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PERCEPÇÕES DO ASSÉDIO MORAL

Natalina Rosane Gué


Natalina Rosane Gué. Advogada, Especialista em Saúde e Trabalho.
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Diretora do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.
E-mail: natalinargue@terra.com.br
Sandro Artur Ferreira Rodrigues
Publicitário, Especialista em Saúde e Trabalho.
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.
E-mail: sandro@sindbancarios.org.br

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Saúde do trabalhador. Transtornos traumáticos cumulati- Occupational health. Cumulative trauma disorders.
vos. Comportamento social. Social behavior.
172 | Natalina Rosane Gué, Sandro Artur Ferreira Rodrigues

Ao pensarmos sobre assédio moral, devemos No início do novo milênio o mundo informa-
lembrar que este provavelmente nasce junto com tizado apresenta enormes semelhanças, pois o rit-
o trabalho, não nos primórdios da pré-história, mas mo tornou-se alucinante para acompanhar as má-
desde que começou a exploração do homem pelo quinas; os trabalhadores são sugados em sua “mul-
homem na antiguidade, com a expropriação do pro- tifuncionalidade” atuando em condições precárias
duto do trabalho alheio. Mais recentemente no com sobrecarga física e psíquica que ocorrem nos
século XIX após a 1ª Revolução Industrial verifica- processos de trabalho determinados pelas máqui-
mos as precárias condições em que se realiza o nas e métodos gerenciais; os controles são rígidos,
trabalho, com extensas jornadas de trabalho, che- colega controla colega; os baixos salários e o medo
gando até 15 horas diárias; uso da mão-de-obra do desemprego assolam os lares dos trabalhado-
infantil e no Brasil, largamente utilizada a força de res; tornando os trabalhadores reféns da empre-
trabalho escrava. Quanto aos locais de trabalho, as gabilidade. A idéia é que cada trabalhador deve
condições de higiene e de segurança refletiam a estar completamente à disposição do empregador,
mesma lógica de exploração, pois a busca dos bai- a qualquer momento e sem reclamar.
xos custos, objetivava a maximização dos lucros, A precarização do trabalho que objetiva a
resultando em lugares insalubres, e mesmo peri- maximização dos lucros com a diminuição de cus-
culosos, tornando penosa à atividade laboral. Na tos trabalhistas, escapando da pressão sindical e
zona rural, nas atividades agrícolas e pecuárias não favorecendo o os empregadores na correlação de
havia a adoção das mínimas garantias legais que já forças no mundo do trabalho, possibilitando a in-
se esboçavam nas cidades com a gênese da indus- tensificação das práticas de demissão, processo este
trialização, embora nos conglomerados urbanos que encontrou guarida no ideário neoliberal. A pre-
eram comuns acidentes que mutilavam e incapaci- carização do trabalho se manifesta através da ter-
tavam os trabalhadores de forma total ou parcial, ceirização, banco de horas, da contratação irregu-
principalmente na crescente indústria. O trabalho lar de estagiários, entre outros mecanismos e prá-
então era caracterizado pelo ritmo e controle exa- ticas largamente utilizadas pelas empresas, geran-
cerbados, exigindo esforço físico para compensar do entre os trabalhadores o medo do desempre-
as deficientes e poluentes máquinas; condições de go, que é constante nos ambientes de trabalho e é
vida precárias e de extrema pobreza e péssimas utilizado como instrumento gerencial para ampliar
condições de higiene; baixos salários diante do ca- exigências. A lógica é: “se você não quer trabalhar,
pitalismo nascente. tem gente esperando o teu lugar!”.

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Dar visibilidade às questões referentes ao ado- tante do desempenho sem o devido reconheci-
ecimento dos trabalhadores, decorrente de novas mento, a requisição da eficiência técnica, da exce-
formas de organização do trabalho, diminuição dos lência, da criatividade e da autonomia geram ten-
postos de trabalho, longas jornadas, multifuncio- são e incertezas sobre o devir. As múltiplas exi-
nalidade, diminuição da autonomia, apropriação da gências para produzir são “transversais” por abuso
subjetividade do trabalhador, privatizações, tercei- de poder e freqüentes instruções confusas, ofen-
rizações, entre outras mazelas, confere a esta aná- sas repetitivas, agressões, humilhações, maximiza-
lise um engajamento social e político condizente ção dos “erros” e culpas, que se repetem por toda
com um sindicato que se propõe a melhorar as jornada, degradando deliberadamente as condições
condições dos trabalhadores. de trabalho. O ambiente laboral vêm transforman-
A categoria bancária ao longo dos últimos anos do-se em campo minado pelo medo, inveja, dispu-
vem sendo estudada sob vários focos e por pro- tas, fofocas e rivalidades transmitidos vertical e ho-
fissionais das mais diversas áreas. Reestruturação rizontalmente entre os trabalhadores de diferen-
produtiva, práticas gerenciais, mudanças tecno- tes e mesmos níveis hierárquicos. As conseqüênci-
lógicas e seus efeitos sobre os bancários, como as dessas vivências repercutem na individualidade
por exemplo, a alta incidência das LER/DORT do trabalhador, interferindo com a sua qualidade
(Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Os- de vida, levando-o a desajustes sociais e a transtor-
teomusculares Relacionados ao Trabalho), assé- nos psicológicos e o colocando face a face com si-
dio moral, sofrimento mental, estão contribuin- tuações de enfrentamento, diante desse quadro,
do para que possamos estudar e propormos es- faz-se necessário compreender como o assédio
tratégias de enfrentamento à realidade. A ativi- moral se manifesta, e é percebido pela gerência e
dade bancária é executada sobre forte pressão, funcionários e tratado dentro das organizações,
representada pelo grande volume de trabalho; o uma vez que é um fenômeno presente na realida-
público demandante; as metas de captação e ven- de organizacional, mas que freqüentemente é ba-
das de produtos; o cumprimento de prazos esta- nalizado, e até ignorado; algumas vezes por indife-
belecidos, obrigando os bancários a exercer tare- rença, outras por covardia e, até mesmo, por des-
fas em ritmo acelerado, eliminando pausas e in- conhecimento ou necessidade.
tervalos, inclusive para alimentação, especialmen- Existem várias definições que variam segun-
te nos chamados dias de “pico”; trabalhar aos fins- do o enfoque desejado, tais como o enfoque
de-semana, ligando para residências visando a médico, o psicológico ou o jurídico. Juridicamen-
venda de produtos da instituição financeira e ex- te, o assédio moral pode ser considerado como
tensão das jornadas, sem a remuneração devida. um abuso emocional no local de trabalho, de for-
Ao mesmo tempo, novas formas de gerenciamen- ma maliciosa, sem conotação sexual ou racial, com
to estimulam a competitividade, incrementam o fim de afastar o empregado das relações profis-
mais ainda as exigências de produtividade e de sionais, por meio de boatos, intimidações, humi-
dedicação ao banco, levando bancários a uma lhações, descrédito e isolamento.
enorme intensificação de trabalho, concomitante Nem sempre a prática do assédio moral é de
com contínua diminuição do quadro de pessoal. fácil comprovação, porquanto, na maioria das ve-
Novas exigências do ambiente laboral vêm zes, ocorre de forma velada, dissimulada, visando
sendo incorporadas gerando múltiplos sentimen- minar a auto-estima da vítima e a desestabilizá-la.
tos e sensações, tais como: medo, incertezas, an- Pode camuflar-se numa “brincadeira” sobre o jeito
siedade, angústia e tristeza. A ansiedade ante uma de ser da vítima ou uma característica pessoal ou
nova tarefa, o medo de não saber, a avaliação cons- familiar, ou ainda, sob a forma de insinuações hu-

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milhantes e degradantes acerca de situações com- to pessoal, muito mais do que relacionamentos
preendidas por todos, mas cuja sutileza torna im- meramente produtivos exigem integração entre
possível a defesa do assediado, sob pena de ser todos os envolvidos.
visto como paranóico ou destemperado. Esta integração, todavia, está irremediavel-
A intensificação do assédio pode levar ao iso- mente comprometida quando os empregados se
lamento da vítima, como forma de autoproteção, sentem “coisificados”, “despersonificados”, perse-
o que, posteriormente, a faz ser considerada pe- guidos, desmotivados, assediados moralmente. O
los próprios colegas como anti-social e sem espí- assédio moral inevitavelmente instala um clima des-
rito de cooperação. Enumeramos os exemplos das favorável na empresa, de tensão, de apreensão,
situações de assédio moral mais freqüentes: dar de competição e dissemina-se tanto mais quanto
instruções confusas e imprecisas; bloquear o an- for desorganizada e desestruturada a empresa, ou
damento do trabalho alheio; ignorar a presença ainda, quando o empregador encoraja-o ou omite-
de funcionário na frente de outros; pedir traba- se. Daí a importância da instituição de um progra-
lhos urgentes sem necessidade; fazer críticas em ma de prevenção por parte da empresa, com a
público; não cumprimentá-lo e não lhe dirigir a primazia do diálogo e da instalação de canais de
palavra; fazer circular boatos maldosos e calúnias comunicação. Para tanto, indispensável é, em pri-
sobre a pessoa, forçar a demissão; insinuar que o meiro lugar, uma reflexão da empresa, sobre a for-
funcionário tem problemas mentais ou familiares; ma de organização do trabalho e seus métodos de
transferi-lo do setor, para isolá-lo. gestão de pessoal. Implementar uma política es-
Diante de um quadro inteiramente desfavo- tratégica de desenvolvimento humano como for-
rável à execução tranqüila e segura do serviço ma de substituir a competitividade de negócios,
que lhe foi conferido, o empregado assediado diminui as chances de surgirem comportamentos
moralmente sente-se ansioso, despreparado, in- negativos isolados, que tanto propiciam o assédio
seguro e, por conseqüência, os riscos de ser aco- moral. A implantação da cultura de aprendizado,
metido de doenças profissionais ou de vir a sofrer no lugar da punição; permitir a cada trabalhador a
acidentes de trabalho são potencializados. possibilidade de escolher a forma de realizar o seu
Assim, é possível concluir que o empregado, trabalho; reduzir a quantidade de trabalho monó-
vítima do assédio moral, que não é demitido pela tono e repetitivo; aumentar a informação sobre os
queda de produtividade, pelo absenteísmo, pela objetivos organizacionais; desenvolver políticas de
desmotivação, não raro será vítima de doenças qualidade de vida para dentro e fora do ambiente
ou acidentes ocupacionais. organizacional são atitudes sensatas a serem ado-
Sob o prisma econômico o assédio moral é tadas. Para informar e conscientizar os trabalhado-
um péssimo “negócio” para as empresas, pois não res, é recomendável a realização de eventos, tais
é um método eficiente na medida em que causa como seminários, palestras, dinâmicas de grupo,
perda de produtividade. Para que as pessoas tra- etc., em que haja troca de experiências e a discus-
balhem e produzam elas precisam ter boas condi- são aberta do problema em todos os seus aspec-
ções e ambiente de trabalho saudável. Um ambi- tos, inclusive as formas como ele se exterioriza, as
ente laboral sadio também é fruto das pessoas que responsabilidades envolvidas e os riscos que dele
nele estão inseridas, a partir das relações pessoais, derivam para a saúde, sem esquecer a importância
do entrosamento de grupo, da motivação e da união de postura solidária dos colegas, em relação ao as-
de forças em prol de um objetivo comum: a reali- sediado. Faz-se também necessária a adoção de um
zação do trabalho. Com isso, podemos afirmar que código de ética, que vise ao combate de todas as
a qualidade do ambiente de trabalho, sob o aspec- formas de discriminação e de assédio moral e se-

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xual. Outra medida é a difusão do respeito à dig- O assédio moral no trabalho não é um fato
nidade e à cidadania, inserida na política de recur- isolado, como podemos pensar ele se baseia na
sos humanos, que se exige dos empregados. Res- repetição ao longo do tempo de práticas cons-
salte-se, entretanto, que de nada adiantam a cons- trangedoras, explicitando o estrago de determi-
cientização dos trabalhadores ou o estabelecimen- nar as condições de trabalho num contexto de
to de regras éticas ou disciplinares, se não forem desemprego, desfilialização e aumento da pobre-
criados, na empresa, espaços de confiança, para za urbana. A batalha para recuperar a dignidade,
que as vítimas possam dar vazão às suas queixas. a identidade, o respeito no trabalho e a auto-
Tais espaços podem ser representados pelos Ou- estima, deve passar pela organização de forma
vidores ou pelos comitês formados nas empresas, coletiva através dos representantes dos trabalha-
especialmente indicados para receberem denún- dores do seu sindicato e das CIPA’s (Comissão
cias sobre intimidações e constrangimentos, garan- Interna de Prevenção de Acidentes) e a procura
tindo-se sempre o sigilo das informações, ou ain- dos Centros de Referência em Saúde dos Traba-
da, por meio de caixas postais, para que as vítimas lhadores (CRST), Comissão de Direitos Huma-
depositem, anonimamente, suas denúncias. nos e dos Núcleos de Promoção de Igualdade e
Outro aspecto fundamental para transformar Oportunidades e de Combate a Discriminação,
o ambiente de trabalho é adotar políticas geren- em matéria de Trabalho e Emprego, que existem
ciais que não sejam agressivas e respeitem os li- nas Delegacias Regionais do Trabalho e Emprego.
mites do ser humano norteados pelo conceito de Depende também da informação, organização e
saúde, entendido como o equilíbrio e bem-estar mobilização dos trabalhadores, pois um ambiente
físico, mental, psicológico e social, evitando a im- de trabalho saudável é uma conquista diária pos-
posição e cobrança de metas e produtividade que sível na medida em que haja “vigilância constan-
resultam em riscos e agravos a saúde dos traba- te” objetivando condições de trabalho dignas,
lhadores, descaracterizando portanto a cobrança baseadas no respeito ao outro, no incentivo a cri-
sistemática e autoritária de resultados como um atividade e cooperação.
desvio de conduta de um determinado gestor, pois O combate de forma eficaz ao assédio moral
este somente esta buscando os objetivos os quais no trabalho exige a formação de um coletivo mul-
lhe são também cobrados, existindo portanto um tidisciplinar, envolvendo diferentes atores sociais:
“casamento de idéias” entre empresa e gestor os sindicatos; as empresas; o Estado em suas di-
local, tornando este gestor também vítima do sis- versas esferas e instâncias, bem como os profissio-
tema. As estatísticas revelam a oportunidade da nais de várias áreas, tais como: advogados, médi-
discussão sobre a necessidade de se preservar a cos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, ad-
saúde mental dos trabalhadores, um dos valores ministradores, entre outros. Estes são passos inici-
inerentes à própria dignidade da pessoa humana, ais para conquistarmos um ambiente de trabalho
princípio sobre o qual se fundamentam os orde- saneado de riscos e violências e que seja sinônimo
namentos democráticos modernos. de cidadania.
Não podemos compactuar com um sistema No mundo hodierno, surgiu a nova tônica nas
que maltrate, humilhe e intimide pelo medo, relações de trabalho, o individualismo exigindo do
muitos trabalhadores são testemunhas de cole- trabalhador um novo perfil: autônomo, flexível,
gas que sofrem, que são prejudicados no ambien- competitivo, criativo e qualificado. As pressões por
te de trabalho, mas calam-se diante do medo. O produtividade e o distanciamento entre os órgãos diri-
ambiente de trabalho tem que ser saudável e li- gentes e os trabalhadores de linha de produção resul-
vre de discriminações e de pressões excessivas. tam a impossibilidade de uma comunicação direta,

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desumanizando o ambiente de trabalho, acirrando a presentantes sindicais são muito mais assediados
competitividade e dificultando a germinação do espí- do que as pessoas que são dóceis e aceitam tudo.
rito de cooperação e solidariedade entre os próprios Sempre que alguém dá visibilidade a um proble-
trabalhadores. ma que está ocorrendo na empresa sabe-se que
Esse fenômeno não é privilégio só dos países ele corre o risco de ser vítima de assédio moral.
em desenvolvimento, ele está presente no cená- De certa forma, o objetivo é calar as pessoas
rio mundial. Atinge homens e mulheres, altos exe- que estão denunciando situações na empresa, por
cutivos e trabalhadores braçais, a iniciativa priva- exemplo, denunciando desigualdades ou irregu-
da e o setor público. laridades, portanto confrontando as políticas de
Segundo a Organização Internacional do Tra- recursos humanos e de gestão adotadas pelas
balho (OIT), em diversos países desenvolvidos, as empresas. No fundo, o assédio moral visa isolar
estatísticas apontam distúrbios mentais relacio- as pessoas, fazê-las calar-se e torná-las totalmen-
nados com as condições de trabalho. te dóceis, em todos os aspectos profissionais.
Temos consciência de que a solução dos pro- A importância das leis como instrumento de
blemas de assédio não está apenas nos dispositi- prevenção. Não basta punir o agressor, é necessá-
vos legais, mas na conscientização tanto da víti- rio mudar as políticas de gestão da empresa e não
ma, que não sabe ainda diagnosticar o mal que deixar se instaurar procedimentos de humilhação
sofre, do agressor, que considera seu procedimen- e desqualificação das pessoas.
to normal, e da própria sociedade, que precisa Dado os difusos perfis do fenômeno, torna-
ser despertada de sua indiferença e omissão. se de difícil elaboração o conceito jurídico do as-
O diagnóstico para as próximas décadas é som- sédio moral no ambiente de trabalho, e assim é
brio, quando predominarão depressões, angústias que alguns doutrinadores enfatizam no conceito
e outros danos psíquicos, relacionados com as no- o dano psíquico acarretado à vítima em face da
vas políticas de gestão na organização do trabalho, violência psicológica já descrita; outros destacam
desafiando a mobilização da sociedade e adoção de mais a situação vexatória e o dano à imagem que
medidas concretas, especialmente visando à pre- o assédio moral provoca. Entretanto, há elemen-
servação e à reversão dessas expectativas. tos em torno dos quais a doutrina e a jurispru-
Infelizmente, o objetivo do assédio moral é dência estão em consonância como caracteriza-
sempre, como já comentamos uma forma de se dores do assédio moral. São eles:
livrar das pessoas que são atingidas prioritariamen-
te. Os estudos que são feitos sobre a população Social behavior.
em geral, pela Organização Internacional do Tra-
balho – OIT, dão números que oscilam de 5 a 8% a) a intensidade da violência psicológica.
de pessoas vítimas de assédio moral, mas exis- b) o prolongamento no tempo, pois episódio es-
tem outras formas de sofrimento no trabalho, que porádico não o caracteriza.
vem se somar ao assédio, o que significa que há, c) a intenção de ocasionar um dano psíquico ou
portanto, muitos trabalhadores que sofrem nos moral ao empregado para marginalizá-lo no seu
seus locais de trabalho. Dentro destes 8%, 70% ambiente de trabalho.
são mulheres. a conversão, em patologia, em enfermidade
Constatamos, que são vítimas também do
que pressupõe diagnóstico clínico, dos danos
assédio moral as pessoas que se expressam mui-
psíquicos.
to, que defendem seus colegas, que não aceitam
as manipulações da empresa, por exemplo, os re-

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Conforme as diversas bibliografias consul- figura no nosso Código Penal pouca valia terá,
tadas constatamos a procedência de estudos das se as vítimas não estiverem conscientes da ne-
mais diversas áreas que tentavam elucidar a cessidade de reunir o maior número possível de
questão do conceito e da caracterização do fe- provas que permita a sua comprovação e a fi-
nômeno “assédio moral”, estabelecendo algu- nal condenação dos agressores.
mas considerações, tais como: o assediador pode Embora as legislações dos países ainda sejam
ser uma pessoa ou um grupo de pessoas. O re- incipientes no que se relaciona a imposição de
ferencial bibliográfico é unânime em apontar o leis que punam o assédio moral, espera-se que os
perfil do assediador moral como o de uma pes- sindicatos e organismos que atuam em defesa de
soa “perversa”, que se utilizados mecanismos trabalhadores iniciem por informar o que é o as-
perversos para se defender. É um indivíduo com sédio moral, como ele ocorre, as formas de com-
uma personalidade narcisista que ataca a auto- batê-lo e procurar influir no sentido de que os
estima do outro, transferindo-lhe a dor e as contratos coletivos contenham cláusulas compen-
contradições que não admite em si mesmo: o satórias e que as legislações possam ser adaptadas
seu ego é tão grandioso quanto a sua necessida- a essa nova realidade.
de de ser admirado e a sua falta de empatia. Conforme já enfocado anteriormente, en-
Muitas vezes o objetivo do assediador é massa- quanto não existir a gestão participativa, o ce-
crar alguém mais fraco, cujo medo gera condu- nário estará mais favorável à gestão pelo medo,
ta de obediência, não só da vítima, mas de ou- propiciando atitudes típicas do assédio moral.
tros empregados, que se encontram ao seu lado. O ideal é reagir o mais cedo possível, antes
Ele é temido e, por isso, a possibilidade de a de ser mergulhado em uma situação que não haja
vítima receber ajuda dos que a cercam é remo- outra solução a não ser sair do emprego. A partir
ta. A meta do perverso, em geral, é chegar ao daí é importante atentar para qualquer forma de
poder ou nele manter-se por qualquer meio, provocação, ou a toda e qualquer agressão, pois
ou então mascarar a própria incompetência. O que a dificuldade de defender-se reside no fato
importante para o assediador é o domínio na de que raramente há provas evidentes. A víti-
organização; é controlar os outros. ma então deverá acumular os dados, os indícios,
O assediado é uma vítima e, por tal foi de- registrar as injúrias, fazer fotocópia de tudo que
signado pelo agressor, tornando-se o bode ex- poderá, em um momento ou outro constituir
piatório responsável por todo o mal. O perfil sue defesa. Seria igualmente desejável que ele
psicológico do assediado é de uma pessoa plena garantisse o apoio de testemunhas. Infelizmente
em vitalidade, mas que teme a desaprovação e em um contexto de opressão os colegas não se
tem uma tendência a se culpar. Em geral, busca solidarizam com a pessoa assediada, por medo
conseguir o amor e admiração dos outros ofe- de represálias, além disso, quando um assedia-
recendo ajuda e proporcionando prazer: enre- dor se fixa em uma determinada pessoa, geral-
da-se num jogo perverso, porque, inconscien- mente os outros ficam à salvo e preferem per-
temente, acha que pode “doar vida” e ajudar o manecer à sombra. Para defender-se de igual para
agressor a superar a infelicidade. igual é preciso estar em boas condições psicoló-
No Brasil, como quase em todo mundo, a gicas.
legislação não trata do crime de assédio moral, Em decorrência dessa situação, surgem
embora já existam inúmeras tentativas de par- várias legislações com o objetivo de coibir a prá-
lamentares para tipificação do crime de assé- tica do abuso moral. No Brasil já temos legisla-
dio sexual. De outro lado, a mera inclusão da ções estadual e municipal promulgadas, mas a

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sua aplicabilidade restringe-se aos servidores ou ráveis à saúde da vítima de agressão, pois quando
ocupantes de cargos públicos. a pessoa é submetida a humilhações, pode mani-
Finalizando o assédio moral, como fenômeno festar doenças, originadas do estresse causado pelo
social de tempos antigos, mas de reconhecimen- sentimento de extremo sofrimento, impotência
to recente, deve ser analisado com cautela, no e incapacidade que a vítima de assédio é subme-
tocante à sua caracterização jurídica. É necessá- tida. Está mais do que provado que o estresse
rio que se comprove a natureza psicológica do pode levar o ser humano a um estado depressivo,
dano causado pelo assédio moral, provocado por de desequilíbrio emocional, transtornos ansiosos,
uma conduta prolongada no tempo e que tenha que podem desencadear a origem de muitas do-
ocasionado o desencadeamento de uma doença enças. A saúde física e mental da pessoa é afeta-
psíquico-emocional, constatada por meio de ava- da em conjunto como conseqüência do abatimen-
liação médica ou psicológica capaz de verificar o to moral e do constrangimento, levando a vítima
dano e o nexo causal relacionado ao meio ambi- do assédio moral a degradação de suas condições
ente do trabalho. de trabalho e qualidade de vida. Os sintomas po-
Está havendo a banalização do assédio moral dem acometer diferentes sistemas orgânicos e o
no ambiente organizacional, isso ocorre devido as trabalhador pode apresentar distúrbios psicosso-
grandes e constantes mudanças que viraram roti- máticos, cardíacos, digestivos, respiratórios, en-
na na vida dos trabalhadores. Nos dias atuais, iden- docrinológicos, etc...
tificamos uma busca incessante em manter algu- Devemos então rejeitar a retórica daqueles
ma ordem perante o caos em que se transforma- que dizem que “não é grave” que, “é só uma
ram as organizações nestes últimos anos. Tudo pessoa ou outra”, que “esses indivíduos não con-
isso caracteriza uma percepção de que não há tam”. É essencial afirmar que o assédio moral é
mais espaço para a mentalidade tradicional e que um problema da nossa sociedade, fruto das polí-
novas formas de relacionamento e comunicação ticas de gestão de pessoal e produtividade. In-
se constroem, mas, na realidade, muitas empre- centivo todos vocês a reagir, a não deixar que o
sas ainda não conseguiram se desvincular dos tra- assedio moral se instale nos ambientes de traba-
dicionais métodos de administração de pessoas. lho e devemos lutar para implantar e implemen-
Na atualidade aparentemente, o trabalho é tar políticas de prevenção.
fisicamente menos duro devido ao desenvolvimen-
to tecnológico, mas psicologicamente as pessoas Ao realizarmos pesquisa com os bancários, iden-
sofrem mais, porque há menos solidariedade. O tificamos os efeitos degradantes do assédio na
sistema de trabalho hoje propicia um tipo de com- vida dos trabalhadores, conforme depoimento da
portamento que trata o trabalhador como um bancária D.R.
objeto descartável. É muito importante refletir Eu acho que a degradação do trabalho, ela vem
sobre valores e princípios éticos e o que fazer assim sem a gente nem sentir, na rotina, no dia-a-
para sustentá-los, defendê-los e, sobretudo, exer- dia [...], vai ocorrendo à gente não sente, a gente
citá-los. Os trabalhadores estão cada dia mais acaba levando para a casa a irritação[...], proble-
vulneráveis, mais ameaçados, mais perdidos e va- mas, acaba ficando uma pessoa mecânica[...], têm
zios, sem saber a quem recorrer e confiar. Se a que obedecer todas as ordens, a gente só pensa
violência moral existe é obrigação da empresa em meta, trabalho, a gente não lê, a gente não se
criar condições mais harmônicas que resguarde a diverte, a gente não lê outra coisa, a não ser livros
saúde do trabalhador. de [...] vendas, de como vender mais, de como
A agressão moral pode causar danos irrepa- produzir mais, de como ser um funcionário[...] e

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aí aquilo vai te deixando alienado[...] . Tu vai pegar manente impunidade dos agressores e, como ci-
um DVD, tu já não pega um DVD pra ti divertir, dadãos, todos devem lutar pelo exercício concre-
é sobre um...sabe,sobre como vender, como fi- to e pessoal de todas as liberdades fundamentais.
car rico em dois dias e[...].Ai a gente não sente
quando a gente sai, daí que tu nota que tu tá alie-
nado ao mundo, que tu ficou ali sete ou oito anos REFERÊNCIAS
da tua vida sabe, vivendo em função do banco e o
meu banco que é 30 horas, a gente se tornou 30 BARRETO, Margarida Maria Silveira. Uma jor-
horas também, a gente comprou a idéia, a gen- nada de humilhações. São Paulo: PUC, 2000.
te[...], não é nem 24 é trinta porque se o dia BRAVERMANN, Harry. Trabalho e capital mo-
tivesse trinta horas, a gente ficava conectado, que
nopolista: a degradação do trabalho no século
além disso[...] saía das oito horas de jornada de
XX. Rio de Janeiro: LTC,1974.
trabalho né, entre aspas, que se tornavam 12 ou
DEJOURS, Christophe. A banalização da in-
14, a gente chegava em casa ligava o palm-top,
continuava cadastrando, pra poder entrar todas
justiça social: Rio de Janeiro: FGV, 1999.
as contas para o banco no mês né, porque podia DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho:
não bater meta, morrer na praia, mas as contas estudo de pscicopatologia do trabalho. São Paulo:
tinham que entrar todas durante aquele mês, o Cortez–Oboré, 1987.
banco não poderia ser prejudicado, agora tu po- HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no tra-
deria ser prejudicado. E aí, quando tu te dá por balho: redefinindo o assédio moral. Rio de Janei-
conta, tu já te estourou, então a degradação vem ro: Betrand Brasil, 2002.
dia-a-dia, e a gente não sente, a gente não se toca JINKINGS, Nise. Trabalho e resistência na
que a gente ta vivendo para eles e não mais pra ti. “fonte misteriosa”: os bancários no mundo da
“ Ah não, mas eu ganho bem, tenho ticket, eu eletrônica e do dinheiro. Campinas: Unicamp,
tenho Unimed”, e tu não tem tempo de ir ao
2002.
médico, tu não tem tempo de ir almoçar, e o que
PAGÉS, Max et al. O Poder das organizações.
adianta ter tudo isso, hoje eu to estourada, não
São Paulo: Atlas, 1987.
tenho mais ticket e vivo no médico, ai eu tenho
tempo demais de ir ao médico, vivo no médico, já
NASCIMENTO, Sônia A. C. O Assédio Moral
to de saco cheio de médico, mas não tenho mais no Ambiente de Trabalho. Disponível em:
ticket porque tô[...] afastada, daí não tenho, na <http://www1.jus.com.br/doutrina/
hora que eu tenho tempo para almoçar com meus texto.asp?id=5433>. Acesso em: set. 2006.
colegas, bater papo, eu não tenho[...] aí a qualida-
de de vida, tu não tem mais financeiramente, têm
é tempo. É isso[...]. É isso, se deixar a gente
chora aqui, fala o dia inteiro. (Depoimento ver-
bal, D.R.).

Podemos identificar ainda várias questões que


merecem atenção e estudo e isto aponta para a
necessidade de buscarmos alternativas que pos-
sam dar conta das inúmeras demandas dos traba-
lhadores.
Assim, calar-se em caso de assédio moral é
contribuir para a proliferação deste e para a per-

Boletim da Saúde | Porto Alegre | Volume 20 | Número 1 | Jan./Jun2006

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