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Descivilizar

Um chamado artístico
O projeto Dark Mountain tem aberto espaço para escrita criativa sobre
crítica à civilização há cerca de 10 anos. O manifesto que deu início a
esse movimento não tem uma pretensão política, mas dá um papel
central à criação de narrativas. Ele apresenta o panorama da crítica eco-
anarquista à civilização. O que se segue é um resumo e uma apreciação
desse texto.

Link para o manifesto traduzido: https://contraciv.noblogs.org/de-


civilizacao-o-manifesto-dark-mountain/

A civilização não é mais uma base sólida e confiável na qual podemos


cultivar e preservar nossos valores mais caros. Ela é extremamente
frágil. Viver na cidade é como caminhar sobre um chão de lava que
acabou de solidificar. A crosta é rígida, mas quando se racha revela um
interior instável. Tudo que é sólido se desfaz no ar.

Procuramos um espaço criativo para além da ilusão de estabilidade, que


torna muitas de nossas atividades possíveis. Referências para caminhar
adiante apesar da civilização e de seu iminente fim. Uma arte
descivilizada.

Em seu livro Jardim das peculiaridades, Sepúlveda diz que “a


linguagem cumpre uma dupla função: padroniza e impõe significados,
mas também libera. Através da linguagem o sujeito resiste à objetivação
que produz a razão instrumental mediante suas práticas
padronizadoras”.

A civilização é um sistema de crenças insustentável

A base da civilização são suas crenças. O que acontece quando essa


crença começa a desmoronar? Em primeiro lugar, se desfaz o muro que
nos separa do selvagem. A realidade civilizada começa a “experimentar
um influxo do selvagem e do oculto”, na medida em que tomamos
contato com a realidade não domada. As reações a esse contato, como a
reação do europeu chegando à América, podem ser as mais variadas.
Como um mecanismo de defesa, o civilizado busca restabelecer seu
controle.

Nós acreditamos que nossas ações não terão consequências. Todos os


esforços são focados em evitar o colapso econômico, enquanto o
colapso do sistema de crenças civilizacional prossegue, produzindo
consequências humanas significativas.

O mito do progresso

O moderno mito do progresso é o motor da civilização e herda seu


poder de mitos anteriores, como o mito romano da proeza guerreira e o
mito cristão da salvação eterna. O mito do progresso é a versão secular
de mitos religiosos.

Na medida em que nosso conhecimento sobre a história humana avança


e o eurocentrismo dos colonizadores é questionado, o mito do progresso
se abala. Esta crise de fé produz instabilidade social e psicológica. A
insanidade civilizacional, outrora canalizada para a produção, não mais
se encontra sob controle. O mito nos cegou para algo que começa a ser
vislumbrado novamente agora, e este vislumbre é aterrorizante.

O mito da natureza

“O mito do progresso é fundado sobre o mito da natureza. O primeiro


nos diz que nós somos destinados à grandeza; o segundo que a grandeza
não tem um custo”.

O mito civilizacional nos convence de que triunfamos sobre a natureza.


Mas quem de fato triunfou, e sobre o que? As evidências de que a
civilização deve durar para sempre começam a desvanecer. Alguns
sugerem que elas nunca existiram, e que nossa gigantesca crença na
civilização foi alimentada por mecanismos parecidos com a crença que
os medievais tinham na igreja católica. Evidências antropológicas nos
levam a crer que a suposta grandeza da civilização não passa de uma
incrível arrogância. Ao invés de superar a natureza, nós nos alienamos
dela, e está é a verdadeira origem da crise humana, ecológica e social.

Criamos uma história na qual nós podemos nos isolar da fonte de nossa
existência. Essa história nos permitiu avançar independente do custo
ambiental, criando uma crise ambiental que ninguém até pouco tempo
atrás poderia imaginar que seria possível. As soluções propostas para
essa crise são ingênuas: acordos políticos e novas tecnologias que
prometem mais do que podem entregar. Criamos uma gigantesca
expetativa em torno dessas soluções. “Ainda haverá crescimento; ainda
haverá progresso: tudo isso continuará por que isso tem que continuar,
então não há nada que isso possa fazer além de continuar. Não há nada
para se ver aqui. Tudo ficará bem.”

Nada ficará bem

E será que as coisas deveriam ficar bem? Bem para quem? A que custo?
Talvez possamos viver numa bolha autossustentável, totalmente isolada
do resto da natureza… Mas essa bolha é, afinal, a própria civilização.

Ela foi construída com base em combustível fóssil, energia barata, que
em breve não estará mais disponível. Nós pensamos que basta criar uma
nova tecnologia para reverter tudo isso, para impedir o horror que
desencadeamos sobre o resto do mundo de atingir nosso castelo de
areia. Mas nada pode impedir as consequências de uma violência desse
tamanho. O preço irá ser pago em algum momento, e ele não é pequeno.

Nós temos exigido soluções viáveis para preservar o modo de vida no


qual nos acomodamos. Esperamos que pequenas mudanças nos nossos
hábitos sejam suficientes: reciclagem, alimentação orgânica ou
vegetariana, caridade, inclusão social… Tudo isto é ótimo, mas NADA
DISSO pode solucionar a crise em que a civilização colocou o mundo e
o ser humano. O ecocídio não é algo que políticos e cientistas possam
evitar. Por mais difícil que seja acreditar nisso, nós conseguimos de fato
colocar o planeta inteiro em risco.

Crise axiológica

A modernidade não ocorre sem uma profunda crise axiológica.


Enquanto ambientalistas participam de conferências corporativas sobre
“sustentabilidade” e “consumo ético”, os valores intrínsecos à
civilização, aqueles jamais questionados, aprofundam uma crise que não
tem uma solução técnica, econômico ou mesmo ecológica. Os
ambientalistas caíram na armadilha da institucionalização.

A propaganda civilizacional nos deixa em estado de negação quanto à


realidade da crise. O tamanho do buraco é inimaginável quando se
compra a ideologia do progresso, mesmo a versão mais ambientalista
dela. As pessoas têm uma enorme dificuldade em ouvir coisas que não
se encaixam na visão de mundo delas. Encarar diretamente as coisas que
desafiam a nossa compreensão fundamental do mundo pode ser mais
doloroso que uma luta física.

Nós negamos o colapso que já está acontecendo. Nosso desafio não é


técnico, é axiológico. Nossa sobrevivência não depende de uma ideia
criativa para uma nova tecnologia, mas da nossa capacidade de superar
séculos de arrogância que nos convenceram que somos superiores.
Nossas crenças nos deixam cegos e surdos para aquilo que questiona
nossos privilégios.

Nós acreditamos que o futuro é uma versão aperfeiçoada do presente.


Como uma vítima de abuso que ainda crê que seu abusador vai
melhorar, nós apostamos nossa vida nas mãos de uma cultura que
escravizou continentes inteiros e, sem nenhum bom motivo, confiamos
que essa cultura vai melhorar.

Como um vício crônico, a força dessa crença nos leva a


comportamentos autodestrutivos. Não suportamos a ideia de perder tudo
que fizemos. A realidade dura é que nada disso é durável. Um pequeno
grupo de privilegiados teve, ao custo das vidas de muitos outros, acesso
a coisas realmente incríveis, mas tudo depende de condições que, como
podemos ver agora, são temporárias. É um esquema de pirâmide, e está
chegando ao fim. Em breve a base estará esgotada demais para manter o
topo, e tudo ruirá.

Tudo isso gera depressão, ansiedade e outras condições associadas ao


stress. Nós lidamos com isso nos drogando, ou trabalhando muito, ou
ajudando pessoas, enfim, nos focando numa atividade. Quando algo ou
alguém nos força a olhar para baixo e perceber que não há chão, a
reação é negação, raiva, depressão, barganha e, algumas vezes,
aceitação.

Mas será que encarar a montanha escura é tão ruim assim quanto nós
imaginamos? Será que não há nada de bom que pode ser produzido a
partir dessa experiência assustadora?

Criando novas histórias

Saia do seu cubículo e passe um tempo em contato com o mundo que


essa civilização negou. Suba numa árvore, ouça o que ela tem a dizer.
Entre num rio, ouça o que ele tem a dizer. Deite-se numa pedra, e ouça.
Ela tem uma voz também, se tiver paciência de ouvir. O que esses seres
estão dizendo? Será que estão sugerindo a colonização de outro planeta?
Ou talvez estejam dizendo: “Por onde você andou? Sentimos sua falta”.
Você pode pensar na natureza como um demônio que quer te matar, ou
pode pensar nela como indiferente. E pode pensar nela de um modo bem
mais complexo, como uma casa que nós abandonamos.

Retornar para casa é um exercício de maturidade incrivelmente difícil.


Criamos histórias religiosas, seculares, científicas, econômicas e
místicas. “Mas todas elas falam da transcendência original da
humanidade de seu princípio animal, do nosso domínio crescente sobre
a ‘natureza’ a qual nós não pertencemos e do glorioso futuro de
abundância e prosperidade que irá chegar quando esse domínio for
completo”.

Essa história está nos matando. Cambaleamos perturbados tentando nos


convencer que ela faz sentido, como um mentiroso afundado na culpa,
temendo e se escondendo da verdade o tempo todo. Com medo de
perder o amor que não merece da pessoa que traiu. Inventamos teorias
muito elaboradas para justificar nossa crença, mas no fundo sabemos
que é tudo tentativa de ganhar tempo. Amanhã eu falo. Por fim,
esquecemos que essa história é inventada. Ela foi contada tantas vezes
que se tornou verdade para nós.

O mito da civilização se esconde por trás de uma fachada científica e


racional. Hoje em dia a escrita se tornou mero entretenimento. “É difícil
de imaginar que a palavra de um poeta já foi temida por um rei”. As
histórias hoje visam apenas nos distrair. Porém, elas ainda têm o poder
de mudar o mundo se forem ‘desdomesticadas’.

As histórias contadas pelos profissionais da civilização são apresentadas


como se fossem descrições neutras de como o mundo é. Há muita
discussão sobre os detalhes, mas o plano geral encontra aceitação
massiva. Todos concordam com a centralidade humana, o controle sobre
a “natureza”, o nosso direito de perpetuar o crescimento econômico e a
nossa habilidade de transcender todos os limites.

A narrativa civilizatória é o Titanic prestes a afundar. Sem escritores,


artistas, poetas, e contadores de histórias, o projeto da civilização é
inconcebível. “É hora de retomar o que largamos e renovar as histórias”.

Um chamado artístico

Artistas gostam de quebrar tabus. O último tabu é o mito da civilização.


O manifesto faz um chamado para artistas que queiram explorar essa
possibilidade, que ele compara a uma montanha escura. Significa que o
caminho não é fácil, mas pode ser belo e inspirador. “O ecocídio exige
uma resposta”. A de-civilização seria uma resposta artística ao ecocídio.
Uma forma de escrita que desafia a própria civilização. “Uma resposta
artística ao desmoronamento dos impérios da mente”.

Isso significa sair da bolha, pelo menos criativamente. Somos primatas


que construíram um mito de sua própria importância para sustentar seu
projeto civilizatório. Tentamos civilizar as florestas; os desertos; as
terras selvagens e os mares, e no processo nós erodimos o fio que no
liga à teia da vida. Para fortalecer esse fio, é preciso mergulhar no
universo não humano, que nos esforçamos para ignorar.

A escrita de-civilizada não é uma escrita ambiental, preservacionista,


que ainda é profundamente antropocêntrica. Não é uma escrita sobre a
natureza, o que já implicaria numa separação. Não é também uma
escrita política, pois não reconhece uma organização política que a
represente. A escrita de-civilizada é o questionamento de uma visão de
mundo. Alguns autores o fizeram, ao seu próprio modo, mesmo não
recebendo nenhum reconhecimento, que é o que se poderia esperar.

Esse redirecionamento da ênfase do homem para o não homem não é


nem misantrópica nem pessimista. Essa desumanização é
reumanizadora, como olhar para o outro ajuda o egoísta a se reencontrar
enquanto ser humano. Não é uma rejeição da humanidade, mas uma
ressignificação. Nós tentamos governar o mundo e falhamos
miseravelmente. O tempo da civilização já passou. A de-civilização
reconhece os erros e procura um caminho adiante que não seja uma
negação.

Os princípios do movimento

O movimento de-civilizacional acredita profundamente na beleza dos


campos abertos, longe das grandes cidades. E acredita na escrita que
vem desses lugares. Mora nesses lugares, e não apenas está de férias
nele. Os oito princípios da de-civilização são:

1. Nós vivemos em uma era de colapso social, econômico e ambiental.


Tudo a nossa volta nos indica que a nosso modo de vida já está
desaparecendo e entrando para a história. Nós vamos encarar essa
realidade honestamente e aprender a conviver com ela.

2. Nós rejeitamos a fé que prega que as crises convergentes da nossa


era podem ser reduzidas a uma série de “problemas” que necessitam
de “soluções” técnicas ou políticas.
3. Nós acreditamos que as raízes das crises estão nas histórias que nós
temos contado para nós mesmos. Nós pretendemos desafiar as
histórias que sustentam a nossa civilização: o mito do progresso, o
mito da centralidade humana e o mito da nossa separação da
“natureza”. Esses mitos são mais perigosos pelo fato de nós termos
esquecido que eles são mitos.

4. Nós iremos reafirmar o papel das histórias como algo mais do que
mero entretenimento. É através das histórias que nós tecemos a
realidade.

5. Seres humanos não são o objetivo e propósito desse planeta. Nossa


arte irá começar com a tentativa de pisar para fora da bolha humana.
Através da atenção cuidadosa, nós vamos nos reaproximar no
mundo não humano.

6. Nós vamos celebrar a escrita e a arte que estão enraizadas em uma


noção de espaço e tempo. A nossa literatura tem sido dominada por
tempo demais por aqueles que habitam as cidadelas cosmopolitas.

7. Nós não iremos nos perder na elaboração de teorias e ideologias.


Nossas palavras são elementares. Nós escrevemos com terra debaixo
de nossas unhas.

8. O fim do mundo como nós conhecemos não é o fim do mundo como


um todo. Juntos, nós encontraremos a esperança além da esperança,
os caminhos que nos levarão a um mundo desconhecido além de
nós.

Se você gostou dessa ideia e deseja participar, entre em contato pelo e-


mail contraciv@riseup.net.

Contraciv, 2019
contraciv@riseup.net
contraciv.noblogs.org

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