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DIREITO ADMINISTRATIVO II

A ALTERAÇÃO QUE NÃO FOI ALTERADA

DANIEL LOURENÇO
A reforma do CPA (2015) tem sido bastante discutida. Não obstante,
bastantes aspetos positivos, várias criticas lhe têm sido apontadas. Uma das matérias
mais discutidas tem sido, sem dúvida a refente ao privilégio de execução prévia ou de
autotutela executiva.
A autotutela executiva ou a execução prévia carateriza-se pelo uso da força
por parte da Administração, designada por coação, que visa o cumprimento de
obrigações que não tenham sido voluntariamente aceites por parte dos particulares.
Assim, a administração goza de um poder de execução, com recurso aos seus próprios
meios e se necessário coercivamente, dos atos administrativos criadores de deveres
para os particulares, no caso do seu cumprimento esbarrar numa resistência ativa ou
passiva destes, sem necessidade de recorrer aos tribunais. Nas palavras do professor
FREITAS DO AMARAl, trata-se da adequação ou transformação da realidade
fáctica de acordo com a definição normativa anteriormente expressa.
Grande parte da doutrina vê na autotutela executiva um dos principais pilares
do poder da Administração Pública. Como salienta o professor MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA,“tanto a obrigatoriedade, como a eventual executoriedade, são
corolários da circunstância de Administração Pública, ser instituída com um poder
público, ao qual o ordenamento jurídico confere, em maior ou menor medida, o
poder de dizer e executar o Direito”1. Como reforça o referido professor, é este poder
conferido à administração que a distingue dos particulares. Um particular, para fazer
valer o seu direito subjetivo, tem que recorrer ao poder judicial de forma a obter uma
sentença que execute o seu direito reconhecido.
Diferentemente da posição acima sustentada, o professor RUI GUERRA DA
FONSECA vem refutar a contraposição acima referida escrevendo que “o principio
da separação de poderes parece representar, ele próprio (...) a negação de uma
autotutela púbica enquanto figura geral, contraponível à autotutela privada” 2 .
Assim, o autor citado defende que estamos perante um heterotutela visto que cabe, em
primeira instância, aos tribunais a definição do direito à situação concreta e aplicação
do mesmo, segundo o Principio da Separação de Poderes (art. 111.º CRP).
Posição semelhante tem, no nosso entendimento, o professor VASCO
PEREIRA DA SILVA, quando refere que o ato administrativo não é, nem pode ser,

1 AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Teoria Geral do Direito Administrativo, O novo regime do


Código de Procedimento Administrativo, 3ª Edição, 2016, Almedina.
2
RUI GUERRA DA FONSECA, O fundamento da Autotutela Executiva da Administração Publica.
uma “manifestação de um poder que se limita a agredir de forma egoísta e unilateral
dos direitos dos particulares”3. ´
No CPA de 1991, o respectivo artigo 149/2, consagrou neste domínio uma
solução que procurou um equilíbrio entre posições mais extremadas preconizadas a
doutrina.
Numa primeira posição, que correspondia à conceção tradicional do privilégio
de execução prévia, o ato administrativo podia ser sempre objeto de execução
coerciva por via administrativa, salvas exceções legais. Era a visão perfilhada pelos
professores MARCELLO CAETANO4 e MARQUES GUEDES5.
Numa segunda posição, que perfilhava uma conceção ultramoderna defendida,
designadamente, por ROGÉRIO SOARES, SÉRVULO CORREIA, MARIA DA
GLÓRIA GARCIA e por VASCO PEREIRA DA SILVA e CARLA AMADO
GOMES, 6 preconizava-se que a execução coerciva por via administrativa só seria
legitima em matéria de policia administrativa e, para além desta, nas hipóteses em que
a lei expressamente o autorizasse caso a caso.
A decisão acabou por reconhecer que qualquer uma das posições seria
insatisfatória por ser demasiado extremista: a primeira conferia poderes excessivos à
Administração e a segunda manietava-a, na generalidade dos casos, e conduziria
fatalmente à paralisação da acção administrativa.7
Concebeu-se, assim, uma solução intermédia, que ficou consagrada no artigo
149º/2. Segundo o corpo desta norma, as decisões administrativas eram executórias
por si só, podendo ser impostas coercivamente aos particulares, pela administração,
sem necessidade de um recurso prévio ao poder judicial. Esse preceito legal constituía
uma espécie de habilitação genérica para a definição unilateral pela administração
pública, sem cobertura judicial prévia, do direito para determinada situação jurídica
concreta, bastaria apenas que o fizesse pelas formas e nos termos previstos no CPA ou
admitidos por outras leis. Ou seja, a execução coerciva por via administrativa é

3
PEREIRA DA SILVA,VASCO, Em busca do Ato Administrativo.
4
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol.I;
5
MARQUES GUEDES, A Administração Pública, novembro de 1959;
6
CARLA AMADO GOMES, Contributo para o estudo das operações materiais da Administração
Pública e do seu controlo jurisdicional: “a vontade de realizar ativamente determinada atividade, por
mais relevante para a salvaguarda ou realização do interesse público que possa ser, não pode ser
forçada. A livre determinação do individuo faz parte do núcleo essencial do direito à integridade física
e psíquica (art.25/1CRP), do que resulta que a previsão legal da possibilidade de execução coerciva
da prestação positiva infungível é materialmente inconstitucional e susceptível de gerar uma atitude de
legitima resistência ativa por parte do particular obrigado (art.21CRP).”
7 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo II;
legitima em todos os casos em que exista ato administrativo executório, mesmo que
não esteja prevista em qualquer outro texto legal, mas as formas de execução e os
termos em que ela é feita terão de estar previstos na lei.
O professor DIOGO FREITAS DO AMARAL 8 , não via qualquer tipo de
inconstitucionalidade nesta solução, e considerava que seria fundamental do ponto de
vista da prossecução eficiente e rápida do interesse público, que com outra solução
ficaria manietado pelos interesses privados, além de provocar uma lentidão na Justiça
Administrativa.
Ora com a aprovação do novo CPA, denota-se uma clara propensão para um
modelo de administração judiciária. Como refere o preâmbulo do presente diploma,
uma das inovações “ é a consagração do princípio de que a execução coerciva dos
atos administrativos só pode ser realizada pela Administração nos casos
expressamente previstos na lei ou em situações de urgente necessidade pública,
devidamente fundamentada ( artigo 176.º)”. Assim, a Administração Pública vê
diminuída a discricionariedade do seu poder de autotutela executiva, ficando esta
apenas reconduzida às situações previstas nos casos expressamente previstos na lei
(princípio da legalidade previsto no art. 3.º CPA) ou em casos de urgente necessidade
pública, devidamente fundamentada. Fora destes casos, a Administração terá que
recorrer aos tribunais de forma a obter um título legítimo para a sua atuação,
conforme o art. 183.º CPA. Consequentemente, como aponta o nº2 do art. 8.º do
Decreto-Lei nº4/2015 de 7 de Janeiro, as situações em que a Administração pode
praticar atos administrativos impostos ficam sujeitas à aprovação de um diploma legal
que defina os casos, as formas e os termos em que a administração pode atuar na
vertente de autotutela executiva.
Esta opção legislativa, segundo o Professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
expressa o princípio da legalidade, conjugando este com a necessidade de resposta a
situações urgentes de necessidade pública. Tecendo um elogio a esta revolução
administrativa, baseada no ordenamento Francês, este douto autor refere que o novo
CPA visa definir os pressupostos de atuação da Administração Pública relativamente
à prática de atos materiais de execução coativa, de acordo com um principio
fundamental de toda a atuação administrativa, o Princípio da Legalidade. Tal
fundamento encontra-se no Estado de Direito (artigo 2.º CRP), visto que qualquer

8 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo II;


atuação da Administração tem de resultar de uma norma de competência que
configure os poderes de ação do poder administrativo no caso concreto.
Conforme o que foi referido, só quando a Administração obtiver um título
executivo judicial é que poderá usar a força para obrigar a realização do ato devido.
Denota-se assim, uma administração paritária, isto é, o balanço entre o efeito
pretendido pelo Administração e o objetado pelo particular. E, aqui, concretiza-se
verdadeiramente toda a construção do professor VASCO PEREIRA DA SILVA. O
particular deixa de ser encarado como um administrado para passar a ser encarado
como um particular, um sujeito de direitos, colocado numa situação de igual para
igual com a Administração.9
No entanto, a aplicação do novo regime gera alguma controvérsia.
Primeiramente, como refere o professor PAULO OTERO, poderá ser colocada em
causa a conformidade constitucional do regime. Tal como prevê o CPA, o novo
regime fica sujeito a uma lei, a ser publicada no prazo de 60 dias, de forma a definir
quais os critérios do privilégio de execução prévia da administração. Porém, três anos
decorridos desde a publicação do CPA de 2015 e a lei nem vê-la.
Daí que se levante a questão de saber se a aplicação do regime transitório
poderá ser considerada inconstitucional. O legislador, de forma bastante acelerada,
tentou alterar o regime da execução dos atos, dando resposta aos pedidos e à
teorização da doutrina, esquecendo-se que a lei de autorização legislativa não
contempla o regime provisório indicado no art.6.º e 8.º nº2 do diploma preambular
que aprova o CPA. Logo, fica suspenso o regime de execução do ato.
Suscita-se outra particularidade. Durante a pendência deste regime, não há
legitimidade de atuação da Administração, uma vez que a administração rege-se pelo
Principio da Legalidade, e não existindo uma norma de competência, todos os atos
praticados estão ficam feridos de usurpação de poderes, o que conduz à nulidade. E
subsequentemente, não há dever de obediência a atos nulos. 10
E mais, cria-se um verdadeiro impasse. Ora, a Administração não pode aplicar
as normas do regime regra, visto que, de momento, se encontra paralisada à espera da

9 Não obstante o enorme respeito que temos para com o professor, consideramos que esta solução não
é, de todo, a mais adequada. É certo que particular é um sujeito de direitos mas é necessário perceber
que a Administração prossegue o interesse público, não pode estar numa situação paritária em relação
ao particular.
10
PAULO OTERO, Comentários ao Novo CPA;
lei, no altar do novo código de processo administrativo. Ora, a aplicação das normas
do regime transitório é inconstitucional e o particular pode oferecer resistência. 11
Portanto, parece que se verifica uma repristinação de um regime anterior, que
foi integralmente revogado, suspendendo-se desta forma uma das maiores
autoproclamadas inovações administrativas do CPA em vigor. Não se compreende o
eterno silêncio do legislador no respeitante a esta questão. Tanto mais porque se trata
de uma matéria situada no cerne da relação jurídica administrativa, onde os
particulares são afetados diariamente e, onde, em ultima instância, se poderá convocar
a própria responsabilidade do Estado por omissão legislativa.12
Na nossa opinião e, vale o que vale, o legislador pretendeu acompanhar a
doutrina e não pensou nas repercussões potenciais de uma alteração como esta. É
uma reforma necessária, é uma reforma que faz sentido, é uma reforma dentro dos
valores e do espirito do sistema, mas, também é uma reforma que necessita de uma
ponderação adequada, ponderação essa que, no nosso entendimento, não existiu.
Tentou eliminar-se o pecado original (associado a uma Administração autoritária,
tão criticado pelo professor VASCO PEREIRA DA SILVA, mas, na verdade a
Administração continua condenada a uma vida pecaminosa, mais não foi do que uma
tentativa mal sucedida.

11 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e FAUSTO QUADROS, Comentários à revisão do Código de


Procedimento Administrativo;
12 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e FAUSTO QUADROS, Comentários à revisão do Código de
Procedimento Administrativo;
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