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Palavra dramatúrgica x palavra cotidiana: o “quando” dialógico

Saber entrar e saber sair de cena. Saber conectar-se. A dimensão cênica transborda inúmeras
fronteiras, algo que sugere, portanto, compreensões e percepções cambiantes para contextos que
transmutam, inclusive, dentro de um mesmo acontecimento. Faz-se necessário perscrutar algumas
dinâmicas para encontrarmos linhas-guia que desdobrem as inclinações de cada elemento da
encenação. O “porque” e o “onde” cênicos, por exemplo, cabem à autoria. É no ato criativo de
estipular a trama que se estabelecem as coordenadas para “o que” e “quem” deverá entrar em cena,
mediante certos encadeamentos narrativos que podem ou não determinar um local para o desenrolar
da ação. O “como” cênico é, em grande parte, atribuição da performance. Por cima do texto, das ações
e de outros elementos pré-estabelecidos, sobrepõe-se uma partitura que envolve o tom com que são
ditas as frases, eventuais pausas, gestos surgidos no calor do momento, grunhidos. O “como” pode
até ser sugerido na rubrica, mas jamais será imposto pelo texto. Já o “quando” nos leva à outra
concepção. O quando já foi explicado, de certo modo, pelo “porque”, o “onde” e o “como”. Tais
vetores já oferecem bastante pano pra manga no âmbito do pensamento artístico, tornando-o um tanto
secundário, caso este seja o enfoque. É na cena cotidiana que o “quando” ganha contornos de primeira
grandeza. Nos diálogos que ocorrem em nosso dia-a-dia não existe a possibilidade de pré-fixar o que
será dito, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, ou seja, o que será dito e o quanto será
dito. Este cenário tem o fluxo como elemento chave, e o modo como será conduzido o diálogo de-
penderá da sensibilidade daqueles que participam, no que tange a observação do comportamento do
interlocutor, bem como da sequência de palavras utilizadas. Tal como numa dança em dupla, devemos
compreender o momento em que conduzimos, o momento em que somos conduzidos ou certas zonas
de indiscernibilidade em que essas definições estão borradas, seja porque algo está prestes a ser
definido ou porque a própria dinâmica não sugere algum tipo de definição. O problema, no sentido
desagradável do termo, surge quando uma das duas pessoas age como se estivesse sozinha,
atrapalhando o andamento do processo por conta de gestos exagerada e talvez prolongadamente auto-
centrados, restando ao par apenas revirar os olhos discretamente e lamentar. Com as palavras ocorre
algo bastante similar.
Quando calar. Quando falar. Quando pausar. Eis os componentes da orquestração dialógica.
Na medida em que o enredo da vida está em permanente construção e reconstrução, o objetivo das
personagens, que somos nós, seres de carne, ossos e sonhos, não está totalmente claro. Isso não
impede que as características dos contextos em que as conversas ocorrem produzam um tom, uma
frequência afetiva, lógica, sensorial, em que cada lance, cada atualização poderá produzir mais fluidez
ou, em contrapartida, o naufrágio do diálogo. O “quando” dialógico sugere o “quanto” dialógico.
Sendo assim, se não sabemos de antemão o que dizer ou, pelo menos, a resposta que obteremos,
estamos sempre tateando, sentido a “temperatura” da interação, para que possamos dar o próximo
passo, do mesmo modo como no exemplo da dança apresentado anteriormente. Muita coisa é
permitida nessa dança verbal, mas é preciso perceber que esta ocorre na conjunção de interesses que
superam o interesse individual. O indivíduo, quando se sobrepõe demasiadamente nessa relação, seja
no ato brusco, pelo silêncio e pela fala desmoderados, ou mesmo através da imposição de suas
inapropriadas idiossincrasias, acaba por afogar-se em suas escolhas. Sabemos que a pessoa que se
afoga, por vezes, não pode ser salva, já que se debate tanto e tão continuamente, que não resta ao
salva-vidas outra alternativa que não seja afastar-se, na iminência do próprio afogamento. Quando
interagimos com alguém, não queremos afogar-nos. Também não queremos que nosso interlocutor
nos afogue com seus exageros. Buscamos, instintivamente, o ritmo, a fluência que possibilitará o
prosseguimento da dinâmica. Nesse sentido, o diálogo não se esgota numa conversa. Uma conversa
é um capítulo num grande diálogo chamado relação. Quando encaramos determinado diálogo como
o último ou o único, estamos, nós mesmos, sabotando o todo do processo, mais uma vez como o
afogado que, por não suportar a tensão que se desdobra do medo de morrer, procura antecipar sua
morte pela movimentação desesperada, descoordenada e, em certa medida, involuntária, o que,
precisamente, poderá levá-lo à morte. A morte metafórica, retomando o raciocínio, é a morte da
relação. É o enfado, o aborrecimento e o desdém de quem se relaciona, mesmo que isso não seja
demostrado ou, inclusive, mesmo que isto seja brilhantemente disfarçado pela afabilidade, pela
educação e por uma consideração ou respeito relativo ao somatório dos eventos pertencentes à
relação.
Perceba que não existe um limite combinado previamente para a maneira como devemos nos
comportar. O que há é uma orquestração das ações, regida pelo grau de sensibilidade em relação aos
contextos que se apresentam. Em grande parte das vezes, o modo de agir dos dialogantes tem como
pano de fundo, ou está claramente pautado em intenções, anseios, frustrações, desejos, ao invés de
coadunar-se com as intensidades proporcionadas necessariamente pelo momento. É respeitando o
instante, em detrimento do que nos estimula ou assombra, que descobrimos o tom, o fluxo, a potência
e as potencialidades do diálogo. O traço psíquico que deve movimentar o transcurso da fala,
direciona-se mais para a liberdade performativa, para a fala, o gesto espirituoso e a compreensão
contextual, do que para a meta-encenação de nossas inseguranças, traumas, ansiedades, medos e
arbitrariedades. Quando a força centrífuga da ansiedade expulsa a performance dialógica para fora
do “aqui/agora”, estabelece-se o primado dos afetos neuróticos, e o transcurso orgânico, vivificante
da troca, dá lugar à palidez desconcertada típica de um primado da neurose. O discurso tropeça,
repete-se, cai no vazio, e quase que murmura na procura infrutífera pela potência perdida. Esse é o
nosso terror enquanto personagens de um espetáculo permanentemente improvisado: esquecer a
melodia inaudita de uma força que nos conduz livremente e que é, justamente, a intensidade
presencial. A configuração pontual do corpo e da mente como algo único, coeso e cheio de frescor.
O terror fundamental da performance de palco não é, tão propriamente, desconectar-se do corpo, mas
da memória.

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