a transpor o umbral sagrado.
As mulheres heroicas, cujos nomes ficaram gravados nas páginas da história, foram
seguidas por uma grande quantidade de desconhecidas que pereceram como abelhas
em um favo de mel destroçado. Seus cadáveres semearam no caminho ped regoso que
leva ao perfeito, ao desejado futuro. O número de mulheres do novo tipo aumentava,
multiplicava-se no transcurso dos anos, mas os escritores e os poetas passavam a seu
lado sem vê-las, como se uma espessa venda lhes cobrisse os olhos. A visão do
escritor, apaixonada pelos tipos tradicionais de mulher, não podia penetrar nem
compreender a nova realidade que passava diante de seus olhos. A literatura evoluía,
aperfeiçoava-se e seguia novos caminhos; enriquecia seus meios de expressão com
novos matizes e palavras. Mas, em compensação, continuava obstinada em nos
apresentar débeis criaturas enganadas, mulheres abandonadas, entregues à dor,
esposas ávidas de vingança, fêmeas sedutoras, almas “sem vontade, não
compreendidas”, e encantadoras jovens “puras e sem personalidade”.
Na mesma época em que Flaubert escrevia Madame Bovary, vivia a seu lado em carne
e osso Jorge Sand, a mais luminosa precursora do novo tipo de mulher que despertava
para a vida.
Desde logo, não são as encantadoras e “puras” jovens cujas novelas terminam com o
matrimônio feliz, nem as esposas que sofrem resignadamente as infidelidades do
marido, nem as casadas culpadas de adultério. Não são, tampouco, as solteironas que
dedicaram toda a sua vida a chorar um amor desgraçado de juventude, nem as
“sacerdotisas do amor”, vítimas das tristes condições da vida ou de sua própria
natureza viciada. Não. Estas mulheres são algo novo, isto é, um quinto tipo de heroína
desconhecida anteriormente, heroínas que se apresentam à vida com exigências
próprias, heroínas que afirma m sua personalidade; heroínas que protestam contra a
submissão da mulher dentro do Estado, no seio da família, na sociedade; heroínas que
sabem lutar por seus direitos. Representam um novo tipo de mulher.
São mulheres celibatárias, a denominação mais apropriada que podemos dar a este
novo tipo. O tipo essencial da mulher do passado recente era a esposa, a mulher
somente eco, instrumento, apêndice do marido. A nova mulher, celibatária, está bem
longe de ser um eco do marido. Cessou de ser um simples reflexo do homem. Esta
mulher possui seu próprio mundo interior, vive entregue a interesses humanos
generosos. É independente, exterior e interiormente. Há vinte e cinco anos, uma
definição desta classe carecia de sentido, era vazia de significado. Os quadros eram
simples e definidos: a jovem, a mãe, a literata, a amante ou a mundana do gênero de
Elena Kurakin, na novela Guerra e Paz, de Tolstoi. Esses tipos eram modelos correntes,
claros e compreensíveis. Para a mulher não havia lugar, na literatura nem na vida.
Quando a história produzia mulheres com tipos semelhantes às heroínas
contemporâneas, consideravam-se desvios puramente acidentais da norma,
verdadeiros fenômenos psicológicos.
A vida, porém, não pode permanecer imóvel e a roda da história, ao girar cada vez com
ritmo mais acelerado, obriga aos homens de uma mesma geração a aceitar noções
diferentes, enriquece-lhes o vocabulário com material novo. A nova mulher, a mulher
celibatária desconhecida de nossa época e até mesmo de nossas mães, é em nossa
época um fato real, um ser vivo, com existência própria. Elas são milhões de figuras,
envoltas em trajes cinzentos, que se movem desde as primeiras horas da aurora em
intermináveis filas desde os bairros operários até os armazéns, as fábricas e estações,
que enchem os trens, a caminho do trabalho. São essas milhares de moças ou de
mulheres já maduras que, nas grandes cidades, fazem aumentar as estatísticas de lares
independentes. São as moças e mulheres que sustentam uma surda e contínua luta
pela vida, que passam toda sua existência sentadas diante da mesa dos escritórios,
junto aos aparelhos telegráficos e atrás dos balcões.
São essas jovens de alma alegre que, com a cabeça cheia de sonhos e projetos
audazes, se atrevem a assomar à porta dos templos da ciência e da arte, são as que,
com passo firme, quase masculino, percorrem as ruas da cidade em busca de uma aula
mal remunerada ou de algum trabalho ocasional. Elas estão sentadas diante da mesa
de trabalho, no laboratório, entregues a uma experiência científica, nos arquivos,
folheando livros, executando o trabalho de sua clínica ou dedicadas a preparar um
discurso político.
Como numa longa fita de matizes coloridos, surge diante de nós a vanguarda dessas
heroínas diferentes à frente, sem deter-se diante da espessa barreira que formam as
plantas espinhosas da realidade contemporânea, adianta-se com passo tranquilo,
valente e resoluta, a operária Matilde. (8)
Ao lado de Matilde, Tatiana caminha com passo suave. A jovem de Riasan, com os pés
descalços, curtidos e feridos pelo calor e pelo mau tempo. Tatiana anda com os
vagabundos, sem abrigo, sem lar, como ela. “Pedaço de cobre entre um montão de
sucata carcomida pela ferrugem”. Algumas vezes trabalhando em Maikope, durante o
período da ceifa; outras, vagando sem rumo pelas margens do Don, com um grupo de
companheiros de sorte, homens à espreita de um modesto salário.
Tatiana caminha com eles, livre como o vento, solitária como a erva da estepe.
Ninguém a quer, ninguém a defende. Mantém uma luta, contínua e interminável,
frente a frente, corpo a corpo, com o destino, que a atormenta, implacavelmente. Para
as mulheres do tipo celibatário, como Tatiana e Matilde, não há ternura no mundo.
Para elas a vida só reserva asperezas.
Tatiana tampouco se dobra aos castigos da vida. Sua alma traz profundamente
escondido o sonho de um futuro, de transparente inocência; Tatiana caminha pelo
mundo em busca de sorte. Mas esta, como se quisesse dela zombar, toma-se cada vez
mais distante. E a doce e sonhadora Tatiana de Riasan, ávida de vida, ardentemente
esperada, somente recolhe as sobras das poucas alegrias que a terra lhe proporciona.
Um caminhante comove sua alma, fá-la chorar, anima-a e ela se entrega,
singelamente, com toda a sinceridade, por necessidade, como somente se dão as
mulheres solitárias e celibatárias, operárias nômades, a fim de arrancar da vida
pequenos prazeres. Entretanto Tatiana nega-se a unir sua vida ao estranho. “Isto não é
para mim; não o quero. Talvez, se fosses um camponês; mas, assim, não tem sentido.
Não se mede a vida por uma hora, mas, sim, por anos.”
E Tatiana, com um sorriso de adeus, parte em busca de seus sonhos, parte com seus
pensamentos, como se estivesse só no mundo e como se lhe estivesse destinada,
unicamente, a tarefa de recriá-lo completamente. Assim, vivem Matilde e Tatiana,
traçando com o peito e as mãos um novo caminho para o futuro. Seguindo-as, de
perto, vêm as mulheres do novo tipo, pertencentes a outras classes sociais, desejosas
de encontrar a trilha aberta. Os espinhos as prendem e as ferem; seus pés, não
acostumados a caminhar sobre pontas afiadas, cobrem-se de chagas e suas pegadas
ficam marcadas por filetes rubros de sangue. Mas, não é mais possível deter-se. Uma
multidão compacta, cada vez mais densa, avança. Débeis desgraçadas! Imediatamente
são lançadas à margem da estrada pelas fileiras comprimidas que apressam sua
marcha. As companheiras, que se aventuraram a lançar um olhar ao castelo cinzento
da escravidão do passado, continuam sua marcha com a cabeça baixa, na ignorância
do novo caminho.
A vida afigura-se-lhe cheia dos atrativos de um centro cultural capitalista. Na sua luta
pela subsistência, na luta contra a ausência de trabalho para os intelectuais, na luta
pela afirmação de si mesma como individualidade humana e como mulher, Olga vive
como vivem milhares de moças numa grande cidade civilizada, uma vida de solidão e
de trabalho. Não teme a vida e audaciosamente pede ao destino sua quota de sorte
pessoal. Olga sente que o homem que ama está ao mesmo tempo muito perto e muito
longe dela. Seus destinos se cruzam apenas em um momento. Uma vida em comum,
porém, não corresponde a seus interesses particulares.
O amor é somente uma parte de sua intensa e complexa vida. A paixão esmorece.
Extingue-se. O amor também se esvai. Separam-se. Não temos diante de nós, uma vez
mais, uma frágil jovem abandonada, mas sim toda uma individualidade que conheceu
o prazer, na qual o vinho estava misturado com veneno. Olga é mais forte que o
homem por ela escolhido. Nos seus momentos de tristeza, inclusive naquelas de seus
sofrimentos amorosos, ele vai em busca de Olga, que soube distinguir corno sua única
amiga fiel. Na complicada vida de Olga, rica em acontecimentos e lutas, o amor não
constitui mais que um episódio.
Entre a multidão de novas mulheres, ergue sua formosa cabeça, adiantando-se, com
segurança, Lansovelo (10), a médica, heroína típica da mulher celibatária. Toda sua
vida está dedicada à ciência e à prática da medicina. As clínicas representam, ao
mesmo tempo, seu templo e seu lar. Conquistou, por parte de seus colegas de
trabalho, a estima e o reconhecimento de seu valor. Soube recusar, com doçura,
porém com obstinação, suas propostas matrimoniais. Lansovelo necessita de liberdade
e solidão para dedicar-se completamente ao trabalho, sem o que não conseguiria viver
nem respirar. Diante dessa figura de mulher emancipada, vestida sobriamente, cuja
vida está dividida em horas de trabalho, que luta pelo exercício de sua profissão e
obtém triunfos de amor próprio ao emitir um diagnóstico exato, o leitor se sente
surpreendido por uma corrente de frieza. Repentinamente, porém, como cena
observada casualmente, a doutora nos revela um aspecto completamente distinto.
Quando chegam as férias, Lansovelo descansa no campo com seu amigo, médico como
ela. Nesse lugar, revela-se-nos a mulher: reina agora seu eu feminino. Seus vestidos
são vaporosos e claros, seu riso alegre. Não esconde seus amores. Em Paris não vive
com seu amante, porque lhes é mais conveniente, a ambos, e a seu trabalho
profissional.
Deixando para trás a doutora, surge Teresa (11), toda desejo e paixão. Teresa é uma
socialista austríaca, uma valente propagandista. Esteve presa, trabalha com toda sua
alma pelo partido. Mas, quando dela se apodera a paixão, Teresa não renuncia a este
esplendor que alegra a vida, não se envolve hipocritamente no manto desbotado da
virtude feminina. Muito pelo contrário. Teresa estende a mão ao eleito e parte com ele
por várias semanas para sorver até a última gota do prazer e convencer-se de sua
profundidade. Quando Teresa, porém, percebe sua vulgaridade, despreza-o sem
remorsos e sem amargura. Pobre Teresa! Para ela, assim como para a maioria de seus
companheiros, o amor não pode ser mais que uma etapa, um ato momentâneo no
caminho da vida. O partido, seus ideais, a propaganda e o trabalho são o fim de sua
existência, todo o seu conteúdo.
Agnes Petrovna, outra mulher, uma das primeiras heroínas russas do tipo celibatário,
elege, após amadurecida reflexão, o novo caminho para sua vida. Agnes é escritora e
secretária de redação; é antes de tudo, uma mulher que ama o trabalho. Diante de sua
mesa de trabalho, quando em sua mente se forma um pensamento, uma ideia, nada
nem ninguém existe para ela. “Não poderia repartir esses momentos com ninguém -
diz. - Por isso necessito de minha liberdade. Porém, quando Agnes retorna a sua casa,
deixando a redação, trocando seu simples vestido de trabalho por um cômodo roupão,
encanta-se ao se sentir somente mulher e experimentar a influência de seus atrativos
sobre o homem. Não busca no amor o conteúdo e o fim da vida, e sim, somente, o que
é comum nos homens: o repouso, a poesia, a luz.
Agnes não reconhece, nem ao homem amado o menor direito sobre ela, sobre o seu
eu”.“Pertencer a um homem como uma coisa, entregar-lhe a vontade e o coração,
consagrar toda a inteligência e todos os esforços para fazer sua felicidade,
conscientemente, isto talvez possa fazer uma mulher feliz. Mas, por que dedicar todos
esses esforços a um homem somente? Se é preciso esquecer-se de si mesma, não o
faria por um homem, não lhe proporcionaria, a ele unicamente, uma boa comida e
uma vida tranquila. Fá-lo-ia, também, por muitos outros desgraçados... “E, quando
Miatlev tenta acabar com a liberdade de Agnes, quando exige que escolha entre seu
amor e o trabalho, Agnes considera finda sua união. Separam-se os caminhos.
Segue Agnes, sem pressa, com certa vacilação e dúvida, sem tanto amadurecimento,
outra figura de mulher; Vera Nikodinovna (12) pertence à antiga geração com ligeiros
traços de modernismo. Vera é a mulher com um passado que deixou fortes vestígios
sombrios em sua alma. Não é precisamente a necessidade fisiológica que lançou a fria
e calculada Vera nos braços de um homem. “Ninguém consegue imaginar quão longe
estava meu ato da sexualidade, quão longe estava de deixar-me levar”, declara Vera à
sua jovem amiga. Algo distinto a impulsionou. Sede de maternidade? Talvez, somente
o desejo de encontrar uma alma semelhante à sua, um ser capaz de compreendê-la;
perigoso anzol em que se deixam prender até as mulhe res do tipo celibatário, nas
quais predomina o racional. Depois daquilo Vera vê-se assediada de homens que a
desejam, mas evita aproximar-se deles, ainda que mantenha suas esperanças de um
hábito adquirido das gerações passadas. A sedução é a especialidade de Vera.
Entretanto, liberta-se do passado ao manter antes de tudo sua liberdade. Afastada da
vaidade dos salões, Vera é a mulher-individualidade de pensamento e trabalho.
Com seu sorriso triste, segue também a figura da tuberculosa Mary (13).
Embevecendo nosso olhar com a finura de sua alma, tingida de tons suaves, a atriz de
variedades, Renée (18), anda com cuidado para não pisar pedras pontiagudas. Com as
ilusões perdidas e o coração ferido, deixa seu marido e lança um desafio ao mundo
que até então lhe pertencia. Toda a sua vida está agora na arte, na dança, nas
pantomimas que sabe criar. Uma vida errante, fatigante, consagrada ao trabalho. Não
vai em busca de aventuras. Evita-as, porque seu coração já sofreu demasiado. A
liberdade, a independência e a solidão constituem o conteúdo de todos os seus
desejos individuais. Entretanto, quando Renée se senta junto à chaminé de seu la r
solitário, depois de uma jornada de duro trabalho, experimenta a sensação de que a
melancolia e a solidão, com seus olhos frios, penetraram na sua casa e se instalaram
atrás da banqueta em que estava sentada.
“Estou acostumada a viver só - anota em seu diário. - Hoje, porém, me sinto tão
solitária! Não sou livre, independente?... Sim. Mas terrivelmente só.” Nesta queixa há
algo da mulher do passado, acostumada a escutar ao seu redor vozes conhecidas e
amadas, a se sentir rodeada pela ternura que lhe é necessária. Assim, quando Renée
encontra em seu caminho um amor obstinado, deixa-se prender, mergulhada no vazio
cada vez mais profundo em que vive. Mas a paixão não a cega, não obscurece seu
cérebro, acostumado à reflexão.
“Os únicos atacados são meus sentidos”, declara com um arrependimento repleto de
melancolia. “Não sinto nenhum prazer, a não ser físico.” Renée volta a ser o que era. O
novo amor não lhe deu o que sua alma buscava. Nos braços do amado se sente tão só
quanto antes. A vagabunda foge, foge de seu amor, foge porque sua paixão está muito
longe, não tem a menor relação com as exigências delicadas do amor.
A carta de despedida de Renée ao homem que abandona é um documento revelador
da mulher contemporânea, das novas exigências que este tipo de mulher faz à vida.
Atrás de Renée, segue a heroína de Bennet (19), uma escritora. Uma ânsia de êxtase,
de adoração leva-a aos braços de um grande músico. Esta paixão, entretanto, só serve
para que se encontre a si mesma, para afirmar sua personalidade, para revelar seu
talento de escritora e enfrentar a vida com mais calma, com maior reflexão, de modo
mais consciente. Algum tempo depois, quando um novo amor a cerca, não foge
assustada, como faziam as heroínas das velhas novelas inglesas, por se considerarem
indignas, perdidas: Não, ao contrário, vai sorridente ao seu encontro.
Cheia de dor, adianta-se a inquieta, apaixonada Maia (20), a de espírito irônico. Todos
os acontecimentos de sua vida não são mais do que etapas na busca de si mesma, no
desenvolvimento de sua personalidade. A luta com sua família para conquistar a
independência; a ruptura com seu primeiro marido; um curto idílio com um herói
oriental; um segundo matrimônio, cheio de complicações psicológicas; a luta ardente
na alma de Maia entre a mulher do passado e a nova mulher que vive dentro de seu
ser; outra vez a ruptura e de novo a busca, até encontrar o homem que sabe respeitar
sua voz interior, símbolo da personalidade, homem que reconhece seu valor e que
pode criar a união amorosa, interiormente livre com a qual Maia sonhou durante toda
a sua vida.
A nova mulher, independente, interiormente livre, tem que lutar continuamente com
uma tendência atávica, que a põe em perigo de converter-se em sombra do marido,
em seu eco. São bem conhecidos os esforços ingênuos e conscientes da mulher para
adaptar-se, inclusive interiormente, ao gosto do homem amado; para corrigir-se,
segundo o ideal do seu eleito. Como se a mulher, por si mesma, não tivesse nenhum
valor, como se sua personalidade só se medisse pela atitude dos homens que a ela se
dirigiam. É este traço feminino, atávico que fez uma personalidade tão magnífica,
luminosa e sedutora, como a de Jorge Sand, tentar, algumas vezes, abandonar a terra,
em companhia de Musset, e, outras, a renunciar ao mundo da criação artística. Mas, a
sua forte individualidade de Jorge Sand era o que limitava estas experiências.
Chegava o momento em que Jorge Sand sentia esvair-se a sua personalidade e que, em
consequência de sua adaptação, Aurora Dudevant, seu eu feminino, acabaria por
devorar, por apagar o audaz, o rebelde, o ardente sonhador, o poeta Jorge Sand.
Refazia-se completa, repentinamente, e rompia implacável a antiga união. Quando sua
alma havia amadurecido esta decisão, não havia força humana, nem sequer sua
própria paixão, capaz de modificá-la. Quando Aurora Dudevant, num sombrio outono,
deixou sua morada para travar o último e breve encontro com seu amante, decidi da a
romper com ele, não sentimos medo por Jorge Sand, pois sabemos que o encontro não
poderá fazê-la recuar, porque a ela se evidencia, como último tributo, a agonizante
paixão que Jorge Sand lança à soluçante Aurora. A etapa foi concluída. Um ponto
termina o episódio.
A Maia de Meisel-Hess é, naturalmente, muito menor e mais frágil do que Jorge Sand.
Mas nela também descobre-se o desejo de adaptar-se aos gostos do homem amado, e
a tendência atávica de renunciar a si mesma, de desaparecer, de dissolver-se no amor,
que choca com a personalidade humana que se desenvolveu e que nela se apresenta
de modo específico. No momento preciso, Maia também sabe como refazer-se e partir
para salvar sua voz.
Mesmo para a mulher de nossos dias é muito difícil libertar-se da tendência, formada
no transcurso de séculos, de assimilação ao homem que o destino lhe deu por amo e
senhor. Quão difícil é convencer-se de que para a mulher é também um crime
renunciar a si mesma, ainda que em favor do homem amado, em nome do amor!
Ao lado de Maia, segue a ambiciosa Outa, a calculista. Outa é atriz, mas consagra toda
a sua vida a valorizar e enfeitar seu eu, que para ela é o melhor do mundo. Parece que
somente ama a arte, porque é um meio de desenvolver e revelar, com maior grandeza
e variedade, sua forte personalidade. Há em Quta, como reação natural ante a secular
humilhação da mulher, um protesto contra sua renúncia ao direito de ser uma
personalidade com valor próprio.
Entre a multidão de novas mulheres, passa a artista Tânia, para quem a vida reserva
todas as suas carícias. Tânia, embora casada, pertence à categoria das mulheres
celibatárias e, assim como Maia, casou-se três vezes. Este aspecto de sua vida
corresponde completamente à sua fisiologia. Ainda que Tânia viva sob o mesmo teto
que seu marido, continua sendo, como antes de casar-se, uma individualidade livre e
independente. Tânia franze as sobrancelhas quando ele a apresenta a seus amigos
como sua mulher, sem designá-la por seu nome de solteira.
Marido e mulher vivem seu próprio mundo. Ela, consagrada à arte, e ele, dedicado à
investigação científica. Constituem um casal de bons companheiros, unidos por laços
espirituais sólidos, que não impedem sua mútua liberdade.
A clara atmosfera em que vivem se rompe pela cega paixão física que Tânia sente pelo
formoso e másculo Stark. Tânia não ama em Stark o eterno masculino que a arrastou
para ele desde seu primeiro encontro. Tânia não tem nenhum interesse pela vida
espiritual do homem amado, assim como para os homens, mesmo os mais modernos,
não tem importância a alma da mulher apaixonadamente amada. Quando Ana, Maia,
ou Lisa lançam ao homem amado a reprovação habitual: “Eu quero tua alma, que
nunca me entregas..., ele se sente desconcertado.
A atitude de Tânia, com respeito a Stark, tem, portanto, algo de masculino. Sentimos
que a personalidade de Tânia é mais forte, está mais desenvolvida que a de seu
amado. Tânia é demasiado humana, pouco fêmea, para que uma simples paixão possa
satisfazê-la. Reconhece que a paixão que sente por Stark empobrece e seca sua alma,
ao invés de enriquecê-la. Mulheres como Tânia não sofrem tanto com o pensamento
de uma infidelidade feita ao marido, como diante da possibilidade de conciliar a paixão
com o trabalho paciente e metódico que constitui a sua vida. A paixão devora suas
energias e rouba o tempo que deve consagrar ao trabalho. A paixão entrava seu livre
trabalho criador. Tânia sente que começa a perder a si mesma e a perder o que mais
aprecia em sua vida. Parte. Volta para o lado do marido, não impulsionada pelo
sentimento do dever, mas, para salvar a sua personalidade. (21).
Ao lado de Stark acabará por perder a si mesma. Abandona-o, levando em seu ventre
um filho, quando a paixão ainda não estava totalmente extinta. Que heroína de
romance dos bons tempos passados tivera coragem para agir como Tânia?
Tânia tem que enfrentar o mesmo dilema que a Ellida de Ibsen, uma das primeiras
mulheres do novo tipo psicológico. Quando o homem do mar exige de Ellida que se vá
com ele, ela fica ao lado de seu marido que lhe havia dado toda liberdade para decidir-
se. Ellida permanece consciente de que assim poderá conservar sua liberdade interior,
que perderia ao lado do homem do mar. Dá-se conta de que está ameaçada pela mais
terrível escravidão: a escravidão da paixão. Compreende a superioridade de quem tem
preso entre as mãos seu coração de mulher Josefa (22), a de alma firme, forte de
espírito, abre o caminho da vida modestamente. Avança por entre as dificuldades que
obstruem todas as margens do caminho. Rasga a estrada que leva à independência
econômica das mulheres da classe burguesa. E prepara-se para as profissões liberais.
Indecisa, vai tateando o novo caminho, a fina e prudente Christa Rouland (23),
deliciosa figura espiritual de mulher que desperta, que interroga o mundo com
grandes olhos extraordinariamente abertos, que busca a nova verdade; figura de
mulher que pela primeira vez se dá conta e toma consciência de si mesma.
“Eu sou eu e tu és tu, e somente no amor podemos fundir-nos,” é seu lema.
A heroína de Yuchkevitch, a estranha e oprimida Elena (24), passa timidamente à beira
do caminho com os olhos fechados para a nova verdade, enquanto procura ocultar a
tragédia de sua alma, sua grande tristeza humana, incompreensível para ela mes ma.
Flena não é celibatária. Não é uma nova mulher.
Ao lado de Renata caminha a heroína de Grent Aliena (26), que cheia de orgulho leva
nas mãos sua filha ilegítima, fruto de uma união que explicitamente recusou a forma
legal. Com expressão atarefada, apressa seus passos em direção ao laboratório,
Maia (27), do claro sorriso, que encontrou harmonia na vida. Com a cabeça erguida, a
prostituta Myiada (28)sustenta sua missão sagrada em meio à lama da vida que a
rodeia. A socialista revolucionária Anna Siemenovna (29) sabe sobrepujar sua própria
paixão, escondida sob a máscara de coquete. A estudante inglesa Fanny (30), que
zomba dos preconceitos do mundo, desfila também com passos ligeiros. A imagem da
estudante do longínquo norte Anna Mahr (31) também nos acena ao passar. As
heroínas de Bjornson, de Jonas Lie, as filhas do comandante Jakobson, de Loffler,
também querem entrar no novo caminho. Repleta de inquietação, avança indecisa
Jenny, como se ainda escutas;e em sua alma a voz da mulher do passado. Como Tânia
de Nadgrodskaia, Jenny (32) abandona o pai do filho que espera, temendo que a
maternidade estreite mais fortemente os laços que já começam a aprisioná -la.
Audaciosamente continua, mas a voz mulher do velho tipo lhe Faz recordar o passado,
despertando nela sentimentos e concepções já esquecidos. Jeriny detém sua marcha ,
olha para trás e desfalece...
A seu lado, porém, passam figuras sempre novas de mulheres que despertam, que se
rebelam, que buscam o novo caminho. A doce e encantadora figura de Françoise
Houdonn (33), a que sabe sentir um amor-amizade por Christophe e uma paixão por
outro; a de temperamento ardente, ambição insaciável de artista, vontade de ferro e
alma sensível e delicada. A seu lado o tipo cheio de vida e tão real da trabalhadora
Cecília (34), a de forças equilibradas que ignora que em sua tranqüila conquista, está
contida toda a nova verdade. A sufragista Júlia France (35) a emigrante russa Marie
Antine (36), a moça judia que goza dos direitos da cidadania norte-americana e luta
para conquistar uma posição segura; igualmente todas as heroínas de Rikarda
Huch (37), Gabriela Reuther, Sarah Grande e até as heroínas do mundano Marcel
Prevost. (38)
São tantas as heroínas do novo tipo que é completamente impossível citá-las neste
breve estudo. Precisamente pelo fato de que sejam tantas as mulheres que pertencem
a este novo tipo, que cresce todos os dias com outras forças, ainda que algumas dessas
figuras apareçam sob forma banal e em literatura dos boletins, é sinal de que a vida
cria e forma sem descanso o novo tipo de mulher.
A nova mulher traz consigo algo que nos é completamente estranho, que às vezes
chega inclusive a repugnar-nos por sua originalidade. Contemplamos e buscamos
nesse novo tipo de mulher os traços queridos e conhecidos de nossas mães e avós.
Diante de nós, ergue-se, cobrindo totalmente o passado, um mundo de emoções, de
sentimentos, de necessidades completamente distintas. Onde encontrar a
encantadora submissão feminina, a doçura de nossas mulheres do passado? Onde
estará aquele seu talento especial para adaptar-se ao matrimônio, para se submeter
até a um homem insignificante, para ceder-lhe sempre o primeiro posto na vida?
Para conservar seus novos romance de Ilse Frapan, Trabalho, recaem sobre Josefa
sombrios pensamentos, graves cuidados. Josefa gostaria de poder soluçar, chorar por
si mesma, entregar-se a sua dor como o faziam as mulheres do passado. Mas, o
trabalho na clínica, seu trabalho, organizado, dividido em horas, não admite espera. O
trabalho da clínica não é um trabalho que se possa deixar para outro dia, como os
afazeres de casa ou o remendar a roupa das crianças. Josefa tem que ter força de
vontade sobre si mesma, coisa a que o homem está acostumado, esforço
completamente desconhecido das mulheres dos tempos passados; tem que fazer um
esforço para esconder sua vida privada atrás de um muro e apresentar-se no trabalho
sempre à hora certa.
Matilde assiste à morte de seu filho, que constitui toda alegria, era tudo o que havia
restado de seu ardente amor. Porém, seu ofício amarra-a com todas as suas forças à
oficina e seus dedos práticos trabalham, como sempre, sem romper o fio.
A realidade contemporânea exige de uma maneira implacável que toda mulher que se
vê obrigada a trabalhar num ofício ou profissão em qualquer trabalho que a leve a do
lar, possua autodisciplina e força de vontade para saber vencer seus sentimentos,
qualidade que somente poderíamos encontrar, excepcionalmente, nas mulheres do
tipo antigo.
Igualmente característica é a atitude que Maia adota diante da absurda e inútil traição
de seu segundo marido. Maia não desfalece, nem arma um escândalo. Refugia -se ao
lado das camas dos filhos da primeira mulher de seu marido. As cabecinhas
adormecidas têm o poder de dissipar sua tristeza. Regressa depois ao seu lar solitário.
Maia sente frio. Acende a lareira, se enrola em um xale e se impõe a leitura de um livro
interessante. Assim, conseguirá libertar-se, o mais rapidamente possível, de si mesma,
de seus próprios pensamentos; assim recuperará o equilíbrio necessário.
Irina, a heroína do romance de Kredo, Na Névoa da Vida, não somente aceita a antiga
união de Victor, como exige dele para com sua rival, uma atitude delicada. O contrário
sucede quando Victor, ao tomar conhecimento do passado de Irina, lhe disse com ares
de macho ofendido: “que número sou eu? Quero saber... Foram muitos?” Victor é um
homem de vanguarda, um escritor, porém dentro dele, como dentro dos outros, a
besta é mais forte que na insignificante Irina, que só é interessante por estender seus
braços para a nova verdade da vida.
No novo tipo de nova mulher, a ciumenta é vencida cada vez com maior frequência
pela mulher-individualidade. Outro traço característico da mulher contemporânea
consiste nas exigências, cada vez maiores, que faz ao homem. A mulher do passado
estava acostumada por seu amo e senhor, durante séculos e séculos, a esquecer-se de
si mesma, a descuidar completamente seu pequeno mundo espiritual. A mulher do
passado não dava nenhum valor a sua própria personalidade, acostumada aos sorrisos
indulgentes que os homens tinham para com suas debilidades e sofrimentos de
mulher. Por isto resignava-se, sem protestar, a que seu companheiro não prestasse a
menor atenção ao que pensava e sentia. Ainda, em nossos tempos, admiramo-nos de
que somente alguns homens extraordinários saibam compreender a mulher, ainda que
nos momentos de maior intimidade. A causa de quase todas as tragédias familiares, de
todas as épocas, tem sido a atitude superficial, de abandono, do homem diante do eu
feminino.
Com sua experiência, os Don Juan sabiam possuir o corpo da mulher; mas
apoderavam-se também de sua alma, para o que representavam hipocritamente a
comédia da compreensão; deixavam transparecer um interesse cheio de amor pelo eu
insignificante da mulher, ao qual seu marido, embora mais sincero, não prestava a
menor atenção. Como os Don Juan, porém, surgiam e desapareciam e o senhor
legítimo permanecia, a mulher acabava reduzindo suas necessidades e exigências,
obrigada durante séculos e séculos a adaptar-se à vida, até chegar a converter sua
concepção de felicidade à satisfação das coisas exteriores e concretas. Ele
presenteava-a com anéis e brincos; levava-lhe flores e bombons. Não havia
necessidade de outra prova de seu amor. Se se portava com relação a ela de modo
grosseiro e despótico, se lhe impunha uma série de proibições e exigências, era seu
direito, direito de dono do seu coração.
Na luta da mulher moderna para proteger sua liberdade interior, há algo que lembra as
mulheres das antigas lendas, as mulheres dos tempos heroicos. “Cumpriu-se tua
vontade, porém, já não sou tua mulher”, afirma Rosamunda a seu real esposo quando
este a obriga a beber no crânio de seu pai, que assassinara. Na boca de Rosamun da
estas palavras não são uma simples ameaça. Rosamunda mata seu marido, a quem
havia amado apaixonadamente até aquele momento.
A mulher contemporânea perdoa muitas coisas que para a mulher do passado eram
mais amargas de perdoar. Perdoa a incapacidade do homem para proporcionar-lhe um
bem-estar material; perdoa uma falta de atenção de ordem exterior para com ela;
inclusive pode perdoar uma infidelidade; em troca, porém, não esquecerá nunca, nem
aceitará uma falta de atenção para com seu eu espiritual, para com sua alma. Se seu
amigo não é capaz de compreendê-la, suas relações perdem, para a mulher moderna,
a metade do valor.
Quando Christa Rouland pergunta a seu amante o que pensa sobre as mulheres, e este
lhe responde primeiro com gracejos ligeiros e logo depois de forma corriqueira, Christa
experimenta um alheamento involuntário. Não pode compreender como o homem
que soube conquistar seu coração, devido ao interesse que demonstrou por sua
personalidade, por seu eu espiritual, pode mostrar-se tão insensível e não
compreender a enorme importância que para ela teria ouvi-lo expressar-se de outra
forma. O que Christa não pode perdoar a Frank, e o mesmo sucede a todas as
mulheres do novo tipo, é a transformação que sofre o homem depois da posse. O
homem temeroso de perder a mulher amada precisa nela extinguir, ainda que seja
precisamente na mulher querida pelo espírito audaz, pela independência de seu
pensamento, o fogo sagrado da investigação. Esforça-se, cumulando-a de carinhos, por
convertê-la apenas em objeto de seu prazer, de seu gozo.
Christa Rouland observa, cheia de assombro, como o mesmo Frank, que queria levá -la
à esfera de seus próprios interesses espirituais, que sonhava sempre com uma
atividade realizada em comum, começa a se separar, a viver em um mundo intelectual
exclusivamente seu. Já não se trata de um trabalho realizado em colaboração. Nos
momentos em que Christa toma parte, com grande interesse, no trabalho de seu
pensamento, Frank vê nela somente a mulher, tanto mais sedutora por ser fina e
espiritual. Christa sente que seu espírito e sua capacidade para elevar-se com ele às
altas regiões do pensamento não fazem mais do que aumentar seu desejo sexual para
com ela. A nova mulher perdoará a ofensa feita à fêmea, mas ser-lhe-áimpossível
esquecer uma simples falta de atenção para com sua personalidade. O mesmo sucede
com a exigência da mulher moderna de que o homem eleito tenha uma formação
espiritual, questão de que nos fala também Vera Nikodinovna. “Na mulher - pensa
Vera - a inteligência, ainda que seja da melhor qualidade, não desempenha mais do
que um papel secundário. O essencial na mulher é a base moral. Precisamente o
estudo e as leituras desenvolvem esta base moral, a tornam mais refinada e aguda.
Nos homens esta base moral, ao contrário, se cristaliza, e quando se desenvolve é de
forma débil. Esta é a causa de sermos desgraçadas... os homens não compreendem
quase nunca o que nos separa deles.”
A necessidade que tem a mulher de sentir-se amada, não tanto pelo eterno feminino,
e sim pelo conteúdo espiritual de seu eu, torna-se muito mais intensa, como é natural,
quanto mais consciência tem de si mesma, como individualidade. “Maldigo meu corpo
de mulher por sua culpa. Não podeis ver que há dentro de mim algo muito mais
valioso...” Isto se manifesta em todas as páginas do livro Notas de Ana, de Nadejda
Sanjar.
A mulher do novo tipo não somente não tem medo da independência, como cada dia
aprecia mais seu valor, à medida que seus interesses se sobrepõem aos limites
impostos pela família, pelo lar e pelo amor. Assim, não há nada mais espantoso para
Vera Nikodinovna que a dependência material com respeito ao homem: “Oh, se eu
viesse a depender de um homem, se eu viesse a precisar escolher um, para que fosse
meu marido e para que me mantivesse, seria minha maior desgraça...” disse a uma
amiga. Para Vera, ter um marido “proprietário e dono de sua alma” é um pensamento
tão terrível como o cárcere para o prisioneiro que chegou a conquistar a liberdade com
a fuga. “Jamais” - continua Vera - “adaptar-me-ei a essa escravidão. Já havia passado
por uma experiência semelhante...”
“Esteve casada?” “Não, não me casei nunca; mas vivi meu romance, tive uma paixão.”
A nova mulher se sente presa no matrimônio, ainda que este não seja mais do que
laços exteriores. A mentalidade do homem do passado, que ainda permanece viva, cria
laços morais que não são menos sólidos que as cadeias exteriores.
Portanto, as novas heroínas de nossa literatura fogem obstinadamente de tudo aquilo
que possa prendê-las, ainda que seja só exteriormente, ao homem amado.
Até agora o conteúdo fundamental da vida da maioria das heroínas se reduzia aos
sentimentos do amor. Este bastava para dar colorido até a uma vida cheia de privações
de ordem material. Ao contrário, a ausência do amor tornava pobre e vazia a vida de
uma mulher. Nem as riquezas exteriores, nem as honras, nem sequer as alegrias da
maternidade podiam substituir para a mulher a perda de um amor venturoso. (39)
Se uma mulher não amava, a vida parecia-lhe tão vazia como seu coração. Esta é uma
das características que estabelecem uma diferença nítida entre a mulher do passado e
o homem. No homem, ao lado dos acontecimentos amorosos, existia sempre uma
atividade particular. Enquanto a mulher enlouquecia languescia esperando por ele, o
homem lutava contra o destino, em um mundo desconhecido e incompreensível para
a mulher.
A maioria das tragédias psicológicas das relações entre o homem e a mulher eram
causadas pelo fato de que o homem, ansiosamente esperado ao regressar à casa
depois de uma ausência, devido aos negócios ou ao trabalho, retirava os papéis da
pasta, comia depressa e apressava-se para alguma reunião ou se entregava
avidamente à leitura de um livro, ao invés de dedicar toda sua atenção à mulher que
com tanto afã o havia esperado.
A mulher não podia compreender esta atitude do homem, e seu coração explodia em
reprovações. Ela havia deixado por acabar, uma blusa, para esperá-lo; havia
abandonado a comida por fazer; havia adormecido as crianças com o único fim de ficar
sozinha a seu lado, para fazê-lo esquecer os assuntos, os trabalhos e a política. As
mulheres de todas as classes sofriam igualmente com esta incompreensão do homem
e de seus interesses; porque tanto o homem como suas atividades estavam situados,
para elas, em um mundo totalmente desconhecido, muito distante dos limites do
aconchego familiar. A falta de compreensão da psicologia do homem era igual na
mulher do professor e na mulher do funcionário, na mulher do operário e na mulher
do empregado.
Mas, na mulher moderna, a paixão e o amor constituem apenas uma parte de sua vida,
cujo verdadeiro conteúdo é algo mais sagrado e a cuja realização se entrega, isto é, um
ideal social, o estudo da ciência, uma vocação ou o trabalho criador. A finalidade de
sua vida é, geralmente, para a mulher moderna, algo muito mais importante, muito
mais apreciado, muito mais sagrado que todas as alegrias do amor e todos os prazeres
da paixão.
Esta confissão nos revela uma nova característica da psicologia da mulher moder na.
Uma mulher é capaz de retardar por sua própria vontade um encontro desejado e que
a faria feliz. E faz isto unicamente porque está acostumada a escrever pela manhã,
porque lhe doem as horas perdidas, roubadas ao trabalho. Para a mulher do passado,
como seria possível que as horas entregues ao amor fossem horas perdidas? Tânia, a
heroína do romance de Nagrodsafla, durante a lua de mel com Stark, sente-se
continuamente atormentada pela consciência de sua ociosidade.
“Decididamente, reservar-me-ei o dia de hoje. Pedirei a Stark que me deixe só.” Porém
Stark indigna-se e protesta diante de sua proposta. Este era o papel reservado, no
passado, às heroínas dos romances.
“Todo um dia sem você”, diz-lhe em tom de criança caprichosa. “Não a molestarei.
Ficarei quieto.” E prossegue logo depois: “Começo a odiar sua arte. E uma rival com a
qual é difícil lutar.” Tânia cede uma vez mais, porém a consciência do trabalho
abandonado a martiriza. Não é possível para ela entregar-se inteiramente ao prazer,
encontrar calma em seus gozos amorosos, tendo seu trabalho que sofrer as
consequências. “Hoje trabalhei - escreve Târtia, feliz; trabalhei avidamente, com
alegria, quase ininterruptamente, desde as primeiras horas da manhã.” E a descrição
deste dia de trabalho está escrita de maneira clara e alegre. Sente-se ao ler estas linhas
que o ser de Tânia se libertou temporariamente da embriaguez da paixão e encontrou
de novo a si mesmo. Com a paleta na mão, Tânia, entregue ao trabalho, despertou de
seu sonho e se deu conta, de repente, de que independentemente dela e de Stark,
além de sua atmosfera de paixão que os leva até o êxtase, existe um mundo, cheio de
cores e prazeres, com suas próprias alegrias e sofrimentos. De repente se recorda de
seu amigo Weber e lamenta seu abandono.
Não se encontra uma mulher do tipo antigo, capaz de lançar um suspiro de alívio, à
maneira dos homens, ao ver-se livre da embriaguez da paixão, ao retomar o trabalho
abandonado, ao apreciar de novo o valor de sua existência independente, sua própria
individualidade. A maior tragédia para a mulher do passado era a perda ou a traição do
homem amado. Para a nova mulher, a maior desgraça é a perda de si mesma, a
renúncia ao seu próprio eu, sacrificado ao homem amado, à felicidade do amor. As
mulheres do novo tipo se sublevam, não somente contra as correntes exteriores, mas,
também contra a “escravidão do amor por si só”. Têm medo das correntes do amor
com que a psicologia deformada de nossa época aprisiona os amantes. Acostumada a
perder-se totalmente nos tormentos da paixão, a mulher, mesmo a mulher do novo
tipo, vai ao encontro do amor quase sempre com um sentimento de ansiedade,
temerosa de que a força do sentimento desperte nela as tendências atávicas, da
mulher eco do homem, temerosa de que a paixão a obrigue a renunciar a si mesma, a
abandonar seu trabalho, sua vocação e a finalidade de sua vida. Já não se trata da luta
pelo direito ao amor, mas sim, do protesto contra a escravidão moral de um
sentimento que exteriormente pode ser livre. Tudo isto significa a rebelião das
mulheres de nosso período de transição, as quais, todavia, não aprenderam a conciliar
a independência e a liberdade interior, com a força renovadora do amor.
A mulher do passado, quando se desligava do amor, submergia no mundo incolor de
sua vida cinzenta e pobre de conteúdo. A mulher do novo tipo, quando escapa do
cativeiro do amor, recobra sua liberdade com alegria e surpresa. “Terminou a
submissão do pensamento”, escreve triunfalmente a heroína de Kredo, depois de
haver-se convencido de que havia passado a embriaguez da paixão, de que já
terminaram todos os sofrimentos, agitação e temores.
Outra vez sente-se livre e seu coração não está destroçado, apesar de o homem
amado ter desaparecido repentinamente de sua alma Irina regozija-se quando “sente
que recupera as forças e a energia que diminuíam sempre que tentava penetrar nas
profundezas de uma alma estranha a sua, esforço que lhe dava uma sensação de
humilhação. Por isso o despertar de Irina é alegre.” Libertar-se do cativeiro de um
pensamento alheio, escapar à dor e ao sofrimento, voltar a si mesma, encontrar de
novo a personalidade perdida, constitui a maior felicidade para a mulher-
individualidade; sentimentos estes incompreensíveis e desconhecidos para as
mulheres do passado.
Foi necessário, para não fracassarem todos os sentimentos da mulher, nos momentos
em que o homem se afastava de sua vida, que se produzisse uma enorme
transformação em sua alma; foi preciso que enriquecesse poderosamente sua vida
intelectual e que chegasse a acumular um grande capital de valores próprios.
Precisamente porque a vida da nova mulher não se reduz a amar, porque tem em sua
alma uma reserva de necessidades e interesses que a tomam uma individualidade,
mudamos nosso critério de apreciação sobre a personalidade da mulher. Durante
muitos séculos a mulher foi valorizada, não pelas propriedades de sua alma, mas sim,
pelas virtudes femininas que exigia a moral burguesa da propriedade: a pureza, a
virtude sexual. Não haveria perdão para a mulher que pecasse segundo o código da
moralidade sexual. Por isso, os romancistas evitavam, com todas as precauções, a
queda de suas heroínas preferidas, enquanto deixavam que as outras pecassem como
os homens, ainda que estes não perdessem por isto seu valor moral.
“Se Goethe e Jorge Sand - tomemos estas duas personalidades como exemplo, ainda
que sejam muitas as que agiram da mesma forma - atreveram-se a viver conforme os
desejos de seu coração; se as aventuras amorosas de Goethe ocupam volumes
inteiros, devorados com entusiasmo respeitoso por admiradores de ambos os sexos,
por que, então, condenar em outros o que precisamente nos encanta em Goethe e
Jorge Sand?” (41). Seguramente riríamos dos hipócritas que fossem capazes de negar
um aperto de mão a Sarah Bernhardt ou de abandonar um espetáculo por imoral. Mas,
quando se trata de simples mortais, vacilamos frequentemente antes de reconhecer
uma personalidade, duvidamos da atitude que devemos adotar ante a mulher livre do
tipo celibatário. Se verdadeiramente estivéssemos decididos a aplicar a estas mulheres
a medida moral dos tempos passados, seríamos obrigados a abandonar todas as
figuras das mulheres mais belas e humanas da literatura contemporânea.
Notas
1 Tomemos co mo exemplo a moral simplista do homem em suas rela ções sexuais, mo ral que consid era
como um fa to natural e in evitável... a prostituição. Dora, a heroína de vanguarda da novela de
Winitchenco, A Autolealdade, é uma mulher que se sen te en teriormente livre e que assilimila sem
submeter à crítica essa verdade masculina do mundo burguês. Co m uma finalidade superior, pa ra
demonstrar a profundidade de seu sentimento pelo homem que a ma, para afirma r sua personalidade e
evidencia r quâo separados estão seus sentimentos de u ma simples agita ção sangüínea, Dora compra u m
homem... A falsa veracidade masculina de classe é a ceita n este caso por u ma mulher que aspira a
libertar-se, buscando uma verdade superior.
2 Ver capítulo A nova mulher na literatura.
3 Isto explica porque os ro mancistas contempo râneos elegem suas heroínas en tre as mulh eres
representantes do meio burguês. Apenas en contra mos uma heroína perten cente à classe operá ria.
Entretanto , os escritores encontrariam um rico ma terial se decidissem d escer a té estas camadas da
sociedade, onde a dura realidade contemporânea cria, não isoladamente, mas em massa, o tipo de
mulheres dotadas de uma nova estrutura moral, com novas necesidades e emoções.
4 Os traços psicológicos isolados, característicos da nova mulher, se en contram nas heroínas de Go rki
muito mais frequentemente do que nos outros escritores russo s. Sua alma sensível d e a rtista, aberta à
realidade futura, sabe apoderar-se co m muito mais fa cilidade do que a dos outros escrito res, dos traços
que escapam aos olhos dos demais e que se en contram mais estreita mente ligados à realidade
capitalista.
5 Grete Meisel – Hess – A Crise sexual.
6 Convém assinalar que as considerações expostas por Meissel – Hess sobre a defo rma ção da psicologia
masculina, dão a chave de outro problema que a té agora havia permanecido obscuro. O pouco costu me
que os homens têm de levar em consideração a psicologia faminina – a incapacidade para comp reend er
seus sentimentos – não somente os conduz a não prestar a meno r aten ção à alma da mulher, como vai
ainda muito mais além: conduz os homens a ignora r to talmente, co m a mais su rpreendente ignorânica,
as sensações fisiológicas da mulh er durante o ato mais íntimo de suas relaçõ es. Os médicos sbem, a
insatisfação das mulh eres no ato sexual provoca , freqüentemen te, doen ças nervosas. É surp reenden te
que a literatura impregnada pela psicologia masculina haja deix ado passar em silêncio este fato que
explica toda uma série de dramas familia res e de amo r. Quando Maupassant se a treve a abordar a
questão na novela “Uma Vida”, sua “revelação ” provoca uma ingênua su rpresa na maioria dos homens.
7 Este ensaio foi escrito em 1918.
8 Matilde, novela de Karl Hauptmann.
9 Suderman: A Pátria.
10 Colette Iver: Prin cesas da Ciência.
11 Schnitzler: Caminho da liberdade.
12 Potapenko: Na Névoa.
13 Wimitchenko : Na Balança da Vida.
14 Idem.
15 Id.
16 Sangar: Notas de Anna.
17 Grigoriev: O Ocaso.
18 Colette e Willy: A Vagabunda.
19 Bennet: O Amo r Sagrado.
20 Grete Meisel: A Voz.
21 Ilsa Frapan: Trabalho.
22 Hedwing Dohm: Christa Rouland.
24 Yuchkevitch: Saída do Círculo.
25 Wassermann: Renata Fu chs.
26 Grent Allena: A mulher que se atreveu.
27 Winnichenko: Na Balança da Vida.
28 Else Jerusalén: O escaravelho sagrado.
29 O. Rounow: Luta.
30 Bernard Shaw: O primeiro trabalho de Fanny.
31 Hauptman: Solitárias.
32 S. Undset: Jenny.
33 Romain Rolland: Jean Christophe.
34 Idem.
35 G. Aterton: Julia France e sua épo ca.
36 Marie Antine: A Terra Prometida.
37 Por exemplo, Rosa de Vita Omnium Breve.
38 A maioria dos autores citados nestas páginas são mulheres. Muita s de suas obras carecem de
verdadeiro valo r artístico; mas, para o fim a que nos propomos n estas páginas, elas nos oferecem u m
ponto de vista inco mparavelmente mais exato do que as obras dos escrito res de sexo masculino, que são
superiores, em geral, po r seu valor literário . Quase todos os romances escritores por mulheres contêm
trechos puramente biográficos que são precisamente os que maio r interesse apresen tam para o nosso
trabalho. As obras que refletem sem artifícios a verdade da vida, as que nos mostra m mais exatamen te a
psicologia da mulher contemporânea, suas dores, seus p roblema s, seus desejo s, con tradições,
complicações e tendências, serão as que melho r nos servem para en riquecer nosso material no estudo do
novo tipo de mulher em fo rmação. Desde que as mulheres escritoras deixaram d e imitar cegamente os
modelos criados pelos homens e se atreveram a descobrir os mistérios da alma feminina que até en tão
haviam permanecido ocultos, in clusive para os a rtistas mais geniais, desde qua as escritoras
começarama expressar na sua própria língua sobre os p roblemas da mulher, suas obras, ainda que
careçam algumas vezes da beleza exterior da cria ção artística, têm u m valor e u ma significa ção especial.
Em suma todos esses trabalhos nos ajudam a conhecer a mulher celibatá ria, a mulher do novo tipo, em
formação .
39 É característico observar como a maternidade tem sido semp re considerada co mo último refúgio da
felicidade da mulh er. Se o matrimônio não a tornara feliz, se a mulher se via obrigada a renuncia r a uma
união amorosa ou se tinha enviuvado, restavam então, como último refúgio, os cuidados e as alegrias da
maternidade. A maternidade raramente era consid erada co mo um fim em si mesma. Somente p erto da
velhice, despertavam na mulher sentimentos atávicos da espécie, só então aparecia a família com algum
sentido na vida, e se convertia em um ídolo, que ado rava, e para o qual exigia, despoficamente, a
adoração dos outros membros da família .
40 As aventuras amorosas de Matild e não nos impedem de respeitar sua personalidade íntegra e pu ra.
Assim co mo Matild e, sentimo s piedade e desprezo por sua irmã Ma rta, operária como ela, mas que
regressa com dinheiro de cada aventura. Há todo um abismo en tre a liberdade de Matilde e a venalidade
de Marta.
41 A. Bebel: A Mulher
42 Puchkin: Eugenia Onieguin
43 Turguenev: Ninho de fidalgos