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A reeducação dos

sentidos e a brisa no
rosto de quem pedala.
JAQUES BRAND

Ali por 1910, 1911, 1912, o noticiário dos jornais curitibanos já refletia, como
problema, a gradual introdução do automóvel no quadro urbano.

Uma dessas notícias dava conta do atropelamento de um corneteiro do


Exército, ferido na perna por um carro da Garagem Fontana. O soldado foi
assistido por populares, que se juntaram em multidão na praça Tiradentes,
centro de Curitiba, cenário do ocorrido. Deve ter recebido tratamento médico
e licença do serviço para convalescer em casa.

Leve e trivial para os padrões atuais, o acidente chocou a cidade, sendo


narrado em detalhes, com chamada em primeira página.

Mais ou menos na mesma época, um leitor escrevia à redação para protestar,


indignado, reclamando providências. Morava em uma chácara dos arredores e
vinha denunciar que, certas noites da semana, a passagem de um automóvel
ali perto acordava toda a família e os animais domésticos. Cães, galinhas,
porcos, vacas e cavalos – todos despertavam em sobressalto.

Uns noventa anos mais tarde, enquanto espero meu sanduíche na lanchonete
do Billy, contemplo de uma mesa posta na calçada, junto à complicada esquina
de Martim Afonso com Desembargador Mota, junto à praça 29 de Março, em
Curitiba, o desfile de colunas maciças de carros, que se alternam nos ritmos
do semáforo, avançando uns e parados outros na expectativa do sinal verde.

Essa esquina é interceptada por uma via diagonal, a Fernando Moreira, que
abriga a canaleta do ônibus Expresso – o que faz dela quase uma estrela: além
das ruas em cruz, a diagonal corta a cruz pelo vértice.

De repente, na calçada da Mota, quase deserta, esvaziada de gente como


tantas outras calçadas da cidade – de repente aparece, desfilando em passos
elegantes e tranqüilos, um cachorro de rua, um vira-latas, nem grande nem
pequeno, nem gordo nem magro, aparentado no perfil encompridado aos
“lingüiça” de melhor pedigree. Aproxima-se do cruzamento com a Martim
Afonso; educadamente, pára junto ao meio-fio; e ali aguarda a passagem dos
carros que descem do alto do Bigorrilho, em densas colunas duplas.
O sinal muda, os carros na Martim Afonso param, e o cachorro atravessa sem selvagens que visitavam à noite a periferia das nossas aldeias, e introduzimos
pressa, diante dos focinhos protuberantes das duas colunas de carros, como um tigre mais feroz, mais voraz do que todas as feras.
se estivesse passando-as em revista, até alcançar a pequena “ilha” do outro
lado da rua. Detém-se por ali um instante, olha nas duas direções, e completa As legiões e legiões e legiões de mortos e mutilados no trânsito, sejam nas
a travessia do segmento da diagonal, seguindo então, lépido e fagueiro, colisões carro a carro, sejam por atropelamento, pertencem à normalidade
rebolando o rabo, pela continuação da calçada da Mota, na mesma inalterada enferma e atormentada da nova Convenção. E não acharam até hoje o seu
velocidade de cruzeiro. poeta elegíaco, nem o pastor que em estilo asiático reivindicasse, por atacado,
dos púlpitos, a sua memória e o seu calvário.
Enquanto mastigo o sanduba do Billy, vou meditando sobre a cena do cão
transeunte. Também os animais passaram, neste século, desde a introdução Já salta aos olhos a evidência de que o sistema econômico atrelado à matriz
do automóvel, pela reeducação dos sentidos, mencionada por Karl Marx como petroleira e automotiva, como os dinossauros do K/T, agoniza, e com ele o
uma das conseqüências digamos antropológicas da Revolução Industrial. planeta, ferido de uma doença mortal: o gigantismo, com o mesmo grave
sintoma de sempre: a falta de imaginação.
Uma nova Convenção, construída aos poucos a cada dia, a cada travessia,
a cada acidente, durante muitos anos, instaurou-se afinal entre nós, e nos À força do imperativo keynesiano da administração da demanda (dá-lhe
adaptamos a ela, os humanos e os outros bichos. Aprendemos todos – os propaganda!), à força de guardar a coesão e o dinamismo das cadeias
cães, os gatos, os ratos, os pombos, os humanos – a conviver com a intrusão produtivas, caminha velozmente para o abismo – e nisto guarda uma
de frotas inteiras no espaço das ruas. Aprendemos a seguir nosso caminho solidariedade verdadeiramente igualitária, pois promete levar-nos a todos
entre a massa de máquinas, fiados nos sinais do semáforo. Aprendemos para o mesmo buraco.
também, infelizmente, a aceitar o inaceitável.
Até mesmo em seus próprios termos, o sistema titubeia: “fliperama”
Alguns de seus ônus são tangíveis ou sensíveis, como o ruído, a fumaça, o extremamente primitivo, o máximo de segurança que propõe são as caríssimas
estreitamento do espaço público para a abertura e o alargamento das pistas duplicações das vias, e uns poucos aperfeiçoamentos cosméticos para a
de rodagem, a descontinuidade do passeio dos pedestres, o despovoamento diminuição dos efeitos dos impactos. Nem sequer se cogita da aplicação
das calçadas, a cara fechada e tensa das pessoas lacradas no interior das massiva dos sistemas de posicionamento eletrônicos, ou da redução drástica
latarias, o confortável desconforto dos passageiros, o risco quase permanente da escala dos veículos, ou do engenheiramento das ruas inteligentes, que se
de uma colisão... valesse dos recursos espertíssimos da digitalidade...

Outros danos, de imensa monta, nem aparecem na paisagem organizada das Em recente crise financeira, quando ruiu o castelo de cartas das aplicações
cidades: as guerras invisíveis que se travam do outro lado do planeta pelo derivativas, e a conta foi apresentada secamente às populações estupefatas,
controle das jazidas de petróleo, o transporte perigoso e a incessante poluição o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, um bom sujeito, apressou-se a
dos oceanos, os oleodutos que interrompem a continuidade dos espaços garantir crédito e recursos públicos às montadoras de automóveis...para que
naturais, o passivo ambiental do refino... pudessem continuar vendendo tanto como nos dias da farra financeira. Uma
semana depois, o então governador José Serra, de São Paulo, sem dúvida
Mas há também aquilo que os economistas chamam o custo-oportunidade, um bom sujeito, repetiu o gesto: botou à disposição das montadoras, para
isto é, as preciosas alternativas de uso do espaço urbano que poderiam ensejar que não parassem de vender no mesmo frenético andamento, bilhões de
novas formas de sociabilidade, ou preservar as antigas, e que, necessariamente, reais do erário do Estado. E isso incondicionalmente, sem sequer extraírem
são descartadas, para que as frotas possam enfim se deslocar... São as alguma concessão desses grandes trustes, como o melhoramento dos filtros
oportunidades históricas perdidas, das quais desembarcamos, para embarcar, de emissão, ou dos recursos de segurança pessoal dos passageiros...
aflitos ou docemente inscientes, na Bolha.
Nossa conclusão não deve ser moralista. Ambos os estadistas, diferentes que
Estranho paradoxo, o que se traduz no fenômeno da multiplicação dos sejam os seus estilos, comportaram-se como prisioneiros da mesma lógica: o
veículos automotores a cifras absurdas: a maravilha do engenho humano volta- motor da economia, a indústria automotiva, não pode parar. Nossa conclusão
se contra o seu criador. Conseguimos banir da superfície da Terra os animais deve ser política: não vamos esperar iniciativa alguma dessas lideranças,
no sentido de uma mudança de rumo, por menor que seja. Eles são meros também pela educação dos motoristas de toda índole, no sentido de respeitar
operadores do sistema, com uma interface sorridente e bem-falante para o sujeito que segue pedalando a caminho de casa, do trabalho, da escola ou de
melhor persuadir e arrastar as multidões, sem que nisso vá alguma censura. É qualquer outro destino. É lei, tanto quanto pagar o IPTU ou votar para prefeito
como as coisas funcionam dentro do sistema... e vereador, devolver o troco ou respeitar a autoridade. Seu cumprimento não
depende de disposição psicológica favorável dessa autoridade, nem é favor
Donde virão as mudanças? O pessoal da Bicicletada tem muito a propor, neste político nem nada. Cumpra-se!
sentido. Quem são eles? São guerreiros do bem, armados apenas de suas
bikes e de uma idéia central brilhante: a bicicleta é a melhor crítica à cultura A Bicicletada de Curitiba, saudada por alguns analistas como a grande
do automóvel. novidade política dos últimos anos, nada tem de movimento político
organizado. Move-se por impulso, por agregação voluntária, por amor à vida,
E olha que ela tem pedigree e ascendentes tão bons ou melhores, do sem chefes, sem comandos, sem carimbos nem cartórios, em direção a uma
ponto-de-vista histórico e tecnológico, do que o seu fumacento “colega” e das condições da plena cidadania, o simples direito de ir-e-vir.
“concorrente”.
Depois de todos os argumentos em favor de uma política pública em favor
Está nos livros: assim como o motor à combustão, a bicicleta surge no Ocidente da difusão e viabilização da bicicleta no dia-a-dia da cidade, exaustiva e
como produto industrial de uso massivo nos anos que Barraclough define incansavelmente apresentados às autoridades curitibanas, em diversas e
como o grande salto tecnológico das economias do Oeste – entre 1867 e 1881. reiteradas ocasiões ao longo de anos de atuação da Bicicletada, continuam
Em vez das descobertas e inventos pontuais da Primeira Revolução Industrial, falando mais alto, para os ciclistas, em favor das nossas magrelas, aqueles
era agora o tempo da aplicação sistemática dos métodos laboratoriais outros argumentos menos persuasivos em política ou administração: a brisa
de descoberta, de pesquisa e desenvolvimento, a resultar na invenção do no rosto, a luz natural, o equilíbrio elegante e atrevido, a pedalada que vai mais
telefone, do microfone, do gramofone, da telegrafia sem-fios, da lâmpada além...e a certeza de que a História está do nosso lado.
elétrica, do transporte público mecanizado, dos pneumáticos, da máquina de
escrever, das tintas para a impressão em massa de jornais, das primeiras fibras
sintéticas, da seda artificial, dos primeiros plásticos sintéticos... Curitiba, agosto de 2010

Tão genial foi a invenção da bicicleta que, adentrando o novo milênio, ela
conserva quase integralmente as linhas originais. Ficou ainda mais leve e
resistente com a aplicação de novas ligas metálicas, de fibras desenvolvidas
pela pesquisa astronáutica, freios excelentes, dispositivos de iluminação ágeis
e eficazes...

Desde os seus primeiros dias, a bicicleta fundiu sua história com a história da
classe trabalhadora. Resulta incompreensível, por isso mesmo, a hostilidade
que podemos dizer sistemática dos motoristas de ônibus de Curitiba para
com seus irmãozinhos de rua, os ciclistas. Verdadeiros homicídios têm sido
cometidos nas canaletas do sistema Expresso. Culpa dos “caroneiros”
irresponsáveis? Onde está a ciclo-faixa que a lei manda escrever no chão do
asfalto de todas as vias de circulação pública de veículos?

O Código Nacional de Trânsito reconhece a bicicleta como veículo de transporte


urbano individual, com direito irrefutável a trafegar em faixa própria, à direita
do espaço de rodagem das ruas. Desenhar ciclo-faixas é dever indeclinável
do administrador municipal. Assegurar a integridade física, a incolumidade
do ciclista, acompanha este indeclinável dever, cujo cumprimento se traduz
André Mendes Cyntia Werner Valdecimples Fernando Rosembaum Goura Nataraj Guilherme Caldas
Pirataria Corrente Mobilidade animal João e Maria Revolução em Redonda candyland_comics@hotmail.com
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