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Deivy Ferreira Carneiro

Maíra lnes Vendrame


ORGANIZADORES

Espaços, escalas
e práticas sociais
na micro-história
italiana
,..,FGV EDITORA
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1a edição – 2021

Preparação de originais: Sandra Frank


Capa: Estúdio 513

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Carneiro, Deivy Ferreira


Espaços, escalas e práticas sociais na micro-história italiana [recurso eletrônico] / Deivy
Ferreira Carneiro, Maíra Ines Vendrame. - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2021.
1 recurso online (284 p. : il.) : PDF

Dados eletrônicos.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5652-086-5

1. Itália - História. 2. Micro-história. I. Vendrame, Maíra Ines. II. Fundação Getulio


Vargas. III. Título.

CDD – 945

Elaborada por Rafaela Ramos de Moraes – CRB-7/6625

4
Sumário

Apresentação: Avanços e novas perspectivas a partir da segunda geração da microstória


italiana 7
Deivy Carneiro
Maíra Ines Vendrame

1 A pluralidade do passado 24
Sabina Loriga

2 Microstoria: relações sociais versus modelos culturais? Algumas reflexões sobre


estereótipos e práticas históricas 39
Simona Cerutti

3 “A Contrapelo”: diálogo sobre o método 59


Simona Cerutti

4 Quem está embaixo? Uma releitura de E. P. Thompson, historiador das sociedades


modernas 69
Simona Cerutti

5 Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim (séculos XVII e


XVIII) 99
Sandra Cavallo

6 O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na França do século
XIX 122
Maurizio Gribaudi

7 Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na França do século


XIX 160
Maurizio Gribaudi

8 Microstoria/microhistoire/microhistory 198
Francesca Trivellato

9 Existe futuro para a micro-história italiana na era da história global? 214


Francesca Trivellato

5
10 Processos criminais e micro-história: direito, grupos populares e a Justiça Criminal em
Minas Gerais (1854-1941) 245
Deivy Ferreira Carneiro

11 Pensando o problema das conexões, do equilíbrio e da complexidade a partir da perspectiva


da micro-história 260
Maíra Ines Vendrame

Autores 282

6
Apresentação: Avanços e novas perspectivas a partir da segunda geração da
microstoria italiana

Deivy Carneiro
Maíra Ines Vendrame

O presente projeto nasceu em 2016, após um dos organizadores deste livro ter realizado estágio
de pós-doutorado em Paris e participado de alguns dos cursos ministrados por Sabina Loriga.
Conversando com ela, surgiu a ideia do quanto seria importante tornar acessível ao público
brasileiro textos produzidos por historiadores que fazem parte da segunda geração da
microstoria italiana. Muito discutido, mas pouco praticado, o referido método chegou ao Brasil
com a tradução de vários livros de Carlo Ginzburg no final dos anos 1980 e início dos 90,
impactando as pesquisas históricas desenvolvidas a partir de então.1 E como toda novidade
intelectual, sua “absorção” se deu com alguns equívocos. Se analisarmos alguns dos primeiros
debates2 ocorridos no país, a corrente historiográfica italiana aparece como uma variação da
história cultural ligada à chamada terceira geração dos Annales. Isso ocorreu por vários
motivos, mas o principal foi deixar de lado, por não terem sido traduzido do italiano para o
português, uma gama de trabalhos e de autores3 que modificaram os padrões da história social
europeia. Além disso, o debate acabou por resumir, por fim, a microstoria aos primeiros livros
de Carlo Ginzburg e, posteriormente, ao livro A herança imaterial: a trajetória de um exorcista
no Piemonte do século XVII, de Giovanni Levi (2000).
Após ouvir sobre o projeto, Sabina Loriga, que de imediato o achou muito interessante,
encaminhou alguns de seus artigos para que pudessem ser livremente escolhidos para futura
publicação. Também indicou nomes de outros pesquisadores italianos que poderiam ser
agregados, uma vez que haviam utilizado o método da microstoria. A partir daí surgiu a grande
questão do projeto: o que seria a segunda geração da micro-história e quais historiadores
deveriam figurar no livro.

1
Os dois primeiros livros de Carlo Ginzburg que utilizam o método da micro-história publicados no Brasil são:
Ginzburg (1988; 1989).
2
Ver os textos sobre história social e história das mentalidades de Hebe Mattos (1997) Ronaldo Vainfas (1997)
sobre a história social e a história das mentalidades. Ver, também, Vainfas (2002).
3
Conferir, por exemplo: Ramella (1984); Grendi (1987); Gribaldi (1987a);Cerutti (1990); Raggio (1990); Grendi
(1993); Torre (1995; 2011); Ago (2006).

7
Porém, antes de definir todos os autores que fariam parte do projeto, conseguiu-se
autorização para traduzir textos de Simona Cerutti e Maurizio Gribaudi,4 sendo a presença de
ambos imprescindível. Esse último também apresentou sugestões fundamentais para a proposta
da coletânea, o que ampliou os horizontes da produção historiográfica dos ex-alunos dos três
principais expoentes da microstoria italiana: Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg.
Entre as observações, Maurizio Gribaudi sugeriu a inclusão de Sandra Cavallo, uma vez que
considerava a mesma “uma das melhores” entre as historiadoras italianas ligadas à referida
proposta metodológica.
Apesar de não ser propriamente da “segunda geração”, mas, sim, de uma “terceira
geração”, o nome de Francesca Trivellato5 também foi indicado para figurar entre os autores.
Mais recentemente, a autora apresentou uma reflexão interessante sobre a perspectiva da
microstoria frente ao debate historiográfico mais atual ligado a global history. Considerando à
própria experiência de pesquisa, Trivellato (2011) defende que as análises centradas em grupos
e indivíduos que circulam por contextos geográficos mais amplos permitem ampliar a discussão
sobre os encontros transculturais, comércio intercultural e outras questões mais gerais. Ao
discutir sobre os desafios mais recentemente enfrentados pela microstoria, a autora traz
sugestões interessantes em relação aos caminhos que poderão ser seguidos, sem, assim,
abandonar preceitos fundamentais do método micro-analítico.
Pertencendo à “segunda geração”, Sabina Loriga, Simona Cerutti, Maurizio Gribaudi,
Sandra Cavallo e, à terceira, Francesca Trivellato, todos eles construíram suas carreiras
profissionais fora da Itália, especificamente na França, na Inglaterra e nos EUA. Apesar de os
referidos nomes já figurarem entre os autores que comporiam o livro, a dúvida em relação a
outros que deveriam fazer parte foi algo que permaneceu durante um longo período. Por que
não incluir Angelo Torre e Osvaldo Raggio? Ou Luciano Allegra, Franco Ramella e os
inúmeros ex-alunos de Carlo Ginzburg? Todos eles historiadores que estão ligados ao grupo
que procurou levar adiante em suas pesquisas as indicações metodológicas e teóricas dos pais
fundadores da microstoria. Quais textos entrariam no projeto? Esse era um problema a ser
resolvido. Antes mesmo de resolvermos essa questão, parte do material já definido foi

4
Ambos são ex-alunos de Giovanni Levi em Turim, realizaram seus doutorados na EHESS, em Paris, e
posteriormente construíram suas carreiras nessa instituição, assim como Sabina Loriga.
5
No livro Il commercio interculturale, Francesca Trivellato (2016) propõe uma história global a partir de uma
escala reduzida ao acompanhar mercadores de diversos estratos e pertencentes a grupos religiosos diversos, que
encontram maneiras de conduzir seus negócios por grandes distâncias.

8
encaminhado para tradução. Porém a avanço do projeto se tornou mais demorado do que havia
sido inicialmente imaginado.6
Desde 2014, quando da realização do I Seminário Internacional de Micro-história,
Trajetória e Imigração, ocorrido na Universidade Federal de Santa Maria, e os dois seguintes
realizados na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em 2016 e 2018, houve interesse por
parte da organização dos eventos em publicar artigos de Giovanni Levi e de outros
pesquisadores estrangeiros e brasileiros que dialogavam com as experiências historiográficas
dos principais expoentes da microstoria italiana. Todas as três edições do seminário contaram
com a participação de Levi, sendo que o último também teve a presença de Maurizio Gribaudi.
Como produto das discussões realizadas em cada edição, foi possível publicar um e-book e dois
livros impressos, que contam com capítulos dos pesquisadores que participaram do encontro e
outros que foram convidados a encaminhar seus textos. Nos livros Ensaios de micro-história,
trajetória e imigração, de 2016, e Micro-história, um método em transformação, de 2020,
Giovanni Levi e Maurizio Gribaudi contribuíram com textos. Nesse último livro, buscamos
agregar pesquisadores estrangeiros que possuíam ligação próxima com os principais expoentes
da microstoria. Além dos já referidos Levi e Gribaudi, o livro Micro-história, um método em
transformação conseguiu agregar um texto de Carlo Ginzburg e de outros pesquisadores
vinculados a universidades italianas e europeias, muitos desses pertencentes à “segunda
geração” da microstoria italiana.
Nesse sentido, o presente livro deve ser também entendido como um desdobramento das
atividades que estamos desenvolvendo conjuntamente já há alguns anos através da realização
bienal do Seminário Internacional de Micro-história, Trajetória e Imigração e a publicação de
livros com textos de autores estrangeiros e brasileiros.7 O diferencial deste livro que ora
apresentamos é o de buscar reunir um número significativo de historiadores italianos que
pertencem à “segunda geração” de microstoria. Para a concretização do projeto, que busca
ampliar a interlocução com os pesquisadores estrangeiros, decidimos unir forças para levar a
cabo a publicação da presente coletânea. A seleção dos textos, a estruturação da proposta, a
escolha e encaminhamento do projeto para uma editora de visibilidade nacional foram decisões
tomadas nos dois últimos anos.

6
A tradução dos textos contou com a colaboração voluntária dos seguintes colegas historiadores: Carla Miucci,
Alexandre de Sá Avelar, André Rosemberg, Alice Marcalé e Deivy Carneiro.
7
Já foram realizadas três edições do Seminário Internacional de Micro-história, Trajetória e Imigração, que
começou em 2014, ocorrendo a cada dois anos. Como resultado das discussões realizadas nos eventos, já
publicamos os seguintes trabalhos: Vendrame (2015); Vendrame, Karsburg e Moreira (2016); Vendrame e
Karsburg (2020).

9
Devido ao tamanho, custos de produção e necessidade da construção de certa unidade
entre os capítulos do livro, mesmo que artificial, decidimos selecionar, para esta publicação,
somente textos de ex-alunos de Giovanni Levi. Isso porque, entre o material recolhido e
traduzido, se tornou mais evidente a ligação da maior parte dos autores com o referido
historiador. Assim, de imediato entendemos que seria interessante que os leitores pudessem
perceber como se deu o desenvolvimento do método a partir das contribuições apresentadas
inicialmente no livro A herança imaterial (Levi, 2000). O objetivo é, portanto, o de mostrar de
que maneira as questões teóricas e metodológicas da referida proposta avançaram no decorrer
dos anos em relação à micro-história social, econômica e demográfica apresentada por
Giovanni Levi.
Os trabalhos desses cinco historiadores, construídos em momentos diferentes, refletem as
possibilidades de análise micro-histórica, seu método e à maneira como responderam a vários
debates e a novas perspectivas historiográficas. Simona Cerutti estabeleceu importantes
reflexões sobre a construção de grupos sociais, sobre o legado de E. P. Thompson para a
historiografia e inúmeras reflexões sobre o lugar da micro-história no debate internacional.
Sabina Loriga, por outro lado, avançou profundamente na discussão da relação entre a biografia
e a história. Gribaudi, por outro lado, construiu uma importante discussão acerca da
espacialidade como elemento central nas interações dos sujeitos históricos. Aplicando o método
microanalítico, Sandra Cavallo aponta novas compreensões sobre a história da saúde e das
instituições assistenciais. Por fim, Francesca Trivellato destaca-se como referência da chamada
história conectada. Entendemos que para podermos avançar nesse sentido, agregando novas
perspectivas teóricas e metodológicas, é preciso ter claro o caminho que foi percorrido até
então, as diferentes experiências historiográficas que nos últimos 40 anos foram surgindo a
partir das sugestões conferidas pelos pais fundadores da microstoria italiana.
No intuito de facilitar a compreensão da nossa decisão e das questões de fundo,
precisamos de algumas linhas explicativas. De modo geral, podemos dizer que a microstoria
italiana é constituída por fases distintas. A primeira delas abarca de 1966 até 1977,
correspondendo ao surgimento do projeto microanalítico a partir dos primeiros experimentos
de Edoardo Grendi,8 Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Logo em seguida, juntamente com Carlo

8
Edoardo Grendi é considerado o principal defensor da microstoria italiana na década de 1970. Vinculado à revista
Quaderni Storici, o mesmo atuou como um grande mediador dos debates do mundo anglo-saxão para a
historiografia italiana, abrindo as discussões com E. P. Thompson, Karl Polanyi, Norbert Elias, Frederik Barth e
os trabalhos sobre network analysis que levaram à criação da vertente social da microstoria. Em 1977, o referido
pesquisador publica um artigo bastante importante sobre a micro-história. Ver Grendi (1977). Ver também Rojas
(2012).

10
Poni, formaram, entre os anos 1975 e 1977, no seio da revista Quaderni Storici, o núcleo duro
da microstoria, agora já com uma proposta madura e bem explícita dos procedimentos
microanalíticos. A referida revista se tornou um espaço de discussão, o laboratório no interior
do qual se criou uma forte sinergia entre a proposta da microanálise e interesses, heterogêneos,
para novos temas ou problemas de pesquisa.
Uma segunda etapa, entre os anos 1978 e 1988, consolida a microstoria como uma
perspectiva historiográfica de vanguarda e uma das mais inovadoras da segunda metade do
século XX. É nesse momento que os trabalhos seminais de Grendi, Levi e Ginzburg9 são
escritos e posteriormente se difundem pela Europa e América. Além disso, é também nesse
período que Levi e Ginzburg, juntamente com Simona Cerutti, criaram e dirigiram a coleção
Microstorie, editada pela Einaudi Editora, onde publicaram trabalhos de caráter microanalítico
não apenas de historiadores italianos, mas de colegas como E. P. Thompson, Natalie Zemon
Davis, Anton Blok, Paul Boyer, entre outros.
Entretanto, é preciso que fique claro que a microstoria não é uma escola, pois o que temos
são diferentes experiências historiográficas que utilizam da escala micro como ponto de partida
de suas análises. Se avaliarmos os trabalhos dos principais expoentes, perceberemos que as
influências teóricas e metodológicas são múltiplas. Carlo Ginzburg, que dialoga em seus
trabalhos empíricos com conceitos caros à história cultural de matriz francesa (cultura popular,
por exemplo), se transformou em um crítico do pós-modernismo e de algumas reflexões de
Hayden White.
Já Edoardo Grendi, considerado o “pai” da microstoria, estabelece um diálogo intenso
com a historiografia inglesa, com os trabalhos de E. P. Thompson, Karl Polanyi e Norbert Elias,
e com a antropologia econômica. Giovanni Levi, por sua vez, em seu livro A herança imaterial,
estabelece uma interlocução com a antropologia social e econômica de matriz inglesa realizada
por Fredrik Barth, Karl Polanyi e J. Clyde Mitchell. Poderíamos estender esses comentários aos
primeiros trabalhos dos alunos de Giovanni Levi que formariam o que chamamos de segunda
geração de micro-historiadores: Maurizio Gribaudi (1987b) e Simona Cerutti (1990), que em
certos momentos se utilizaram e criticaram os pressupostos de Thompson e Barth, e ainda
Sabina Loriga (1991), que em seu doutorado dialogou com Michel Foucault e Erwin Goffman
para questionar a tese sobre o processo disciplinar entre os soldados do Piemonte no século
XVIII. Nesse sentido, apesar de apresentarem características semelhantes na escrita de seus
trabalhos, eles não seguem uma cartilha.

9
Ver, por exemplo: Levi (2000); Ginzburg (1988; 1989); Grendi (1986; 1978; 1982).

11
Giovanni Levi e Edoardo Grendi questionaram o princípio da coerência presente nos
estudos de casos e experiências, apontando para a necessidade de inscrever as trajetórias
individuais num conjunto relacional em que a posição do sujeito é tomada no conjunto e
definida pelos laços de relação construídos em configurações específicas, pelas suas múltiplas
relações de interdependência. Do ponto de vista metodológico, a análise das redes sociais
(network analysis) revela a vantagem de que é possível observar os modos de ação,
frequentemente disjuntos, pelos quais os agentes devem se orientar. Isso oferece um meio de
examinar mais sistematicamente a estrutura e a densidade do espaço social em que as
experiências individuais e coletivas se encontram inseridas. Obviamente que não teremos
acesso a todo o universo das relações e estratégias adotadas pelos sujeitos analisados devido ao
caráter incompleto de qualquer documentação e também pela impossibilidade de apreender toda
a complexidade do social. Todavia, num contexto específico, é possível mapear os recursos e
mecanismos mobilizados. Mais que isso, os mencionados historiadores apontaram que o
fundamental é mostrar a multiplicidade da interação do sujeito numa determinada realidade.
Nesse sentido, é preciso entendê-lo na sua totalidade, diversidade e contradições, buscando
apreender seus inúmeros “eus”.
Entre os anos 1989 e 1991, temos o abandono sucessivo da revista Quaderni Storici pelos
pais fundadores e, a partir de 1992, o surgimento da terceira fase, que chega até os dias de hoje.
Segundo Aguirre Rojas (2012:52), essa última etapa é marcada pela fragmentação do projeto
mais amplo em vários itinerários individuais importantes. Aqui podemos citar como exemplo
o trabalho de Maurizio Gribaudi (Mondo operaio e mito operaio: spazi e percorsi sociali a
Torino nel primo Novecento, 1987) e de Simona Cerutti (La ville et les métiers. Naissance d'un
langage corporatif (Turim, siècles 17e-18e), 1990), respectivamente, sobre a definição da
classe trabalhadora em Turim no início do século XX e o nascimento das corporações entre os
séculos XVII e XVIII. Nos dois casos, apenas o olhar mais atento e investigação intensiva
permitiram reconstruir a configuração e os agrupamentos sociais, fluidos e descontínuos, como
um resultado da interação de diferentes caminhos individuais através de uma variedade de
contextos.
Essa última fase da microstoria, assim como a primeira, opera numa escala reduzida,
utilizando fontes primárias de origens diversas, apesar de ganhar destaque a documentação
paroquial e judicial. Mas, ao invés de privilegiar materiais extraordinários como ponto de
entrada em direção a uma cultura estrangeira, Gribaudi e Cerutti procuram acessá-la por meio
do estudo dos elementos ordinários e das relações interpessoais. Enxergam os indivíduos como
pertencentes a grupos e redes sobrepostos com fronteiras fluidas, com relações sociais mais ou

12
menos instáveis, fazendo uso de status (obrigações, diretos e limites) em diferentes situações,
que lançam mão, a todo momento, de diversos esquemas interpretativos e constroem mundos
díspares mesmo vivendo juntos. Longe de ser um todo coerente, essa corrente social vê a vida
social feita de diferenciais, cada um dos quais oferece uma possibilidade de mudança.
O presente livro irá se centrar nessa última fase da microstoria, na qual é já possível
identificar um novo desdobramento de que falaremos na sequência. Apresentaremos reflexões
de cinco pesquisadores que possuíam uma ligação direta com Giovanni Levi – já que são ex-
aluno(as) e orientando(as) –, que muito contribuíram para a consolidação e ampliação dos
estudos microanalíticos. Com exceção de Trivellato, o grupo compõe parte daquilo que
chamamos de “segunda geração” da microstoria, figurando superficialmente no debate
brasileiro sobre o referido método.
Os principais trabalhos publicados em português que tratam da microstoria italiana fixam
seus esforços em analisar as experiências de pesquisa e a produção historiográfica de Ginzburg,
Levi e Grendi.10 De certo modo, isso que foi apontado justificaria a importância da presente
coletânea, uma vez tem como proposta indicar alguns dos caminhos percorridos pela
microstoria nos últimos 30 anos.
É importante ressaltar que os capítulos que compõem o presente livro apresentam textos
produzidos em diferentes momentos da vida intelectual dos seus autores e tratam de assuntos
diversos, apesar de todos manterem uma ligação com a proposta metodológica da microstoria.
Esses historiadores pensam as mais diversas questões, mas sempre relacionadas à micro-
história: o papel do sujeito, a influência de E. P. Thompson para essa corrente historiográfica,
mas também suas limitações analíticas; os pretensos debates entre uma versão social e cultual
da microstoria; a questão do espaço e da morfologia social; uma aplicação dessa metodologia
ao estudo das amas de leite e a relevância da micro-história em um contexto historiográfico
dominado pelos estudos de global history, entre outros. Passemos, agora, à apresentação dos
autores e capítulos que compõem o presente livro.
No primeiro capítulo da presente coletânea, intitulado “A pluralidade do passado”, Sabina
Loriga realiza uma importante análise da questão da temporalidade na história a partir da obra
de Fernand Braudel e das contribuições à temática realizadas por Paul Ricoeur. A autora ressalta
também as reflexões de pensadores do século XVIII e XIX (Herder, mas sobretudo Dilthey) a
respeito da a pluralidade – espacial e temporal – das realidades históricas. Por fim, termina o
texto analisando as contribuições conferidas pelos historiadores ligados à microstoria acerca da

10
Ver, entre outros: Rojas (2012:75 e segs); Lima (2006); Oliveira (2009).

13
questão biográfica, indicando o quanto as trajetórias de vida ajudam apreender os interstícios
institucionais.
Uma das autoras mais conhecidas entre as que compõem essa coletânea, Sabina Loriga
talvez seja aquela que mais tenha se afastado dos pressupostos teóricos da primeira geração da
micro-história.11 Professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS – Paris)
há muitos anos dirige com Jacques Revel seminários de investigação sobre a linguistic turn e
seus impactos na historiografia atual. Se, inicialmente, suas primeiras pesquisas mantinham um
diálogo grande com os pressupostos da microstoria, o mesmo não ocorre posteriormente. Em
sua tese de doutorado, Loriga (1991) analisou o exército piemontês no século XVIII,
questionando as hipóteses foucaultianas acerca da criação de uma sociedade disciplinar. No
final dos anos 1990, a referida pesquisadora vai lentamente se afastando de análises micro-
históricas e passa a se dedicar aos estudos biográficos e às análises de obras de pensadores
como Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck.
Maurizio Gribaudi e Simona Cerutti iniciaram seus estudos acadêmicos na Universidade
de Turim, onde se tornaram discípulos de Giovanni Levi, adotando a perspectiva microanalítica
em suas pesquisas. Mesmo com trajetórias de pesquisa diversas, ambos percorreram uma
careira acadêmica bastante similar. Atualmente, os dois são professores na École de Hautes
Études em Sciences Sociales em Paris, sendo ainda coordenadores do Laboratoire de
Démographie et d’Histoire Sociale (LaDéHiS).
Nos últimos 30 anos, Simone Cerutti tem se dedicado a estudar a história das hierarquias
e classificações sociais das cidades europeias do Antigo Regime, com ênfase nas identidades,
pertencimentos coorporativos, nas questões ligadas à cidadania e no entendimento da condição
de estrangeiro. Também já abordou o tema das classificações jurídicas e processuais no
contexto do Antigo Regime. Entre a produção da autora, destacam-se os seguintes livros:
Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Regime (Torino,
XVIII secolo) (Cerruti, 2003); La ville et les métiers: naissance d’un langage corporatif (Turin,
17e-18e siècles) (Cerruti, 1990) e Étrangers: étude d’une condition d’incertitude dans une
société d’Ancien Régime (Cerruti, 2012a). Nesses dois últimos trabalhos, Cerutti realiza uma
crítica sistemática à percepção dos processos sociais como algo movido por forças coletivas e
estruturais. Ao invés de partir da ideia a priori de pertencimento dos sujeitos a determinados
grupos, a autora passou a interrogar a maneira por meio da qual as relações entre os sujeitos

11
Sabina Loriga começou sua trajetória como pesquisadora analisando a questão da magia e da bruxaria, tema em
destaque nos anos 1980, e publicou seu primeiro artigo com perspectiva microanalítica na revista Quaderni Storici,
três anos depois (Loriga, 1983).

14
criavam solidariedades, vínculos e alianças. Nesse sentido, as redes de interdependência do
indivíduo tornar-se-iam um contexto no qual se inscreveriam as biografias. Defende, portanto,
que por meio da aplicação de abordagem microanalítica é possível compreender a
complexidade das relações que ligam os indivíduos; o tempo de suas experiências, ações
limitadas e estratégias de negociação dentro do contraditório e incoerente sistema normativo.
Em vários de seus artigos, a autora discute também os elementos da microstoria a partir da obra
de E. P. Thompson, assim como de Frederik Barth, um dos seus principais interlocutores.
Simona Cerutti é considerada uma das grandes historiadoras italianas da atualidade,
possuindo uma obra referencial, sobretudo do ponto de vista teórico-metodológico,12 discutindo
o estatuto das fontes judiciais e policiais e sua importância para a história social e cultural.
Essa brevíssima contextualização pode nos ajudar na compreensão das discussões
realizadas por Simona Cerutti nos dois textos publicados na presente coletânea. No primeiro
deles, “A contrapelo: diálogo sobre o método”, Cerutti se aproveita do lançamento de uma nova
edição francesa de “Mitos, emblemas e sinais”, de Carlo Ginzburg, para dialogar com o
historiador acerca do conceito de sinais e das fontes como condição da possibilidade de todo
conhecimento histórico. Utiliza a documentação do campo jurídico para mostrar que mais do
que sinais, as fontes devem ser vistas como ações. Já no capítulo seguinte da autora, ela
questiona a separação, construída por alguns comentadores, entre um eixo social e eixo cultural
no seio da microstoria desde seu início. O objetivo principal é discutir as razões dessa suposta
separação, assim como algumas condições para uma “unificação” entre esses modelos de
história social e história cultural.
Nesse sentido, no texto intitulado “Quem está embaixo? E. P. Thompson, um historiador
das sociedades modernas: uma releitura”, Simona Cerutti se aproveita da tradução para o
francês de Costumes em comum (Thompson, 1998), realizada apenas em 2015, para analisar o
frutífero diálogo realizado entre a micro-história e as obras do historiador inglês. Apresenta,
portanto, uma longa discussão acerca da viabilidade da produção da história vista de baixo,
bem como reflete a respeito de algumas limitações de certos conceitos – povo, plebeus, agência,
ação, entre outros – utilizados por Thompson em alguns de seus mais importantes artigos.
Também de origem italiana, Sandra Cavallo e Maurizio Gribaudi são algumas das
principais referências quando o tema é a história da Paris popular da primeira metade do século
XIX. Após ter se especializado em demografia e morfologia urbana, o referido autor publicou
seu trabalho sobre os percursos operários na Turim no século XX. Por meio da reconstrução

12
A título de exemplo das obras de Cerutti, podemos citar, entre outras: Cerutti (1990; 2010a; 2010b; 2012a;
2012b; 2014).

15
das experiências individuais e familiares de mobilidade do campo para a cidade e dentro do
próprio espaço urbano, o autor buscou analisar de que modo a vida cotidiana se mostrava
articulada com comportamentos políticos e a maneira como havia se formado o tecido social da
sociedade operária, ganhando destaque o tema dos ciclos de integração urbana realizadas no
decorrer de duas ou três gerações (Gribaudi, 1987a).
Diferentemente de Simona Cerutti, Sabina Loriga e Maurizio Gribaudi, que fizeram
carreira na EHESS, Sandra Cavallo construiu sua carreira na Inglaterra, tendo realizado o
doutorado na Universidade de Exeter, tornando-se em seguida professora na Royal Holloway
– University of London. Desde então, ela tem trabalhado com a história social e cultural da
Itália moderna e, em particular, com os temas do gênero e da família, da medicina e do corpo,
bem como da cultura material doméstica. Atualmente, pesquisa a história e o futuro do ar;
gênero e espaço nos palácios italianos do período moderno e, em textos médicos, vernáculos
para o uso doméstico na Itália do século XVI e XVII.
Em seus principais livros, Cavallo (1995; 2007) utiliza os elementos centrais da
microstoria italiana: redução de escala como paradigma epistemológico, a análise de indícios
como uma janela de acesso a processos históricos e a utilização intensa e exaustiva das fontes.
É por meio dos aspectos referidos, avaliando todas as dimensões possíveis e sentidos do
processo social vivido que a autora realiza a pesquisa apresentada nesta coletânea. O texto
“Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim (séculos XVII e
XVIII)” tem como objetivo analisar a aprendizagem e a transmissão do ofício de cirurgião-
barbeiro no período em que essa profissão atingiu o auge de seu sucesso. Foi quando os
cirurgiões-barbeiros se tornaram fundamentais na supervisão dos hospitais barrocos, no
controle da assistência sanitária dos exércitos, na assistência domiciliar aos pobres, bem como
na prestação de serviços cosméticos, sanitários, de higiene, etc.
Mais recentemente, Gribaudi (1998) conduziu, juntamente com outros pesquisadores,
uma reflexão ambiciosa, empírica e teórica, sobre os vínculos e as redes nas quais os atores
sociais se inscrevem, mas igualmente sobre as relações entre estruturas e dinâmicas relacionais.
Não podemos esquecer também o livro dedicado à revolução de 1848 (Gribaudi, 2008),
qualificada por ele como “esquecida”, na qual analisa os mecanismos de apagamento
historiográfico desse evento em setores inteiros da historiografia francesa. Por último, em 2014,
Gribaudi lançou outro livro, em que oferece, através de uma abordagem microanalítica, uma
nova interpretação sobre as formas de organização dos meios populares parisiense desde a
Revolução Francesa até a Revolução de 1848 (Gribaudi, 2014). Nesse trabalho, o autor sintetiza

16
todos os métodos de pesquisa utilizados ao longo de sua carreira,13 indicando para a influência
das reflexões de autores como Walter Benjamin, Aby Warburg, Giovanni Levi, Norbert Elias,
Marc Bloch, Charles Tilly, Edward Shorter, Peter Laslett, J. Clyde Mitchel, A. L. Epstein,
Jeremy Boissevain e Fredrik Barth.

Na presente coletânea, são apresentados dois textos de Maurizio Gribaudi. No primeiro


deles intitulado “Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na
França do século XIX”, o referido autor analisa as experiências de mobilidade de indivíduos
que se fixaram em Paris num determinado espaço geográfico e social. Ao fazer isso, pensa a
experiência individual em toda a sua particularidade como algo que é inseparável do contexto,
em que ambos vão evoluindo e se modificando mutuamente. Nesse sentido, ao analisar o
processo de “enraizamento” no ambiente urbano por meio de diferentes trajetórias de operários,
é destacado o papel das configurações de relações de cada sujeito, de suas referências emotivas,
simbólicas, da memória familiar, dos recursos e percepção em relação ao próprio caminho e
sociedade na qual se encontra inserido. A ideia de que cada indivíduo possui uma “agenda
oculta”, composta pelos aspectos apontados acima, torna necessário não apenas identificar
práticas sociais, mas buscar suas lógicas internas e formas.
Considerando a história como um “organismo vivo”, por meio das trajetórias dos
operários estudados são acessadas suas configurações individuais, os espaços sociais e
profissionais que, em constante movimento, evoluem por meio de continuidade, rupturas e
diversificação. Nesse sentido, é necessário apreender os aspectos que caracterizam os processos
de evolução histórica e os percursos biográficos, o que permite perceber a impossibilidade de
olhar para cada trajetória individual de forma separada da natureza do espaço social onde ela
mesma se desenvolve. Em tudo isso, Gribaudi analisou quatro percursos de operários que se
encontravam inscritos no interior de configurações sociais específicas, que se caracterizam
pelas possiblidades variadas de cada um de acionar e articular uma gama variada de recursos,
memórias e símbolos. Desse modo, uma trajetória é percebida, portanto, como o
desenvolvimento Com semelhanças entre si, como o fato de terem emigrado para Paris com a
mesma idade, cada um dos sujeitos analisados vivenciou de maneira diferente a realidade
urbana parisiense. Nesse sentido, a trajetória dos quatro operários é percebida como o
desenvolvimento de um ser orgânico totalmente imerso num determinado espaço social e pelas
relações ali existentes. Toda essa discussão é percebida como bastante importante para pensar

13
Ver, a este respeito, sua obra na bibliografia deste projeto.

17
o tema da identidade do emigrante, não como algo determinado por conta de uma origem, mas
sim como resultado de um processo em que as relações entre indivíduo e contexto, permanência
e ruptura não podem serem vistas dissociadas.
Uma abordagem microstoria que permita reconstruir as ações, os significados conferidos
pelos próprios atores sociais, as escolhas bem-sucedidas ou não e, especialmente, o papel das
interdependências diversas no interior de um espaço que evolui e se transforma continuamente
é característica bastante presente nos estudos de Gribaudi. No segundo texto do autor, com
título “O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na França do século
XIX” é analisada, através de anotações e correspondência de funcionários públicos que passam
a ocupar cargos administrativos, a importância das práticas relacionais e da linguagem na gestão
das carreiras. Mais importante do que os títulos profissionais, o que ganha destaque é o
patrimônio relacional da família, seu status e o da parentela, bem como a quantidade e qualidade
dos vínculos; a existência de uma “cultura de relações” como um aspecto determinante para
pensar as formas de estruturação da administração e como operam as estratégias de mobilidade
profissional e social, desde a Revolução até a Primeira República francesa.
Considerada como pertencente já à terceira geração da microstoria italiana, temos
Francesca Trivellato, que foi professora de história moderna na Yale University e atualmente
está ligada ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Os temas do trabalho, mercado e
comércio intercultural, são discussões presentes em suas pesquisas (Trivelatto, 2000; 2016).
Em seu último livro publicado em italiano, Il commercio interculturale: la diáspora sefardita,
Livorno e i traffici globali in età moderna, a autora analisa o papel da cultura e das instituições
na ascensão do capitalismo comercial através da atuação de grupos de comerciantes judeus e as
redes comércio numa perspectiva global, ao estudar a base e extensão das solidariedades entre
grupos de indivíduos marcados por afinidades plurais. Desse modo, partindo de uma abordagem
micro, atenda aos vínculos entre sujeitos, às dinâmicas de grupos comerciais, aos modos de agir
e às lógicas que permitiam que comerciantes de um lugar específico da península itálica,
Livorno, estendessem suas redes mercantis mediterrâneas até a Índia no decorrer do Setecentos.
Ao fazer isso, Trivellato questiona as ideias que colocavam a solidariedade étnica e religiosa
como elemento basilar para a constituição de uma rede de créditos no período pré-industrial,
mostrando, por outro lado, a presença de uma pluralidade de agentes envolvidos no comércio
intercultural e de conexões entre grupos diversos dentro de uma escala territorial bastante
ampla. Para tanto, analisa a relação entre judeus de diferentes lugares com os cristãos e indianos,
os casamentos, as alianças, os contratos comerciais e diplomáticos por meio de cartas e fontes
existentes em diversas cidades da Europa e Ásia (Trivellato, 2016). Nesse sentido, o livro

18
mencionado é um exemplo de uma proposta historiográfica que pretende pensar questões
amplas, ou seja, uma história global, a partir de uma escala reduzida, sem renunciar a alguns
pressupostos fundamentais da microstoria italiana.
Os dois textos de Francesca Trivellato, que compõem os capítulos 8 e 9 da presente
coletânea, apresentam discussões que procuram tocar numa questão que a autora considera ser
o verdadeiro “calcanhar de aquiles” da microstoria, que é a relação entre a escala micro e a
macro. No texto “Microstoria/microhistoire/microhistory”, Trivellato parte de
questionamentos acerca do que seria a micro-história e o que teria mantido os historiadores
italianos reunidos em torno dela. Remonta às preocupações iniciais de seus principais
expoentes, bem como às compartilhadas em relação às escalas, ao invés de defender a
supremacia da escala micro. Uma discussão profunda e mais completa sobre a inter-relação
entre o pequeno e o mais amplo, o local e o global, é algo apontado como uma fragilidade na
microstoria.
Sem buscar abrir mão dos principais pressupostos da referida prática historiográfica, no
segundo texto, intitulado “Existe um futuro para a micro-história italiana na era da história
global?”, Trivellato tem como um dos objetivos indicar de que modo a perspectiva micro pode
ainda contribuir para o avanço dos estudos nas ciências sociais, especialmente nas últimas
décadas, em que palavras como “global” e “globalidade” têm ganhado destaque. Assim, inicia
a discussão se questionando se método da microstoria é ainda relevante e que mudanças teve
nos últimos trinta anos. O principal, portanto, é refletir sobre a relação entre escalas e propor
maneiras de combinar micro-história e história global. Nesse sentido, aponta aspectos que
afastam e aproximam as duas perspectivas, indicando estudos que tomaram o estudo da
trajetória de indivíduos ou grupos como exemplo de trabalhos que aproximam o diálogo.
Itinerários, circulação de pessoas e objetos, conexões propiciadas pelo movimento dos próprios
sujeitos, sem deixar de lado a agência desses, têm se apresentado como caminhos para acessar
contextos que possuem uma dimensão local e global. Perspectivas que levem em conta vidas
globais e que atentam para as conexões e redes translocais estabelecidas pelos próprios sujeitos
são propostas da chamada micro-história global, conforme definiu Trivellato.
Por fim, temos os artigos dos dois organizadores dessa coletânea, inspirados em algumas
contribuições dos historiadores italianos que compõem o livro. Em “Processos criminais e
micro-história: direito, grupos populares e a Justiça Criminal em Minas Gerais (1854-1941),
Deivy Carneiro analisa, utilizando os processos criminais de calúnia e injúria, elementos da
vivência cotidiana de alguns grupos que habitaram Juiz de Fora entre os anos de 1854 e 1941.
Primeiramente, o autor estabelece o contexto social em que aconteceram os conflitos verbais e,

19
após, examina os principais temas dos insultos verbais e os usos sociais da linguagem ofensiva.
Em seguida, Deivy Carneiro observa aspectos do funcionamento do aparelho jurídico local,
analisando principalmente a relação mantida entre a população subalterna e a Justiça local.
Fazendo uso de conceitos desenvolvidos por Cerutti acerca do papel do direito nas diversas
sociedades, o autor percebe a Justiça Criminal não apenas como um sistema normativo, mas
sobretudo como um instrumento de classificação social e que instituiu práticas e visões de
mundo muito além de um sistema punitivo.
Já Maíra Vendrame, no último capítulo, intitulado “Pensando o problema das conexões,
do equilíbrio e da complexidade a partir da perspectiva da micro-história”, discute de que
maneira o método da microstoria italiana propiciou o desenvolvimento dos estudos ligados aos
movimentos migratórios de curta e longa distância. A redução do foco de análise, com atenção
para as especificidades dos lugares de partida e para os percursos de grupos e sujeitos,
possibilitou apreender as diferentes motivações dos deslocamentos, suas dinâmicas e o papel
da mobilidade no universo camponês. Uma abordagem centrada nas experiências particulares
de uma família ou indivíduo, que busca acompanhar as escolhas e o percurso, desde a aldeia de
origem até o local de instalação, aparece ainda como uma escolha metodológica interessante
para levantar novos questionamentos sobre o tema das migrações transoceânicas, das conexões,
racionalidades e agência dos sujeitos na articulação das próprias transferências para a América.
Assim, lembrando o que é destacado por Giovanni Levi, a microstoria consiste em um
método de investigação, não estando, portanto, ligada a um tema ou ao tamanho do objeto de
estudo. Desde a publicação do livro Herança imaterial, em 1985, pela Einaudi, as influências
do trabalho em novas pesquisas têm sido diversas e se ampliado cada vez mais. O que trazemos
na presente coletânea são experiências historiográficas bastante ecléticas de pesquisadores que
haviam sido alunos e orientandos de Levi. Essa diversidade e referências distintas em relação
ao trabalho do mestre é um aspecto que permite perceber a microstoria como uma prática
historiografia e não uma escola teórica, que a cada década se amplia, se repensa e se transforma,
porém não deixa de lado alguns dos princípios fundamentais, como o de submeter nossos
objetos de análise à lente do microscópio. Dedicamos esse trabalho ao mestre e amigo Giovanni
Levi e a todos os outros pesquisadores que colaboraram com textos.
Desejamos a todos uma boa leitura.

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23
1 A pluralidade do passado

Sabina Loriga

“Think now
History has many cunning passages, contrived corridors
And issues, deceives with whispering ambitions,
Guides us by vanities. Think now
She gives when our attention is distracted
And what she gives, gives with such supple confusions
That the giving famishes the craving.”
(Thomas Stern Eliot. Gerontion. In: Poems, 1920).

I.

Durante a primeira metade do século XX, a ideia de erigir uma história impessoal seduziu
diversos historiadores. A batalha lançada, no fim do século precedente, por Karl Lamprecht e
François Simiand contra a abordagem biográfica e cronológica foi logo retomada por
numerosos historiadores sociais, tradicionalmente mais atentos à dimensão coletiva da
experiência histórica.1 Sem dúvida, a obra de Fernad Braudel desempenhou um papel central
nesse trabalho de despersonalização do passado. Em La Méditerranée et le monde
méditerranéen à l’époque de Philippe II (Braudel, 1990:512-520), ele reivindica a
superioridade da história das estruturas e da história dos espaços, ambas fundadas sobre o que
há de mais anonimamente humano em relação à história biográfica. Assim, Carlos V não teria
sido nada mais do que o produto de uma tendência histórica impessoal (um acaso calculado,
preparado e desejado pela Espanha) e não o autor do projeto imperial: “A Europa se
encaminhava em direção à construção de um vasto Estado”. Essa abordagem suscitou inúmeras
respostas críticas. Por exemplo, Derek Beales, em uma aula inaugural proferida em Cambridge,
em 20 de novembro de 1980, observava que Carlos V não podia ser compreendido como um
mero produto da Espanha, visto que “no final do século XV, não havia ainda uma vontade
coletiva que pudesse ser identificada à Espanha” (Braudel, 1990:21-23). Beales sublinha a
impossibilidade de fundar a racionalidade histórica sobre uma entidade coletiva (com efeito, o
que se entende por “vontade” da Espanha?) assim como o risco latente de anacronismo ao se


Trad. de Alexandre de Sá Avelar (InHis-UFU). Rev. téc. Deivy Ferreira Carneiro (InHis-UFU).
1
Cf. Loriga (2014).

24
reduzir o coletivo ao nacional (poder-se-ia falar de Espanha em uma época na qual não existia
ainda uma configuração nacional?). 2
Para Braudel, o sacrifício da dimensão individual estava estritamente ligado a uma nova
arquitetura do tempo histórico. La Méditerranée se funda sobre três tempos diferentes de ritmos
desiguais: a história quase imóvel da geo-história, praticamente fora do tempo, feita
frequentemente de retornos insistentes de ciclos que recomeçam sem parar; aquela, ritmada
lentamente pelas conjunturas econômicas da sociedade e marcada por ondas mais cheias; enfim,
a história tradicional, événementielle, relacionada às oscilações rápidas e nervosas do indivíduo.
As relações existentes entre esses três tempos (longo, médio e curto) permanecem ambíguas.
Trata-se de realidades isoladas ou conectadas? São durações ou ritmos diferentes? Há uma
hierarquia entre eles? Por vezes, Braudel descreve uma interação cambiante na qual todos os
planos têm seu valor e cada duração representa uma camada de explicação. Ademais, ele
manifesta sua predileção pelo primeiro tempo e seu desprezo pelo último, qualificado como
agitação de superfície (Braudel, 1990:13).3
Ao longo dos anos, Fernand Braudel retornou a essas questões em dois célebres artigos
metodológicos, publicados em 1958: “Histoire et sciences sociales: la longue durée” (Braudel,
1958a) e “Histoire et sociologie” (Braudel, 1958b). Longe de serem uma simples sistematização
da abordagem proposta em La Méditerranée, esses textos vão marcar uma guinada importante.
Logo de início, a história é definida como uma dialética da duração: pela duração, graças à
duração, a história é o “estudo do social, de todo o social, e então do passado, e também do
presente: um e outro inseparáveis”(Braudel, 1958b:104). Enquanto a sociologia privilegia uma
unidade de tempo muito breve (a instantaneidade do presente) e a antropologia uma duração
muito longa (a imobilidade dos milênios), a história inscreve os fatos sociais na longa duração.
Em uma polêmica com o sociólogo George Gurvitch, que havia distinguido, no interior da
mesma sociedade, oito gêneros de temporalidades (Gurvitch, 1957:73-84),4 a noção de tempo
social é colocada em perspectiva: “Como o historiador se deixaria convencer [pelas diferenças
temporais]? Com esta gama de cores, seria impossível que ele reconstruísse a luz branca unitária
que lhe é indispensável” (Braudel, 1958a:78-79). A ênfase se desloca da multiplicidade à
unidade temporal:

2
Cf. Blanning e Cannadine (1996).
3
Cf. Hall (1980).
4
Cf. Maillard (2005:197-222).

25
Este desacordo é mais profundo do que aparenta: o tempo do sociólogo não pode ser o
nosso; a estrutura profunda do nosso trabalho, se não me engano, lhe causaria repugnância.
Nosso tempo é medido, assim como o dos economistas. Quando um sociólogo nos diz que
uma estrutura não cessa de se destruir para se reconstruir, nós aceitamos, com boa vontade,
essa explicação que, de resto, é confirmada pela observação histórica. Mas gostaríamos de
conhecer, no eixo de nossas exigências habituais, a duração precisa desses movimentos
positivos ou negativos. [...] O que interessa apaixonadamente a um historiador é o
entrecruzamento desses movimentos, sua interação e seus pontos de ruptura; coisas que só
podem ser registradas na relação com tempo uniforme dos historiadores, medida geral de
todos esses fenômenos, e não ao tempo social multiforme, medida particular de cada um
desses fenômenos [Maillard, 2005:77-78].

Nessa perspectiva, a longa duração, a conjuntura e o evento se encaixam sem


dificuldades, pois se medem em uma mesma escala do tempo universal.
Os dois artigos de 1958 têm uma conotação política, no sentido amplo do termo. Braudel
acredita que sua distinção entre as três durações (longa, média e curta) deveria oferecer uma
moldura epistemológica e metodológica comum às ciências sociais. Convencido de que a longa
duração é “a linha mais útil para uma observação e uma reflexão comuns às ciências sociais”,
Braudel defende que uma renovada arquitetura dessas ciências deve ter a história como pedra
angular: “A história me parece como uma dimensão da ciência social, sendo parte integrante
dela. O tempo, a duração e a história se impõem, ou deveriam se impor, a todas as ciências do
homem. Suas tendências não são de oposição, mas de convergência” (Maillard, 2005:105). Essa
é uma passagem fundamental. Como sublinharam Gérard Noiriel e Jacques Revel, em
comparação com La Méditerranée, Braudel alterou sensivelmente sua visão. As ambiguidades
se dissolveram. Os três tempos são agora apresentados como durações objetivas,
matematicamente comensuráveis a fim de estabelecer uma história serial.

Apreendido na totalidade da história (e não como objeto de estudo, como era o caso na
tese), o tempo aparece, desde então, como uma realidade mensurável. As durações são
projetadas sobre uma escala única, o que permite sobrepô-las, como os andares de uma
casa, de modo a hierarquizar os domínios do saber [Noiriel, 2003:136].

Por outro lado, a ideia de uma hierarquia da duração se impõe, visto que a longa duração
não é mais somente aquela de uma temporalidade diferente, considerada como a base de todas
as outras durações: ela repousa sobre o sacrifício do tempo vivido (Revel, 1999:17).

26
II.

Na verdade, a possibilidade de apagar as individualidades da narrativa histórica não é uma


operação simples. Desse ponto de vista, a leitura de La Méditerranée proposta em, de Paul
Ricouer, permanece magistral. Podemos distinguir três elementos fundamentais.
Antes de tudo, Ricoeur observa que a noção de longa duração corre o risco de extrair o
tempo histórico da dialética viva entre o passado, o presente e o futuro, perdendo de vista,
assim, o tempo humano:

Enquanto que, na narrativa tradicional ou mítica, e ainda na crônica que precede à


historiografia, a ação é relacionada a agentes que podemos identificar, [...] a história-
ciência se refere a objetos de um tipo novo apropriados ao seu modelo explicativo. [...] A
nova história parece não ter personagens [Ricoeur, 1983-85:314, t. I].

Em seguida, ele explica os limites da autorrepresentação da história apresentada em La


Méditerranée a qual, apesar das declarações de seu autor, não chega a apagar o individual e o
factual da narrativa:

O homem está presente em toda parte e com ele um pulular de acontecimentos


sintomáticos: a montanha é figurada como refúgio e como abrigo para homens livres.
Quanto às planícies costeiras, elas não são evocadas sem a colonização, o trabalho de
drenagem, o beneficiamento das terras, a disseminação das populações. [...]. Os grandes
conflitos entre os impérios espanhol e turco já lançam sua sombra sobre as paisagens
marinhas. E com as relações de força, os acontecimentos já começam a despontar [Ricoeur,
1983-85:365, t. I].

Longe de ser esvaziada, a ação permanece central no conjunto das três partes de La
Méditerranée (“a obra está colocada em bloco sob o signo da mímesis da ação”) e a própria
noção de história de longa duração deriva do acontecimento dramático, ou seja, do
acontecimento enredado em uma intriga (Ricoeur, 1983-85:379, t. I). Por meio dessa posição
crítica, Ricoeur esvazia o acontecimento do seu caráter impetuoso (“ele não é necessariamente
breve e nervoso como se fosse uma explosão”), para assinalar sua condição de sintoma ou de
testemunho (Ricoeur, 1983-85:383, t. I).
Por fim, Ricoeur compara a obra de Braudel com três “fábulas sobre o tempo”, escritas
nas primeiras décadas do século XX: Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (1925), La montagne

27
magique, de Thomas Mann (1924), e À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust (1913-
27). Uma comparação entre as páginas consagradas ao texto de Virginia Woolf e aquelas
dedicadas ao La Méditerranée me parece particularmente significativa. Em sua análise de Mrs.
Dalloway, Ricoeur recorda a extraordinária diferença existente entre o tempo cronológico,
representado pelas batidas do Big Ben e por outros sinos e relógios que marcavam as horas, e
o tempo individual. O tempo oficial com o qual as personagens são confrontadas não é apenas
o tempo dos relógios, mas tudo o que é a ele relacionado; é o tempo monumental, a voz da
autoridade (a saber, o espírito do Império britânico). Da mesma forma, o tempo individual
coincide com a experiência do tempo sob a ameaça e sob o signo da morte. Os diferentes
protagonistas instauram uma relação particular com essas marcas do tempo e engendram sua
própria duração5. Ricoeur (1983-85:199, t. II) comenta: “Irrevogável, a hora? E nesta manhã de
junho, entretanto, o irrevogável não oprime, ele reaviva a alegria de viver [...]. Assim caminha
o tempo interior, puxado para trás pela memória e empurrado para a frente pela expectativa”.
Para ele, não se trata apenas de opor o tempo dos relógios ao tempo interior, mas de
compreender a variedade das experiências temporais concretas dos diversos personagens: “as
badaladas do Big Ben não escandem de modo algum um tempo neutro e comum, mas se
revestem, a cada vez, de uma significação distinta” (Ricoeur, 1983-85:234, t. II). Dessa forma,
Ricoeur introduz a dimensão do conflito. Não apenas o tempo não é o mesmo para todos –
externa e não intimamente –, mas o tempo público é esvaziado por visões inconciliáveis. Ele
não une, mas divide.
A partir destas reflexões, Ricoeur pretende mostrar que a narrativa ficcional é mais rica
em informações sobre o tempo, no nível da arte de composição, do que a narrativa histórica.
Ele esclarece:

Não que a narrativa histórica seja extremamente pobre a esse respeito [...]. Contudo,
imposições [...] fazem com que as diversas durações consideradas pelos historiadores
obedeçam a leis de sua inserção as quais, apesar das inegáveis diferenças qualitativas
quanto ao ritmo e ao andamento dos acontecimentos, tornam essas durações e as
velocidades que lhes correspondem fortemente homogêneas [Ricoeur, 1983-85:295, t. II].

Longe de manipular as variações temporais, a história elabora um terceiro tempo, o tempo


propriamente histórico, na interseção entre o tempo vivido e o tempo cósmico. Ela é fundada

5
Em Orlando (1928), Virginia Woolf retoma a oposição entre o tempo cronológico (“o tempo do relógio”) e o
tempo da consciência individual (“o tempo da mente”).

28
em mecanismos de conexão que asseguram a reinserção do tempo vivido no tempo cósmico: o
calendário, a passagem das gerações, os arquivos (nesse caso, o documento e o rastro). Desse
ponto de vista, Ricoeur descreve o tempo histórico como destituído de laços diretos com aquele
da memória e da expectativa.

Por um lado, o tempo histórico parece se resumir em uma sucessão de intervalos


homogêneos, portadores da explicação causal ou nomológica; por outro, ele se dispersa em
uma multiplicidade de tempos, cuja escala se ajusta à das entidades consideradas: tempo
curto do acontecimento, tempo semilongo da conjuntura, longa duração das civilizações,
duração muito longa dos simbolismos fundadores do estatuto social como tal. Esses
“tempos da história” [...] parecem não ter relação discernível com o tempo da ação
[Ricoeur, 1983-85:314-315, t. I].

Quero enfatizar algumas das expressões empregadas por Ricoeur: “Os historiadores
obedecem a leis de inserção”, “a longa duração é homogênea”, “o tempo da história não tem
relação com o tempo da ação”... Elas levantam muitas interrogações sobre o lugar dessas
páginas na reflexão do filósofo francês. Desde Histoire et vérité, ele sempre abordou a questão
da verdade histórica em sua dupla dimensão: a da verdade no conhecimento histórico e aquela
da verdade na ação histórica. Por que ele parece desatar ou desconectar essas duas dimensões?
Ele propõe renunciar à verdade da ação? É difícil ter uma resposta para essas questões. De toda
maneira, eu gostaria de esclarecer que a ideia segundo a qual a história deve lançar sobre o
passado “uma única luz branca” nem sempre foi compartilhada pelos historiadores.

III.

No longo debate sobre a história, iniciado durante o século XVIII e que atravessou todo o século
XIX, alguns autores destacaram a pluralidade – espacial e temporal – do mundo histórico.
Em 1773, Johann Gottfriedu Herder exprimiu sua contrariedade em relação a todo o
excesso de síntese. Ele observa a fragilidade das caracterizações gerais: não podemos nos
contentar em pintar um povo, um período, um país; agrupar esses conjuntos em um termo
genérico que nada significa e sob o qual os indivíduos pensam e sentem de maneira diferente
(Herder, 2000:69). Vinte anos mais tarde, ele retorna aos limites das generalizações históricas:
“O temor me assalta quando eu pretendo caracterizar uma nação inteira ou período em algumas
palavras; que enorme soma de diversidade abrange, com efeito, palavras como ‘nação’ ou os
‘séculos da Idade Média’, ou ainda a época antiga ou moderna” (Herder, 1965:441-442).

29
Toda a sua reflexão, baseada essencialmente nas diferenças nacionais, ilumina a
heterogeneidade dos tempos. Conforme escreve em 1799, não há no mundo duas coisas que
tenham a mesma medida de tempo. Cada fenômeno (social, cultural, estético) tem seu próprio
centro de gravidade, contendo sua própria medida, e deve ser avaliado em si mesmo e não por
meio de uma métrica absoluta:

Para dizer a verdade, toda coisa movente leva em si a medida do seu tempo e este persiste
mesmo na ausência de qualquer outro. Não há duas coisas no mundo que tenham a mesma
medida de tempo [...] Existe então (podemos afirmar corajosamente) no universo, em um
único tempo, uma multitude de tempos [Herder, 1981:59, t. XXI].

Um século mais tarde, é a vez de Wilhelm Dilthey sublinhar como o mundo histórico não
pode ser compreendido por conceitos totalizantes. Um indivíduo não pode explicar um grupo,
uma comunidade ou uma instituição e, inversamente, um grupo, uma comunidade ou uma
instituição não permitem explicar um indivíduo. Entre esses dois polos existe sempre um
resíduo inesgotável. Cada indivíduo sente, vive e realiza as criações da vida, mas elas escapam
a seu controle, abrangendo um espaço humano mais amplo do que o simples espaço biográfico.
Elas existem antes de nós e continuarão após:

[elas] agem enquanto costumes, tradições e, através de sua aplicação ao indivíduo, também
enquanto opinião pública: em virtude da superioridade numérica da comunidade e do fato
de ela durar mais tempo do que a vida individual, elas exercem um poder sobre o indivíduo,
sobre sua experiência e sua potência vitais [Dilthey, 1988:88, t. III].

Por outro lado, o indivíduo é sempre um ser bastado, no cruzamento (Kreuzungspunkt)


de diferentes grupos históricos. Ainda que ele seja moldado, até a medula, por suas experiências
históricas, ele não é jamais reduzido a alguma delas: ele não se entrega completamente nem
mesmo à sua família, a matriz de toda forma de vida social. Tomemos o caso de um juiz. Ele
pode pertencer, simultaneamente, a uma família, a um partido político, a uma Igreja: além do
fato de que faz jus à

função que ocupa no espaço jurídico, ele pertence a diversos outros conjuntos interativos;
ele age no interesse de sua família, ele deve executar uma atividade econômica, ele exerce
suas funções políticas, e, talvez, ele também componha versos. Desta forma, os indivíduos
não são vinculados inteiramente a tal conjunto interativo (Wirkungszusammenhang), mas

30
na diversidade de relações de causa e efeito apenas os processos que pertencem a um
sistema determinado são colocados em relação uns com os outros, e o indivíduo se vê
imbricado em conjuntos interativos diferentes [Dilthey, 1988:118, t. III].

Por sorte, mesmo quando não é possível, como em situações extremas, habitar
simultaneamente vários espaços, ainda nos resta a possibilidade de mobilizar recursos atrás e
diante de nós em outros tempos: “numerosas são em nós as possibilidades da vida quanto à
memória e ao desejo pelo futuro [...] ainda que nossa imaginação vá além do que podemos viver
imediatamente ou realizar no seio de nosso eu”. O que quer dizer que o presente não é jamais
apenas presente, um estado temporal fechado sobre si mesmo, mas que ele é de uma natureza
mais flexível e que não cessa de requerer o passado e o futuro: “o presente não é jamais; o que
vivemos no imediato, enquanto presente, contém sempre em si a lembrança do que era
justamente presente” (Dilthey, 1988:194; 259, t. VII). Assim como Friedrich Nietzsche, Dilthey
pensa que o homem é uma criatura do tempo, inelutavelmente ligado à cadeia do passado, e é
precisamente essa característica que faz nascer nele a necessidade de se exprimir de maneira
durável:

o animal vive enraizado no presente. [...] Ele não sabe nada do nascimento e nem da morte.
Assim, ele sofre bem menos do que o homem. Mesmo que observemos, no reino animal,
crueldades, mutilações ferozes, a luta pela vida e a morte, a vida do homem sofre dores
muito maiores e mais permanentes [Dilthey, 1988:357, t. XIX].

Nossa vida se estende para trás, em direção ao passado, através da lembrança, e adiante,
em uma expectativa repleta de temor ou de esperança, dirigida ao futuro”(Dilthey, 1988:357, t.
XIX). Ao contrário do que muitos sociólogos (especialmente alguns defensores do
interacionismo simbólico)6 afirmaram nas décadas seguintes, o eu não é um produto hic et nunc,
determinado por uma situação contingente: suas ações são fundadas sob a duração e se
alimentam de imagens do passado e de antecipações do futuro.
Além disso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade ou uma instituição e uma
época ou uma civilização não é definida em termos de pertencimento. Sem dúvida, toda época
exprime uma figura dominante. Ela é unilateral e, em certos momentos, a consonância entre os
diferentes domínios da vida é particularmente forte: por exemplo, o espírito racional e
mecanista do século XVII influenciou a poesia, a ação política e a estratégia de guerra. Mas se

6
Cf. Herbert Blumer (1962:187).

31
trata aqui de exceções, pois os diferentes campos gozam de certa autonomia e há sempre
fragmentos de história que relutam ou recusam integrar o movimento geral: “cada conjunto
particular contido [no mundo histórico] possui, através da posição dos valores e da realização
dos fins, seu próprio centro” (Dilthey, 1988:92, t. III). Disso resultam irregularidades,
diferenças, discordâncias:

Esse conteúdo [histórico] se apresenta como uma unidade. Eis o que pôde fazer nascer a
ideia de que era possível expor o conjunto da história sob a forma de relações lógicas entre
pontos de vista homogêneos. Assim os hegelianos estragaram a inteligência da filosofia
moderna por causa da ficção segundo a qual os pontos de vista se desenrolam logicamente
uns dos outros. Na realidade, uma situação histórica contém, desde o início, uma
diversidade de fatos particulares. Refratários, esses são simplesmente justapostos e não se
deixam restituir uns aos outros [Dilthey 1995:162, t. VII].

Uma civilização não é, portanto, uma entidade compacta e não é feita de uma única
substância, redutível a um princípio primordial. Ela deve ser compreendida, sobretudo, como
um entrelaçamento ou uma mistura instável de aspirações diferentes e de atividades que se
contradizem. Ela abriga diversos conjuntos interativos em movimento perpétuo (a economia, a
religião, o direito, a educação, a política, o sindicato, a família etc.):

e como a organização política contém, em si, uma diversidade de comunidades que


descendem até à família, a vasta esfera da vida nacional compreende, além das
comunidades, conjuntos mais restritos que possuem seu próprio movimento. [...] Cada um
desses conjuntos interativos é centrado sobre si próprio de uma maneira particular e é nesse
aspecto que se funda a regra interna de sua evolução [Dilthey, 1988:122-124, t. III].

Profundamente insensível à magia da cronologia, Dilthey conceitualiza a pluralidade


fundamental do mundo histórico em sua dimensão temporal. Na esteira de Herder, que afirmava
que todo fenômeno é seu próprio relógio, ele escreve, em 1910, que o tempo histórico não é um
movimento retilíneo nem um fluxo homogêneo. Assim, o século XVIII é habitado,
simultaneamente, pelas Luzes, por Bach e pelo pietismo:

Nesse todo homogêneo em que se exprimem diferentes domínios da vida, a orientação


dominante do Iluminismo alemão não determina todos os homens que pertencem a esse
século, e mesmo onde sua influência se exerce, outras forças frequentemente agem ao lado
dele. As resistências do século anterior se fazem sentir. As forças ligadas às ideias e às

32
situações anteriores são particularmente ativas, mesmo que elas tenham uma forma nova
[Dilthey, 1988:132, t. III].

Dessa maneira, Dilthey desenha o todo histórico como um conjunto maleável,


conflituoso, em cujo seio coexistem forças discordantes que se rebelam contra a unidade
forçada do Zeitgeist: “não se trata de uma unidade que seria exprimível por uma ideia
fundamental, mas um conjunto que se edifica entre as tendências da própria vida” (Dilthey,
1988:133, t. III). 7 Definitivamente, as considerações de Dilthey sobre a natureza heterogênea
e descontínua do tempo histórico propõem uma imagem musical da relação entre as partes e o
todo em um jogo infinito de harmonias e de dissonâncias não previsíveis: não há um núcleo
único que seria, ao mesmo tempo, a melodia e o acompanhamento (o século das Luzes), mas
uma alternância de temas que se encadeiam e se entrecruzam.8
Na segunda metade do século XX, essas intuições foram elaboradas em History: the last
things before the last. Para Siegfried Kracauer, como para Dilthey, o mundo histórico não é
compreensível em termos de filiação, menos ainda em termos de propriedade ou de assimilação,
pois o ambiente não é um conjunto coerente e autossuficiente, mas uma mistura frágil de
esforços cambiantes e contrastantes: “na medida em que um indivíduo ‘pertence’, uma grande
parte do que ele é permanece de lado” (Kracauer, 2006:77). Kracauer invalida igualmente a
noção de pertencimento temporal. Longe de ser um médium homogêneo, caracterizado por uma
direção irreversível, o tempo do calendário parece-lhe um receptáculo vazio, indiferente, que
carrega consigo uma massa de eventos desconectados. Em outros temos, cada época é um
conglomerado precário de tendências, de ambições e de atividades independentes umas das
outras, um cortejo de eventos incoerentes e díspares. Algumas ignoram a existência de outras,
outras estão em contraste, outras ainda parecem ser relativamente pouco influenciadas pelo
Zeitgeist: por exemplo, os interiores carregados das casas da segunda metade do século XIX
não estavam de acordo com os pensamentos predominantes da época. Por essa razão, se o
período é uma unidade, trata-se de uma unidade articulada, fluida e fundamentalmente
indefinida: “de uma unidade significativa de espaço-tempo, tornou-se um tipo de lugar para
encontros casuais – um pouco como a sala de espera de uma estação” (Kracauer, 2006:217).
Ela é plena de anacronismos, de casos de extraterritorialidade cronológica, de

7
Um ano mais tarde, ele retornará a este ponto em Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den
metaphysischen systemen (Dilthey, 1989:89-90, t. VIII).
8
Jorge Luis Borges perguntará: Como podemos imaginar que Cervantes tenha sido contemporâneo da Inquisição?
Cf. Borges (1988). Cf. igualmente os protestos d’Alberto Savinio. Fine dei modelli (1947:479), in Opere, contra
a indiferença de Chronos que lançou Gioacchino Rossini em um século que lhe era estranho. Sobre o valor do
anacronismo, cf. Enzensberger (1998).

33
transbordamentos temporais. E é justamente por isso que o indivíduo pode escapar à tirania da
situação: “todo muro comporta passagens por onde escapar e escorregar” (Kracauer, 2006:61).

IV.

A questão da pluralidade do passado alimentou a redescoberta da biografia pela micro-história


ao longo das últimas décadas do século XX.
Em 1976, Carlo Ginzburg – que dedicou um artigo ao livro póstumo de Kracauer –
utilizou a célebre questão de Bertolt Brecht (“Quem construiu Tebas das sete portas?”) para dar
a palavra a um moleiro friulano9 do século XVI. Na introdução, e a partir de diferentes fontes
de inspiração (Walter Benjamin, Céline, Antonio Gramsci, Delio Cantimori), Ginzburg
criticava a história das mentalidades, excessivamente impessoal e interclassista, e a história
serial que dissolvia o singular nas regularidades do coletivo. Ele propunha alargar até abaixo o
conceito de indivíduo e romper com a ideia de representatividade estatística: ainda que
Menocchio não fosse um caso típico ou médio, seu estudo permite testar “o horizonte das
possibilidades latentes” da cultura popular (Ginzburg, 1976). Como ele dirá em seguida,

a extrema singularidade de um indivíduo não lança dúvidas sobre sua representatividade?


A cosmogonia professada por Menocchio, baseada na comparação entre o mundo e um
queijo apodrecido, cheio de vermes “que eram os anjos”, deveria ser liquidada como uma
bizarrice insignificante simplesmente porque não representava nada estatisticamente?

De forma alguma, pois a representatividade histórica não coincide com a


representatividade estatística: “um caso não generalizável porque anormal e marginal (e talvez
justamente porque anormal e marginal) pode ser percebido como revelador” (Ginzburg, 2008).
Essa ideia foi defendida posteriormente por Edoardo Grendi (1977), que forjou a noção de
excepcional normal, para indicar que a experiência mais singular é o lugar em que a história
coletiva se exprime com mais intensidade.
Nove anos mais tarde, era a vez de Giovanni Levi. Em L’Eredità immaterale, ele estudou
“um fragmento minúsculo do Piemonte do século XVII utilizando uma técnica intensiva de
reconstituição dos eventos biográficos de todos os habitantes de Santena que deixaram algum
traço documental”. A biografia paralela de Giulio Cesare Chiesa, podestà10 de Chieri, e de seu
filho, o pároco Giovan Battista, perseguido por exorcismo pela Arquidiocese de Turim, é o

9
Oriundo da região de Friulli, na Itália. (N. do T.).
10
Principal autoridade administrativa das cidades do centro-norte da Itália durante a Idade Média (N. do T.).

34
meio para decifrar a dinâmica de uma vila do Antigo Regime (o mercado de terras, as estratégias
familiares, o papel dos notáveis locais etc.), em um período decisivo da construção do Estado
moderno e particularmente conturbado em função da guerra entre Piemonte e França. Ela
relança o desafio proposto Ginzburg. Se Menocchio ainda continha alguns traços de heroísmo,
os Chiesa eram verdadeiramente indivíduos “comuns”, frágeis, hesitantes, profundamente
dependentes tanto em relação a outros seres humanos como às instituições. Eles não dominam
as situações, menos ainda a significação e a direção da história. Apesar disso, eles não são
nulidades: eles falam e agem; aqui e acolá, eles são capazes de ponderar. Em síntese, são figuras
que escapam ao falso dilema entre a glorificação e a humilhação da subjetividade: elas
coincidem com a definição de individualidade dada por Ricouer em Soi-même comme en
autre.11
Nessa perspectiva, a biografia permite ao historiador se infiltrar nos interstícios
institucionais:

Nos interstícios dos sistemas normativos estáveis ou em formação, grupos e pessoas


acionam uma estratégia significativa, capaz de marcar a realidade política com uma
impressão duradoura, não para impedir as formas de dominação, mas para condicioná-las
e modificá-las [Levi, 1985].

Examinado esses interstícios, Levi demonstra que não há norma única, capaz de cobrir
toda a experiência social, mas, sobretudo, regras diferentes e às vezes contraditórias entre elas.
Isso significa que o governo central, o mercado, as instituições do Estado, as comunidades
aldeãs não são conjuntos fechados e nem instrumentos que tocam em uníssono. Penso que essa
ideia revelou como o contexto histórico corresponde mais precisamente a um tecido conjuntivo
atravessado por campos elétricos de intensidade variável do que a um conjunto compacto e
coerente. E é também graças a esses diferentes campos elétricos que os indivíduos podem se
exprimir, agir, ponderar.
Desse ponto de vista, a tarefa do historiador não é a de unificar um material heterogêneo;
de construir um único discurso sobre o passado, mas de enriquecer a partilha dos discursos.
Essa perspectiva foi aprofundada, nos anos seguintes, por outros historiadores, que
demonstraram que a biografia, além de fazer parte da história, oferece também um ponto de
vista sobre a história, uma discordância, uma descontinuidade.12 Deve-se, por conseguinte,

11
Cf. Ricoeur (1990).
12
Em relação a este ponto, permito-me reportar ao meu livro: Soldats. Un laboratoire disciplinaire: l’armée
piémontaise au XVIIIe siècle (Loriga, 2007). Nesse livro, busquei reconstituir uma realidade institucional a partir

35
descartar toda lógica de submissão ou de dominação (da história sobre a biografia e vice-versa)
e conservar a tensão, a ambiguidade, considerar o indivíduo, ao mesmo tempo, como um caso
particular e uma totalidade.
Em tal perspectiva, não é preciso que o indivíduo represente um caso concreto; ao
contrário, vidas que se distanciam da média nos levam, talvez, a melhor refletir sobre o
equilíbrio entre a especificidade do destino individual e o conjunto do sistema social. Mais do
que o tipo, importa a variedade. Somente uma multiplicidade de experiências permite enfrentar
dois pontos fundamentais da história: os conflitos e as potencialidades. Enquanto a biografia
heroica postula uma harmonia entre o particular e o geral (e, poderíamos dizer, uma simples
extensão, como na sinédoque), a biografia que se concentra nas vozes de um coro inteiro (a
biografia coral) concebe o singular como um elemento de tensão: o papel do indivíduo não é
revelar a essência da humanidade; ao contrário, ele deve permanecer particular e fragmentado.
É apenas por intermédio desses movimentos individuais que os conflitos que presidem a
formação e a edificação das práticas culturais podem ser conhecidos: eu penso na inércia e na
ineficácia normativa, mas também nas incoerências que existem entre as diferentes normas, e
na maneira em que os indivíduos, quer eles “façam” ou não a história, estabelecem e modificam
as relações de poder (Loriga, 2010).
A metáfora do interstício teve um enorme sucesso e suscitou, talvez, alguns mal-
entendidos. Um equívoco importante se refere às relações de poder. Sob a expectativa de
iluminar as capacidades de iniciativa pessoal dos atores históricos, por vezes imaginou-se que
tudo é possível, tudo é negociável, tudo é estratégico. Todavia, o interstício é um espaço vazio
que separa dois corpos sólidos. É uma espécie de corredor e, como recorda Thomas Stern Eliot,
os corredores são estreitos, sinuosos e ambíguos. Eles pressupõem, em geral, a existência de
muros e os muros são feitos de pedra, de concreto, materiais duros e pesados, capazes de causar
um grande mal.

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de diferentes versões individuais, realizar, de alguma forma, um rashomon, ou, para ficar no domínio literário,
abordar o exército como o ônibus lotado dos Exercices de style, de Raymond Queneau, em que as variações
estilísticas são fenômenos de sentido que criam expectativas e previsões, memórias e referências.

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38
2 Microstoria: relações sociais versus modelos culturais? Algumas reflexões
sobre estereótipos e práticas históricas1

Simona Cerutti

Eu gostaria de refletir neste capítulo a respeito das relações entre a história social e a história
cultural; a respeito das razões do antagonismo que há muito tempo as separa, bem como das
razões que explicam, atualmente, uma nova convergência entre elas. Conduzirei esta reflexão
a partir de um terreno que me é familiar, a saber, o da microstoria: uma das raras correntes
historiográficas do século XX que viu coexistirem em seu interior orientações que pretendiam,
de um lado, reconstruir uma contextualização social dos objetos históricos, e de outro, inscrever
esses mesmos objetos em contextos culturais dos quais eles eram a expressão e que, ao mesmo
tempo, contribuíam para esclarecer.2 De acordo com numerosos comentadores, a existência de
um “eixo social” e de um “eixo cultural” da microstoria tornou-se evidente desde seu início,
mas de maneira insuficientemente explicitada. Para além da opção comum a respeito da redução
de escala de análise, as duas correntes teriam perseguido, na verdade, métodos e objetivos
diferentes. Os “caçadores de trufas” e os “paraquedistas” – os investigadores de explicações (a
versão “social” da microstoria) e os investigadores de interpretações (sua versão “cultural”)3 –
teriam convivido sem muito se interrogarem sobre seus respectivos procedimentos.
Uma reflexão insuficiente a respeito da relação existente entre as duas orientações teve
consequências graves para a microstoria e estaria na origem do seu espaço limitado no campo
historiográfico italiano (Banti, 1991). Mas para além dessa situação particular, as relações entre
história social e história cultural merecem ser analisadas mais de perto, especialmente porque
ao longo dos últimos anos uma nova convergência se delineou e novas reaproximações entre
os dois domínios tornaram-se possíveis. Para retomarmos o exemplo da microstoria, o
problema da contextualização cultural se manifestou, a partir dos anos 1990, perante os

1
Título original: “Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire sociale et histoire culturelle” (Cerruti,
2008). Este artigo é um primeiro passo em uma pesquisa em curso desenvolvida nos últimos anos acerca da
natureza da documentação histórica. Eu gostaria de aproveitar esta ocasião para exprimir a grande dívida
intelectual que tenho em relação a Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, e para honrar a memória de Edoardo Grendi.
Tradução e revisão técnica: Deivy Ferreira Carneiro (InHis/UFU).
2
De acordo com Alberto Banti (1991), o primeiro autor, até onde sei, a ter assinalado explicitamente este problema,
a existência desses dois “eixos” se tornou manifesta de maneira clara por ocasião da publicação do ensaio de Carlo
Ginzburg (1979). Ver, igualmente, Grendi (1994a).
3
Banti (1991). A distinção entre “caçadores de trufas” e “paraquedistas” provém do célebre ensaio de Lawrence
Stone (1979).

39
historiadores sociais (continuarei a empregar esse rótulo por convenção) com uma nova
urgência, testemunha também da renovação do interesse pela história intelectual. Essa
tendência é visível, por exemplo, na orientação da revista Quaderni Storici, que recentemente
consagrou um amplo espaço à cultura jurídica do Antigo Regime, bem como às “culturas” do
mercado e da troca etc. Observando o percurso seguido pela microstoria, proponho então
interrogar, de forma mais geral, as razões dessa distância, assim como a razão das condições do
reencontro entre história social e história cultural.

Análises “sociais” e análises “culturais”

Gostaria de começar esclarecendo alguns elementos de fundo. De toda evidência, as diferenças


entre a contextualização social e a contextualização cultural como práticas de pesquisa da
microstoria não refletiu interesses analíticos diferentes. Nenhuma das duas posições que
mencionei buscavam trilhar uma direção disciplinar centrada sobre as ideias ou sobre os
comportamentos em si mesmas. Ao contrário, as duas perseguiam os mesmos objetivos. A
decisão de restringir o campo de observação e pesquisar meticulosamente os protagonistas
individuais dos processos históricos era uma reação contra a arrogância do senso comum
histórico que ditava, do exterior, as cronologias, os quadros de referência e as categorias
analíticas, criando assim, frequentemente, anacronismos significativos.
O “nome” e o “como” (“il nome e il come”) foram um ponto de partida essencial para os
dois eixos da microstoria (Ginzburg e Poni, 1979). Uma forte convicção regia essas análises: o
fato de que as relações e os laços davam acesso não somente ao contexto de trocas mais
imediatas (de bens e de informações), mas também aos contextos normativos e culturais.
Normas e modelos culturais eram produzidos por meio de redes de obrigações, de expectativas,
de reciprocidade e de recursos que se apresentavam ao horizonte dos atores. O percurso
biográfico era considerado um contexto “pertinente” (isto é, não anacrônico); social e cultural
ao mesmo tempo. Ademais, isso constituía, para o pesquisador, um campo de teste e de controle
de sua própria maneira de proceder e deveria protegê-lo de algumas tentações perigosas:
sobretudo aquela de separar, em uma análise, as ações das culturas (expressas nas crenças, por
exemplo); de mudar a escala de análise ou o método, efetuando essa transferência (tão
frequente) do singular das ações – o contrato, o casamento etc. – ao plural indeterminado das
“culturas” (a ideia de mercado difundida em meados do século XVIII, retirada de obras
contemporâneas etc.). Havia uma desconfiança explícita em relação à reconstituição da
“cultura” a partir dos conhecimentos do pesquisador e, por conseguinte, de ideias inscritas de

40
maneira abusiva no contexto analisado para evocar uma “moda” historiográfica plausível. Face
a esse estado de coisas, a microstoria “social” foi erigida como uma prática empírica e analítica.
Gostaria de destacar aqui um ponto (por motivos que ficarão mais claros posteriormente):
a ideia de manter um ponto de vista egocentrado significava definir um contexto de análise
apropriado, um contexto que não fosse baseado nos conhecimentos do pesquisador sobre aquilo
que ele pensava haver sido o mundo da época. Ao contrário, deveria basear-se na experiência
dos próprios atores (conforme o pesquisador tivesse conseguido reconstituir). Todavia o que
não era considerado como inerente ao método era o ponto de vista dos atores sobre sua própria
experiência, sua “versão dos fatos”. Na verdade, a análise dos modelos sociais, econômicos e
culturais visam, neste contexto, corrigir as declarações que os próprios atores fornecem acerca
de suas próprias experiências. A ação dos atores – sua liberdade – era essencialmente
individualizada na manipulação das normas sociais (Cerutti, 1995). E era talvez essa ideia de
manipulação que legitimava a desconfiança do pesquisador quanto às declarações dos atores
sociais. A reconstrução objetiva dos recursos e as pressões impostas às estratégias dos atores
transformavam o trabalho do historiador naquele de um revisor crítico de sua própria versão
dos fatos.
É com base nesse vínculo entre comportamentos e culturas, entre trajetórias sociais e
recursos culturais que foi esculpida uma distância no âmbito do campo da microstoria. As
críticas endereçadas pela corrente “social” aos trabalhos de Carlo Ginzburg sobre a cultura
popular apoiam-se exatamente sobre estes argumentos. Como ressaltou Edoardo Grendi
(1994a; 1994b), a decodificação das crenças de Menocchio (o moleiro de os queijos e os
vermes) e as dos Benandanti foram realizadas essencialmente sobre o terreno da elaboração
intelectual. As vicissitudes biográficas de Menocchio (aquelas que o historiador estava em
condições de reconstituir) não eram nada além de “trampolins” a partir dos quais a análise
poderia decolar para reconstituir uma cosmologia complexa. Um trampolim: um ponto de
partida que depois é abandonado. Tenho a impressão, portanto, de que não é exato falarmos de
um “eixo cultural” e de um “eixo social” da microstoria. Eu acredito que as diferenças não se
resumem à questão do terreno disciplinar e nem mesmo à questão do objeto de estudo escolhido.
Elas dizem respeito ao estatuto atribuído aos comportamentos e às relações sociais na
reconstituição do contexto de análise de modelos culturais.

41
Contextualização

A abordagem “social” foi bem-sucedida em cumprir sua promessa? Ela chegou a construir
contextualizações “pontuais”, isto é, não anacrônicas? Essas contextualizações conseguiram
restituir os laços complexos existentes entre relações sociais e modelos culturais? Enfim, nessa
concepção do que constitui a cultura, houve um lugar para a produção intelectual ou essa foi
considerada como externa à análise dos comportamentos sociais? O debate acerca dessas
questões teve lugar junto aos micro-historiadores, mas também ocorreu fora desse círculo
restrito, sobretudo entre os historiadores sociais em geral. Tentaremos segui-lo tomando como
exemplo o percurso de Edward P. Thompson, um dos historiadores mais importantes do século
XX, que exerceu uma grande influência sobre os micro-historiadores (uma coletânea de artigos
de Thompson foi editada por Grendi em 1981 e publicada como um dos primeiros volumes da
série Microstorie, da Einaudi).
A relação entre povo e cultura, entre ação social e modelos culturais e entre história das
ideias e história dos comportamentos foi adotada por Thompson de uma maneira que me parece
agora sintomática das pressões que a história social se impôs, impedindo-a de cumprir todas as
suas promessas. Paradoxalmente, esses limites resultaram em uma concepção redutora do
sentido da ação social, o que afetou a qualidade das questões relativas às relações entre ação e
modelos intelectuais e culturais.
A “cultura” como elemento central das preocupações de Thompson era, acima de tudo, a
cultura jurídica que se manifestou numa pluralidade de diferentes campos pela ação da classe
popular inglesa e que fora também objeto de graves conflitos na Inglaterra do século XVIII. O
projeto de Thompson é bem conhecido e tem uma importância extraordinária. Tratava-se de
retirar os diversos costumes “populares” do processo paternalista de folclorização, de conferir
às ações (desde os motins por pães às vendas de esposas, desde às cartas anônimas às incursões
dos caçadores ilegais etc.) o sentido e as reinvindicações que as motivaram, mas que haviam
sido esquecidas e negadas. Thompson perscrutou os sistemas de sentido que serviam de base a
diversas formas de ação, com o intuito de interrogar a “estrutura cognitiva dos amotinados” ou
então dos autores das cartas anônimas. Tratava-se de descobrir essas “premissas essenciais”
que guiavam o povo do século XVIII. Essas premissas essenciais, propunha Thompson, podiam
ser expressadas nos simples termos bíblicos do “amor” e da “caridade”, ou ainda nos termos
“que poderiam não ter muito o que fazer com uma educação cristã, mas que emergiam de
trocas elementares da vida material” (Thompson, 1991:350, grifos no original).

42
Esta última frase revela esta concepção particular de cultura à qual me referi: uma cultura
enraizada na prática das transações, em que o peso da tradição podia estar presente, mas poderia
igualmente ser tão remota a ponto de ser fonte de equívocos para o historiador. Dessas
premissas nasceu o projeto de “busca” histórica que gerou a extraordinária originalidade do
trabalho de Thompson (1991:VII-XXXVI) e que procedeu da investigação dos testemunhos,
tão “diretos” quanto possível, dos intercâmbios sociais. Os plebeus eram portadores de uma
cultura jurídica cujas raízes repousavam não sobre os textos da “alta cultura”, mas sobretudo
nas transações sociais. A tarefa do historiador seria a de desvendar essa cultura e então pesquisar
suas expressões mais puras. As hipóteses implícitas são, portanto, que uma cultura popular
existe, que existem também as fontes onde essas culturas populares se expressam, e que o
historiador deve então identificá-las para poder, em seguida, interpretá-las.
A ideia de fontes “diretas” é certamente interessante e rica e está na origem da grande
fascinação que o trabalho de Thompson exerceu sobre Edoardo Grendi. E não foi por acaso que
os dois historiadores trabalharam com um tipo de fonte que parece cumprir esses critérios: as
cartas anônimas (de um lado aquelas publicadas pela London Gazette no século XVIII e de
outro aquelas enviadas aos oficiais genoveses no século XVII), que se apresentam como uma
fonte direta, não contaminada. Como destacou o próprio Grendi (1994b) a tradição na qual se
inscrevia essa pesquisa das concepções populares da justiça remonta a Vico, a Blake e
sobretudo, é claro, a Karl Marx e, por conseguinte – não é inútil lembrarmos –, a Savigny e aos
irmãos Grimm. Foi a tradição da escola histórica do direito, que se empenhou em restabelecer
as raízes populares do Direito – a primeira fonte de inspiração de Thompson foi o Marx, aluno
de Savigny (Assier-Andrieu, 1996). Dessa tradição intelectual, Thompson adotou um
pressuposto crucial: a natureza popular das culturas “alternativas”, isto é, a existência de uma
conexão entre a plebe (o conjunto de grupos excluídos do poder) e as concepções do direito que
são “diferentes” daquelas legitimadas pelos textos.
Evidentemente, a adoção desse ponto de vista resultou na diminuição do interesse do
historiador pela “alta cultura”. Trabalhando com as concepções populares de economia moral
do século XVIII, Thompson buscou responder, de forma evidente, a questões relacionadas à
existência de formalizações dessa ideia de mercado e de transações no pensamento econômico
contemporâneo. Mas o problema não foi investigado a fundo: o quadro de interpretação era
aquele de uma forma de transação social dominada pelos controles paternalistas moderada por
uma pressão vinda de baixo. Nessa abordagem, compreendemos por que a referência a uma
tradição viva seria “potencialmente enganosa”. Não há nenhuma razão para que os historiadores
sociais se sintam interessados pelas teorias “científicas” do mercado. Sendo confrontado pelas

43
revoltas e por outras expressões da cultura popular, estas permanecem nos arquivos a fim de
rastrear a rede de relações sociais e dos laços de poder, deixando as bibliotecas para os
historiadores das ideias.
Há um pressuposto subentendido nessa abordagem: os comportamentos seriam apenas
traduções das experiências e dos interesses de grupos específicos; seriam, então, apenas o
reflexo da estrutura social (de classe), bem como veículos da cultura do grupo. Essa concepção
de experiência e essa leitura dos comportamentos em Thompson suscitou, recentemente,
críticas bem embasadas. Não obstante sua intenção declarada de não tomar os grupos como
“coisas”, mas sobretudo de considerá-los no seu processo de formação, Thompson fez uso de
uma concepção redutora de experiência. Esta é construída essencialmente sobre as relações de
produção e sobre a hierarquia social daí resultante. A ação popular, que está no centro de suas
análises, é precisamente a expressão de uma estrutura de poder objetiva e, portanto, de uma
experiência de dominação partilhada. As ações se referem a essa estrutura social; elas
atravessam os atores para depois se materializarem na sociedade. O contexto da interpretação
de Thompson é, por conseguinte, estritamente social. E a cultura levada em consideração é a
cultura da subordinação (Kaye e Mcclelland, 1990; Sewell, 1990; Cerutti, 1986).
Poderíamos, então, considerar que é exatamente sobre esses pontos que ocorre o maior
distanciamento entre as análises “micro-históricas” e as pesquisas realizadas por Thompson.
Afinal de contas, um dos questionamentos que está na origem de diversos estudos micro-
históricos diz respeito à composição dos grupos sociais (a classe operária do início do século
XX ou as corporações de ofício dos séculos XVII e XVIII (Cerutti, 1990; Gribaudi, 1987). A
análise aprofundada das escolhas e das estratégias individuais colocava em discussão a
existência de identidades e de pertencimentos automáticos. A reconstituição do espaço social a
partir dos percursos individuais colocava em xeque toda identificação preguiçosa entre
indivíduo e grupo social. Tratava-se de produzir categorias verdadeiramente pertinentes e não
anacrônicas.
Todavia, esse objetivo foi alcançado apenas parcialmente. Não posso dizer simplesmente
que, com isso, uma pesquisa específica ou uma reconstrução em particular foi mais bem-
sucedida que outra. O problema me parece mais profundo. O contexto levado em conta nas
análises da microstoria eram inadequados; ele permanecia exterior à experiência dos atores. O
fato de reconstruir biografias individuais não assegura, em si mesmo, nenhuma garantia a
respeito da capacidade de realizar uma análise “interna”. Essas reconstruções históricas
estavam organizadas ao redor do conceito de “estratégia” – um termo fortemente carregado de

44
um conteúdo hiper-racionalista, que tende a reduzir os comportamentos à busca por
maximização de ganhos.
Nesses últimos anos, os micro-historiadores assinalaram, em muitos casos, os efeitos
anacrônicos do conceito. Em outras palavras, uma ferramenta metodológica que fora
introduzida para reconstituir os contextos pertinentes “a partir do ponto de vista dos atores”
estava imerso, de forma paradoxal, em sentidos que eram, provavelmente, completamente
estranhos à mentalidade contemporânea. Além disso, o conceito de estratégia incentiva os
historiadores a situar suas análises em um plano que está, a um só tempo, exterior e superior à
“versão dos fatos” dos próprios atores. A análise das redes e da cartografia dos laços – alguns
dos procedimentos emprestados das análises sociológicas – conduzem ao desenvolvimento da
pesquisa como uma operação de “revelação” aos atores das obrigações que limitam ou
permitem suas ações para além de suas próprias declarações e para além de sua consciência.4
Além disso, a direção dessas mesmas ações já estaria predeterminada pelo “quadro
estratégico” que dita as operações de manipulação das normas sociais, cuja característica é
serem mutualmente contraditórias. Normas e comportamentos, cultura e ação estão situadas, no
fim das contas, em campos diferentes (Cerutti, 1995).

Normas e práticas

Quanto a mim, é justamente minha insatisfação em relação ao conceito de estratégia – e em


relação à ideia de maximização que ele pressupõe, e também em relação ao vínculo que ele cria
entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa – que me levou a repensar o que seria uma análise
realmente “interna” (êmica) baseada na linguagem e na lógica dos próprios atores.5 Esse
percurso crítico começou a aparecer assim que se firmou, no curso da pesquisa, uma nova
concepção daquilo que constituía minha unidade de análise, ou seja, os comportamentos e as
ações dos indivíduos. Meu campo de pesquisa era constituído pelas formas de justiça ditas
“menores” do período moderno, um tema caro à história social e, em particular, a E. P.
Thompson, ao qual minha pesquisa é profundamente devedora. No entanto, é precisamente
sobre esse terreno que as grandes diferenças se acentuaram. Aquilo que me parecia emergir dos
casos judiciários que analisei (dos casos civis menores, mais frequentemente resultantes de

4
Sobre este elemento do método ver Cerutti (1990).
5
A distinção êmico/ético foi estabelecida pelo linguista Kenneth Pike a partir dos sufixos das palavras fonética e
fonêmico. No seio do debate antropológico, essa distinção designa duas estratégias diferentes de análise: a
abordagem êmica está fundamentada sobre as categorias e as linguagens dos atores; a abordagem ética, sobre as
categorias do pesquisador (Pike, 1954-1960). Ginzburg foi o primeiro a atrair minha atenção sobre essa distinção.
Ver, acerca do debate antropológico, Harris (1976) e também Olivier de Sardan (1998).

45
relações de créditos ou de transações de bens) era que os comportamentos registrados nas fontes
não poderiam ser interpretados como expressões da estrutura social. Essas ações não eram
reveladoras de determinações objetivas, mas exprimiam, pelo contrário, reinvindicações,
intenções e proposições. As revoltas e os motins, mas também os contratos, as vendas e os
conflitos que enchiam as fontes judiciais não podiam serem lidas na qualidade de simples
reproduções de relações de dominação. Essas diferentes ações eram reivindicações ativas de
direitos e de demandas por legitimação desses direitos. Em suma, era menos a estrutura da
sociedade que se manifestava nas fontes do que as interpretações quanto à forma que essa
estrutura social teria assumido; eram as tentativas de entrar em acordo acerca dessas
interpretações e as estratégias usadas para legitimá-las.
Tal característica criadora da ação era alimentada, na sociedade do Antigo Regime, por
uma cultura particular – a cultura da jurisdição – que dava à ação a capacidade de transformar
as condições jurídicas e de atribuir os papéis e os direitos.6 Nessa sociedade, mais que a
titularidade de uma propriedade, o que conta é a situação de fato, a familiaridade com o objeto,
o fato de utilizá-lo habitualmente. Mais do que ter sido designado formalmente a um cargo ou
a um posto, é o fato de “ter agido de forma...” que afeta o estatuto de alguém. Neste sentido, as
ações não são nem “a face manifesta de uma razão latente” (Ogien, 1985), nem o espelho dos
edifícios sociais construídos noutro lugar e nem o reflexo de normas externas. As ações são
modalidades de construção desses edifícios sociais, de suas razões, de suas lógicas e de suas
normas. Elas incorporam uma atividade interpretativa de possibilidades de movimento, bem
como de sua legitimação. Vista dessa maneira, a relação entre práticas e normas muda
profundamente.
Esse encontro entre a cultura jurídica das sociedades do Antigo Regime e as teorias da
ação, realçado por uma parte da sociologia e da etnometodologia (Garfinkel e Sacks, 1970),
embora paradoxal – ou talvez em razão desse próprio paradoxo – foi muito bem-sucedido. Foi
uma perspectiva que deu a certos historiadores a capacidade de fornecer contribuições
significativas nas ciências humanas ao debate geral acerca das relações entre normas e práticas,
bem como a validade em conceber os comportamentos em termos de conformidade não
refletida a uma regra7. Foi a percepção do caráter criador da ação que inibiu toda associação
mecânica e imponderada entre estrutura social, ação e cultura. Para ficarmos ainda no domínio

6
Ver por exemplo: Costa (1969); Torre (1995).
7
A respeito do debate sobre o significado de “seguir uma regra”, ver Cottereau (1987; 1987; 1994). Ver também
“L’économie des conventions” (1989); “Les conventions” (1993) e, ainda, vários volumes da coleção Raisons
pratiques (EHESS), que foram consagrados às relações entre ação e legitimação, em particular o n. 1, 1990 (Les
formes de l’action) e o n. 3, 1992 (Pouvoir et légitimité).

46
do direito, é evidente que todo grupo social era influenciado por uma pluralidade de ideias de
justiça. As ideias do direito natural e do direito positivo, por exemplo, podem ser apresentadas
pelos mercadores, pelos homens da lei e pelos trabalhadores em diversas situações. Era menos
a condição social das pessoas que determinava o recurso a um ou ao outro desses sistemas de
legitimação do que as posições particulares que elas ocupavam em momentos precisos (seu
lugar de habitação, sua estabilidade, sua mobilidade no território, sua posição no mercado etc.).
Em outras palavras, não havia correspondência entre cada cultura jurídica e um grupo social
com seus próprios interesses e suas próprias experiências, mas uma cultura jurídica que poderia
ser mobilizada por indivíduos diferentes, reunidos por objetivos comuns.
Quando (como Renata Ago mostrou em uma análise próxima daquela da economia moral
de Thompson), por exemplo, agiam na qualidade de consumidores, os camponeses do século
XVIII, que viviam na região do Lazio, podiam fazer uso da linguagem da economia moral e do
direito natural. Todavia, esses mesmos camponeses estavam em condições de utilizar a
linguagem do lucro quando vendiam seus produtos no mercado (Ago, 1985). Não há nada de
automático ou de impensado nessas ações, nem tampouco nas estratégias utilizadas para
legitimá-las. O mundo social – isto é, o mundo das ações – é um mundo interpretativo. Ação e
interpretação não podem ser separadas.
Isso significa que, no intuito de reconstruir a pluralidade de concepções de justiça que
coexistiam na sociedade do Antigo Regime, não é necessário – e talvez, nem mesmo pertinente
– pesquisar fontes “diretas”, isto é, fontes não institucionalizadas ou que não estão
relativamente contaminadas. Como toda ação, as fontes que o historiador utiliza são com
frequência (mas não sempre) documentos que reivindicam alguma coisa (em detrimento de
descrevê-la). As atas notariais, as petições, os processos, as cartas e mesmo as fontes
aparentemente neutras, como os documentos demográficos, representam, na verdade,
reinvindicações jurídicas (Loza, 1997).8 A fonte, nesse sentido, nos fala de seu objeto, sendo
ao mesmo tempo, como Bloch (1993) percebeu, um texto narrativo. Todavia isso não é verdade
no sentido de que toda fonte é escrita em um gênero literário definido. A “narração” incorpora
reivindicações de verdade e de legitimidade, e assim todo um trabalho intelectual de
interpretação das ideias do “justo” e do “legitimo”, bem como operações de construção de
legitimidade que não se reduzem a técnicas retóricas, mas se alimentam de trocas, de relações
e de objetos (como sabemos bem, a construção da legitimidade não é apenas uma questão de
palavras).

8
Sobre as fontes e suas demandas de legitimidade, ver: Artifonti e Torre (1996); Torre, (1995).

47
Assim, a partir dessa visão das fontes, os questionamentos que devemos lhes fazer – Quais
reivindicações de legitimidade elas expressam? A quem essas reivindicações são endereçadas?
De que maneira? – se revelam igualmente pertinentes tanto para as fontes “diretas” quanto para
aquelas que nos parecem (e são, provavelmente) mais “contaminadas”.
Essa questão de legitimação, tal como defendo, me parece ser completamente estranha ao
eixo social da microstoria como aquela representada por Grendi. Essa abordagem pressupõe,
em relação a um objeto de estudo, outra distância, diferente daquela tradicionalmente adotada
pelos micro-historiadores sociais. Ela nos permite, nos dizeres de Luc Boltanski (1990:xx), a
“não renunciarmos às ilusões dos atores”. A análise não seria uma “correção” da versão dos
fatos dos atores, ou ainda uma revelação a esses atores de uma realidade que presumimos não
terem eles consciência (especialmente em relação às obrigações objetivas que determinam suas
ações). A questão é, sobretudo, reconstituir suas capacidades de tornar compreensíveis,
legitimas e aceitáveis suas próprias ações e seus próprios argumentos. Para utilizar uma vez
mais as palavras de Boltanski (1990, grifo nosso), a questão é de “levar as pessoas a sério”; de
levar em conta, em uma análise, tanto suas ações quanto suas intenções.9
Foi essa perspectiva que conduziu muitos historiadores sociais (entre os quais eu me
incluo) a dedicarem um novo interesse a essa dimensão cultural e intelectual que havia sido
negligenciada anteriormente. A atividade de legitimação dos argumentos e das ações exige dos
atores sociais a mobilização de uma bagagem de conhecimentos, de interpretações, de recursos
culturais e materiais, bem como a capacidade de manipulá-los. Nessa perspectiva, a biblioteca
não seria apenas um recurso próprio do historiador social e que permaneceria fora do campo de
análise. Ela se torna um elemento constitutivo da análise social, da mesma maneira que as
estratégias, os objetos, as escolhas econômicas, as escolhas matrimoniais etc. Dessa forma, quer
eles queiram ou não, caçadores de trufas e paraquedistas, historiadores sociais e historiadores
das ideias devem se aliar.
A ideia que emerge dessa perspectiva é aquela de uma cultura “operacional”, para
utilizarmos os termos de Renata Ago; uma cultura “pragmática”, poderíamos assim dizer. Em
outras palavras, uma cultura cujos termos e referências doutrinárias permanecem, com
frequência, nas sombras, ao passo que se encontra inscrita nas ações que os documentos
registram. “Mulheres comerciantes e cultura escolástica” (Ago, 1995) e Magistrados e
baconianos (Cerutti, 2003) constituem os títulos provocadores, mas sinceros (isto é, reveladores
de tentativas de leituras multidimensionais, sociais e culturais), que apareceram em números

9
Ver também: Thireau e Hanssheng (2001).

48
recentes da Quaderni Storici dedicados a um tema que a microstoria tradicionalmente manteve
em suspensão: o direito.10 Na verdade, ao longo desses últimos anos, a revista publicou várias
monografias consagradas a diferentes aspectos da cultura jurídica. Os títulos da revista são
significativos: “Direitos de propriedade”, “Cidadania, processos de justiça” etc. A ideia que
guiou esss escolhas é a de que o direito constitui uma gramática contextual amplamente
partilhada pelos homens e pelas mulheres das sociedades modernas; um tipo de “antropologia
da Europa moderna”, como foi descrito por Clavero (1985) e Hespanha (1999). Esses números
da revista (alguns mais bem-sucedidos do que outros) visam a um objetivo duplo.
Primeiramente, trata-se de explorar a cultura do direito (portanto, de um sistema normativo
altamente formalizado nas obras eruditas) em sua utilização contextual, situada “localmente”.
Em outras palavras, explorar os usos que os homens e as mulheres faziam dele, bem como – de
maneira explicita – explorar tanto suas reinvindicações como suas interações cotidianas com as
coisas, com as pessoas e com os bens. Isso implica que devemos trazer à luz os processos de
seleção – ou melhor, de combinação – de tradições jurídicas que foram realizadas em um lugar
e momento precisos (por quê? Como? Por quem?).
Em segundo lugar, o fato de levar em consideração as relações recíprocas existentes entre
normas formais e as práticas sociais implica renunciarmos conceber o patrimônio jurídico como
um recurso “dado”, estabelecido nos textos jurídicos (embora às vezes objeto de manipulação).
As prescrições existem na “pretensão de as próprias práticas serem aceitas como legítimas” e
nas operações locais (situadas) de “construção de sentidos”. Dessa forma, a análise das normas
faz parte das análises dos lugares sociais (Quéré, 1992). A relação entre normas e práticas é
então uma relação de reciprocidade; uma influenciando a outra. O campo da legitimidade é
mais amplo que o campo da legalidade e frequentemente a primeira alimenta a segunda. A
circularidade dessa relação possui implicações políticas e intelectuais de suma importância.

O ponto de vista dos atores

Essas propostas dialogam de maneira implícita com outras posturas metodológicas. A


capacidade das práticas sociais de se constituírem em “precedentes” – e assim, sob certos
sistemas jurídicos, em normas – é uma resposta, ao que me parece, a essas análises que, muito
atentas aos processos de legitimação, entendem essas práticas essencialmente como operações
de bricolagem entre tradições culturais eruditas. Penso particularmente no trabalho de Luc
Boltanski, com quem tenho grande dívida intelectual (Cerutti, 1991). As gramáticas utilizadas

10
Ver Quaderni Storici, n. 88 (1), abr. 1995; n. 89 (2), ago. 1995; n. 101 (2), 1999.

49
pelos indivíduos para legitimar seus próprios argumentos bebem em um repertório limitado de
textos fundamentais, identificados por Boltanski como estando na base dos laços sociais (nesse
sentido, Boltanski estabelece uma conexão original entre a sociologia e a história das ideias).
Em outras palavras, o contexto de legitimação é exterior à ação: as fontes dessa ação são
autoridades externas.
Nessa perspectiva, reproduzimos, ao que me parece, uma ideia impessoal, imprecisa e,
no fim das contas, consensual de horizonte cultural. Obviamente, ao contrário, a esfera da
legitimidade não é uma esfera consensual, mas um campo onde a competição e o conflito são
ferozes e, com frequência, sistemas culturais inteiros desaparecem das memórias e são
deslegitimados. Para não reduzir a atividade dos atores a simples exercícios de bricolagem, e
para interrogar as múltiplas e variáveis formas dos sistemas de legitimidade, precisamos
direcionar nossa atenção aos processos por meio dos quais tanto as normas quanto esses
sistemas são constituídos e assim explorar a maneira pela qual os dois interagem.
Seria igualmente necessário examinar os processos de seleção aos quais as tradições
intelectuais estão sujeitas, tanto em lugares particulares quanto em momentos precisos:
“processos de seleção” aos quais a história cultural dificilmente presta toda a atenção
necessária. Em particular, penso aqui em processos muito refinados de contextualização
cultural, extremamente sensíveis à pluralidade de tradições culturais e que são conscientes do
problema da seleção entre diferentes tradições, mas que, a meu ver, não prestam suficiente
atenção à maneira pela qual a seleção se opera. Carlo Ginzburg, em especial, seguiu com grande
coerência um método de análise tão bem apresentado em suas próprias pesquisas sobre as
relações entre as culturas quanto em seus escritos metodológicos e historiográficos.11 No
parágrafo seguinte, analisarei alguns pressupostos que me parecem ser a base de seus últimos
trabalhos e sugerirei que a separação entre a análise social e a análise cultural (que mesmo no
passado nunca foi realmente apropriada) permanece completamente inadequada para descrever
as diferenças entre métodos de análise que persistem ainda hoje na microstoria, apesar do novo
potencial de convergência. Essas diferenças relativas à relação que os pesquisadores adotam
com seu objeto de pesquisa dependem do lugar acerca do qual os pesquisadores situam sua
autoridade em relação aos atores sociais e de onde eles retiram suas categorias analíticas. Em
outras palavras, o problema é aquele da relação entre uma análise êmica e uma análise ética.
A questão não é a de estabelecer a legitimidade de uma dessas perspectivas em relação à
outra, nem de contrapor ortodoxias analíticas (a êmica como a única dimensão legítima). O

11
Ver Ginzburg (2001; 2000a; 1998).

50
problema é mais radical e eu o formulo da seguinte maneira: o que é um método de análise
“interno” e em que situações ele pode ser aplicado? Ao levarmos em conta o ponto de vista dos
atores, devemos nos fixar no contexto imediato dos seus comportamentos, ou esse método pode
(deve) ser mobilizado quando o objeto de análise for mais amplo e incluir os modelos culturais
e normativos o inspiram e dos quais ele seria expressão? Dito de outra forma, o êmico e o ético
são dois procedimentos de análise – como eu penso – ou seriam dois contextos (um sendo o
contexto mais imediato, por meio do qual emergem os comportamentos e onde os atores ativam
seus modelos culturais, e o outro mais distante e mais profundo, onde os modelos culturais são
construídos)?
Acredito que essa segunda concepção domina os procedimentos de análise utilizados por
Carlo Ginzburg na maioria de suas pesquisas recentes. Eles giram regulamente ao redor de uma
série de pressupostos. Em primeiro lugar: a análise de todo fenômeno social demanda a
mobilização de uma pluralidade de contextos, visto que todo objeto é composto de uma série
de estratos, isto é, de uma quantidade de elementos que assentam suas raízes em cronologias de
diferentes profundidades. Em segundo lugar: o trabalho de exploração dessas cronologias
variadas é colocado a serviço da reconstituição das “experiências” vividas; aquelas, segundo
Ginzburg, que “não se esgotam nem na experiência consciente nem naquelas que deixam seus
traços na documentação”, mas que são compostas também por uma dimensão inconsciente que
deve ser levada em conta.12 Finalmente, e em conexão com o último ponto, é necessário realizar
um “jogo de escalas”, isto é, realizar variações do ângulo de análise que permitiriam ao
pesquisador manter uma distância crítica. Isso tornaria possível apreender aquilo que não estava
presente na consciência dos atores, mas que, no entanto, era constitutivo de suas experiências.
Esses três pontos cardinais constituem, no trabalho de Carlo Ginzburg, uma “cadeia
documental”, isto é, um percurso que, a partir do documento, identifica progressivamente os
contextos nos quais inscrever sua análise. Essa identificação procede de uma maneira que
podemos chamar de concêntrica – que vai gradualmente do sentido que os atores dão ao
fenômeno em questão, em direção ao sentido mais distante e mais imprevisível que escapa à
compressão consciente desses mesmos atores, e que é construída por meio de comparações. Ou
seja, não é devido à distância, mas graças à distância (Ginzburg, 2000).

12
“Nos testemunhos etnográficos – diretos ou reelaborados – dos rituais de transgressão funerária, a distinção
entre os níveis de interpretação está longe de ser clara”. Ao mesmo tempo, o papel da comparação torna-se
essencial: “Através da comparação, torna-se possível, em princípio, reconstituir um significado que não é menos
autêntico do que aquele incorporado na experiência vivida. Esta última não se reduz nem à experiência consciente
nem àquela que deixou traços nos documentos” (Ginzburg, 1987:630).

51
Um papel central é atribuído a este último nível de análise, visto que é nele que jaz o
sentido último das ações e das crenças. Como argumentou Perry Anderson (1991) – e com
razão, eu acredito –, para Ginzburg, quanto mais profunda é uma coisa, mais relevante ela é.13
Ginzburg perseguiu então essa estratégia de análise com uma coerência crescente nos últimos
anos, desde sua pesquisa sobre o sabá até trabalhos mais recentes acerca da iconografia política.
Essa estratégia se propõe, em última análise, a tirar proveito das potencialidades heurísticas que
estão inscritas na condição de afastamento, isto é, o espanto face a sistemas de sentido e de
contextos que são claramente exteriores à consciência (dos atores, do pesquisador e do leitor
que é convidado a partilhar essa experiência de descoberta).14 O mais profundo, o mais
impensado dos passados se encontra, desse modo, entre nós; um convidado de pedra sentado –
mas invisível – em nossa mesa.

Distância e comparação

O que me parece problemático nesse processo não é a distância explícita tomada pelo
pesquisador em relação ao seu objeto. Se há um ponto a respeito do qual as análises de Carlo
Ginzburg me convencem é a eficácia dessa distância, que se exprime, por exemplo, por meio
da extraordinária riqueza do olhar comparativo. Acredito que nesse processo não podemos
definir de maneira suficientemente precisa quais regras presidem a operação de distanciamento.
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma questão de procedimentos de análise e de concepção daquilo
que é a cadeia documental.15
Uma vez que que a primeira espiral de contextualização foi alcançada, as ações e crenças
são projetadas em um contexto cultural cuja pertinência é delineada pelo saber do pesquisador.
Desse modo, a cadeia documental só termina no momento em que o pesquisador decide. Nada,
em um objeto de estudo (uma vez que a etapa inicial de análise do contexto imediato é
concluída), pode colocar limites ao pesquisador ou instituir controles sobre suas escolhas. Nesse
sentido, a aproximação entre o famoso cartaz em que Lord Kitchener conclama os jovens
britânicos a se alistarem na guerra de 1914 e a passagem da História Natural de Plínio, o antigo,
relativa às representações de Minerva e de Alexandre o Grande, seguem um caminho

13
Para justificar essa declaração, Anderson se refere a uma citação retirada de Céline, encontrada no início de Os
queijos e os vermes: “tudo o que é interessante se encontra nas sombras” (Anderson, 1992, p. 223). A primeira
versão desse ensaio foi publicada em italiano na revista Micromega (1991), com uma resposta de Ginzburg que
simplesmente confirma a interpretação de Anderson, se referindo ao provérbio: “o significado das coisas jamais
se encontra na superfície”.
14
Ver, nesse sentido, o prefácio de Ginzburg (2000).
15
O conjunto de operações sucessivas de seleção, coleta, tratamento, conservação e, por fim, difusão de
documentos e informações.

52
inteiramente delineado pelo autor (nesse caso, para um diálogo aberto com Aby Warburg).16
Os materiais que criam o estranhamento e suscitam, posteriormente, a “revelação” dos
processos inesperados de parentesco entre objetos diferentes foram introduzidos no campo e
selecionados pelo pesquisador. Em suma, o objeto utiliza o autor para buscar sua leitura mais
autêntica (ou, pelo menos, a mais profunda), mas não é capaz nem de interromper sua análise,
nem de contradizê-la. A mesma coisa é válida, ao meu ver, para o leitor.
O que me parece problemático nessa análise não é, repito, a distância estabelecida entre
o pesquisador e seu objeto de estudo e menos ainda a utilização da comparação (a dimensão
que poderíamos chamar de ética). O problema está, na verdade, em uma concepção que acredito
ser redutora da análise contextual e social. Esta seria utilizada apenas para esclarecer os usos
que os atores fazem das imagens e das crenças, enquanto o problema do “caráter original”
dessas mesmas imagens e crenças seria levado a outro nível de análise, a um plano que
transcende os atores em termos de lugar, de período histórico etc. A separação entre esses dois
momentos de análise é explícita e preconcebida.17 No entanto, o momento da descoberta, de
espanto e de estranhamento, carregado de implicações hermenêuticas, poderia também aparecer
no contexto imediato se o pesquisador ao menos prestasse atenção ao intenso trabalho de
seleção realizado pelos atores. Este determina, por exemplo, a sobrevivência de uma imagem
ou de uma crença particular ao invés de outras e explicaria o porquê e o como dessa transmissão,
bem como as transformações sofridas por ela ao longo do tempo.
A abordagem que sugiro implica “levar em conta as ilusões dos atores” (Boltanski, 1990;
1991), isto é, levar em conta suas atividades de escolha e seleção entre as tradições culturais e
que permitem assim a sobrevivência de algumas e a condenação de outras ao esquecimento.
Essa atividade de seleção evidencia um contexto cultural que é “controlado”, não no sentido de
ser limitado no seu âmbito cronológico (a abordagem que defendo permite o recurso às mais
antigas tradições culturais), mas no sentido de que sua pertinência é determinada sobretudo
pelos itinerários seguidos pelos atores e não simplesmente pelos conhecimentos do pesquisador.
Nessa perspectiva, a cadeia documental não é circular nem centrífuga (surgindo dos atores e se
afastando deles cada vez mais, seguindo caminhos que dependem do campo de conhecimento
do pesquisador). Ela é edificada sobre a base das relações que os atores estabelecem com a
tradição, com o texto e com a crença em questão, visto que a cultura não se reduz a uma herança
e é constituída também por criações contemporâneas. Em outras palavras, a cadeia documental

16
Ver Ginzburg (2001).
17
Corresponderiam elas ao “mito das origens” ou à “obsessão embriogenética”, para utilizarmos os próprios
termos de Marc Bloch (1993)?

53
que eu concebo é êmica, construída pelo ponto de vista dos atores. Êmico é um método de
análise, não o contexto imediato dos comportamentos. E me parece que é aquilo que constitui
a diferença mais significativa que separa as análises “sociais” das análises “culturais”.

Culturas localizadas

Um método de análise é igualmente um procedimento de controle das interpretações possíveis.


Como todo procedimento de controle, ele coloca limites na exploração de contextos não
comunicantes, distantes uns dos outros. O sacrifício desses contextos oferece, todavia,
vantagens que me parecem importantes. A primeira delas é conseguir romper um ciclo lógico
que tende a limitar a análise. O procedimento de “revelação” do sentido oculto pressupõe,
evidentemente, que consideremos que os atores não sejam conscientes da origem profunda de
sua experiência. Essa ignorância é alegada pelo pesquisador que, não tendo realizado nenhuma
tentativa de reconstituir o trabalho de seleção criativa efetuado pelos atores, não nos dá nenhum
meio de confirmá-las ou de negá-las. No entanto, sobre essa suposta ignorância, se instala uma
consequência de peso: nosso passado atua para além da memória e da intenção. Os mitos nos
pensam (Ginzburg, 2001). E de fato, esse é o caso se levarmos em consideração o procedimento
de análise.
A segunda vantagem que representa a reconstituição dos contextos culturais a partir da
atividade de seleção dos atores é que ela permite ao historiador descobrir novos objetos: os
“produtos” que foram produzidos numa época e em um lugar específico. E, por conseguinte,
descobrir tradições culturais que não são construídas pelos textos, antigos ou modernos, e cuja
gênese não pode ser compreendida a não ser mediante a reconstituição das relações entre ação
e legitimação e das relações entre culturas e comportamentos. Como dito anteriormente, isso
diz respeito à questão da possibilidade de “ser surpreendido” ao invés de “surpreender” os
atores, revelando-lhes aquilo que é suposto e não o contrário.
Fui confrontada recentemente por um caso de criação de uma tradição cultural que
emergiu de um processo de escolha e de seleção que eram “locais”, isto é, bem situados no
tempo e no espaço. Ele só se tornou compreensível através da análise das ações (e não somente
dos discursos e dos escritos) efetivamente empreendidas pelos homens e mulheres em um
tribunal civil numa cidade do Antigo Regime (Cerutti, 2003). O processo sumário que foi
adotado em inúmeros tribunais era pouco custoso e, sobretudo, informal. A presença de
advogados era proibida, bem como suas apelações, ao passo que o julgamento se apoiava apenas
sobre as declarações das partes em litígio. Estas apresentavam suas próprias razões ao exporem

54
detalhadamente suas ações – a venda, a compra, o empréstimo etc. –, cuja legitimidade não
dependia de sua conformação a uma regra, mas, antes, do fato de terem ocorrido em um
contexto geral de consenso “sem nenhum conflito”. Era um processo que legitimava as práticas
sociais na qualidade de fontes do direito: uma forma supralocal de justiça que permitia aos
mercadores e a outros grupos itinerantes (mas também a figuras juridicamente débeis, como as
viúvas e os menores) terem acesso a um julgamento adequado e fundamentado na legitimidade
conferida simplesmente às suas ações (em detrimento de seus saberes locais acerca do direito e
dos costumes). Esse procedimento e seus princípios estavam enraizados em uma tradição muito
antiga, que remontava ao jusnaturalismo escolástico e à concepção de “razão prática” teorizada
nas obras de São Tomás de Aquino. Para compreender o funcionamento desse direito, bem
como da concepção de justiça demonstrada tanto por homens quanto por mulheres durante
grande parte do período moderno, era necessário, portanto, retomar essa tradição. No entanto,
tal retomada estava longe de ser suficiente. Essa tradição era evocada como uma fonte de
legitimação das ações e das demandas de justiça e, ao mesmo tempo, esstas mesmas ações e
reinvindicações construíram um contexto no qual a tradição era reformulada, recriada e
transformada.
A análise detalhada do funcionamento dos processos, assim como a reconstituição dos
interesses (não somente econômicos) de diferentes protagonistas envolvidos (o público do
tribunal, assim como os homens da lei e os magistrados), se constituiu em operação essencial
para compreender não apenas o uso que era feito de uma tradição cultural, mas também a
maneira por meio da qual ela era recriada. De fato, ao longo desses anos, o jusnaturalismo
escolástico se entrelaçava com outras tradições culturais, cuja aproximação seria vista como
algo extremamente improvável pelos historiadores das ideias. O contexto no qual o processo
sumário pôde gozar de um novo sucesso foi aquele da crítica do formalismo do procedimento
judiciário que se tornou extremamente agressivo no Piemonte da primeira metade do século
XVIII.
A tradição do direito natural ainda era mobilizada em oposição à formalidade do direito
e em relação aos abusos de poder dos homens da lei. No mesmo momento, entretanto, tornou-
se constante a transferência para uma tradição aparentemente diferente, vista como
incompatível com aquela do empirismo baconiano e que se exprimia, no campo jurídico, pela
da rejeição do apriorismo das doutrinas jurídicas e em favor da investigação empírica das
características de cada caso particular. Assim, de uma maneira imprevista, o pensamento
escolástico e o empirismo baconiano se aproximaram, criando uma “tradição cultural” a
respeito da qual não encontramos qualquer traço nas obras de história do pensamento jurídico.

55
Um contexto político e social particular (composto pela vontade de um grande número de
homens e mulheres de apresentarem seus próprios casos na Justiça e de resolverem seus litígios
“com brevidade” e “sem o barulho” dos advogados somado às lutas internas da comunidade
dos homens da lei) conduziu à criação de uma tradição cultural específica. Nesse caso, não
somos confrontados por uma forma de manipulação dos recursos culturais já existentes, nem
por simples operações de bricolagem de ideias pensadas por outros. O entrelaçamento de ação
e de legitimação produziu, assim, uma forma cultural autenticamente original.
Percebo então nessa pesquisa uma contribuição ao projeto micro-histórico de construção
de uma história cultural e intelectual que seja, no fim das contas, singular e localizada. Uma
história em que a distância entre a razão e a ação não seja estabelecida a priori e na qual o que
prevalece é o “deslumbramento” suscitado no pesquisador pelas capacidades extraordinárias e
criadoras das pessoas que constituem seus objetos de análise.

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58
3 “A Contrapelo”: diálogo sobre o método

Simona Cerutti

“Reflexões sobre uma hipótese vinte e cinco anos depois”. O posfácio presente na nova edição
francesa de Mitos, emblemas e sinais (Ginzburg, 2010) oferece uma ocasião preciosa para
observar um autor reconstituindo, retrospectivamente, seu próprio caminho de pesquisa,
tomando como referência um texto programático escrito há um quarto de século. Exercício
delicado, já que a fidelidade a si mesmo pode ser interpretada como um sinal de coerência
intelectual ou, ao contrário, como indício de isolamento interior de um paradigma muito
autoritário, ao mesmo tempo que a atitude inversa, a mudança de perspectiva, pode passar mais
a impressão de inconsistência do que de criatividade.
Nada disso se passa com Carlo Ginzburg: ele faz desse posfácio um exercício de pesquisa
e nos oferece uma reflexão importante sobre o peso que os contextos culturais podem exercer
sobre a produção intelectual – o termo contexto não se refere aqui a um cenário objetivamente
incontornável, mas aos elementos com os quais um autor escolhe dialogar e nos quais ele
inscreve sua própria proposição intelectual, permitindo-lhe (pelo menos em parte) estruturar
sua obra. O fato de que o problema da prova tenha sido pouco abordado no ensaio “Sinais:
raízes de um paradigma indiciário” (Ginzburg, 1989) enquanto está no centro de trabalhos
posteriores permite mensurar toda a importância que o desafio pós-moderno apresentou à
produção intelectual de Ginzburg. E essa importância não lhe passa despercebida: ele vai fazer
do artigo de Momigliano, que denuncia as implicações céticas da desconstrução de Hayden
White, o divisor de águas de seu percurso intelectual. Mas se o pós-modernismo se tornou para
ele um interlocutor ou, mais que isso, um inimigo quase que central, toda sua reflexão já estava
impregnada, desde seu encontro decisivo com a obra de Marc Bloch, pelo problema das
condições da possibilidade do conhecimento histórico e, assim, da relação do historiador com
suas fontes. Tal relação está no centro do paradigma indiciário baseado nos sinais e domina
ainda, 27 anos mais tarde, a coletânea O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (Ginzburg,
2007a).
É então em torno desses “sinais” que eu gostaria de dialogar com a obra de Carlo
Ginzburg ou, em outras palavras, refletir acerca das fontes como condição da possibilidade de


Artigo originalmente publicado como: “À Rebrousse-Poil: dialogue sur la méthode”. Critique, n. 769-770,.
2011/6, p. 564-575. Trad. e rev. técnica Deivy Ferreira Carneiro (InHis/UFU).

59
todo conhecimento histórico. Meu argumento é que não podemos considerar as fontes como
“sinais”, mas sobretudo como ações cuja intencionalidade, longe de impedir uma compreensão
profunda (e é essa a posição de Ginzburg), constituem condição dessa compreensão. Tal
perspectiva permitirá também que nos voltemos a um terreno em relação ao qual Ginzburg
mantém uma distância respeitosa: o campo jurídico. Distância duplamente paradoxal, uma vez
que é desse campo que provêm grandes quantidades de documentos históricos e, além disso, é
o campo jurídico que fornece os elementos de reflexão a respeito de dois outros termos
estabelecidos por Ginzburg (juntamente com sinais) como centro do paradigma indiciário: o
caso e a série.

Como acariciar o “pelo muito luzidio da história”?

A reflexão de Carlo Ginzburg acerca do estatuto das fontes históricas seguiu, ao longo dos anos,
dois caminhos paralelos. Caminhos esses que correspondem a dois desafios constantemente
presentes neste terreno e que E. P. Thompson definiu como “o positivismo trivial e o idealismo
plausível”.1 De um lado, o desafio das leituras positivistas que transformam as fontes em
recipientes transparentes de informações; e do outro, o ceticismo pós-moderno que considera
as fontes como construções desprovidas de referência a toda realidade que lhe seria exterior.
Contra essa forma moderna de ceticismo e contra o pretenso “erro referencial”, a escolha de
Ginzburg foi levar o desafio para o campo dos adversários, tomando seus argumentos para, em
seguida, submetê-los à análise. Os temas da retórica, da narrativa, do romance e de todas essas
artes que, segundo os pós-modernos, se confundiriam com a história, foram submetidos por ele
a interrogações enfáticas acerca tanto do estatuto da prova quanto da pluralidade das vias de
referência.2
Entretanto, a batalha de Ginzburg contra o “positivismo grosseiro” é bem mais antiga e
foi inspirada por aquilo que poderíamos definir como uma forma de empirismo não positivista,
encontrado de forma relativamente explícita em alguns de seus importantes trabalhos, que,
contudo, não estão entre os mais conhecidos. Um desses ensaios, inédito em francês e em
português, merece ser observado aqui: Giochi di pazienza, escrito com Adriano Prosperi e
apresentado em um seminário acerca do Beneficio di Cristo, um dos textos religiosos mais
controversos do século XVI italiano (Ginzburg e Prosperi, 1975). Encontramos preciosos
insights sobre o ofício do historiador neste livro que apresenta menos os resultados que os

1
E. P. Thompson utiliza esta expressão numa carta enviada à revista History Workshop alguns meses antes de sua
morte (History Workshop, v. 35, primavera 1993, p. 274-275).
2
Ver a esse respeito: Ginzburg (2002a; 2004).

60
diferentes caminhos (às vezes bons, às vezes falsos, às vezes somente plausíveis) seguidos por
dois pesquisadores em seus percursos de análise. Giochi di pazienza revela a cozinha dos
historiadores: ao invés de conduzirem o leitor a um belo frango assado com batatas fritas, eles
apresentam uma ave ainda viva, cacarejando, com penas e barbilhão – “não uma pesquisa
concluída, mas o vai-e-vem da pesquisa; as falsas pistas seguidas e descartadas antes de se
chegar a um resultado exitoso” (Ginzburg e Prosperi, 1975:4). Trata-se então de um livro sobre
método, mas um método que, como sugeriu Louis Garnet citado por Ginzburg e Prosperi
(1975), somente revela seu percurso uma vez que a pesquisa está concluída. É esse empirismo
que será apresentado de maneira mais articulada em Sinais (Ginzburg, 1989): a proposta de um
método interpretativo focalizado em dados marginais e que coloca explicitamente o problema
do estatuto dos casos particulares e da relação com as ciências da natureza.
Não é somente o termo sinais que autoriza a evocar a influência de Marc Bloch sobre
reflexão de Ginzburg acerca da relação que liga um historiador às suas fontes, mas é sobretudo,
de forma mais explicita, aquele que é considerado um dos principais pressupostos da reflexão
do historiador francês: aquilo que as fontes nos dizem não constitui necessariamente o objeto
de nosso estudo. Nas fontes (escritas, figurativas etc.) os elementos mais reveladores de
realidade são aqueles que se encontram nos bastidores. São os elementos que escapam ao
controle do redator da fonte; são os traços não conscientes, não controlados (a palavra
“escapam” testemunha a influência de Bloch (2001).3 Essas zonas opacas abrem caminho para
os elementos culturais menos explícitos, uma vez que são os mais profundos. Os “sinais” então,
como já é bem conhecido, constroem o contexto “horizontal” que está no centro do paradigma
indiciário, de acordo com a definição de Ginzburg, representado pela tríade Morelli, Freud e
Holmes.4 Assim, a natureza referencial das fontes não se situa onde o historiador positivista
espera encontrar – nas informações deliberadamente explicitadas – mas nos traços, nos sinais;
estes sim reveladores de uma realidade profunda e inconsciente.
Nesse novo código de conduta proposto pelo paradigma indiciário, uma escolha é tomada
a favor de um método particular de análise: uma leitura “a contrapelo”, realizada “contra as
intenções dos redatores das fontes”, no intuito de capturar justamente aqueles elementos que
lhes escapam ao controle.

3
Ver capítulo 2 e segs.
4
Giovanni Morelli (1816-1891) foi o inventor de um método de atribuição de autoria de obras de arte que se apoia
não sobre os traços estilísticos mais evidentes de um artista, mas sobre os detalhes menos intencionais, mais
espontâneos e, dessa maneira, mais difíceis de serem imitados. Ver Ginzburg (1989). Sobre Sherlock Holmes, ver
p. 145-146. Sobre Freud, ver p. 146-148. Sobre a “tríade”, ver p. 150-151. A tríade Freud-Morelli-Holmes é
também evocada no posfácio da edição francesa já citada.

61
A ideia tomada de Walter Benjamim5 identifica, portanto, nos produtores da fonte
(Ginzburg muitas vezes trabalhou com as fontes judiciais) os “vencedores” a respeito dos quais
Benjamin faz referência: “o pelo muito luzidio da história” seria o produto da versão dos fatos
que as fontes revelam por meio das vozes explícitas de seus redatores. Já aquilo que a leitura
“a contrapelo” faria ressurgir seriam os traços não controlados e, por isso mesmo, os mais
reveladores de outras histórias.
Eu gostaria, da minha parte, de propor a possibilidade – e a necessidade – de outra leitura
“a contrapelo”, que me parece bem mais próxima daquela que Benjamin anuncia: uma leitura
que visa não somente nos proteger dos contemporâneos, mas igualmente de nós mesmos, isto
é, do nosso próprio olhar sobre as fontes e sobre o passado que inscreve cada episódio no fluxo
contínuo de um processo histórico dotado, a posteriori, de coerência e de transparência. O pelo
muito luzidio da história é o produto de uma operação de transmissão e racionalização ex post;
ao mesmo tempo que escovar no sentido contrário, com a finalidade de subtrair o passado da
coerência da história, restitui sua própria contemporaneidade por meio do sentido e do
significado contextual.6 Trata-se então, novamente, de detectar nas fontes os conteúdos que não
são imediatamente apreendidos e que, portanto, não são da ordem do involuntário, do
inconsciente. Pelo contrário: essa abordagem é semelhante à “leitura por sobre os ombros dos
atores” proposta por Clifford Geertz – leitura cuja ambição não é ir além das intenções dos
próprios atores, mas, ao contrário, revelar essas intenções para além de suas declarações
explícitas e, sobretudo, para além da leitura anacrônica feita pelos historiadores. O
anacronismo, talvez seja útil relembrar, não é o efeito de uma leitura das fontes realizada por
meio das categorias dos pesquisadores. É na verdade a atribuição, geralmente implícita, de
nossas próprias categorias e de nossa própria linguagem aos atores sociais. Em suma, o
anacronismo não é o fruto de uma escolha de externalidade (cujas possibilidades heurísticas
são, ao contrário, essenciais),7 mas de uma proximidade não controlada, de uma mistura entre
categorias e temporalidades diferentes.
A leitura a contrapelo, à qual faço referência, arranha a superfície da fonte para fazer
surgir, para além da leitura do pesquisador, o significado que os contemporâneos deram às
palavras e às coisas. As intenções dos atores estão, muitas vezes, longe de serem evidentes,

5
“Sua tarefa (aquela do teórico do materialismo histórico), ele acredita, é escovar a história a contrapelo” (Tese
VII. Sobre o conceito de história). Utilizamos aqui a versão de Michael Lowy: Benjamin (2007:55).
6
Ver W. Benjamin (2007:55): “Não há nenhum documento de uma cultura que não seja também documento da
barbárie. E a mesma barbárie que os afeta, afeta igualmente o processo de sua transmissão de mão em mão”.
7
Essenciais e analisadas por Ginzburg (2001) em vários textos que compõem a coletânea: Olhos de madeira: nove
reflexões sobre a distância.

62
ocultadas por categorias através das quais analisamos os vestígios que foram deixados e que
nos permitem qualificar suas ações. Conduzir esse trabalho de “limpeza” significa, antes de
tudo, tomar ciência de uma distância e de uma diferença. A produção da maior parte dos
documentos nas sociedades do passado não foi motivada por preocupações de conhecimento
relacionadas, como atualmente, a interesses de natureza sociológica.8 Essas motivações
surgiram muito mais de preocupações de ordem jurídica, jurisdicional ou judiciaria que se
encontram na origem da produção de um documento que se tornará, posteriormente, uma fonte.9
A própria existência desta última – a produção dos “sinais” – pode então constituir o objeto de
um estudo que esclarecerá tanto sua forma quanto seu conteúdo. E essa questão é válida para
fontes muito diferentes umas das outras: tanto para os documentos que os historiadores
qualificam como “quantitativos” quanto para as fontes narrativas que deveriam restituir as
dimensões íntimas e privadas.
Neste sentido, os censos populacionais das sociedades modernas – fonte cuja razão de ser
nos parece evidente – são, na maior parte das vezes, mais atos de jurisdição sobre a população
recenseada do que apenas uma ação burocrática. Por meio dessas operações, direitos são
afirmados (direitos judiciários, direitos de arrecadação, de recrutamento etc.): as informações
fornecidas pelos recenseamentos são de uma ordem particular, e essa ordem é definida por uma
intencionalidade que não nos é familiar e que necessita ser reconstituída atentamente. Caso
contrário, corremos o risco de cometer erros grosseiros e equívocos graves. Um novo objeto de
estudo toma forma desta maneira: muitas vezes difícil de controlar, mas suscetível de abrir
caminhos para leituras mais precisas e não anacrônicas.
Podemos dar como exemplo – espetacular, mas não excepcional – uma das fontes
nominativas mais ricas acerca da América Latina do período colonial: o recenseamento da
população dos Andes peruanos no início do século XVI. Esse documento foi largamente
utilizado por demógrafos e por historiadores como um reflexo da população existente. Eles
retiraram desses documentos dados acerca da composição dessa população: sexo e idade,
estatuto – servil ou não –, composição étnica etc. Mas só recentemente essa documentação, que
se pretendia “espelho” da população, foi reinscrita no contexto de sua produção por uma jovem
pesquisadora chamada Carmen Beatriz Loza (xxxx). Esse recenseamento não foi uma ação
burocrática neutra; foi um ato produzido no contexto de uma disputa legal entre uma sobrinha-
neta de Ignácio de Loyola e um membro da aristocracia espanhola pela jurisdição de populações

8
Conforme foi sublinhado por Edoardo Grendi há alguns anos. Ver, nesse sentido, Grendi (1977).
9
Sobre a característica reivindicativa das fontes, ver, em particular, dois números da revista Quaderni Storici,
organizados por A. Torre e E. Artifoni (n. 96, dez. 1996) e por I. Grangaud (n. 129, dez. 2008).

63
autóctones. Seus nomes; a distribuição dos homens, das mulheres e das crianças; as declarações
acerca de sua condição servil ou livre – todas essas informações devem ser interpretadas em
um contexto específico, capaz de permitir a avaliação das distorções contidas nesses dados.
Longe de invalidar essas informações, a leitura do documento, uma vez restituído o contexto
de sua produção, pode se assentar sobre bases certamente mais limitadas, mas também muito
mais sólidas.
Todavia, reconstituir a intencionalidade que norteou a produção dos documentos é
igualmente uma exigência no caso das fontes “qualitativas”. Retomaremos aqui o debate sobre
as ricordanze, memórias escritas por mercadores italianos (nesse caso, fiorentinos) entre os
séculos XIV e XVI, que foram analisadas de forma notável por Christiane Klapisch (1990). As
ricordanze possuem uma grande quantidade de informações familiares referentes ao
nascimento das crianças, sua educação, os casamentos, os pagamentos de dotes, a mortalidade,
as despesas e as contas a receber etc. Esses documentos, que aparentemente revelam apenas
elementos da esfera privada, foram escritos unicamente por homens. Enquanto na mesma época
as mulheres podiam ser autoras e desfrutar de um gênero literário público e de prestígio, a saber,
as crônicas citadinas, as memórias de família não se enquadravam nas possibilidades de seus
horizontes. Muitas hipóteses foram levantadas acerca dessa questão, mas uma análise parece
decisiva: aquela que se concentra no uso que os próprios redatores das ricordanze faziam delas.
As ricordanze não tinham por finalidade ficar trancadas nos cofres das casas, funcionando como
uma memória de uso restrito das famílias. Elas foram produzidas, às centenas, nos tribunais
civis, a fim de atestar o pagamento de dotes, de atestar direitos de herança, de certificar a
existência de uma dívida etc. É essa “intenção” de uso na esfera judiciária (entre outras,
provavelmente) que está na origem de sua produção e é ela também que permite compreender
a razão da ausência de mulheres entre seus redatores declarados. Isso se dava simplesmente
porque a palavra das mulheres não possuía legitimidade na Justiça, a ponto de carecer da
presença de um homem que agisse como “guardião” (o mundualdus), fosse para dar suporte às
suas queixas ou simplesmente para corroborar suas declarações.
O estatuto de tais fontes é, então, aquele das ações dotadas de uma intencionalidade que
não nos é mais familiar e que silencia as escolhas assinaladas pelos historiadores. Falar em
termos de “sinais” não restitui à fonte essa dimensão essencial, aquela que oculta toda uma
gama de experiências desses atores do passado: suas próprias ações, evidentemente, mas
também seus passos no intuito de afirmar seus direitos, de assegurar suas pretensões e,
finalmente, legitimar sua conduta e obter pleno reconhecimento. E esse nível de análise – que

64
demonstra a enorme distância que nos separa do nosso passado –, que eu qualificaria de êmica,10
refere-se tanto ao nível dos comportamentos quanto à riqueza dos sistemas culturais, cuja
eficácia não depende de sua inconsciência nem que sejam reprimidos para serem autênticos.
Trata-se de os analisar não para abandonar o campo imediato dos atores, mas para prescrutar-
lhe com mais precisão.11

Campo histórico e campo jurídico

Afirmações de direitos, de reivindicações, de jurisdição, de legitimação – todos estes termos


que foram utilizados a propósito das fontes referem-se aos campos jurídico e judiciário. Carlo
Ginzburg está familiarizado com fontes judiciais. Tanto Os andarilhos do bem (Ginzburg,
1988) quanto O queijo e os vermes (Ginzburg, 2006) nasceram de seu encontro com os
processos inquisitoriais. O problema das relações entre os campos da história e do direito
chamou sua atenção suficientemente para que ele tratasse do tema em pelo menos duas
ocasiões: no livro The judge and the historian (Ginzburg, 2002b), no qual ele analisa o
problema da prova, e no ensaio “O inquisidor como antropólogo” (Ginzburg, 2007b), em que
se debruça mais uma vez sobre da questão das fontes; de seu caráter referencial e dos
empecilhos (e dos recursos) representados pela voz de seus redatores. Todavia, é uma relação
que permaneceu cautelosa, confinada ao mundo da prova e que não gerou em Ginzburg uma
verdadeira reflexão sobre suas perspectivas analíticas. É significativo que no texto “Sinais”,
Carlo Ginzburg (1989) dialogue com a história da arte, com a medicina ou com a psicanálise,
mas não com o direito.
E podemos lamentar tal situação, visto que uma atenção mais enfática sobre das relações
entre as duas disciplinas poderia ter enriquecido a reflexão conduzida por Ginzburg acerca dos
temas do caso e da série. O confronto entre o trabalho do juiz e o trabalho do historiador no
momento específico e crucial da análise dos casos está também na origem do ensaio de Piero
Calamandrei, escrito em 1939, do qual Ginzburg retirou o título do seu livro consagrado ao
caso Sofri: The judge and the historian. Mas se utilizou o texto de Calamandrei como
inspiração, ele não foi muito longe. Ginzburg se concentrou sobre o tema da prova, que não era
central para Calamandrei, cuja obra era, na verdade, uma resposta ao denso livro La logica del

10
Devemos essa distinção (que visa separar as categorias dos observadores daquelas de sujeito da observação) a.
Pike (1967:37-39). Esta distinção teve uma importância crescente nas reflexões de Carlo Ginzburg (2007).
11
Já desenvolvi esses argumentos no texto: “Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire sociale et
histoire culturelle” (Cerutti, 2008).

65
giudice e il suo controllo in Cassazione, editado em Pádua em 193712 e escrito por Guido
Calogero, um filósofo do direito próximo ao pensamento de Croce. A controvérsia entre os dois
autores estava pautada na relação entre fatos e normas, tema clássico que era discutido, todavia,
de uma maneira nova e extremamente interessante. A questão em debate era onde situar a
proximidade do juiz e do historiador: ela se dava no momento do exame dos fatos ou na
operação de qualificação e interpretação desses mesmos fatos? De acordo com Calogero são os
fatos, os casos analisados que aproximam os historiadores dos juízes. Mas de quais fatos
estamos falando? Juízes e historiadores, sustenta ele, não são confrontados por realidades já
existentes, mas por objetos construídos por eles mesmos. Eles lidam, na verdade, apenas com
documentos, testemunhos e provas que serão transformados em um caso somente por meio de
suas ações. Os limites que o procedimento impõe aos juízes se aproximam das operações de
escolha e de seleção que os historiadores praticam cotidianamente. Em suma, fatos jurídicos e
fatos históricos são similares na medida em que são “artefatos”, produtos de uma atividade
humana. Se existe uma distância entre o juiz e o historiador, afirma Calogero, ela se situa
sobretudo na operação jurídica par excellence, aquela da interpretação das intenções do
legislador a fim de poder aplicar a lei em um caso particular que está em análise: operação
meta-histórica, envolvendo a reconstituição não da verdade, mas do verossímil, do provável.
A posição de Calamandrei seguia exatamente a direção oposta. Os fatos judiciários são
aqueles em que uma ou ambas as partes envolvidas indicam ao juiz que são juridicamente
pertinentes. Apenas isso. Ao juiz está proibida a “curiosidade” que leva o historiador a ampliar
o campo de sua própria pesquisa, na qual estabelece ligações inesperadas entre fenômenos
distantes no tempo e no espaço. O historiador responde a questões que surgem de sua própria
pesquisa. Já o juiz trabalha em um terreno no qual as pertinências são ditadas por uma voz
exterior. Os casos jurídicos e os casos históricos não seriam da mesma natureza, mesmo que as
operações de subsunção dos casos, sob uma mesma norma, aproximem o juiz e o historiador
num trabalho minucioso sobre os textos do passado.13
É interessante sublinhar que as duas posições, mesmo que opostas, partilham de um
mesmo fundamento: a atividade do historiador não se resume apenas à coleta de dados, de fatos
evidentes por eles mesmos. O trabalho de reconstituição do passado, que mesmo os juristas

12
O texto de Calamandrei foi publicado em Besta (1939). As relações entre o juiz e o historiador estão também no
centro da análise de Lima (1996).
13
Esse tema foi retomado, recentemente, no contexto dos processos de crimes contra a humanidade a respeito dos
quais alguns historiadores foram chamados a testemunhar, situando suas considerações em um equilíbrio tênue
entre a análise e o julgamento. Ver, nesse sentido. Thomas (1998). Este artigo adota sem citar, e provavelmente
de maneira não intencional, a posição de Calamandrei.

66
reconhecem, implica uma atividade de escolha que está necessariamente ligada a regras
(profissionais, éticas etc.).
Esse campo de reflexão em torno dos elementos do empirismo que caracteriza as
operações de construção dos objetos, realizada tanto por historiadores quanto por juízes, me
parece constituir, ainda hoje, uma das principais riquezas desse encontro.14 E o campo dos
procedimentos judiciários (há muito tempo negligenciado pelos historiadores devido a sua
aridez e pelos juízes, por causa de sua presumida “impureza”) é um local de testes e de
historicização das relações entre o caso e a série – historicização cuja importância foi revelada
pelo trabalho de Carlo Ginzburg.15

Referências

BENJAMIN, Walter. Avertissement d’incendie: une lecture des thèses “sur le concept d’histoire”.

Paris: PUF, 2007.


BESTA, Enrico. Studi di storia e diritto in onore di Enrico Besta per il XL anno del suo
insegnamento. Milão: Giuffré, 1939. t. II.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
CERUTTI, Simona. Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire sociale et histoire
culturelle. Tracés: Revue de Sciences Humaines, n. 15, p. 147-168, dez. 2008.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1997. 366 p.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
____. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ____. Mitos, emblemas e sinais: morfologia
e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
____. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
____. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a.

14
Um fundamento praticado de maneira exemplar por Clifford Geertz (1997) em um ensaio que deu o título à
coletânea.
15
Restaria afirmar minha própria dívida intelectual com Carlo Ginzburg. O livro O queijo e os vermes foi uma das
principais influências que me conduziu ao ofício de historiadora. Tanto seus trabalhos quanto as conversas que
tivemos ao longo dos anos nutriram incessantemente minha própria pesquisa.

67
____. The judge and the historian: marginal notes on a late-twentieth-century miscarriage of
justice. Nova York, NY: Verso, 2002b.
____. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
____. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.
____. O inquisidor como antropólogo. In: ____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.
____. Réflexions sur une hypothèse. In: ____. Mythes, emblèmes traces: morphologie et
histoire. Lagrasse: Verdier, 2010. p. 351-364.
____; PROSPERI, Adriano. Giochi di pazienza: un seminario sul “Beneficio di Cristo”. Turim:
Einaudi, 1975.
GRENDI, Edoardo. Micro-analisi e storia sociale. Quaderni Storici, n. 35, p. 506-520, 1977.
KLAPISCH, C.hristiane. La maison et le nom: stratégies et rituels dans l’Italie de la Renaissance.

Paris: De l’EHESS, 1990.


LIMA, P. Butti de. L’inchiesta e la prova: immagine storiografica, pratica giuridica e retorica
nella Grecia classica. Turim: Einaudi, 1996.
LOZA, Carmen Beatriz. De la classification des Indiens à sa réfutation en justice (Yucay, Andes

péruviennes, circa 1493-1574). Histoire et Mesure, v. XII, n. 3/4, p. 361-386.


PIKE, K. L. Language in relation to a unified theory of the structure of human behavior. La
Haye: Mouton, 1967.
THOMAS, Y. La vérité, le temps, le juge et l’historien. Le Débat, n. 102, nov./dez. 1998.

68
4 Quem está embaixo? Uma releitura de E. P. Thompson, historiador das
sociedades modernas

Simona Cerutti

A tradução de Costumes em comum finalmente disponibiliza ao público francês os ensaios que


o historiador britânico Edward Palmer Thompson consagrou à história moderna. Em outras
palavras, uma das produções historiográficas mais ricas, mais originais e mais fecundas do
século XX.1 O livro, lançado em 1991 sob o título Customs in commons, reúne ensaios escritos
a partir dos anos 1960, muitos dos quais se tornaram célebres. O artigo consagrado à economia
moral da multidão, reproduzido em sua versão original, foi acompanhado por uma reflexão
atualizada e uma resposta detalhada aos seus críticos (e a seus exegetas) (Thompson, 1971).2 Já
outros ensaios foram reeditados em versões ampliadas e enriquecidas. A coletânea apresenta
uma reflexão sagaz a respeito das condições de coexistência e de conflito entre grupos sociais
na sociedade inglesa do século XVIII. Trata-se assim de uma resposta a uma questão que E. P.
Thompson teve o mérito de formular com profunda clareza: como é possível viver numa
sociedade paternalista? Ou, dito de outra maneira, que formas de animosidade ou de resistência
podem ser elaboradas no interior das relações de poder que se baseiam sobre tal idioma social?
Essa questão despedaça a imagem de uma construção consensual da sociedade inglesa e conduz
o pesquisador ao campo da pesquisa com fontes mais eficazes para identificar não somente
essas tensões, mas também os métodos necessários para analisá-las.
A tradução realizada por Jean Boutier e por Arundhati Virmani constitui uma pesada e
intimidante disputa com “a fecundidade de um espírito livre e heterodoxo, hostil ao


Artigo originalmente publicado como: “Who is below? E. P. Thompson, historien des sociétés modernes: une
relecture” (Cerutti, 2015). Texto publicado por ocasião da tradução francesa do livro de E. P. Thompson (1998).
(em francês: Les usages de la coutume: traditions et résistances populaires em Angleterre, XVIIe-XIXe siècle,
2015). A autora agradece a Jacques Revel pela leitura atenta deste texto e também por seus comentários e críticas.
Tradução e revisão técnica de Deivy Ferreira Carneiro (InHis-UFU).
1
Devemos destacar a recepção delicada reservada a E. P. Thompson pela historiografia francesa, já evidente em
A formação da classe operária inglesa (em francês, traduzido por M. Golaszewski e M.-N. Thibault em 1988 e
publicado pela Gallimard/Le Seuil). Assim, 21 e 25 anos separam, respectivamente, as edições francesas de
Costumes em comum e A formação da classe operária inglesa de suas edições originais. Seria interessante
interrogarmos de maneira aprofundada as razões desse atraso, acompanhando os diagnósticos apresentados por
Patrick Fridenson e publicados em Le Débat, 3, p. 175-192, 1980, bem como por Jacques Revel em numerosas
ocasiões. Uma delas em um encontro ocorrido na Maison Française d’Oxford, em novembro de 2013, sob o título
“The French E. P. Thompson”, a respeito do qual apresentarei alguns de seus argumentos. Para um balanço mais
recente a respeito do sucesso dúbio da obra de E. P. Thompson, ver Davis e Morgan (2014). Ver, ainda, McWilliam
(2014).
2
Publicado em francês com o título: “L’économie morale de la foule dans l’Angleterre du XVIIIe siècle”
(Thompson, 1988).

69
establishment, às instituições, às mesquinharias universitárias; tomada por uma escrita
inflamada e incansável”, versátil e original, que fez do escritor E. P. Thompson “talvez o maior
dos desafios” para seus tradutores (Boutier e Virmani, 2015:34). Mas este desafio nutriu uma
proximidade com o autor e uma sensibilidade particular às intenções que estão inscritas em
cada uma das escolhas lexicais. Na sua riquíssima introdução, J. Boutier e A. Virmani
sublinham algumas etapas da biografia do historiador, enfatizando seu engajamento político –
um elemento essencial para a compreensão de um autor para quem a paixão cívica e a produção
científica sempre foram inseparáveis (Winslow, 2014).3 O essencial do texto está, portanto,
dedicado à análise dos conceitos-chave de sua obra, a começar pelos “costumes em comum”
que dão título à coletânea e, em especial, ao segundo dos dois termos, definido como “aquilo
que pertence igualmente a mais de um” (Johnson,1755) 4 e que carrega em si uma grande parte
do peso político do argumento.

As “palavras poderosas”

Boutier e Virmani aprofundam seus propósitos enfatizando aquilo que chamam de “palavras
poderosas:5 “agência” e “economia moral”, ou ainda, “experiência” e “costumes”. Trata-se de
reconstituir a origem de cada um desses conceitos na obra de E. P. Thompson e de evocar os
debates suscitados por eles. A operação é útil sobretudo para os dois primeiros termos (agência
e economia moral), conceitos que já não pertencem somente aos historiadores, mas que são
largamente adotados no léxico de uma pluralidade de disciplinas (e até mesmo na linguagem
da mídia). Com razão, os tradutores localizam na experiência de ensino que E. P. Thompson
teve com os operários de Yorkshire e, paralelamente, no seu trabalho de pesquisa sobre William
Morris nos arquivos, os momentos de elaboração de uma concepção de agência que não foi
inspirada naquela das ciências sociais. Quanto ao processo de construção da “economia moral”,
ele transita desde o Livro dos provérbios à formalização escolástica da ética cristã do preço
justo, perpassando também pelo Book of orders,6 que em 1631 atribuiu ao governo real a
assistência aos pobres. Isso demonstra a que ponto a economia moral não pode ser lida “em

3
Para uma boa resenha desse livro, ver Pasquali (2015).
4
O termo “common”, citado em Boutier e Virmani (2015:12).
5
Boutier e Virmani (2015:10) retomam aqui a formulação de Williams (1986:70).
6
O Book of orders é um conjunto de leis distribuído aos juízes de paz pelo rei Charles I da Inglaterra, em 31 de
janeiro 1631. É considerado o elemento central das políticas de Charles I em relação às massas durante seu
governo, que durou de 1629 até 1640. O objetivo das leis era garantir uma melhor administração da justiça e
garantir um alívio econômico aos pobres. Foi criado também como uma forma de evitar distúrbios. Além disso,
serviu para aumentar o controle do governo de Charles sobre aquilo que, até então, era visto como “assuntos locais
da gentry”. (N. do T.).

70
nenhum caso como uma simples resposta popular à experiência constante de escassez e de alta
dos preços” (Boutier e Virmani, 2015:30).
Não se trata de oferecer aqui uma resenha tardia de um livro publicado há quase 25anos,
mas de continuar o debate acerca dos conceitos introduzidos por E. P. Thompson,
particularmente um entre eles – History from below7 –, que influenciou profundamente gerações
de historiadores (entre os quais, eu mesma), suscitando debates sobre a pesquisa com fontes,
assim como a elaboração dos métodos necessários para implementá-la. A perspectiva adotada
consiste menos em se perguntar como realizar uma “história vista de baixo”, mas em refletir,
utilizando a linguagem usada por Mark Hailwood (2013) em um debate virtual ocorrido em
2013:8 who is below? (quem está embaixo?) Ao formular esta questão, M. Hailwood se
interrogava sobre os contornos e os limites dessa categoria. Ela é definida por critérios
socioeconômicos (“below” está relacionado à classe operária, ou à plebe, ou ao povo, ou ainda,
aos pobres?)? Esse conceito está fundamentando em critérios políticos e jurídicos (as mulheres
estão embaixo em uma sociedade patriarcal? E os marginais, os perseguidos e os “não
conformistas”)? Se toda definição estrita parece inadequada, poderíamos nos contentar com
uma definição padrão? O “below” seria tudo aquilo que não é elite?
O debate foi inaugurado por alguém com autoridade para tal: Tim Hitchcock. Em uma
resenha de um importante livro de Thomas Sokoll sobre as pauper’s letters, ele declarou a
necessidade de se elaborar uma nova “history from below” (Hitchcock, 2004). Tratava-se de
saudar o retorno a uma autêntica “história vista de baixo” após um período historiográfico no
qual o pós-modernismo, o pós-estruturalismo e o “neoliberalismo de Michel Foucault e de
Jürgen Habermas” (Hitchcock, 2004:295) haviam nos convencido de que a linguagem era o
único objeto legítimo de estudo. E tal retorno teria como efeito, de acordo com T. Hitchcock,
destacar novamente os grupos sociais que estavam particularmente familiarizados com esse tipo
de artifício.9 Mas a nova história vista de baixo, cujo advento assinalamos, estaria atenta não
apenas à resistência direta contra o processo de disciplinarização, mas igualmente às
capacidades de construção da ordem social que pobres evidenciavam (por exemplo, os casos de

7
A origem do termo é controversa. Ele aparece em um artigo de E. P. Thompson (1966). De acordo com Steve
Hindle, suas origens são mais antigas, remontando às atividades de um grupo de historiadores próximos ao Partido
Comunista Britânico, que contava em suas fileiras com George Rudé, Eric Hobsbawm e Rodney Hilton (Hindle,
Shepard e Walter, 2013:8). Ver, também, Krantz (1985). Este livro contém o artigo de Eric Hobsbawn “History
from below – some reflections” e a resenha de James C. Scott publicada originalmente no American Journal of
Sociology, v. 93, n. 3, p. 725-727, 1987.
8
Hailwood teve o grande mérito de estar entre os primeiros que colocaram diretamente essa questão.
9
“Neste processo, os pobres, isto é, as mulheres e os homens que não deixaram qualquer palavra escrita, deixaram
de ser atrativos” (Hitchcock, 2004).

71
políticas assistenciais).10 T. Hitchcock insistia ainda, 10 anos mais tarde, sobre este ponto: esta
nova história seria capaz de restituir a capacidade dos indivíduos de imporem uma
redistribuição de recursos e de utilizar, para seus próprios fins, “esta tecnologia que é a
linguagem” (a única concessão feita pelo autor à linguistic turn). As novas possibilidades
abertas pelos recursos eletrônicos para a coleta e difusão de fontes constituem as bases dessa
nova história vista de baixo.11 Essa renovação foi anunciada também por numerosas
intervenções, em um simpósio virtual de 2013, que recolocaram a história vista de baixo nos
debates da moda, estendendo-a a novos campos de pesquisa, se acreditarmos em alguns de seus
participantes que propunham uma “Landscape history from below” (Whyte, 2013) ou uma
“Global history from below” (Farrell, 2013).
Nesse contexto, raras são, atualmente, as contribuições que retomam a questão colocada
por M. Hailwood (mas é preciso destacar que o fórum de debates é continuamente alimentado
com novas intervenções). Temos aquela de David Hitchcock, baseada numa leitura de Angelus
Novus de Walter Benjamin, que abre uma discussão sobre o trabalho de “resgate” que está no
centro do projeto de E. P. Thompson, sobre o qual voltaremos mais tarde. Temos também a
contribuição de Matt Jackson, cujo mérito foi ter salientado os problemas do aumento da
distância que pode ocorrer entre os conteúdos das fontes e as expectativas dos historiadores
(Hitchcock, 2013; Jackson, 2013). A descoberta de que certos lugares que eram
tradicionalmente identificados com o povo, com os pobres, com a plebe etc., tais como as
tavernas ou as estalagens, acolhiam, de fato, uma população bem mais diversificada do ponto
de vista social, o que levou a uma interrogação radical: “Se os historiadores utilizam as tavernas
para escrever uma história vista de baixo, a respeito de quem eles estão escrevendo?” (Jackson,
2013).12
Retornemos à questão inicial: Quem está embaixo? A resposta não é simples e, desde os
primeiros usos do termo, as interpretações a esse respeito foram variadas, principalmente, em
razão de certa indeterminação que não foi resolvida por E. P. Thompson. E estas se cristalizaram
através das traduções que a History from below, juntamente com as “palavras poderosas”,

10
“A criação de uma nova Poor Law era, essencialmente, produto do sucesso dos pobres em manipular a antiga”
(Hitchcock, 2004:297). T. Hitchcock considera que o livro de T. Sokoll, que publicou milhares de cartas que os
pobres haviam mandado para os curas, a fim de obter assistência no contexto das primeiras Poor Law, teve o
mérito de evidenciar a falsa desculpa que consiste em atribuir a dificuldade do estudo dos pobres à ausência de
fontes a respeito. Sokoll mostra que elas são abundantes e explicitas e que levá-las em consideração muda a
interpretação dos processos históricos, a começar pela “modernização” que conduziu a disciplinarização dos
pobres.
11
Ver a intervenção de Tim Hitchcock (2010). Sobre esta nova história vista de baixo, ver Vaillant (2013).
12
No original: “In short, if historians are using drinking houses to write ‘history from below’ who are they writing
that history about?”

72
conheceram em diferentes países. Por fim, seria interessante nos determos sobre essas
diferentes interpretações antes de retomarmos à interrogação principal.

Crowd, plebs, below

Em 1981 (cerca de 10 anos antes da publicação de Costumes em comum), uma coletânea de


ensaios de E. P. Thompson foi publicada sob o título Società patrizia, cultura plebea pela
editora italiana Einaudi, no contexto da nova coleção “Microstorie”, dirigida por Carlo
Ginzburg e Giovanni Levi (Thompson, 1981). O editor da coletânea, Edoardo Grendi13 (o
verdadeiro pai da micro-história, segundo Giovanni Levi (2012) apresentou ao público italiano
as pesquisas de E. P. Thompson sobre a história do período moderno, cuja forte coerência foi
destacada numa riquíssima introdução. O tema da “história vista de baixo” foi colocado como
central para a compreensão da cultura paternalista característica daquela sociedade, bem como
para compreender as relações de interdependência que ligavam “os governantes e a multidão”.
A tradução do título do artigo sobre a economia moral não foi fiel ao original em inglês: english
crowd foi substituído por “classes populares inglesas”. E se a origem desta decisão se perdeu,14
E. Grendi, que reviu o conjunto dos textos, evidentemente a ratificou. Passar da “multidão” às
“classes populares” inseria as análises de E. P. Thompson no clima e nas temáticas
historiográficas dominantes daqueles anos, que haviam visto o tema da cultura popular se
afirmar com a publicação de O queijo e os vermes (Ginzburg, 1980) e as traduções das obras
de Mikhail Bakhtine (1979) e de Peter Burke (1980).15 Foi neste momento que o livro de
Nathalie Zemon Davis, Society and culture in early modern France foi traduzido para a coleção
“Microstorie”, com o título Le culture del popolo, ecoando a edição francesa lançada um ano
antes (Davis, 1980).16 Traduzir english crowd por “classes populares” foi, provavelmente,
menos uma escolha deliberada do que o resultado do “clima historiográfico” daquele período,
comum tanto à Itália quanto à França.17 Na realidade, essa tradução reproduzia a mesma
ambiguidade que caracterizava a proposta da coleção “Microstorie”, cuja contracapa anunciava

13
Sobre Edoardo Grendi, ver a reconstituição biográfica e intelectual no prefácio de Grendi (2004). Sobre a relação
entre E. P. Thompson e Edoardo Grendi, ver Raggio (2012).
14
Nem Sabina Loriga, que traduziu a maior parte dos ensaios (entre eles, “A economia moral”) nem eu mesma,
responsável pela editoração da coleção “Microstorie”, nos lembramos se a escolha foi da tradutora ou da editora.
15
Bakhtine (1979) teve tradução francesa com o título L’ouvre de François Rabelais et la culture populaire au
moyen âge et sous la Renaissance. Trad. A. Robel. Paris: Gallimard, 1970 e foi reeditada em 1980 após ter
conhecido um notável sucesso entre os historiadores do período moderno).
16
Ver também a edição francesa: Les cultures du peuple: rituels, savoirs et résistances au XVIe siècle. Tras. M.-
N. Bourguet. Paris: Aubier Montainge, 1979.
17
Para uma reflexão crítica acerca dessas modas historiográficas, ver Strauss (1991), bem como a réplica de Beik
(1993). Na Alemanha, o artigo de E. P. Thompson (1980) sobre a economia moral foi publicado em uma coletânea.
Agradeço a Christophe Duhamelle por esta informação.

73
estar atenta “também, mas não necessariamente” à história dos pequenos (piccoli) e dos
excluídos.
No entanto, E. Grendi havia mostrado uma grande sensibilidade a respeito do tema “who
is below?”, tanto na sua introdução aos ensaios de E. P. Thompson quanto em seus escritos
posteriores (Grendi, 1994), buscando reconstituir as intenções de um autor que, no tocante à
identificação entre a história vista de baixo e o “povo”, se manteve prudente, deixando margens
de interpretação em vários de seus artigos. É importante ressaltar que Thompson utilizava de
mais bom grado o termo crowd, enquanto referências às classes populares eram raras e quase
sempre indefinidas. Trata-se de um ponto importante, na verdade decisivo, que foi quase que
totalmente negligenciado, para a compreensão do trabalho de E. P. Thompson. Ele não foi
evocado nem mesmo por ocasião de discussões recentes acerca do aniversário de 35 anos da
publicação do artigo “Patrician society, plebeian culture”. Estas ficaram centradas sobretudo no
caráter extremo da oposição entre os termos “patrícios” e “plebeus”, que teriam apagado toda
hierarquia e toda diferenciação no interior de cada um dos dois campos.18
E. Grendi assinalou, em outra ocasião, que a categoria plebe em E. P. Thompson não
descrevia uma condição social, mas servia sobretudo para designar a configuração específica
das relações que caracterizavam a sociedade inglesa. A categoria plebe reintroduziria os
conflitos e as formas de competição social no quadro idílico e consensual do “longo período da
paz Whig”, celebrado pela historiografia inglesa (Grendi, 1981:XXVIII). E. Grendi citou a este
propósito uma passagem crucial de Costumes em comum:

Estes estudos, eu espero, revelarão que o conceito de cultura plebeia é mais concreto do
que prático. Esta cultura não se situa na atmosfera etérea “das significações, das atitudes e
dos valores”, mas ela se inscreve num equilíbrio particular das relações sociais; de um
ambiente de trabalho permeado de exploração, de resistência à exploração e por relações
de poder que eram ocultadas por rituais paternalistas e pela deferência.19

Em outras palavras, de acordo com E. Grendi, o termo “cultura plebeia” serviria apenas,
nas intenções de E. P. Thompson, para designar os termos de oposição e de interdependência
social. Segundo ele:

18
Ver, a esse respeito, o resumo do debate que ocorreu na Universidade de Warwick em fevereiro de 2009 em
Hailwood (2009). As intervenções de Phil Withington e Keith Wrighson, por exemplo, ressaltaram a que ponto
essa dicotomia era estranha à linguagem dos contemporâneos (retornaremos mais adiante a essa crítica feita a E.
P. Thompson.
19
Thompson, 2015:59-60 (ed. inglesa de 1991) apud Grendi (1994:236-237).

74
De certo modo, os governantes e a multidão precisavam uns dos outros; se observavam,
encenavam e contraencenavam sobre as vistas uns dos outros. Cada um dos protagonistas
moderava o comportamento político do outro. Tratava-se de uma relação mais ativa e mais
recíproca do que é evocada, habitualmente, pela fórmula “paternalismo e deferência”
[Thompson, 2015:113].

Na sua introdução à coletânea italiana, E. Grendi ressalta outro ponto essencial: “de fato,
no único exemplo de rigorosa análise contextual (tanto espacial quanto temporal) que
Thompson nos oferece”, na obra Senhores e caçadores, está claro que a história vista de baixo
não coincide com a história das classes populares – “o movimento dos blacks está longe de ser
plebeu; e a oposição proposta é mais aquela entre a configuração social tradicional e a
burocracia política: os Whigs versus os oficiais das florestas” (Grendi, 1981:XVIII).20
O tema do “who is below?” estava, portanto, muito presente no momento da publicação
da edição italiana dos ensaios, o que torna ainda mais surpreendente a escolha de associar a
“classe popular” à “economia moral”; escolha um pouco desrespeitosa com o título original,
referindo-se, provavelmente, às solicitações daquele “clima historiográfico” e em razão da
excepcional atenção crítica de E. Grendi. A associação entre below e as classes populares não
era, de fato, uma característica exclusiva da historiografia italiana. Se no caso da “economia
moral” a tradução francesa mais tardia (1988) permaneceu fiel ao original (“L’économie morale
de la foule”, título repetido na tradução francesa de Costumes em comum), isso não se deu para
proteger E. P. Thompson contra uma deformação de suas categorias analíticas. A identificação
direta entre a história vista de baixo e as classes populares realizou-se por meio de uma leitura
que não levou a sério a complexidade de suas análises, ignorando suas ambiguidades.21 Na
realidade, não se trata apenas de um problema de tradução: a mesma tendência é encontrada em
muitos estudos, tanto na Inglaterra quanto nos Estado Unidos, que se inspiraram nas pesquisas
de E. P. Thompson sobre do período moderno.
O “clima historiográfico do momento”, mas talvez acima de tudo o impacto dos escritos
de outros autores que foram diretamente inspirados pelos trabalhos de história moderna de
Thompson, em especial, os textos de James C. Scott (1977), cuja The moral economy of peasant
não pode ser vista como uma imitação da economia moral thompsoniana.22 Como o próprio E.

20
Ver, nesse sentido, Thompson (1975a). O leitor francês, infelizmente, pode ter contato apenas com uma seleção
de capítulos deste livro notável (Thompson (2014).
21
E mesmo nos anos 1970 e 1980, a crítica da utilização “realista” da categoria “popular” produziu reflexões
importantes. Ver, por exemplo: Revel (1986); Chartier (1986); Passeron (1989).
22
E, mais recentemente, Scott (2005). Sobre esse trabalho e como ele foi influenciado não somente por E. P.
Thompson, mas também por Karl Polanyi e Alexander Chayanov, ver Edelman (2005). Uma confrontação entre

75
P. Thompson destacou em seus Costumes em comum, “Scott [...] vai além na descrição dos
‘valores’ e das ‘atitudes morais’”;23 isto é, ele faz da economia moral uma expressão direta da
cultura de um grupo social (sublinhamos novamente que esse aspecto foi fortemente destacado
por E. Grendi).
Didier Fassin, em um artigo no qual faz um balanço da recepção da economia moral,
destaca a esse propósito, que na obra de J. Scott a economia moral torna-se “um mundo local
de valores” (Fassin, 2009:1249), cuja característica é refletir as relações de dependência. De
acordo com J. Scott (1985:184 apud Fassin, 2009:1249), “o contexto moral consiste em um
conjunto de expectativas e de preferências acerca das relações entre ricos e pobres”. Ricos e
pobres, povo e elites; a economia moral aparece aqui inscrita no interior dessas dicotomias.
Além disso, ela é chamada – intensamente – a fazer parte do patrimônio tradicional e atemporal
(“uma moral prévia”)24 das classes populares. Ao mesmo tempo, remove-se a genealogia
apresentada por E. P. Thompson que destaca a formalização escolástica da ética cristã do preço
justo, bem como oculta-se a jurisdição real sobre os pobres, tornando duvidosa a leitura
exclusiva da economia moral como uma resposta popular à penúria.
Para além da versão que James Scott deu ao conceito, a vasta adoção, essencialmente
metafórica, da fórmula da economia moral em um quadro de análises das resistências das
culturas locais face aos processos impostos de “modernização” contribuiu para acentuar nela
uma característica genericamente “popular”.25 Além disso – e isto constitui um elemento
decisivo – a associação de “below” a “povo” e, por conseguinte, à qualificação social da
multidão, testemunham uma atitude persistente entre os historiadores: a intenção de se referir
às fisionomias sociais bem definidas; atribuir culturas ou ideologias a indivíduos ou a grupos

E. P. Thompson e J. Scott foi proposta por Granovetter (1985). A economia moral conheceu um enorme sucesso
nos últimos 30 anos. Uma enquete (realizada com ajuda do Google adviser) computa algumas centenas de
ocorrências dess expressão nos títulos das publicações científicas. Ela revela também que a fórmula foi retomada
tanto em pesquisas sobre os contextos asiáticos quanto em contextos sul-americanos, sendo algumas delas citadas
por Fassin (2009). Sobre essa difusão, ver: Fassin e Eideliman (2012); Fassin e Lézé (2014); Fassin (2012).
23
Thompson (2015:418) citado também por Didier Fassin (2009:1249). De acordo com Andy Wood (2006), os
livros que adotam mais de perto a formalização do tema da agency seguindo a acepção de James Scott são:
Griffiths, Fox e Hindle (1996); Braddick e Walter (2001).
24
Idem.
25
Embora a utilização que foi feita desse conceito no contexto da definição e também da defesa dos bens comuns
tenha tomado uma direção diferente, acabou abrangendo um sentido muito mais amplo. Para tal, ver as reflexões
sobre a justiça social e o mercado propostas pelos seguintes autores: Booth (1994); Cadigan (1999); Arnold (2001);
Trawick (2001). Alguns balanços, muito úteis, sobre a utilização da economia moral de E. P. Thompson pelos
historiadores e pelos pesquisadores em ciências sociais podem ser encontrados em Randall (2000). Ver também,
ainda que mais recente, o artigo de Batzell (2015). Sobre a utilização conforme a crítica recente advinda dos
subalterns studies, ver Bahl (2005). Eu acredito que a utilização “enviesada” da fórmula de Daston (1995)
contribuiu enormemente para transformar a economia moral em um código de valores “corporativo”: o “sistema
equilibrado de forças emocionais, com pontos de equilíbrio e de contrastes” (p.4) é de fato, bem mais impreciso
que a economia moral de E. P. Thompson, mas tornou-se um reservatório de cultura de certos grupos sociais
específicos.

76
bem identificados na escala social; construir sistemas de classificação alicerçados sobre
qualidades individuais ou coletivas estáveis (o estatuto, o nível de riqueza, o ofício etc.) mais
do que sobre as “condições” e as práticas sociais aparentemente mais difíceis de serem
apreendidas. Voltaremos oportunamente a essa questão.

Spatial turn vs agency?

Falamos, até aqui, de mal-entendidos. Mas falamos também daqueles que são justificados, pelo
menos em parte, pela ambiguidade com que o próprio E. P. Thompson tratou o conceito de
“plebe” ou a expressão “cultura popular”. A cultura é “popular” enquanto expressão do povo
ou em razão de seu caráter subordinado e, finalmente, de sua derrota? Essa ambiguidade é
também alimentada pela sobreposição que ele opera entre a ação de protesto e a ação popular.
Convém nos atentarmos neste ponto.
O desafio dessa superposição diz respeito à relação entre experiência, cultura de grupo e
ação. A continuidade estabelecida entre esses elementos por E. P. Thompson, sobretudo em A
formação da classe operária inglesa, foi objeto de críticas severas por parte de historiadores
das mais diferentes orientações. Apesar da intenção declarada neste livro, de não tratar os
grupos como “coisas”, mas de os considerar acima de tudo como “processos”, a noção de
experiência foi criticada como redutora e com argumentos convincentes. E. P. Thompson tende
a associar cada um dos seus aspectos às relações de produção. As ações populares analisadas
são expressões diretas de estruturas objetivas de poder e de experiências partilhadas,
determinadas assim pela estrutura social. A ação é um produto dessa estrutura e pode ser
relacionada à mesma. O contexto que é levado em conta na análise de E. P. Thompson é um
contexto social, e a cultura que ele aborda é a cultura popular.26 Tal perspectiva é regida pela
convicção de que os comportamentos emanam da experiência de grupos específicos que são,
por sua vez, reflexos da estrutura social (de classe) e, ao mesmo tempo, o veículo de sua cultura.
É essa conexão que tem sido particularmente questionada. Sabemos que o elemento de
descontinuidade foi individualizado sobretudo ao nível da linguagem e de suas prerrogativas.
Foi demonstrado também que esta última não pode ser considerada como uma simples
expressão dos interesses de grupo já existentes, mas também como um elemento de construção
desses grupos e da configuração social.27 Sabemos ainda que essa consideração fundamental,

26
Kaye e McClellan (1990) e, em particular Sewell Jr. (1990); Johnson (1978). Ver também Cerutti (1996).
27
A literatura sobre a Linguistic Turn é excessiva. Para um primeiro balanço, ver Bonnel e Hunt (1999). Sobre a
noção de experiência, ver o artigo clássico de Joan W. Scott (1991). Ver também a crítica de Simona Cerutti
(1997).

77
tem frequentemente se perdido na dissolução do “social” em suas dimensões discursivas.
Frequentemente, mas não sempre, a partir de uma nova atenção direcionada à linguagem nas
últimas décadas, importantes reflexões foram desenvolvidas em direção às formas de
comunicação social e política. O paradigma da circulação de informações, combinado com uma
atenção específica aos espaços e aos lugares nos quais essa circulação se realiza, é apresentado
explicitamente como uma via para “problematizar nossa visão da política na época moderna”
(De Vivo, 2012:18) 28 e ultrapassar, assim, a oposição entre a política das elites e aquela das
classes populares. No caso da pesquisa de Filippo de Vivo, de onde é retirada essa citação, a
percepção das formas, bem como dos lugares dos agentes que ativaram a circulação de
informações, revela uma vida política veneziana caracterizada por uma extraordinária polifonia,
por uma agitação constante de vozes que construíram coletivamente os eventos políticos. Um
diálogo rigoroso com as fontes impediu o autor de cair nas armadilhas colocadas pelas duas
correntes clássicas em torno das quais o tema da informação foi mais frequentemente tratado:
a primeira, de inspiração foucaltiana, que a transformou em um instrumento essencialmente de
propaganda, ou, ao contrário, aquela (muito utilizada nas últimas décadas) inspirada nos
pressupostos de Jürgen Habermas sobre a esfera púbica e marcada por um igualitarismo
suspeito (De Vivo, 2012:29-33).29
Paralelamente, o terreno mais específico da história social de inspiração thompsoniana
foi influenciado também por essa nova corrente. O caráter relativamente unânime do percurso
que conduziu uma grande quantidade dos historiadores “das classes populares” (sobretudo, mas
não apenas, no contexto anglo-saxão) em direção ao estudo da comunicação, da informação e
de seus espaços, é impressionante nesse sentido. A intenção primordial que guiou essas
pesquisas teve como objetivo uma contextualização mais atenta dos momentos de interação e
conflitos. O prefácio de James Scott (2009) acerca do livro Political space in pre-industrial
Europe, coordenado por Beat Kümin (2009), constitui-se num caso exemplar desse percurso de
revisão da característica, por definição subversiva, das culturas populares.30 Nessa coletânea,
os espaços clássicos da vida coletiva e das resistências das classes populares presentes nos
textos dos anos 1960 e 1970, tais como as tavernas e as hospedarias, passaram a figurar como

28
Esse livro é uma profunda reelaboração do livro Information and communication in Venice: rethinking early
modern politics (De Vivo, 2007). No contexto anglo-saxão, essa abordagem abriu também a possibilidade de
superação da oposição entre a historiografia Whig e as correntes revisionistas que perpassaram pelas últimas
décadas, como Lake e Pincus (2007).
29
Para um testemunho do grande sucesso do paradigma habermesiano, ver: Lake e Pincus (2007); Rospocher
(2012); Boucheron e Offenstadt (2011).
30
O livro reúne também alguns dos trabalhos apresentados no primeiro workshop “Social Sites – Öffentliche
Raüme – Lieux d’échanges, 1300-1800” ocorrido em 2005.

78
lugares de controle social, de competição e de conflito no interior desses mesmos grupos
sociais.31 Tratava-se de um questionamento duro, que abalou algumas certezas, colocando em
discussão inclusive, segundo os próprios autores, a existência efetiva das “transcrições ocultas”
e “dessas afirmações e desses gestos hostis que são também centrais nas descobertas recentes
da já lendária agência popular” (Brown, 2009:80). A partir disso, tornou-se cada vez mais difícil
isolar os comportamentos e as culturas que poderíamos designar como “populares”, enquanto,
paralelamente, esses comportamentos e essas culturas estariam longe de se expressar por meio
de resistências e de revoltas diretas, face a face aos poderes constituídos
O encontro entre os estudos relativos à comunicação e o spatial turn suscitou então uma
discussão aprofundada sobre a existência de formas específicas de ações populares. De acordo
com alguns pesquisadores, ela questionou radicalmente vários topoi da história social dos anos
anteriores (entre outras, a transcrição oculta de James Scott) e, em particular, aqueles advindos
da pesquisa de E. P. Thompson, como o conceito de agência, considerado altamente ligado a
uma ideia de “contra-hegemonia” consciente e deliberada. Ao contrário, era preciso desviar a
atenção em direção às formas – e aos lugares – de encontro e de negociação:

Mais do que raciocinar em termos de agência, seria melhor pensarmos acerca das
cartografias das relações de poder: nos perguntarmos onde se encontram os lugares de
negociação; os teatros da representação do poder; os espaços de liminaridade.32 as redes de
comunicação que poderiam produzir formas de alfabetização, bem como os litígios
judiciários, ou ainda, as revoltas[Dayton, 2004].33

Cartografias de poder, espaços, redes de comunicação: o “manifesto” desse movimento


foi muitas vezes compreendido como como a substituição da luta de classes pela luta de espaços
(Lussault, 2009). A preocupação, constantemente invocada, de superar as oposições fáceis entre
classes populares e elites acabou dissolvendo o tema do alto e do baixo no paradigma da

31
Ver: Brown (2009:61-80); Clark (2009:81-94). Peter Clark assim escreveu: “Ressaltando a natureza evasiva que
a historiografia forneceu aos albergues, às tavernas e sobretudo aos cabarés e tantos outros lugares de desordem,
este artigo gostaria de mostrar a centralidade desses espaços no quadro das práticas sociais e materiais de vigilância
no interior da comunidade provinciana” p. 80. Ver Clark (1981). Ver também Kümin (2007).
32
A liminaridade é a segunda etapa constitutiva do ritual de acordo com a teoria de Arnold Van Gennep. Segundo
essa teoria, o ritual (especialmente o rito de passagem) provoca mudanças em seus participantes, em especial,
mudanças de status (N. do T.).
33
Encontramos um dos primeiros usos do termos agency por E. P. Thompson no texto “Agency and choice”
(Thompson, 1958). Uma reflexão crítica sobre o conceito de agency em Thompson já se encontra no texto
Anderson (1980). Para uma crítica a este conceito “saturado [...] com categorias do liberalismo do século XIX”,
ver Johnson (2003). Todo o número dessa revista é consagrado à discussão acerca desse conceito. Sobre o conceito,
de agency, numa perspectiva pós-modernista, ver Shaw (2001). Ver também Wood (2006). Uma bela análise da
relação que podemos estabelecer entre agency e análise êmicas na antropologia encontra-se em Keane (2003). Para
um balanço recente da agência thompsoniana à luz das análises espaciais, ver Featherstone e Griffin (2015).

79
comunicação. A questão de “quem está embaixo?” torna-se pouco pertinente. Uma vez
abandonado o mito das culturas alternativas e rebeldes; uma vez abandonada a transcrição
oculta produzida pela agência, o que sobraria da história vista de baixo? Desse modo, é preciso
perguntarmos se a history from below poderia fazer parte ainda das preocupações do historiador
ou seria nada mais que uma invocação nostálgica?

Experiências e fontes

Retornemos agora e interroguemo-nos sobre a pertinência dessa operação de crítica à “cultura


popular”. Se a formularmos nos termos já evocados, correremos o risco de errar o alvo. O
problema está, na verdade, menos em colocar em discussão cada ingrediente da “cultura
popular” como ela foi de fato – e, portanto, enfraquecer o caráter alternativo do “below” – e
mais em questionar, e de maneira radical, a legitimidade da identificação entre o “baixo” e as
classes populares, conjuntamente com a superposição, tão frequentemente operada, entre as
culturas de protesto e as classes populares. E essa associação não sobreviveria – como diria E.
P. Thompson – à imersão “na acidez dos dados” (Thompson, 1978:101 e segs.). Trata-se de
fato de retomarmos uma reflexão mais aprofundada sobre as relações entre experiência, ação e
cultura, sobre essa cadeia instituída por E. P. Thompson, a qual inúmeros pesquisadores
pensaram que deveria ser desfeita e repensada, e que a linguistic turn, bem como o paradigma
da circulação, mal atingiram a superfície da questão.
Na década de 1980, certo número de pesquisadores optou por confrontar diretamente os
trabalhos de E. P. Thompson analisando temas e fontes análogas às dele. Tal diálogo ocorreu
no campo da análise de fontes e se referiu à reconstituição da experiência dos atores, à
percepção das ações que estão transcritas nas fontes e, finalmente, ao reconhecimento da
linguagem dos atores sociais. Foi nesse terreno, me parece, que foram elaborados os materiais
que permitiram, em novos termos, a discussão de temas ligados à história vista de baixo, bem
como sobre a questão “who is below?”.
O exemplo que eu gostaria de ressaltar baseia-se na pesquisa realizada pela historiadora
italiana Renata Ago acerca de um tema bem próximo daquele da economia moral (Ago, 1985).34
Ela analisou o funcionamento do mercado de grãos em Roma no século XVIII a partir de uma
dupla interrogação. Em primeiro lugar, a política de aprovisionamento implementada pela
autoridade pontifical se conformava ao modelo da economia moral das classes populares? Em

34
Sobre a apresentação e a discussão dos resultados dessas pesquisas, ver Cerutti (1996).

80
segundo lugar, o liberalismo comercial promovido pelo Estado pontifical a partir do século XIX
pode ser considerado como a adoção de um modelo capitalista?
Com o intuito de responder a tais questões, Ago acompanhou os protagonistas dessas
trocas comerciais e reconstituiu tanto a fisionomia social como as atividades dos mercadores e
dos compradores, o que a permitiu relacionar os comportamentos desses indivíduos no mercado
com os interesses e as relações sociais que eles haviam tecido tanto nas províncias como nos
feudos. Em suma, ela relatou as experiências desses protagonistas em diferentes planos da vida
social. E os resultados dessa análise são interessantes. Renata Ago percebeu que a maior parte
da população podia se encontrar, em momentos diferentes, nos papéis de vendedor, de
comprador, bem como no de consumidor de seus próprios produtos. E eram esses papéis
contingentes que sugeriam a cada ator uma conduta em relação ao mercado. No momento em
que não havia papéis predeterminados, não era possível falar em termos de adesão a um sistema
ideológico determinado. O papel de comprador ou mesmo de vendedor suscitava a
reinvindicação de um controle sobre a definição do “preço justo” ou, ao contrário, a
reinvindicação de um direito ao lucro. Ela encontrou essa mesma troca de posições entre os
fazendeiros do feudo de Castro e os camponeses de Monteromano. No caso romano, desta feita,
a economia moral não era a expressão de uma cultura social advinda da experiência partilhada
por um grupo, mas era sobretudo uma forma de reinvindicação legítima, fundamentada de
acordo com a posição ocupada de maneira contingente pelo ator em relação ao mercado.
A diferença em relação à interpretação de E. P. Thompson, mas sobretudo em relação
àquela dos seus exegetas, é evidentemente enorme: no exemplo inglês, o discurso moral é
revelador da coesão e da consciência de um grupo. No caso romano, revela a existência de
práticas exercidas por diversos sujeitos ao longo de toda a sua vida ou, no limite, ao longo de
um dia. Renata Ago oferece, assim, uma perspectiva muito diferente sobre as relações entre as
estruturas e os comportamentos: as “leis do mercado” não existem para além da experiência do
mercado. Essas leis são determinadas pelas relações – instáveis e mutáveis – entre os
compradores e vendedores, não obstante os efeitos destas relações nem sempre sejam
planejados ou previstos (Bohstedt, 1992).35
Esse exemplo pontua, no próprio campo da economia moral, uma questão importante: a
necessidade de sermos cuidadosos em relação a toda e qualquer assimilação direta (não

35
Esse artigo evidenciou que a economia moral não seria uma “condenação ao capitalismo”, mas sobretudo uma
“correção” do comércio, convidando, dessa maneira, a “repensar a economia moral como um conjunto de táticas
pragmáticas mais do que como um corpo de crenças anticapitalistas” (Bohstedt, 1992:274). Reflexões precoces
sobre o tema encontram-se em Coats (19720 e também na resposta de Fox-Genovese (1973); Stevenson (1985).

81
verificável empiricamente) entre uma estrutura social, uma cultura e as ações. E tal questão é
especialmente verdadeira nas sociedades do período moderno, no qual um estatuto particular é
atribuído à ação. Não somente não podemos considerá-la como sendo uma emanação “natural”
de grupos definidos como devemos perceber que o movimento é na verdade inverso, já que é a
ação que pode conferir o status, bem como as qualidades individuais ou de grupo. Raciocinar
em termos de “práticas” ao invés de identidades ou culturas de grupos não significa, todavia,
substituir a análise dos grupos sociais por variáveis fluidas e imprecisas. Trata-se sobretudo de
reconhecer o estatuto particular atribuído à ação nessas sociedades do período moderno e sua
capacidade de transformar as condições sociais (e não somente de refleti-las). A repetição, ao
longo do tempo, de uma ação que ocorrera “sem qualquer contradição” seria capaz de atribuir
direitos e prerrogativas (Torre, 1995; Raggio, 1996; Cerutti, 2003; 2007). Mais que o título
formal de propriedade, era a situação de fato, a familiaridade com o objeto ou seu uso contínuo
ao longo do tempo que atribuía o status de proprietário. Mais que a atribuição formal de um
cargo ou um posto, era o fato de “agir como” que poderia modificar o status individual. Nesse
sentido, as ações não seriam expressões de estruturas preexistentes, mas sobretudo os canais
por meio dos quais se constroem os edifícios sociais, bem como seriam os momentos de sua
legitimação (Ogien, 1985; Cerutti, 2008).36

O uso estabelecido pela multiplicidade de status [...] sem estabelecermos os sujeitos e suas
vontades, se limita a registrar um equilíbrio de forças, natural ou já consolidado pelo tempo,
revestindo-o de legalidade. Os status pessoais não são um número limitado de condições
pessoais definidas a priori, mas são as inumeráveis situações socioeconômicas nas quais as
pessoas se encontram.37

Ação/agência

O conceito de ação que estamos discutindo aqui é bem diferente do conceito thompsoniano de
agência. Enquanto este último é a expressão das capacidades de um grupo definido, dotado de
consciência e de vontade que interpreta o mundo social e age sobre ele, o conceito de ação
refere-se às capacidades práticas desempenhadas por sujeitos múltiplos e diferentes que
estabelecem fisionomias e grupos sociais. É desnecessário dizer que essas duas dimensões não
são excludentes e que podem estar, na verdade, estreitamente ligadas. Nesse sentido, elas

36
Para uma reflexão recente sobre o caráter performático das práticas para um filósofo, ver Frega (2015).
37
A citação, perfeitamente adaptada a um contexto da época moderna é, todavia, de um historiador medievalista
(Conte, 1995; 2000).

82
remetem a dois níveis diferentes de leitura das fontes. Tanto uma quanto a outra são
completamente legítimas, mas devem, dessa maneira, permanecer desassociadas em um olhar
êmico e em um olhar ético. Apesar disso, uma crítica pertinente foi direcionada a E. P.
Thompson devido a sua falta de vigilância em relação à separação. O antropólogo Renato
Rosaldo abordou tal problema de maneira bem explícita. Segundo ele, Thompson não distinguia
sua própria interpretação daquela dos sujeitos atores que ele estudou. Ele tratava sua própria
narração como um dispositivo neutro e não como uma forma cultural escolhida entre uma gama
de formas possíveis. Ele acabou por se alimentar de um idioma cultural do passado – o
melodrama. Entretanto – e é legítimo colocarmos tal questão – trata-se do idioma de E. P.
Thompson ou daquele dos protagonistas de seu estudo? (Rosaldo, 1990). Em suma, R. Rosaldo
parece sugerir que a relação passado/presente, tão viva na obra de E. P. Thompson, o conduziu
a repelir a alteridade do passado (Grendi, 1994:244).
Essa crítica é dura, sobretudo porque foi dirigida a um historiador que refletiu de maneira
muito intensa a respeito da leitura e interpretação das fontes (lutando contra o jogo acadêmico
e os anacronismos produzidos por ele). A que ponto tal crítica é fundamentada é o que revela
uma pesquisa similar à de Thompson, que aborda o mesmo tema e se baseia em fontes análogas.
Trata-se das cartas anônimas, que protagonizam ao mesmo tempo o artigo “The crime of
anonymity” (um dos textos mais famosos de Thompson (1975b), e a pequena obra Lettere orbe,
de Edoardo Grendi (1989). Seria interessante, para nosso propósito, comparar os procedimentos
seguidos nessas duas pesquisas.
As cartas anônimas, que foram objeto da pesquisa de E. P. Thompson, foram analisadas
como “formas características de protesto social de toda sociedade nas quais as formas de defesa
coletivas são vulneráveis” (Thompson, 1975b:257). A extraordinária violência dos termos e dos
modos de comunicação é valorizada mediante a organização das cartas por tema, o que revela
a extensão dos domínios sobre os quais o protesto é exercido. Esta violência que acompanha a
legitimidade manifesta atribuída às cartas – publicadas no folhetim oficial London Gazette entre
os anos de 1750 e 1820 – o auxiliou no desmantelamento da imagem pacífica e consensual do
governo Whig. Somos aqui confrontados com uma manifestação flagrante do protesto social;
um testemunho “vindo de baixo” da maneira por meio da qual relações encharcadas de uma
ideologia paternalista puderam ser vividas no seio de uma sociedade extremamente
hierarquizada.
As cartas anônimas endereçadas, um século mais tarde, ao Estado genovês pelos
indivíduos das cidades e das zonas rurais, que gozavam, aliás, de semelhante legitimidade entre
eles (elas eram solicitadas pelo governo local), foram analisadas de uma maneira muito

83
diferente. Em primeiro lugar, elas foram organizadas mais de acordo com um critério territorial
do que sociológico, ou seja, a partir da proximidade ou da distância em relação ao governo
central. Foram, portanto as fontes que ditaram sua própria classificação. Em seguida, a pesquisa
realizada enfatizou dois polos que eram mantidos numa tensão constante: de um lado, a
preocupação em desvendar a complexidade da “expectativa em relação à autoridade” (Grendi,
1989:8) que variava sobretudo em função da localização das cartas; de outro, a individualização
dos interlocutores locais desses documentos. O historiador buscou, na verdade, reconstituir não
somente as relações dos sujeitos com o Estado, mas também os aspectos da vida local, o que
revela uma análise muito atenta dos escritos.
A partida foi ganha, me parece, nesses dois terrenos. A análise da expectativa em relação
ao Estado coloca em evidência a competência jurídica dos atores que recorrem a essas cartas
para intervir diretamente nos procedimentos em curso – um ponto assinalado também por E. P.
Thompson, mas que infelizmente não foi desenvolvido – ou para exprimir as visões particulares
da justiça (civil para os ricos e criminal para os pobres). Mas o que, acima de tudo, emerge das
cartas é uma crônica densa de uma vida local dominada por um conflito nobiliárquico endêmico
e pela corrupção dos oficiais locais. Essas são imagens muito particulares de comunidades no
seio de um Estado que emerge; profundamente diferente daquelas que surgem de outras fontes
mais familiares aos historiadores (súplicas, solicitações de graça, processos).
Estamos assim bem longe daquela oposição única entre os pobres e seus senhores que E.
P. Thompson evidencia nas cartas anônimas inglesas. Nos encontramos imersos, desta feita, em
um mundo social que conhece, evidentemente, os conflitos com as autoridades, mas que é, ao
mesmo tempo, muito estratificado e perpassado por uma pluralidade de outras tensões, de
outros interesses e de outros desafios. É possível que tais diferenças estejam ligadas à
diversidade de fontes, contextos e de períodos analisados. Todavia, fica muito evidente que o
confronto com a historiografia Whig e com sua imagem de uma sociedade dominada pelo
paternalismo, e a diferença que ela transmite, que ditou a Thompson sua rígida agenda: ao
incorporar a dicotomia entre o alto e o baixo; entre os pobres, o povo e os poderosos, o
historiador inglês adotou a linguagem de suas próprias fontes, sem opor qualquer resistência
crítica.
Mas qual resistência e qual crítica? A linguagem da pobreza, tal como ela aparece nas
fontes judiciárias e nas súplicas, impõe ao historiador um esforço de abstração em relação às

84
categorias contemporâneas.38 No interior da complexa história dos “pobres” ao longo dos
séculos, existe uma constante que é preciso levar em consideração: o amor e a proteção dirigida
a eles se manifestam diretamente como atos de administração política. Tal característica marca
a categoria: desde sua genial invenção realizadas pelos bispos ao longo do quarto século da era
cristã39 até a passagem da tutela dos pobres para as mãos dos soberanos, em particular os reis
da França, entre os séculos XIII e XIV (Brown, 1992; 2012); Aladjini, 2008). A capacidade
legitimadora da proteção para com os pobres entre os interlocutores privilegiados da
administração central transformou a reinvindicação da pobreza em um instrumento de pressão
tanto individual quanto coletiva. Dessa maneira, a categoria, tal como ela emerge dos
documentos, somente pode ser lida e interpretada à luz da jurisdição à qual ela estava submetida
e à luz dos direitos que eram atribuídos a ela. Os “pobres” das súplicas e das queixas não são
“o pobre”. Os pobres são todos aqueles que, a partir de uma condição de vulnerabilidade, que
pode ser econômica ou não, reivindicam um direito a proteção que, tradicionalmente, lhes é
atribuída pelo direito (Cerutti, 2012).40 Encontramos aqui as ideias de interdependência e
reciprocidade que caracterizam a economia moral, dissipando assim quaisquer equívocos
possíveis. Essa constante nos auxilia a desconfiarmos de toda associação do termo ao seu
significado atual. Isso pode parecer trivial; entretanto ainda hoje são muito numerosos os
pesquisadores que se utilizam das súplicas dos “pobres” para mensurar a privação econômica
de uma dada sociedade. Ainda que E. P. Thompson tenha mostrado muita prudência, a crítica
de R. Rosaldo é bem fundamentada: o historiador inglês, por vezes, confiou tanto nas aparências
quanto na linguagem dos atores, sem manter uma boa distância.
O que queremos dizer com esses argumentos é que a economia moral não é um patrimônio
específico do pobre, assim como as cartas anônimas não devem ser vistas como uma forma de
comunicação com a autoridade que seria própria da plebe. Nesse sentido, a history from below
é de fato a história da economia moral bem como aquela das cartas anônimas. Ela é a história
dos princípios econômicos, das concepções de justiça e redistribuição, das relações com as

38
Ao longo de toda a Idade Média e de uma boa parte da Idade Moderna, a palavra pobre remetia a uma noção de
ausência, insuficiência, carência etc., de acordo com a palavra latina da qual se originou: paulus (pouco de);
enquanto a ideia de privação econômica estava mais associada aos termos indigente e inapto. (Todeschini, 2007).
39
Os pobres são a glória dos bispos, de acordo com São Jerônimo, que deu ainda uma formulação a esse processo
particular de “criação” e de apropriação da categoria pelos bispos ao longo dos primeiros séculos do cristianismo.
A tutela dos pobres tornou-se um desafio político capital na competição que opunha as elites urbanas no curso do
quarto século, e esse processo foi enxertado na invenção do caráter popular do cristianismo. Ver, nesse sentido:
Brown (1992; 2012); Aladjini (2008).
40
. Para uma análise da linguagem da pobreza utilizada nas súplicas e nas fontes judiciárias, ver as pesquisas (nem
sempre atentas às precauções que acabamos de evocar) de Shephard (2008; 2015). Ver também Wood (2001). A
respeito da época medieval, ver: McDonough (2014); Vermeesch (2014). Para uma crítica da leitura economicista,
ver: Cerutti (2010); Vallerani (2015); Cerutti e Vallerani, (2015).

85
autoridades usufruídas numa legitimidade total em um momento histórico, mas retiradas em
outro contexto.
A history from below é assim a história do que poderia ter acontecido explicitada por E.
P. Thompson: é uma história “em outros termos” que se esforça em restituir as vozes que não
foram levadas em consideração e que perderam a batalha por sua legitimidade. A natureza
popular das culturas “alternativas” é frequentemente o produto de uma mudança indevida e o
resultado de um círculo vicioso. Percebe-se claramente que foi o fato de elas terem sido
derrotadas que transformou – na versão de seus antagonistas contemporâneos e, posteriormente,
na dos historiadores – determinadas culturas em “populares” e não o contrário. Mais do que
descrever o patrimônio de um grupo social, o adjetivo designa uma etapa no processo de
deslegitimação de sua cultura.
Isso foi o que eu pude verificar a respeito do campo da justiça na obra de E. P. Thompson,
um campo que foi, como bem sabemos, marcado por batalhas de legitimidade. Os historiadores
reconstituíram, muitas vezes, a competição entre uma justiça popular (informal, menos onerosa
etc.) e uma justiça mais formal. No entanto, minha própria experiência de pesquisa me sugere
uma perspectiva diferente. Trabalhando em diversos tribunais de Turim, a capital do Estado da
Savoia durante todo o século XVII, encontrei, na verdade, uma pluralidade de procedimentos
(Cerutti, 2003). Cada um entre eles era regido por uma “gramática” de direito específica; por
diferentes ideias do que seria uma prova ou do que seria um julgamento justo – em particular,
as características da justiça sumária que estava em vigor nesses tribunais e que funcionava,
numa primeira abordagem, como um exemplo particularmente significativo de justiça popular.
A presença de advogados e sua “argumentação” eram proibidas, ao passo que os debates eram
compostos unicamente pela confrontação entre as partes. Estas apresentavam o caso através de
descrições detalhadas de suas próprias ações – as condições por meio das quais haviam sido
realizadas as vendas, as dívidas, os empréstimos etc. – cuja legitimidade não era medida em
função da sua conformidade a uma norma, mas sobretudo em função de sua inclusão em um
contexto de consenso geral. Tratava-se de práticas que haviam decorrido “sem nenhuma
contradição”. O processo sumário legitimava esses procedimentos sociais na qualidade de
fontes do direito.
Práticas sociais versus normas jurídicas: isso poderia ser suficiente para fazer da justiça
sumária uma justiça “popular”, ainda mais que ela havia sido substituída, nos anos 1730, por
procedimentos mais formalizados. No entanto, se olharmos mais de perto, isto é, analisarmos a
gramática desse procedimento e individualizarmos seus simpatizantes e seus antagonistas,
surge uma imagem bem diferente. Esse procedimento correspondia a uma concepção particular

86
da justiça cujos princípios tomavam mais como referência o direito natural do que do direito
positivo. Eles eram tudo, menos informais; estavam enraizados em tradições jurídicas antigas
e legítimas. Tratava-se de uma forma de justiça supralocal que permitia aos mercadores e a
outras figuras sociais itinerantes (mas igualmente a figuras socialmente vulneráveis tais como
as viúvas e os mineiros) o acesso a um julgamento equitativo, fundamentado mais na
legitimidade das suas ações do que na adesão às leis. Tal justiça era, dessa feita, conhecida
pelos sujeitos que, em razão de uma fragilidade jurídica ou devido à mobilidade territorial,
compartilhavam uma “incompetência” aos olhos das normas locais. A justiça sumária reflete
um pluralismo jurídico que era específico daquela sociedade e sua derrota é o resultado de uma
duríssima competição entre diferentes atores sociais que não podem ser reduzidos a uma
simples oposição entre o povo e a elite. O direito natural não era uma linguagem do povo, mas
a expressão de todos aqueles que, pertencendo ou não ao povo, se opunham a uma ideia de
justiça formalizada e monopolizada somente pelos profissionais do direito; de todos aqueles
que reivindicavam a dignidade das práticas constituídas na forma do direito.
A derrota do procedimento sumário foi a derrota de um ideal de justiça mais “laico”, ainda
que certamente popular. O adjetivo “popular” que foi atribuído a essa justiça mais confirmava
seu fracasso do que o explicava. Este ponto, em especial, merece mais ênfase que a assimilação
abusiva entre “exclusão” e “povo”. A derrota ou exclusão da cultura popular do campo da
visibilidade são apresentados frequentemente como processos autoevidentes, como produtos
necessários para a afirmação do poder, enquanto nada pode ser dado como certo na competição
por legitimidade.
A history from below é o culminar deste trabalho de recuperação daquilo que poderia ter
acontecido: um trabalho de resgate de outros sistemas de significação que, tendo perdido sua
batalha por legitimidade, foram “esquecidos”. Trata-se, pois, de um trabalho sobre a memória
e sobre o poder, sobre tudo aquilo que nós esquecemos ou que nos fizeram esquecer. É sobre
esse aspecto que repousa sua dimensão profundamente política, muito mais, creio eu, do que
sobre sua atribuição a certas culturas e a grupos sociais específicos. A history from below é um
trabalho de reconstituição de configurações sociais frequentemente compostas (no interior
daquelas classes populares, podendo ter sido associadas a outros grupos sociais) que concebeu,
utilizou e modificou esses sistemas de significado.41

41
Hitchcock (2013), no artigo “Why history from below matters more than ever?”, fala também sobre o resgate,
mas de maneira diferente, ligado à percepção de alteridade: “para mim, a história vista de baixo é ainda um projeto
de resgate, não somente da ‘condescendência’ da pretensa superioridade do nosso olhar contemporâneo em relação
àquele dos nossos ancestrais, mas também da maneira por meio da qual escolhemos tratar as pessoas que não

87
O fato de desvincular a history from below do estudo da cultura popular poderia expandir
seu campo de ação. Sem poder aprofundar essa questão, eu gostaria de propor um exemplo
relativo a um campo aparentemente distante da história social e que, na verdade, me é pouco
familiar: a história do conceito de adiáfora. As adiáforas são as “coisas indiferentes,
insignificantes” que, de acordo com a filosofia estoica, se situam fora da lei moral ou, dito de
outra maneira, as ações que a lei moral nem permite nem proíbe. Retomada por Paulo na
primeira epístola aos coríntios (8-10), o conceito torna-se um instrumento de reflexão sobre a
possibilidade, para os cristãos, de praticar ritos pagãos. A questão está, então, em saber em qual
número e onde se situam as coisas insignificantes, a respeito das quais não seria necessário
solicitar o parecer das autoridades.42 No século XVI, a adiáfora conheceu um novo sucesso
ainda a respeito da questão dos ritos, advinda do impulso da reflexão das doutrinas reformadas.
O debate acerca das coisas indiferentes está muito presente nos escritos de João Calvino bem
como em outros textos dos principais pais reformadores.43 Na Inglaterra, a nova Igreja se
construiu, pelo menos em parte, a partir dos “vazios” estabelecidos pelas adiáforas.44
Paralelamente, o debate se laicizou e empenhou-se mais diretamente na questão da definição
das esferas de obediência devidas às autoridades civis.45 Além disso, o tema também chegou
no contexto familiar por meio de uma reflexão sobre as relações entre os pais e os filhos, bem
como entre os cônjuges.46
Foi nesse terreno laico que ocorreu meu encontro com as adiáforas, por meio de um
tratado de François Grimaudet, jurista francês de religião reformada, intitulado Des causes qui
excusent le dol, publicado em 1585 (Grimaudet, 1595).47 Trata-se de um escrito que busca
definir as modulações das responsabilidades jurídicas que devem ser levadas em consideração
em um julgamento equitativo. No caso dos mineiros, das mulheres casadas e dos servos, o
problema se coloca na definição dos terrenos sobre os quais a obediência é devida (e quando o

compreendemos. A história vista de baixo é aquela que se preocupa em restituir essas histórias que a memória
coletiva e a história nacional marginalizaram”.
42
Acerca desta questão, ver o livro muito controverso de Jaquette (1995; 1996), o primeiro com uma rica
bibliografia.
43
Para uma boa introdução sobre o tema, ver Stevenson Jr. (1999) Ver também: Street (1955). A respeito das
opiniões de Philippe Melanchton e Thomas Starkey, ver Zeeveld, (1948) e a resenha crítica de Mayer (1980).
44
Bradshaw (1605). Ver também: Verkamp (1977); Greaves (1982).
45
Os argumentos são apresentados por John Locke (1992) e Locke (2002:28 e segs), em resposta ao proposto por
Bagshaw (1660). Acerca desse debate, ver: Creppell (1996) e, sobretudo, Rose (2005), finalizado com uma rica
bibliografia.
46
Encontramos um bom exemplo em Ferrière (1766).
47
Agradeço a Françoise Briegel por ter me feito prestar atenção neste tratado, no contexto do nosso trabalho em
comum sobre a responsabilidade na justiça ao longo do período moderno.

88
dolo deve ser perdoado). Os delitos que se referem aos “direitos naturais” devem ser sempre
considerados abomináveis, mesmo na ausência de uma proibição por parte das autoridades:

ceux lesquels par cognoissance et instinct naturel l’homme juge estre malefices, et qu’il ne
les faut commettre, comme meurtre, parricides, empoisonnemen, et autres semblables
actes, lesquels sans aucune prohibition il ne faut commetre, et convient les fuir [Grimaudet,
1595:33-34].

Outros delitos devem ainda suscitar uma oposição, certamente “modesta”, advinda do
exemplo de um pai ou de um marido:

comme s’il commandoit mettre le feu en la ville, trahir le pays, ou faire aucun vilain cas.
Mais toutesfois le refus d’obéir, doit estre avec response modeste, et reverence à eux deüe
[Grimaudet, 1595:33].

E, finalmente, existem as adiáforas, as coisas indiferentes:

Et ne sont crimes fors par la prohibition de la loy: comme s’ascrire dans des biens d’un
testateur en son testament, de soy est acte indifferent, et est delict seulement pour la
prohibition de la loy [Grimaudet, 1595:33].

As adiáforas “não são os crimes criados pela proibição da lei”. Trata-se, em suma, de
espaços “francos” de autoridade; lugares neutros nos quais o problema da obediência não se
coloca e onde a ingerência dos superiores não tem razão de ser. De acordo com Grimaudet, as
leis civis são, então, “coisas indiferentes”, moralmente neutras pois proíbem “somente” pela
lei.
A posição de Grimaudet está longe se ser isolada. A discussão acerca da definição das
adiáforas permaneceu viva durante uma grande parte do período moderno e reapareceu
discretamente, mas de forma constante, em uma pluralidade de contextos.48 O que estava em
jogo era, evidentemente, mais significativo: tratava-se da definição de espaços subtraídos da
autoridade, de localizar os lugares nos quais nem a proibição nem o consentimento deveriam
ser levados em conta. O debate em torno das adiáforas precisa ainda ser restabelecido. Ele
constitui uma etapa no interior de uma reflexão acerca da autoridade, da obediência e de seus

48
Esta é uma posição partilhada, por exemplo, por Robert Barnes, no texto “Les lois humaines n’engagent pas la
conscience” citado por Verkamp (1977:42).

89
limites, bem como da resistência legítima às opiniões das autoridades. Esse debate registrou um
momento de aceleração nos meios reformados até se dispersar, em seguida, em pequenos cursos
d’água que mal podemos identificar nos dias de hoje. Com a história dos escrúpulos e da
melancolia,49 esse debate nos levou a uma história da obediência e dos seus limites, o que em
minha opinião, se configura – para todos os efeitos e apesar dos contextos intelectuais nos quais
ele se desenvolveu – numa possível history from below.

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98
5 Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim
(séculos XVII e XVIII).

Sandra Cavallo

O objetivo deste texto é analisar a aprendizagem e a transmissão do ofício de cirurgião-barbeiro


entre as últimas décadas do século XVII e as primeiras do século XVIII, momento em que essa
profissão atingiu o apogeu de seu sucesso. Nesse período, os cirurgiões-barbeiros se tornaram
fundamentais na supervisão dos hospitais barrocos, no controle da assistência sanitária dos
exércitos, na assistência domiciliar aos pobres, bem como na prestação de serviços cosméticos,
sanitários, de higiene, entre outros.1 À primeira vista, trata-se de um ofício predominantemente
masculino, mas o presente estudo revela também a implicação feminina – das mães, irmãs e
esposas dos cirurgiões-barbeiros – nesse trabalho e, de modo geral, nas atividades que a
sensibilidade da época ligava a essa figura profissional.
Os pesquisadores que analisaram a transmissão do ofício de uma geração a outra
obtiveram resultados pouco significativos. Tanto em Veneza como em Nova York, em Bruges,
em Viena, em Lion, em Paris ou em Dijon, a profissão do pai não foi automaticamente seguida
pelo filho.2 E a endogamia do ofício por intermédio da filha, essa outra forma de transmissão
de saberes, ferramentas e outros recursos inerentes a uma atividade profissional, não foi tão
difundida como imaginamos (Farr, 2000:245). Em seu estudo sobre Veneza, Dennis Romano
(1987:36) concluiu que “profession was not a crucial consideration when artisans went about
the task of selecting spouses”. Da mesma maneira, James Farr (2000:138; 149) observou uma
“astonishingly low rate” de endogamia entre os artesãos de Dijon no século XVII Foi difícil
para esses historiadores justificarem essa pequena tendência à sucessão hereditária e
endogâmica do ofício. Enquanto Romano (1987:78) afirma que “the advantages to be gained
from exogamous marriages are harder to see”, Farr (2000:138-149) sugere que esse tipo de
casamento era voluntariamente evitado, pois os artesãos preferiam ligações estabelecidas no
seio do mundo dos ofícios em seu conjunto, de maneira a ampliar suas redes e suas influências
para além de sua profissão de origem. Simona Cerutti (1990:18; 67; 170) segue a mesma
perspectiva. No entanto, essas explicações são muito gerais e negligenciam completamente o


Artigo originalmente publicado como: Métiers apparentés: barbiers-chirurgiens et artisans du corps à Turin
(XVIIe – XVIIIe siècle) (Cavallo, 2006a).
1
Abordei alguns dos aspectos dessa ascensão profissional em Cavallo (1995:75-76, 209-210; 2001).
2
Para uma síntese desses trabalhos, ver Farr, 2000 (248-249). Ver também Romano (1987:83).

99
problema da transmissão do ofício que devia ser praticado. Por quais caminhos se enveredava
então a transmissão de ofícios?
Minha pesquisa sobre os cirurgiões-barbeiros atuantes em Turim na segunda metade do
século XVII aborda o objeto de uma forma diferente, deslocando o olhar de um ofício preciso
para um domínio profissional mais vasto no qual este estava inscrito. Dessa maneira, nos
debruçamos sobre aqueles que eu defini como os “artesãos dos corpos”. Na verdade, é preciso
salientar que os estudos citados formularam seus questionamentos a partir do índice de
transmissão de um mesmo ofício e não levaram em consideração o fato de que transmissão por
via de filiação, de pai para os filhos, se dava também dos sogros para os genros, através da filha.
Sendo assim, se adotarmos esses mesmos critérios para as famílias dos cirurgiões-barbeiros
turinenses, teremos novamente os mesmos resultados. Por outro lado, se levarmos em
consideração os ofícios próximos ao do cirurgião-barbeiro, bem como a questão da parentela
em seu conjunto, a continuidade profissional aumenta consideravelmente. Esses dois aspectos
estão interligados: observamos que um cirurgião-barbeiro certamente possuía como aliados
outros cirurgiões e outros barbeiros, mas percebemos que havia laços de parentesco também
com fabricantes de perucas, camareiros, criados, tapeceiros, alfaiates, joalheiros etc. Dito de
outra forma, possuíam laços com pessoas que exerciam uma atividade ligada ao embelezamento
e à ornamentação das pessoas. Portanto, os filhos dos cirurgiões-barbeiros aprendiam uma
dessas profissões e as filhas se casavam frequentemente com esses “artesãos dos corpos”.
Ademais, os casamentos dos cirurgiões-barbeiros ocorriam regulamente com mulheres
provenientes desse meio profissional, revelando então uma afinidade entre determinados ofícios
que se refletia igualmente nos laços de sangue ou naqueles obtidos pelo casamento. Era no seio
da parentela, e não apenas na relação entre pais e filhos, que a profissão era transmitida.

100
Figura 1
A FAMÍLIA DE GIO FRANCESCO MEDA

Fonte: Elaborada pela autora.

Tomemos como exemplo o caso do cirurgião Giò Francesco Meda (figura 1). Ele
aprendeu a profissão com seu pai, o cirurgião Nicolao, assim como seu irmão mais novo,
Francesco Maria que, a propósito, herdaria a butique da família. Por outro lado, Carlo, o terceiro
filho, tornou-se joalheiro e casou-se com Gioanna Demignot, filha de um tapeceiro. Já o quarto
irmão Meda seguiu a carreira eclesiástica e tornou-se pároco de um vilarejo na região de Turim.
Giò Francesco também tinha duas irmãs, Virginia e Eleonora, que se casaram, respectivamente,
com um tapeceiro, Franco Marchetto, e com um joalheiro, Luigi Deroy. Em relação aos
ascendentes, encontramos Giulio Cesare, irmão de Nicolao (o pai dos irmãos e das irmãs Meda);
barbeiro e ajudante do camareiro (valet de chambre) do príncipe Maurizio. Os filhos de Giulio
eram Maurizio, cirurgião, e Teresa Margherita, desposada por Giò Pietro Bonzanino, soldado
dos arquebuzeiros montados da guarda de sua alteza real.
Salvo algumas exceções nesta família, a gama de profissões exercidas foi, portanto,
limitada. Em seguida, se observarmos a rede parental constituída pelas esposas e esposos dos
irmãos e das irmãs Meda, percebemos o mesmo esquema. Analisemos, por exemplo, os
membros da família do joalheiro Luigi Deroy, esposo de Eleonora Meda (figura 2). Seu irmão,
Giuseppe, era cirurgião e sua irmã Teresa casou-se com Henrico Vautier, também joalheiro.
Em relação a seus ascendentes, constatamos que os irmãos e irmãs Deroy eram filhos do
cirurgião Domenico Deroy, cuja esposa era filha do camareiro Eustachio Pastor. Este casou
suas outras duas filhas, respectivamente, com um barbeiro (Lorenzo Margheri) e com um oficial
de justiça (Bernardino Gambino).

101
Figura 2
A FAMÍLIA DE LUIGI DEROY

Fonte: Elaborada pela autora.

Lucia, a filha única de Domenico Deroy, esposa do tapeceiro Giacomo Verna, teve um
filho e duas filhas. As filhas se casaram com dois irmãos, os Fassina, um deles fabricante de
perucas e o outro, cirurgião. Os Fassina possuíam também uma irmã, Camila, e outro irmão.
Este último era encarregado de uma casa de banhos (baigneur)3 da corte e sua esposa, Anna
Franca Marchetta, era filha de um tapeceiro, enquanto Camila tornou-se esposa do peruqueiro
Bert. Por outro lado, o filho dos Verna, Giuseppe, era mercador. Poderíamos multiplicar esses
exemplos ao extremo já que no seio de toda parentela analisada nós encontramos sempre o
mesmo grupo de profissões.4 Se o “Stato dei negozianti e artisti”, redigido em 1742, menciona
cerca de 100 ofícios exercidos na cidade de Turim, e o recenseamento de 1705, mais detalhado,
apresenta 290, podemos perceber como eram restritas as escolhas das carreiras e dos
casamentos entre estes artesãos.5

3
Em francês, baigneur: proprietário de uma casa de banhos ou pessoa que trabalhava como funcionário de uma
estação termal, sendo habilitado a aplicar tratamentos simples aos clientes desses locais. O termo será traduzido
de acordo com o contexto em que aparece no texto (N.do T.).
4
A irmã do barbeiro Lorenzo Margheri, mencionada na figura 2, casou-se com o joalheiro Mareni. Desconhecemos
a profissão do pai de Mareni, mas sabemos, por outro lado, que sua mãe, Lucretia, tornou-se esposa do cirurgião
Ludovico Paysio. O filho de Margheri exerceu, por sua vez, a profissão de barbeiro e desposou a irmã do alfaiate
Gerolamo Troja. Ver também o caso da parentela Chiarmet, apresentada na seção 4.
5
“Stato dei negozianti e artisti della città di Torino e suoi borghi” (1742), foi editada por Giovanni Prato na obra
L’economia piemontese a mezzo del secolo XVIII. Turim: Società Tipografico-Editrice Nazionale, 1908, p. 323 e
aparece também nas obras de Francesco Rondolino, Vita torinese durante l’assedio, na obra Regia deputazione di
storia patria, em Le campagne di guerra in Piemonte (1703-8) e l’assedio di Torino (1706), v. VII, Turin 1909,
v. II, p. 47 e segs.

102
Figura 3
A FAMÍLIA DE LUCIA DEROY

Fonte: Elaborada pela autora.

Como podemos explicar, então, a persistência de laços entre ofícios que, aos nossos olhos,
não possuem elementos comuns? Por que a profissão de cirurgião estava associada à de barbeiro
e por que o cirurgião-barbeiro estava, por sua vez, associado aos peruqueiros, aos perfumistas,
aos alfaiates, aos joalheiros, aos tapeceiros etc.? Para responder a essas questões é preciso
compreender no que consistia esses ofícios e, assim, abandonar as noções anacrônicas
associadas a eles.

Cirurgiões, barbeiros, encarregados de casas de banhos e camareiros

A profissão de cirurgião frequentemente evoca imagens sangrentas; imagens de operações de


urgência praticadas em campos de batalha e que requerem força física, determinação e rapidez,
isto é, requerem qualidades geralmente consideradas masculinas. No entanto, o trabalho de
cirurgião, em sua prática cotidiana, consistia em tratamentos mais simples, tais como a
aplicação de compressas com substâncias medicamentosas sobre feridas, a incisão de um
pequeno tumor, a remoção de um dente, a eliminação de cálculos da vesícula e a contenção de
uma fratura ou de uma hérnia. É claro que, desprovidas de anestésicos, as amputações e as
operações de extração eram fatos excepcionais. Além disto, o cirurgião possuía as competências
de barbeiro.6 Mesmo que ele realizasse, sem sombra de dúvidas, tais tipos de tarefas no início
de sua carreira, trata-se antes de operações efetuadas regulamente em seu estabelecimento e que
eram confiadas frequentemente a “rapazes” que assistiam os mestres.

6
A superposição de competências é mascarada pelo fato de que, a partir da segunda metade do século XVII, o
termo “cirurgião” tendeu a se impor, como a pesquisa biográfica o revela, mesmo sobre aqueles que pouco tempo
atrás eram definidos como “barbeiros”. Ver Cavallo (2001:61-62).

103
O trabalho do barbeiro é mais complexo do que uma leitura anacrônica do ofício muitas
vezes pode sugerir. De fato, o barbeiro não fazia barbas exclusivamente, mas se ocupava
também da estética e da higiene do rosto, a saber, da parte do corpo que a moda do vestuário
do século XVII tendia a valorizar. Difundiu-se nesse período o uso de calções de um branco
brilhante, rodeado e ornado de rendas, assim como o uso da “gravata” imaculada em torno do
pescoço. Após um século durante o qual usava-se rigorosamente a barba, e os cabelos eram
muito curtos, a partir dos anos 1630-1640 consolida-se a moda de se barbear e de deixar os
cabelos crescerem. Isso requeria os serviços cotidianos de um barbeiro: as sobrancelhas deviam
ser pintadas e depiladas; os cabelos demandavam os maiores cuidados, visto que era preciso
frisá-los, prendê-los, colori-los, perfumá-los e retocá-los. Os homens, assim como as mulheres,
se maquiavam com o auxílio de cosméticos (Pisetzky (1964-69:331 e segs.). A moda das
perucas multiplica as incumbências do barbeiro, pois torna-se necessário penteá-las e retocá-
las com pós brancos ou dourados – de acordo com o período – e depois perfumá-las. No entanto,
o uso das perucas não abrangia todas as classes sociais, nem todas as idades: em seu início, essa
moda se restringia à corte, excluindo os jovens e a maioria das mulheres (Thiers, 1690).7 O
barbeiro torna-se assim um cabelereiro, cuidando dos cabelos ou das perucas, e também em um
expert em cosméticos, visto que ele “maquia” o rosto, escondendo suas imperfeições e valoriza,
graças a suas maquiagens, as partes do corpo que as roupas não cobrem (rosto, mãos, cabelos).
Ele é responsável também pela higiene dos corpos – ombro, dente, orelha – e gerencia os banhos
públicos ou as saunas, onde prepara os banhos de vapor, esfrega a pele e aplica compressas de
água destilada e perfumada. Nos círculos mais exclusivos, sobretudo na corte, suas habilidades
eram confiadas aos camareiros (valet de chambres) que, desde o fim do século XVII,
transformou os cirurgiões-barbeiros em um novo tipo de funcionário, chamado de “baigneur”,
especialista na higiene e na arte de melhorar a aparência.8
À primeira vista, o barbeiro parece exercer uma atividade que o aproxima mais de um
criado do que a um expert em medicina. Na realidade, acreditamos que naquela época, tudo que
se relacionava desde a higiene das orelhas, dos dentes, dos poros e do rosto, até o corte dos
cabelos e da barba, não era algo apenas necessário para a aparência da pessoa, mas algo que
possuía uma influência muito grande sobre sua saúde. Essa limpeza favorecia a eliminação de
“resíduos” que se acumulavam no interior dos corpos e que poderiam causar diferentes

7
Introduzida na corte francesa nos anos 1630, a peruca se espalha nesse ambiente até meados do século conforme:
Thiers (1690). Na Itália, sua difusão foi mais lenta, exceto em Turim onde, graças a uma forte influência da moda
francesa, a peruca entrou em cena na corte nos anos 1640. Cf. Pisetzky (1964-69:336-337).
8
Archivio di Stato di Torino (AST), sezioni riunite (s.r.), art. 217, Conti del Signor Tesoriere Mosso, reg. 148,
1687.

104
patologias.9 Os processos de putrefação suscetíveis de ocorrem no interior dos corpos
constituíam uma preocupação crescente para a medicina, o que explica a importância das
práticas de evacuação: o uso de purgantes, de substâncias que provocavam sudorese ou vômitos
e a aplicação obsessiva de sangria faziam parte das competências do cirurgião-barbeiro (Wear
(2000; Pomata, 1998). É preciso acrescentar que toda técnica de higiene corporal era
considerada como uma forma de eliminação de diferentes tipos de “excrementos”. Desse modo,
a abertura dos poros e a fricção da pele realizada nos banhos, a eliminação do tártaro dos dentes
no intuito de evitar sua “corrupção” e a retirada de cera, definida como um suor em
decomposição que bloqueava o fundo do ouvido, atuavam como terapias capazes de curar ou
de prevenir doenças.10 Mesmo o corte de cabelos era visto como uma operação necessária à
saúde, na medida em que a barba e os cabelos eram considerados como uma espécie de expulsão
dos humores ruins, consequentemente um tipo de “excremento” que, ao crescer, tornavam-se
cada vez mais incômodos e perigosos (Malfi, 1626:24). Na perspectiva por meio da qual a
saúde, o asseio e o aspecto exterior dos corpos estavam estreitamente ligados, as atividades do
cirurgião e do barbeiro apareciam então menos distantes.
Encontramos no ambiente da corte a confirmação dessa proximidade entre cuidados
estéticos e médicos. Os cirurgiões-barbeiros são contados frequentemente entre os serviçais dos
aposentos mais íntimos, e não somente na qualidade de “barbeiro”, de “baigneur” ou de
“cirurgião” de alguma pessoa, mas na qualidade de camareiro (valet de chambre), o que
significava que ele assistia o senhor em todas as funções mais íntimas.11 Juntamente com o
assistente de guarda-roupas (l’Aide de garde-robe – cargo que se sobrepõe frequentemente ao
de valet de chambre) o cirurgião-barbeiro era o único criado de nível baixo que atuava para
ajudar o senhor a vestir-se e a despir-se, e que ficava junto deste desde seu levantar até sua
última refeição no quarto e, finalmente, até seu repouso.12 Assim que o cavalheiro da câmara

9
De acordo com a concepção moderna do corpo, a ideia de porosidade da pele estava associada às práticas que
buscavam o fechamento do corpo em relação ao exterior a fim de impedir que os humores benignos escapassem
ou que o ar viciado e as doenças penetrassem através dos poros dilatados. Ver Vigarello (1985:17-20). Por outro
lado, as práticas que favoreciam a transpiração da pele com o objetivo de ajustar a expulsão de fluidos em excesso,
suscitaram menos interesse.
10
A respeito da higiene dos dentes ver, entre outros: D’Amato, 1669. Sobre a higiene das orelhas e ouvidos, ver
Malfi (1626:20; 52).
11
Nos anos 1630, encontramos nesse papel, entre outros, o barbeiro Marc’Antonio Giacomelli, camareiro do
príncipe Maurizio; o cirurgião Bernardino Bruco, camareiro do mesmo príncipe desde 1654 e, nos anos 1660,
inscritos como camareiros da princesa Ludovica, o cirurgião Antonio Cavagnetto, o barbeiro Pietro Antonio
Gorgia e o cirurgião Giò Francesco Meda, respectivamente de 1650 a 1671. E nos anos 1680, como camareiros do
duque, os barbeiros Henrico Prodomo e Pietro Coisi, respectivamente nos anos 1650 e 1670.
12
Os cavalheiros da câmara privada, quando não estavam em serviço, não podiam entrar no quarto do senhor a
não ser quando este estava começando a se vestir; e o restante da corte somente quando ele “começa a ser penteado”
(Duboin, 1818-1869:111 e segs; Duboin, 1860).

105
privada saía, no momento em que o senhor que recolhia, o camareiro permanecia nos aposentos
para assisti-lo quando sozinho ou também para assistir alguém que este porventura recebesse
privadamente. Ele dormia ao lado do quarto do senhor ou ainda no mesmo quarto. Se ao longo
da noite o senhor se despertasse, ele deveria assegurar que sua refeição estivesse preparada. Ao
seu lado havia sempre um aprendiz que devia, entre outras coisas, trazer e limpar o penico. O
camareiro era também responsável pela preparação da cama, pela limpeza e pelo conforto do
quarto e pelas tarefas práticas realizadas por seu aprendiz. Ele era responsável ainda por lidar
com a iluminação e com o aquecimento, de acordo com as horas e as estações. Em suma: era
responsável por tudo que se encontrava nos aposentos do senhor.13 Desse modo, se
considerarmos a importância do ambiente nas teorias relativas à saúde, estaremos na presença
de atribuições providas de conotações médicas.14 O camareiro se ocupava também de preparar
o senhor para suas aparições públicas: era ele quem recebia as novas roupas feitas pelo alfaiate
e que lhe confiava aquelas a serem consertadas ou confeccionadas.15 A higiene do senhor
também era confiada a ele, mesmo que as normas do século XVII, diferentemente das do
Renascimento, não mencionem essas competências a não ser em termos muito vagos. Esse
silêncio acerca da expressão relativa ao cuidado dos corpos ocorreu, muito provavelmente,
devido às mudanças em relação ao senso de pudor.16
Os serviços do camareiro revelam, assim, a proximidade entre o cuidado do bem-estar
dos corpos e o cuidado relativo ao seu aspecto exterior, o qual, nesse período, constitui a chave
para a compreensão da figura do cirurgião-barbeiro. É preciso acrescentar que os cirurgiões-
barbeiros, empregados na corte na qualidade de camareiros, exerciam, noutros locais, a
profissão “médica”: eles podiam ter uma butique na cidade ou se ocupar de funções
prestigiosas, tais como a de primeiro cirurgião de um hospital ou a de cirurgião municipal, bem
como poderiam ser os responsáveis pelo cuidado para com os pobres.17 A biografia profissional
de Giò Francesco Meda serve como exemplo dessa situação. Em 1680, ele foi chamado à corte
na qualidade de “cirurgião dos serviçais da princesa Ludovica”. Já em 1686, ele obteve o duplo
cargo de camareiro e de “cirurgião da princesa Ludovica”, funções que exerceu até 1692,

13
Duboim, 1860:24, cap. 21.
14
Eu abordo essas questões em Cavallo (2006b).
15
AST, sez. I, Cerimoniale, Cariche di Corte, m. 1, dossiê não numerado e sem data, mas que remete aos anos
1640-1650 (Regolamento da osservarsi dai Gentiluomini di Casa ed altri dipendenti di essa, fl. 12).
16
Ibid., fl. 8. A título de comparação, ver as instruções aplicadas na corte de Urbino, no fim do século XV, para
os “camareiros”. Estava previsto que eles deveriam se ocupar da higiene do corpo do senhor: em todas as manhãs,
deveriam lavar seus pés, pernas e braços utilizando uma pequena estufa apropriada. Após isso, cortar-lhe as unhas
e deixá-las expostas. Trocar sua roupa de cama e suas roupas íntimas e cobrir seu odor com perfumes (Eiche,
1999:98-102).
17
O ofício na corte não absorvia completamente suas atividades, visto que este era partilhado entre inúmeras
pessoas que exerciam o cargo em turnos de três meses cada um.

106
quando despediu-se da corte para tornar-se cirurgião do Exército. Desde 1680, paralelamente a
seu trabalho na corte, ele foi cirurgião no Hospital dos Pobres.18

Joalheiros, alfaiates e tapeceiros

Tanto na atividade de joalheiro quanto nas de alfaiate e de tapeceiro, o cuidado com a aparência
e a atenção ao ambiente se cruzam com as preocupações inerentes à saúde física e mental do
indivíduo. Nesse período, por exemplo, as pedras preciosas não serviam apenas para ornar os
corpos, mas também para proteger e para ajudar na recuperação do sujeito. Elas possuíam,
simultaneamente, o valor mágico dos amuletos – protegendo contra os maus-olhados ou contra
as epidemias – e o poder terapêutico contra doenças específicas.19 Além disso, elas
influenciavam o temperamento, o tratamento das emoções e reforçavam as feições da alma. Na
verdade, de acordo com os princípios da medicina clássica, corpo e alma estavam estreitamente
ligados.20 As pedras preciosas eram então consideradas como remédios ou medicamentos e
eram apresentadas como tal na farmacopeia e vendidas assim pelos boticários (Merlo, 1999).
Os tratados sobre suas virtudes descreviam os poderes de cada pedra: o jacinto, por exemplo,
“livra do perigo da peste, fortifica o coração, elimina a tristeza e suscita ânimo; torna os
membros mais vigorosos e proporciona bom sono”. Já o topázio

colocado sobre um ferimento estanca o sangue e, em segundo lugar, ele tem eficácia contra
as hemorroidas. Em terceiro, contra os ímpetos e em quarto, contra os acessos de cólera.
Em quinto, contra as paixões lunáticas e, em sexto, ele expulsa a melancolia [Arnobio,
1670:141].

É possível então que os joalheiros oferecessem as joias a seus clientes não apenas com
base em um critério estético, mas que também levassem em conta o equilíbrio emocional,
através da sugestão das características físicas de seus clientes ou de acordo com seu tipo
psicológico.21

18
Para os cargos na corte, ver AST, s.r., art. 405, 1655, 1689-90; art. 221, m. 4, 169.
19
No interior da cultura da contrarreforma, a joia não perde seu poder de proteção contra as doenças e contra os
infortúnios, mas passa a concorrer com as relíquias dos santos e com os objetos provenientes de lugares sagrados.
Dessa maneira, desenvolve-se o uso de ornamentos religiosos, em especial os relicários usados ao redor do
pescoço, ou os agnus dei, inseridos nas vestimentas e fabricados com os círios pascais das basílicas romanas
(Venturelli, 1996:128-140; Borello (2002).
20
Encontramos exemplos dessa ligação em Duden (1991:140-48).
21
Acerca do conceito de “compleição”, ver Siraisi (1990:101-104; 131).

107
Também um artesão do corpo, o joalheiro partilhava interesses e conhecimentos com o
cirurgião-barbeiro. Praticamente o mesmo pode ser dito em relação ao alfaiate. As cores dos
tecidos, como as das pedras preciosas, eram associadas às características da personalidade e
influenciavam a saúde física e mental daqueles que os vestiam.22 Além disso, cada
“compleição”, isto é, a combinação de humores específicos que caracterizam os sujeitos,
requeria cores apropriadas (Lomazzo, 1585).
Embora isso possa parecer estranho, o tapeceiro igualmente fazia parte desses ofícios
aparentados ao de cirurgião-barbeiro. Havia, na corte, tarefas que o aproximavam do camareiro
visto que, nesse ramo, ele não realizava apenas trabalhos de tapeçaria, mas também de
revestimentos para as paredes e para o mobiliário. Seu trabalho consistia então em escolher
esses revestimentos, encomendá-los e aplicá-los. Posteriormente, era ele quem cuidava e
limpava esses revestimentos, tal como o camareiro e o assistente de guarda-roupa cuidavam
dos lençóis e das vestimentas do senhor.23 A ele era também confiada a preparação do
“ambiente” dos aposentos do senhor e da dama, os quais, não podemos esquecer, eram
concebidos de forma cenográfica. De fato, do mesmo modo que o vestuário, a decoração
doméstica mudava sem cessar e se adaptava a circunstâncias e eventos diversos. O tapeceiro,
assim como o camareiro, devia interpretar os humores e as necessidades de seu mestre e
organizar um espaço apropriado: ele equilibrava as cores e os objetos representados na
tapeçaria, consciente de seu impacto emocional; ele escolhia a mobília dos aposentos com o
objetivo de proporcionar aos hóspedes o conforto desejado. Finalmente, ele se ocupava da
ventilação e do arejamento das peças, função considerada delicada, visto que, de acordo com
as teorias da época, o ar era uma ameaça permanente e o principal veículo de infecções.24 Desse
modo, tanto o tapeceiro quanto o camareiro intervinham no meio para criar condições físicas e
qualidade de vida aptas a preservar a saúde e o bem-estar de seu mestre.
O panorama acerca das características desses ofícios nos permite, sem dúvidas,
compreender melhor a razão pela qual os consideramos como participantes de uma cultura
comum das corporações. Na maior parte dos trabalhos acerca dos artesãos, existe uma tendência
de simplesmente estabelecer uma classificação de profissões sem se importar em estabelecer
verdadeiramente, para o período moderno, no que elas consistem. Isso impediu a percepção da
proximidade existente entre certos ofícios que, atualmente, encontram-se muito separados. Em

22
Acerca dos tratados sobre as cores datados do século XVI e que foram publicados ao longo do século seguinte,
ver Brusanti (1983:52-55). Um desses livros que conheceu inúmeras reedições foi Lomazzo (1585), sobretudo o
v. 2, cap. XI.
23
Regolamento ff. 10-11; “Memorie per il Regolamento”, cap. 26.
24
Ver, entre outros, Palmer (1993).

108
certos casos, podemos perceber a associação recorrente entre ofícios particulares: eles se
constituem, por exemplo, em corporações comuns, mas nos escapa sua lógica de agregação.25
Isso se aplica também no caso dos casamentos. Em seu estudo sobre os artesãos de Aix-en-
Provence, Claire Dolan percebeu que “people of certain trades or families intermarried tightly
among one another, while among other trades or families networks of marriage extended over
a wider area that nonetheless remains intelligible” (Dolan, 1989:181). Tais ligações
permanecem frequentemente inexplicadas, visto que pretendeu-se analisar sua lógica
exclusivamente em um plano prático e econômico, isto é, analisando a utilização das mesmas
técnicas e da mesma matéria-prima, ou ainda observando a participação em um mesmo ciclo
de produção (Dolan, 1989; Pelling, 1998; Grandi, 1999). Nenhuma dessas análises conseguiu
perceber a associação persistente entre os artesãos dos corpos que encontramos em Turim. Eu
gostaria de sugerir que nós podemos igualmente fundamentar essa proximidade entre os ofícios
sobre a base de um discurso e de uma cultura: existe, de fato, uma linguagem comum entre os
artesãos que prestam cuidados aos corpos de seus pacientes ou de seus mestres; uma linguagem
resultante de um saber, de valores e de objetivos partilhados. Sempre que cuidam dos cabelos,
da pele, de uma cicatriz e da silhueta por meio de medicamentos, de cosméticos, mas também
por meio dos lençóis, das roupas, das joias, todos os artesãos que cuidam do aposento, de seu
mobiliário e da sua tapeçaria visam, de uma só vez, tornar os corpos e o ambiente atrativos e
saudáveis. Consequentemente, eles se constituem em um domínio profissional culturalmente
homogêneo.

Aprendizagem e redes de parentesco

Os conceitos de “domínio profissional” e de “ofícios aparentados” são fundamentais para


abordar a questão da transmissão do ofício. Como eram aprendidos os primeiros rudimentos do
ofício? No meu trabalho acerca dos cirurgiões-barbeiros que exerceram sua profissão em Turim
ao longo da segunda metade do século XVII, encontrei apenas pouquíssimos documentos sobre
a aprendizagem, como se os aprendizes praticamente não existissem. Se observarmos, por
exemplo, o recenseamento de 1705, somente quatro aprendizes faziam parte do núcleo
doméstico de um cirurgião, enquanto são mencionados 24 “rapazes”.26 Isso poderia
simplesmente significar que, diferentemente da atividade de um jovem cirurgião, a
aprendizagem não envolvia a obrigação de se estabelecerem na residência do mestre. É

25
Entre esses trabalhos, Pelling (1998:222-223).
26
AST, s.r., art. 530, m. 2.

109
necessário acrescentar que, nos documentos notariais que eu descobri, não existem contratos de
aprendizagem relativos aos cirurgiões-barbeiros. É bem provável que que os termos “aprendiz”
e “rapaz” estivessem, em certa medida, interligados, e que, dentro do estabelecimento, havia a
preferência de utilizar o segundo termo para indicar toda uma gama de papéis subordinados. A
idade dos membros dos dois grupos sugere também que a distinção entre eles não era tão nítida.
Dois dos quatro “aprendizes” recenseados eram, na verdade, jovens adultos, (17 e 20 anos) e
pertenciam, ao mesmo tempo, ao grupo etário que abrangia o termo “rapaz”, que incluía 11
indivíduos com menos de 20 anos. O termo “rapaz” compreende, de fato, indivíduos com idades
entre 17 e 33 anos. Não obstante, resta explicar por que somente dois entre 28 “rapazes” e
“aprendizes” que trabalhavam na butique de cirurgião-barbeiro, tinham menos de 17 anos. Em
outras palavras, por que os jovens adolescentes que possuíam entre 13 e 15 anos, vivendo na
residência dos mestres, estão ausentes dos documentos? Como, então, eles aprendiam os
rudimentos do ofício? Parece pouco provável que sua formação começasse apenas por volta
dos 17 anos.7
Em minha opinião, muitos desses adolescentes não deixavam suas famílias para se
instalarem na casa de um mestre, mas recebiam as noções básicas no seio do círculo familiar.
A aprendizagem não compreendia a redação de um contrato de fato, mas se desenvolvia de uma
maneira muito informal. Devemos entender o “círculo familiar” no seu sentido amplo, tanto
como parentesco biológico como as alianças que, no meio urbano, correspondiam
frequentemente às relações de vizinhança. Numerosos indícios sugerem que a iniciação ao
trabalho era confiada, com frequência, aos membros da parentela. Existe, por exemplo, um
documento que registra um acordo entre o cirurgião Giuseppe Reyneri e seu pai, também
cirurgião, para a divisão dos encargos e dos honorários. O acordo estipula que Giuseppe,
cirurgião de sucesso que viveu sozinho durante alguns anos e que já possuía sua própria família
há quatro anos, “deverá ensinar [a arte] a seu irmão” menor, Giacomo, que vive e trabalha com
seu pai.27 Essa cláusula descreve claramente o que era esperado dos membros de uma mesma
família ou de uma parentela: os conhecimentos e os êxitos profissionais deveriam ser
partilhados entre irmãos e irmãs, assim como, em teoria, deveriam ser os ganhos, ao menos até
a morte do pai. Na verdade, encontramos frequentemente esse modelo de transmissão de ofício,
sobretudo entre os cirurgiões que se afirmaram precocemente. Desse modo, eles se tornavam
responsáveis pela formação e pela inserção, no mundo do trabalho, de pelo menos um de seus
irmãos mais novos, o qual mantinha a mesma atividade (ou alguma próxima) do irmão mais

27
AST, s.r. Insinuazione di Torino, 1755, l. 6, v. I, fl. 525.

110
velho. Esse é o caso dos três irmãos Stura, originários de Buttigliera d’Asti: Henrico se
estabeleceu como cirurgião em Turim e iniciou seu irmão mais jovem, Matteo, na profissão.
Em seguida, ele ensinou o ofício de barbeiro a outro irmão, Giuseppe, dando-lhe abrigo por um
período superior a seis anos e arcando com os custos de uma jornada de aperfeiçoamento deste
em Paris. Após a morte de seus pais, Henrico acolheu em sua casa sua irmã, Caterina, que se
familiarizou, desse modo, com a profissão de seu irmão e, talvez por conta dessa experiência,
veio a se casar com o cirurgião e vizinho, Angelo Benedicti.28
A família tinha um papel central na transmissão do ofício, que seguia, com frequência,
um esquema que ia do irmão mais velho ao irmão mais novo; do tio ao sobrinho e do primo
mais velho ao primo mais novo. É sobretudo nas famílias mais numerosas que observamos a
prática de confiar seus próprios filhos adolescentes aos parentes próximos que eram bem-
sucedidos profissionalmente. Um caso exemplar é representado por Alberto Verna e seus
sobrinhos (Cavallo, 2001:81-83). Alberto foi o único membro da família a emigrar para Turim
onde, em pouco tempo, se tornou um cirurgião de valor e foi recrutado pelo Hospital S.
Giovanni na qualidade de primeiro cirurgião. Foi então que ele acolheu em sua casa três
sobrinhos, filhos de suas irmãs que permaneceram em seu povoado. Ele treinou dois deles em
sua própria profissão, enquanto o terceiro foi direcionado para a medicina. Mesmo vivendo e
trabalhando com seu tio, os jovens Verna não foram descritos no recenseamento de 1705 nem
como “aprendizes” nem como “garotos”, mas simplesmente como “sobrinhos”. Em outras
palavras, não havia contratos oficiais entre Alberto e os pais dos rapazes.29 Os únicos indícios
de acordo escrito que consegui encontrar dizem respeito a casos delicados de jovens órfãos de
pais: escrituras privadas que não foram redigidas por um notário. Em 1697, por exemplo,
Ludovico Deroy, de 15 anos, filho do segundo casamento do já falecido cirurgião Domenico,
começa seu aprendizado junto a seu cunhado (marido de sua meia-irmã), o joalheiro Henrico
Vautier.30 O acordo registrado entre o cunhado de Ludovico e o tutor do jovem órfão previa um
aprendizado de quatro anos. Não temos condições de dizer se Ludovico deveria se instalar na
casa de seu cunhado, mas é provável que isso não tenha sido necessário já que os Deroy e os
Vautier vivam bem próximos uns dos outros.
Acredito que essa responsabilidade de iniciação profissional dos jovens, distribuída e
estendida aos membros da família e da parentela, tendia a “ocultar” a os processos de

28
Ibid., 1683 l. 3, fl. 531-35. Giuseppe tornou-se barbeiro do príncipe do Piemonte, enquanto os outros dois irmãos
e as três irmãs Stura se estabeleceram em seu povoado de origem.
29
AST, s.r., art. 530, m. 2.
30
Foi de forma acidental que tomamos conhecimento da existência de uma escritura privada em um documento
notarial, em que um órfão designa um tutor que negocia, em seu lugar, os termos da aprendizagem.

111
aprendizagem. Evidentemente que na infância e na adolescência o aprendizado se dava “em
casa”. Mas em famílias numerosas, a formação e, mais tarde, a transmissão do ofício
aconteciam no seio da parentela biológica ou por meio de alianças e não unicamente no núcleo
familiar restrito. É por conta desses fatores que é tão difícil mensurar a transmissão familiar de
saberes através da simples comparação entre o ofício do pai e aquele do filho, como tem sido
feito com frequência. Evidentemente que essa forma de reprodução de ofício existe, mas é
evidente que em uma família em que os filhos são numerosos, nem todos podem herdar a
butique do pai e seus recursos limitados. Consequentemente, operava-se uma diferenciação em
relação às escolhas, mas era raro que houvesse a iniciação em um ofício que não se inscrevesse,
em sentido amplo, em algum domínio profissional familiar. O mais frequente era a iniciação
em alguma profissão já exercida por alguns membros da parentela – por um irmão mais velho,
um tio, um primo ou um cunhado – e que houvesse afinidades “culturais” com aqueles que a
praticassem na família de origem. Na verdade, somente um número limitado de profissões,
como vimos, caracterizava a rede da parentela. As conexões existentes entre os “ofícios dos
corpos” asseguravam que as técnicas e os saberes aprendidos em casa, observando a família
trabalhar, fossem aplicados, em seguida, aos ofícios aparentados.

Aprendizagem e trabalho feminino

A variedade de saberes aprendidos na casa paterna e utilizados numa gama considerável de


práticas profissionais aparentadas é particularmente evidente no caso das filhas que, mais
raramente que seus irmãos, deixavam ainda jovens sua casa para aprender um ofício.
Diferentemente de muitos rapazes – que após uma primeira aprendizagem informal no âmbito
familiar ou parental saíam de suas casas e, na qualidade de “rapazes”, adentravam a casa de um
ou mais mestres e que se corresse tudo bem no final, abriam suas próprias butiques –, as jovens
garotas permaneciam trabalhando com seus pais ou com seus irmãos. Posteriormente, elas
frequentemente se casavam com um mestre cuja atividade era próxima daquela que haviam
exercido ao longo da adolescência na butique da família. Em vários casos, observamos que as
esposas participavam da gestão do atelier de seu marido e que, ao se tornarem viúvas, possuíam
condições de prosseguir com a atividade.31 As esposas provinham frequentemente de um
ambiente no qual exerciam a mesma arte que seus maridos ou, ao menos, exerciam ofícios

31
A literatura histórica sobre o trabalho feminino na época moderna é muito vasta. Para uma síntese, ver Wiesner
(1993). Sobre o caso italiano, ver a coletânea dirigida por Groppi (1996) e as referências bibliográficas contidas
nela. Sobre as mulheres em profissões médicas, ver o trabalho muito importante de Pelling (1998, cap. 7-8) e
também Pelling (2003, cap. 6).

112
próximos. Dessa forma, as jovens garotas chegavam ao casamento já iniciadas na mesma
cultura profissional. O meio dos artesãos dos corpos revela claramente, como já observamos,
que era no seio dessa ampla categoria que era contratada a maioria dos casamentos das filhas
dos cirurgiões. Podemos afirmar, de forma mais ampla, que a endogamia entre alfaiates,
peruqueiros, joalheiros, tapeceiros e cirurgiões-barbeiros era mais elevada.
A aprendizagem e a contribuição feminina na atividade familiar começavam muito cedo.
Os documentos relativos à família de um peruqueiro, morto prematuramente, fornecem um
exemplo eloquente. Em 1701, assim que faleceu, Lorenzo deixou sua esposa, Anna Caterina,
grávida, e mais três crianças: dois filhos, respectivamente de 8 e 1 ano, e uma filha, Anna, de
11 anos. Foi o irmão de Lorenzo, Claudio, que se tornou tutor das crianças. Em nome de seus
pupilos, ele celebrou uma sociedade com a jovem viúva e com Francesco Marentier, que
trabalhava “na butique há muito tempo”. Tendo em conta suas idades, as crianças eram inaptas
para gerenciar a butique de perucaria herdada do pai. Assim, seu tio tutor entrou em acordo
com a mãe deles e com Francesco, para que, na qualidade de experts, prosseguissem com a
atividade e suprissem as necessidades das crianças. A sociedade foi constituída por um período
de cinco anos e em seu ato constitutivo, calculamos a força de trabalho com a qual a butique
podia contar: havia não apenas a contribuição da viúva e de Francesco, mas também da pequena
Anna. Na verdade, o acordo previa que se fosse decidido empregar a jovem garota em outro
lugar, visando a uma situação melhor, seria necessário substituir Anna por outra garota “do
mesmo tamanho”, que não poderia reivindicar nada mais que comida.32 Os filhos foram
considerados, por outro lado, muito jovens para trabalhar, e em seus lugares seria necessário
pagar e alimentar um rapaz, expert na profissão, pelo menos até que o mais velho, Gio Matteo,
entrasse na butique.
Esse documento revela então a precocidade da inserção das filhas na unidade de produção
familiar e contém também uma estimativa da contribuição que elas poderiam fornecer. Anna
não se casou e entrou para o convento, talvez após ter trabalhado por vários anos na empresa
familiar.33 É provável que se ela se casasse, tomasse por marido um peruqueiro ou um artesão
do corpo e tivesse transmitido as noções adquiridas em sua casa para a atividade de seu marido.
Esse foi de fato o caminho tomado pela sua peque irmã Vittoria, que educada na casa de seu tio
Claudio, alfaiate, desposou o cirurgião Reyneri. A propósito, sua mãe, a viúva Chiarmet, seguiu

32
AST, s.r., Insinuazione di Torino, 1701, l. 2, fl. 575. Tutela e cura dei figli Chiarmetta; 1701, l. 3, fl. 217 e segs.
Società. tra il signor Claudio Chiarmet... e la signora Anna Catterina Vedova...
33
Ibid., 1718, l. 3, fl. 894. Não sabemos quanto tempo essa sociedade durou, mas é certo que ela ainda estava ativa
quatro anos após sua constituição (AST, s. r., art. 530, m. 2, vol. 3).

113
esse mesmo percurso: filha e irmã de alfaiates, esposa de um peruqueiro, ela sem dúvida levou
à atividade de seu marido o saber profissional que adquiriu em sua família de origem. Isso
poderia explicar o fato de que, com apenas 26 anos, depois de 10 anos de casamento, a jovem
viúva fosse considerada como “instruída e expert” na atividade de cabelereira. E o ato
constitutivo da sociedade da qual ela fez parte é um reconhecimento de suas capacidades, que
são também confirmadas por outra cláusula do contrato, de acordo com o qual se a viúva se
casasse novamente com um peruqueiro, ela causaria um grande prejuízo para a sociedade,
devendo então ser excluída.34 Está claro que o casamento significaria a transferência de trabalho
e conhecimentos para uma butique rival, o que era percebido como uma ameaça.
Ainda que não se efetuasse por meio de um sistema formalizado de contratos de
aprendizagem – raros também para os filhos – no seio da família ou da parentela, a transmissão
de competências especificas ocorria igualmente para as filhas e em profissões nas quais as
mulheres apareciam muito pouco representadas, como a de peruqueiro. O recenseamento da
população turinense de 1705 não menciona mais que quatro mulheres “peruqueiras”, todas elas
viúvas (entre elas encontramos a viúva Chiarmet). Nenhuma das mulheres recenseadas como
esposas, irmãs, filhas ou mães de 63 mestres peruqueiros foram indicadas como alguém que
exercesse uma profissão e, no entanto, sabemos que a jovem Anna exercia uma profissão na
butique familiar desde muito cedo, fato este que não devia ser excepcional.35 Falarei mais tarde
de fontes que refletiam um juízo prévio: no recenseamento, o trabalho feminino (como atividade
de filhos menores vivendo na casa de seus pais) praticamente nunca era registrado, visto que as
mulheres viviam com seus pais ou maridos. Por outro lado, sua atividade era frequentemente
transcrita se elas vivessem e trabalhassem no estabelecimento de um mestre, ou ainda, mas nem
sempre, se fossem viúvas que chefiassem suas famílias. E, por vezes, as viúvas que exerciam
uma profissão não eram especificadas pelo seu ofício, mas simplesmente por seu estado civil.
Caso queiramos estabelecer um quadro geral do trabalho feminino, deveremos levar em
conta o fenômeno da sub-representação da contribuição das mulheres nas atividades da família.
A forte presença feminina, por exemplo, na produção têxtil que observamos tanto em Turim
como em outros lugares, por muitas vezes foi considerada um indício do processo de
“feminização” que esses ofícios conheceram ao longo da época moderna e também como
indício de uma separação crescente entre ofícios femininos e ofícios masculinos.36 Podemos
concluir que essa percepção de um mundo artesão cada vez mais masculino e de uma

34
Ibid., 1701, l. 3, fl. 217 e segs.
35
AST, s.r., art. 530, m. 2.
36
Sobre essa tendência, ver o texto de Simona Laudani (1996).

114
especialização de competências de acordo com os “gêneros” ampliou-se em razão da própria
estrutura das fontes, sensíveis ao trabalho feminino assalariado, que tendia a concentrar-se no
trabalho têxtil, mas muito indiferentes em relação ao trabalho feminino no seio das empresas
familiares.
Para se ter ideia do caráter deformado dessa visão, é necessária a comparação do nosso
recenseamento com uma fonte que, por sua natureza, é relativamente pouco influenciada pelas
questões de gênero: trata-se da lista de cidadãos franceses presentes em Turim no momento da
guerra contra a França. Escrita com a intenção de identificar com precisão a população
estrangeira e suas atividades, essa fonte fornece um quadro mais fiel do trabalho feminino: 94
das 104 francesas que residiam em Turim em 1690 exerciam uma profissão, inclusive algumas
daquelas que possuíam conotação masculina. Assim, encontramos uma “sapateira”, duas
“padeiras”, “uma confeiteira”, “duas tapeceiras”, “uma joalheira”, “duas donas de armarinhos”
e duas “mercadoras de tecidos”.37 As peruqueiras contabilizavam cinco, e o que é mais
importante, quatro delas eram casadas e tinham filhos, enquanto apenas uma delas era solteira.
Essa fonte mais “neutra” revela, de fato, a importância do papel econômico das mulheres
casadas, habitualmente muito apagado, no seio da empresa familiar: 43 das 96 recenseadas
como tendo um trabalho eram mulheres casadas, mães com frequência, enquanto as outras são
indicadas como viúvas ou solteiras.
Em uma síntese recente, Geoffrey Crossick afirma que apesar de as fontes possuírem a
tendência de subestimar a participação das mulheres na produção artesanal, “it would be wrong
to see the masculine nature of artisanship as a function of representation alone”. Os resultados
obtidos pela comparação das fontes que propus incitam antes sublinhar a sub-representação do
trabalho das mulheres casadas e rever a hipótese de acordo com a qual, na época moderna “the
role of women in craft enterprise remained restricted and came to be increasingly so”
(Crossick, 1997:13).
Não obstante, a análise sobre o trabalho que as mulheres forneciam ao “serviço da
butique” não deve limitar-se à contribuição das esposas e das filhas de artesãos, mas também
deve levar em conta o papel fundamental desempenhado pelas mães e irmãs dos jovens mestres.
É sobretudo por ocasião de uma sucessão prematura, quando filhos já adultos, mas ainda jovens,
devem tomar as rédeas da butique em razão da morte de seu pai, que essas figuras femininas se
tornam muito importantes. Desse modo, o desaparecimento repentino do chefe de família e,
assim, do negócio, é frequentemente seguido pela criação de uma sociedade entre mãe e filhos

37
AST, I sez., Provincia di Torino, m. 4, fasc. 20.

115
ou entre irmão e irmãs, que tem longa duração e que impede ou retarda o casamento do jovem
mestre. De fato, se analisarmos a composição do núcleo familiar dos mestres solteiros,
observaremos que quase sempre eles moram com uma mãe bastante jovem e, às vezes, com
uma ou várias irmãs.38
Formulamos então a hipótese de que a contribuição feminina em uma butique de um
artesão dos corpos perdurava ao longo de toda a vida da mulher, fosse ela mãe, esposa, filha ou
irmã. Mas, para além da gestão, que provas temos acerca do envolvimento feminino na
atividade prática de cirurgião-barbeiro?

As mulheres nos ofícios dos corpos

Tanto na iconografia como em numerosas fontes escritas, a representação da prática cirúrgica


tende a apresentar o ofício de cirurgião-barbeiro como exclusivamente masculino. Mas estamos
certos de que as mulheres não exerciam essa profissão ou de que elas não praticavam certas
ações próprias ao ofício? A esse respeito, os indícios não são escassos: é possível, por exemplo,
que as atribuições de um barbeiro fossem igualmente executadas por mulheres, especialmente
por viúvas. Caso contrário, como explicar que no inventário de Ortensia Alberica, viúva do
cirurgião Giuseppe há muitos anos, é mencionado “quatro navalhas, dois ferros de encaracolar
os cabelos, duas bacias e uma placa de barbear além de um espelho de banheiro e uma cadeira
de barbeiro”.39 Se esses objetos não eram utilizados, por que não foram vendidos? Além do
mais, o registro profissional dos cirurgiões e barbeiros de 1695 aponta, entre aqueles que
exerciam sem licença, as viúvas Dalbagnia e Ferraris. Após a morte de seus maridos, cirurgiões
dotados de patente, respectivamente oito meses e quatro anos antes, ambas mantiveram as
butiques e prosseguiram com a atividade, acrescentando, cada uma delas, um jovem ajudante:
um deles não tinha mais que 16 anos e, quanto ao outro, não conhecemos sua idade.40 Por outro
lado, no recenseamento da população de 1705 não aparecem mulheres “barbeiras” ou
“cirurgiãs” – o que não nos causa surpresa – e entre as mulheres recenseadas como tendo algum
trabalho não aparece quase nenhuma que exercesse profissões de cunho médico de qualquer
espécie – somente duas mulheres aparecem registradas como parteiras. Encontramos, todavia,
uma “arrancadora de dentes”, Rosa Sachetti, 20 anos, registrada como chefe de uma família

38
Tratei de forma mais ampla do problema do celibato masculino e do papel feminino nas boutiques de mestres
solteiros em Cavallo (2005).
39
AST, s.r., Insinuazione di Torino, 1726, l. 11, f 521-22. A navalha, a bacia, a placa de barbear e o espelho faziam
parte dos instrumentos que qualquer barbeiro deveria possuir. Cf. Malfi (1626:20).
40
AST, s.r., I Archiviazione, Speziali, Fondighieri e Chirurghi m. 1, “Registro delli chirurghi e barbieri della
presente città di Torino”, 1695.

116
totalmente feminina: uma irmã de 16 anos e uma bisavó de 78 anos.41 Entre as francesas,
encontramos uma mulher de 40 anos, casada e “que cuida dos doentes”.42
É no ambiente da corte onde mais facilmente encontramos mulheres oferecendo
préstimos higiênicos, cosméticos ou sanitários. Mas o equivalente feminino dos camareiros,
que serviam junto às mulheres da família ducal, isto é, as camareiras (femme de chambre), cujo
número devia ser importante, não aparece nas fontes. Os regole, que entre o fim do século XVI
e 1680 fixavam as competências dos funcionários da corte, não trazem uma palavra sequer
sobre o trabalho das mulheres.43 A presença de um bando de mulheres nos aposentos nos é
revelada por uma fonte aparentemente árida, mas muito preciosa: os registros de contas da corte.
Aprendemos com eles que todo membro feminino da família ducal tinha, a seu serviço, um
número de “fame di camera” ou de “figlie di camera”: princesas ou donzelas que variavam
entre duas e oito. Do mesmo modo que os camareiros, elas trabalhavam em turnos de três meses.
Eram cargos muito importantes na vida de uma mulher, que se repetiam ao longo dos anos ou
talvez por toda uma vida e que garantiam a elas um salário correto, não muito diferente daquele
dos camareiros. Em 1712, por exemplo, oito mulheres se revessavam no serviço da alteza real
e sua remuneração anual variava de 600 a 1500 liras. Os salários dos camareiros dos aposentos
da alteza real variavam de 800 a 1500 liras, o que nos leva a constatar que a diferença entre
homens e mulheres era muito limitada. É possível encontrar casos de homens que recebiam
remunerações inferiores àquelas que apresentamos: era o caso de sete camareiros dos aposentos
reais cujo salário oscilava entre 700 e 1200 liras.44 Além do mais, as mulheres gozavam de
exonerações fiscais, obtinham favores para suas filhas, maridos e genros, ou ainda podiam ter
um papel central para propiciar a ascensão dos membros de sua família a carreiras satisfatórias,
tanto no interior quanto no exterior da corte. Entre 1684 e 1715, por exemplo, Gioanna
Vermetta, que havia sido a ama do duque e depois camareira da duquesa, conseguiu que seu
filho Pietro fosse nomeado camareiro, conseguiu uma ajuda financeira para casar sua filha, bem
como uma patente de farmacêutica como dote para sua sobrinha.45
O exemplo das “fame di camera” nos esclarece – fato extremamente raro – acerca do
papel econômico e de mediação desempenhado pelas mulheres casadas na produção dos
rendimentos. Ele confirma também que seus ofícios se inscreviam na cultura familiar. Volto a
repetir: estamos frente às filhas, irmãs, esposas, mães e sogras de artesãos dos corpos –

41
AST, s.r., art. 530, m. 2, v. 3.
42
AST, s.r., art. 530; Ibid., I sez., Provincia di Torino, m. 4, fasc. 20.
43
Ver os regulamentos citados nas notas 13 e 15 e para aquele de 1587, AST, s.r., art. 259, par. 2, m. 1, n. 29.
44
Ibid., art. 217, 1712.
45
Ibid., Patenti Controllo Finanza, 1684-85 fasc. 228, 1702-04 fasc. 11, 1713-17 fasc. 112.

117
cirurgiões-barbeiros, tapeceiros, joalheiros e peruqueiros –, bem como perante filhas, noras,
cunhadas de camareiras e de amas que trabalhavam na corte. Isso reforça a hipótese de que as
mulheres participavam dos mesmos saberes que os homens da família e que elas os utilizavam
de uma maneira significativa economicamente. Desse modo, longe de serem apenas
instrumentos aptos à criação ou manutenção de laços sociais e profissionais entre os homens,
as mulheres se distinguiam como membros ativos do mesmo domínio profissional.
Apresentei, neste capítulo, uma interpretação das relações entre ofícios que levou em
conta sua especificidade cultural na época moderna: os laços muito estreitos entre cirurgiões,
barbeiros e todos aqueles que definimos como “artesãos dos corpos” baseavam-se na unidade
do discurso associado à aparência, à saúde e ao bem-estar dos corpos. Esta perspectiva é
ignorada pelos trabalhos sobre os ofícios que, em geral, concebem tais profissões como
separadas umas das outras, ou então tendem a reagrupá-las de acordo com critérios anacrônicos
de classificação. Em estudos recentes, por exemplo, o cirurgião-barbeiro é simplesmente
inscrito no seio da profissão médica, o que o afasta do mundo dos artesãos, do qual ele provém.
As proximidades entre diferentes ofícios dos corpos, percebidas aqui, sugerem que a
transmissão de um saber e de uma prática profissional dizia respeito a um domínio mais vasto
que aquele de um ofício particular e não que se dava somente pela via da filiação, mas era
confiada aos membros da parentela em seu sentido amplo. Se raciocinarmos em termos de
“domínio profissional” e não de um ofício exclusivo, podemos observar que os conhecimentos
adquiridos no seio da família eram utilizados em uma rede mais ampla de ofícios e que as
mulheres também possuíam a possibilidade de colocar em prática seus saberes nos casos em
que participavam das atividades de seus esposos. Não obstante, podemos constatar que a
tentativa de analisar a contribuição de mães, esposas e filhas num empreendimento artesanal se
furta à reticência das fontes, atentas apenas em representar as mulheres como dependentes da
família. Essa é, sem dúvida, a razão pela qual, ao longo dos últimos anos, as pesquisas
privilegiaram as mulheres solteiras ou viúvas. Além disso, numerosas análises gerais sobre o
trabalho feminino publicadas recentemente se baseiam sobre o caso – mais fácil de ser
documentado – das mulheres que trabalhavam sob a dependência de um mestre. Com base
nisso, poderíamos estimar que, naquela época, a mão de obra feminina estava empregada apenas
em funções não especializadas e pouco remuneradas e que a separação entre ofícios masculinos
e femininos se tornava cada vez mais nítida e importante. Entretanto, se examinarmos com
atenção as atividades que as mulheres exerciam no negócio da família, o quadro que daí resulta
diverge em relação às análises gerais citadas: muitos indícios revelam (alguns não de maneira
sistemática) que ao longo de toda a sua vida, as mulheres participavam de uma gama de ofícios

118
muito mais variados do que imaginamos. Elas nos convidam a resistir à tentação de considerar
suas contribuições como limitadas às atividades “femininas”.

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121
6 O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na
França do século XIX
Maurizio Gribaudi

Ao longo dos últimos anos, assistimos a uma verdadeira revitalização das pesquisas sobre a
história do Estado e suas administrações na época contemporânea. Ao revisitar imagens e
modelos historiográficos já há muito tempo engessados em uma interpretação rígida e
teleológica do modelo weberiano, muitas dessas pesquisas possibilitaram restituir uma história
mais movimentada e fragmentada.1 No entanto, apesar da renovação e das importantes
perspectivas abertas, a maior parte dos trabalhos limitou-se a aprofundar as fronteiras traçadas
pelas práticas disciplinares ou pelas categorias institucionais. Desse modo, leu-se a construção
dos discursos sobre o Estado e a democracia francesa a partir da análise dos textos produzidos,
desde a Revolução e a Primeira República, pelos atores principais desse processo. Ou, ainda,
analisaram-se a delineação e as dinâmicas internas da complexa nebulosa administrativa do
Estado contemporâneo pelas óticas e pelos discursos de seus diferentes corpos, ou pelas
estruturas e articulações formais de cada instituição. Pouco foi feito sobre as determinações
mais profundas que pesam sobre o funcionamento das instituições e dos organismos
administrativos. Em especial, pouca atenção foi dada às fisionomias sociais das dezenas de
milhares de funcionários, desde aqueles com posição mais baixa até aqueles mais altos, que
fizeram plenamente funcionar as instituições. De onde vieram? De que grupos sociais? O
Estado já era uma experiência concretamente presente na vivência de suas famílias de origem?
Ou eles o haviam descoberto por meio de um percurso mais complexo e difícil? Quais
determinações e imagens eles forjaram no avançar de sua caminhada?
A imagem das instituições mudaria, sem dúvida, se dirigíssemos nossa atenção para as
dimensões menos habituais de seu funcionamento, se abandonássemos, por um momento, a
observação das linguagens um tanto quanto sábias, um tanto quanto técnicas com as quais os
diferentes corpos representam suas práticas para seguir os movimentos profundos e os gestos

 Título original: “Le savoir des relations: liens et racines sociales d'une administration dans la France du XIXe
siècle” (Gribaudi, 2009).
1
Para citar somente trabalhos mais recentes, penso especialmente em historiadores como Pierre Rosanvallon, que,
ao conduzir uma longa investigação sobre os modelos políticos que pesaram sobre a construção do Estado,
conseguiu mostrar a sucessão das importantes rupturas e contradições decorrentes da história da Revolução na
Quinta República. Cf. Rosanvallon, (2004). Penso também nos trabalhos reunidos sob a direção de Marc Olivier
Baruch e de Vincent Duclert, os quais, através da análise das representações e das práticas dos diferentes corpos
internos nas diferentes instituições da Terceira República, possibilitaram salientar as tensões contraditórias
internas no espaço administrativo e institucional do Estado ao longo de um período crucial para a história da
França. (Baruch e Duclert, 2000).

122
mais simples do cotidiano da máquina administrativa. Desejo efetuar, aqui, um primeiro passo
nessa direção, propondo-me a observar o funcionamento de uma administração central por meio
de uma ótica que pretende quase unicamente esclarecer os ângulos mortos da história
institucional. Os exemplos propostos permitirão ilustrar a pertinência desse procedimento e
especificá-lo ulteriormente, sem por isso pretender fornecer respostas definitivas.
Os protagonistas dessa história são os 534 empregados e funcionários que trabalharam
nos escritórios encarregados da orientação dos organismos de saúde e higiene públicas no
Ministério do Interior e no Ministério da Agricultura e do Comércio, entre 1803 e 1910.2 Trata-
se da totalidade das pessoas que atuaram nesses escritórios, por um único dia ou durante vários
anos, tanto nos cargos mais humildes quanto nos mais importantes. Os dossiês individuais
conservados nos arquivos nacionais foram completados com as informações relativas à posição
social e profissional das pessoas próximas e parentes, extraídas das certidões de registro civil
disponíveis e identificadas nos arquivos departamentais.3 Essas duas fontes fornecem
informações interessantes, tanto sobre a evolução da carreira de cada funcionário quanto sobre
a situação corrente e a moralidade do funcionário e de sua família. Além disso, tais fontes
conservam o conjunto da correspondência gerada ao longo da carreira: cartas de recomendação,
solicitações, queixas, enquetes de todo tipo providenciadas pela administração etc. Os dados
dos locais de nascimento no registro civil, recolhidos nos arquivos departamentais, fornecem-
nos, por sua vez, informações não somente sobre a inscrição socioprofissional dos funcionários,
mas, também, sobre suas diferentes ancoragens geográficas.

2
O organograma das administrações centrais modifica-se constantemente ao longo do século XIX. Todos os
escritórios encarregados da orientação dos diferentes organismos da saúde e da higiene públicas estão,
fundamentalmente, vinculados ao Ministério do Interior e, uma parte deles, ao Ministério do Comércio, a partir de
1830. Reconstituímos os organogramas dos escritórios correspondendo a quatro entidades presentes desde o início
do século (os escritórios dos estabelecimentos de cuidados às pessoas desamparadas; os estabelecimentos de
benfeitoria; dos mentalmente incapacitados e dos serviços à infância; o sanitário) e a uma entidade criada a partir
do Segundo Império (o escritório das inspeções, socorros mútuos e estatísticas). O conjunto desses escritórios
reuniu-se em 1886, sob a direção da assistência e das instituições de previdência, criada no Ministério do Interior,
que se tornará a direção da Assistência e da Higiene Pública, a partir de 1889. Para uma descrição detalhada da
pesquisa e do banco de dados, ver Cristofoli (1999). Sobre as estruturas ministeriais francesas e suas evoluções
entre revolução e monarquia de julho, cf. também o trabalho, doravante clássico, de Clive Church, bem como as
obras mais recentes de Paul Bouteiller e seus colegas, de Catherine Kawa e Igor Moullier. O livro de C. Kawa,
particularmente, ao procurar aprofundar o questionamento sobre o enraizamento social dos funcionários, abre
perspectivas interessantes sobre a fisionomia social da burocracia ao longo do período revolucionário. Cf. Church
(1981); Bouteiller, 1993); Kawa (1996); Moullier (2004).
3
A partir de vários tipos de fontes, mas, fundamentalmente, de uma enquete enviada pelo correio, dirigida aos
arquivos departamentais, que possibilitou dar forma a 81% das certidões de nascimento dos 1.600 indivíduos do
corpus de base. Para uma descrição precisa desses documentos, ver: Cristofoli (1999); L’helgoual’ch, S.; Loitron,
M.; Varet-vitu, A. Anexos 3 e 4 em Gribaudi e Magaud (1999).

123
As 2.325 cartas manuscritas conservadas nos 534 dossiês individuais4 que destacarei em
primeiro lugar são particularmente interessantes, pois possibilitam reconstruir as relações que
cada funcionário deveria ter solicitado ou teria achado necessário solicitar, em momentos
determinantes de sua própria carreira. Entre elas, 1.355 cartas de apresentação, muito ricas
nesses aspectos, possibilitando reconstituir as complexas articulações de uma administração
central. Diversos vínculos conectam os escalões médio e alto da função pública ao ambiente
dos salões e dos interiores aristocráticos e burgueses da capital e ali o enraízam. Esse ambiente
era, então, extremamente bem estruturado, apesar de ter se tornado opaco para os nossos olhos.
Tais vínculos favorecem também a reprodução de uma cultura de vínculo que faz do
pertencimento ao mesmo espaço relacional a garantia do controle não somente do status social
dos funcionários, mas também de suas capacidades profissionais.
Pela presença dessa cultura, cada procedimento administrativo provoca necessariamente
uma atividade intensa de avaliação e de negociação sobre a qualidade dos vínculos de cada um.
Desse modo, solidariedades antigas são reproduzidas e reconstituídas. A análise desses
mecanismos é interessante, pois evidencia as articulações e as hierarquias internas do espaço
relacional de uma administração central. A presença de um núcleo sólido de funcionários de
alto escalão que chegaram à sua posição graças à sua fortuna e às suas múltiplas relações
acompanha-se de um conjunto de funcionários menos estáveis que se situam a distâncias
variáveis em função não somente da natureza de seus vínculos e de sua posição social, mas
também da capacidade de interagir no interior desse sistema relativamente complexo.
O perfil da administração que se evidencia por esse prisma bastante particular é aquele
de um mundo fortemente hierarquizado e dominado por famílias bem enraizadas nas classes
mais altas da administração havia várias gerações, em detrimento das numerosas mudanças de
regime pelo qual passou a sociedade francesa no decorrer do século XIX. No entanto, ao
observarmos mais de perto, e, sobretudo, ao prestarmos atenção aos ambientes de origem dos
funcionários de alto e médio escalões, podemos também constatar profundas mutações nas
zonas de recrutamento social do pessoal administrativo. Se no decorrer da primeira metade do
século a administração recruta principalmente no Exército e na criadagem, a partir do Segundo
Império ela se abre quase que exclusivamente para os filhos dos pequenos comerciantes e dos
pequenos artesãos.

4
Das quais 1.355 cartas de recomendação, ou seja, quase 60% do total das cartas conservadas nesses dossiês. Uma
leitura interessante dos dossiês individuais e das cartas de apresentação dos funcionários do Ministério do Interior
foi realizada por Reddy (1995:7-37).

124
Portanto, a composição dos funcionários que povoam os corredores dessas
administrações mudou ao longo do tempo. Essas mutações acompanham-se do aumento,
primeiro lento, mas cada vez mais acentuado, a partir da segunda metade do século, da parcela
de pessoas vindas do interior, que atingem 80% do pessoal nos escalões médio e baixo. Mesmo
diante das necessidades crescentes de mobilidade social que emergem em consequência desses
movimentos, as respostas não se modificam: a tradicional cultura das relações que conduzia à
reprodução das elites administrativas reforça-se, transformando-se, a partir do último quarto do
século, para se adaptar às necessidades de enraizamento político no interior das elites
parisienses massivamente convertidas ao republicanismo.
Evidentemente, os discursos, as práticas e as tensões, sobre as quais insistirei nas páginas
seguintes, entram em atrito e se confrontam sistematicamente com outros discursos e práticas,
oriundos, desta vez, de outros processos em que a profissão, a competência, a dimensão
funcional das administrações e das instituições parecem centrais (Gribaudi e Magaud, 1999).5
A pergunta que se formula diz respeito, então, à possibilidade de pensar o Estado e seus
organismos levando-se em conta o conjunto dessas dimensões e das relações que elas
estabelecem entre si.

Formas relacionais e competências profissionais

A imagem que o leitor retém ao término de uma primeira leitura da imponente massa de
informações conservadas nos dossiês individuais da administração central é certamente aquela
de um organismo pouco atento ao controle das capacidades profissionais de seus funcionários.
Nas cartas de recomendação, nas centenas de páginas de curricula vitae, nas anotações e nos
relatórios depositados nos dossiês administrativos dos 534 funcionários cuja fisionomia pude
reconstituir, é difícil encontrar um traço qualquer de atenção às suas competências profissionais.
Ainda assim, tanto para o simples extranumerário6 quanto para os empregados e os funcionários
de alto escalão, o conjunto da correspondência insiste quase que exclusivamente na natureza e
na qualidade dos vínculos que inscrevem cada indivíduo no interior do espaço das relações que
ancoram a administração na sociedade global. Um primeiro exemplo, extraído do dossiê
administrativo de um deles, permitirá ilustrar muito simplesmente esses aspectos. Nascido em
1849, Émile Chabanel7 é filho de um antigo membro do ministério que se aposentou, depois de

5
Ver também Gribaudi (1998).
6
Aquele que não faz parte do quadro oficial de efetivos dos funcionários ou empregados (N. do T.).
7
Arquivos Nacionais (AN), dossiê F1 1bI/293.

125
30 anos de carreira, com o cargo de chefe de departamento.8 Um percurso que ele seguirá de
perto. Admitido na administração em 1871 como empregado auxiliar (logo, sem soldo), Émile
progride, de forma lenta, mas constante, percorrendo os diferentes níveis das funções
administrativas até se tornar chefe do escritório da Higiene Pública em 1892 e ser nomeado, no
final de sua carreira, diretor do hospital de Vésinet.
Nenhuma definição clara de seu trabalho ou de suas competências administrativas
aparece em seu dossiê. No entanto, desse homem que é chamado para intervir de modo direto
na tutela de organismos encarregados da higiene pública, nada é dito sobre seus conhecimentos
administrativos ou científicos. Desde o início, a ênfase é colocada somente nos seus vínculos
com a administração.
A primeira das duas cartas de recomendação redigidas pelo seu pai com o objetivo de
apoiar seu pedido de integrar uma função no Ministério do Interior é destinada ao sr. Normand,
diretor do secretariado-geral e seu antigo colega, em 16 de setembro de 1874:

Meu caro e antigo colega,


Venho recordar nossas relações de antigamente e pedir que se mostre favorável à
solicitação que encaminho ao Ministro para obter a nomeação do meu filho como
funcionário titular. Ele está vinculado há quase três anos à administração central como
empregado auxiliar. Seus chefes, o primeiro, Sr. Follet, e, em seguida, o Sr. Bouterou, estão
muito satisfeitos. [...] Endereço uma solicitação neste sentido ao Ministro, com o qual
mantive, na época, relações muito boas. Porém, em um assunto deste tipo, o senhor pode
fazer muito, e eu espero que, em lembrança de nossas relações de antigamente e
considerando os três anos de estágio do meu filho e os meus 31 anos de serviço, o senhor
aceitará apoiar meu pedido.9

Esse texto não é excepcional. Assim, como milhares de pessoas que redigem cartas ou
que rabiscam um bilhete para apoiar uma solicitação, para favorecer um procedimento ou para
responder às necessidades de uma pesquisa, Chabanel pai não vê utilidade em se estender sobre
os conhecimentos técnicos do filho. Entretanto, ele está muito atento em reconstruir de modo

8
François Léo Chabanel, nascido em Paris em 1805, inicia sua carreira administrativa em 1830, quando é
contratado como redator no escritório do ministro do Interior. Entre 1832 e 1851, é vinculado ao Ministério da
Agricultura e do Comércio, onde progride em sua carreira (nomeado chefe em 1838 e chefe de primeira classe em
1850). Ele reintegra o Ministério do Interior em 1851. Em 1857, é nomeado chefe de departamento e se aposenta
em 1861. AN, dossiê F1 1bI/2632.
9
AN, dossiê F12 5069, grifos meus.

126
detalhado o patrimônio relacional que inscreve o jovem candidato no ambiente direto do
ministro e da administração central.
Em sua banalidade, portanto, essa iniciativa introduz o problema de seu status, da
coerência e significação. Os historiadores da administração salientaram os conceitos de
clientelismo e de nepotismo. Guy Thuillier, por exemplo, em obras fundadoras sobre a
administração francesa do século XIX, retorna repetidamente a essas mesmas fontes e,
particularmente, às cartas de apresentação. A leitura que ele faz desse material retoma a
perspectiva de numerosos observadores contemporâneos, muito críticos em relação ao
funcionamento da administração.10 Sem afirmar explicitamente, Thuillier condena, dessa
forma, a prática da recomendação, sua linguagem e insistência particular no posicionamento
relacional das diferentes vozes que se alçam para denunciar a corrupção e o nepotismo. Da
mesma maneira, mais recentemente, e trabalhando com base nos mesmos materiais, William
M. Reddy vem retomando esses conceitos, sugerindo a presença de uma cultura administrativa
fundamentada “nas noções de proteção, de família e de honra” (Reddy,1995:37).11
A presença dessas dimensões surge de forma evidente (Gribaudi e Magaud, 1999), mas
parece difícil poder generalizar a partir de tais leituras para o conjunto destas práticas. Até
mesmo porque os termos de proteção e de nepotismo, que no contexto atual parecem encobrir
significações unívocas, não tinham, na época, um conteúdo preciso e estabilizado. É o que se
vê especialmente no debate então aberto sobre a introdução do concurso de admissão à função
pública. Se alguns observadores o consideram um pré-requisito necessário para qualquer obra
de modernização, outros pensam que o fato de delegar aos futuros órgãos de seleção a definição
de critérios e a gestão dos concursos somente poderá alimentar seu corporativismo. Eles temem
sobretudo que a estandardização dos critérios impeça uma avaliação clara das atitudes humanas
e sociais de cada candidato.12
O mesmo ocorre em todos os debates que dizem respeito ao Estado. Enraizados na história
de uma sociedade fragmentada que se questiona sobre sua própria natureza e sobre as melhores
maneiras de se gerenciar, a maioria dos termos que se relacionam com as práticas institucionais

10
Cf. Thuillier (1999). Acerca dos olhares de nossos contemporâneos sobre a administração e suas práticas, ver
também Vivien (1877-1885).
11
Reddy (1997) retoma seu modelo, estendendo-o a outros meios profissionais.
12
Uma voz ilustre que se elevou para defender essa posição é a de Jean-Baptiste Say, que escrevia, em 1828; “As
funções públicas podem, em certos casos, ser dispostas sob forma de concurso, [...] mas esta modalidade apresenta
inconvenientes demais […]. Ela pressupõe que os julgadores do concurso têm toda a capacidade necessária para
julgar os concorrentes. As funções públicas exigem qualidades para as quais um concurso não oferece nenhuma
garantia. Que se pode saber sobre a integridade, a abnegação, a diligência habitual de um candidato? Sobre sua
coragem civil, esta qualidade tão rara e necessária a um administrador, por meio da qual ele faz aquilo que julga
ser correto, mesmo enquanto há risco em fazê-lo? Nunca se é permitido desprezar qualquer indício que se tenha
dos méritos de um candidato, sua boa reputação” (Say, 1852:268).

127
só pode ser definida ao situá-los no contexto em que foram produzidos. Isso parece ser ainda
mais importante no caso das práticas de recomendação, pois, ao assimilá-las aos conceitos de
clientela e de nepotismo, é ocultada uma dimensão fundamental para o século XIX, porém
menos evidente atualmente, fundamentada na percepção e definição da identidade e do saber
profissional em termos relacionais.
A carta que acabamos de citar torna-se, a partir desse ponto de vista, particularmente
esclarecedora. Pela ótica do redator, os elementos-chave, e os mais importantes para definir a
admissibilidade de um pedido desse tipo, residiam antes de mais nada em uma descrição precisa
do espaço relacional do impetrante. Nada ou quase nada foi dito sobre o trabalho ou sobre as
competências do postulante. Apesar disso, sabe-se que ele trabalhou por três anos como auxiliar
sem soldo nos escritórios do Ministério do Interior.13 Ora, de toda essa experiência, o pai
observa unicamente que seus chefes “estão muito satisfeitos”. No entanto, ele acredita ser
necessário descrever muito precisamente seus próprios vínculos com a administração e com o
ministro. Dessa forma, desde suas primeiras linhas, ele tem o cuidado de lembrar ao seu
correspondente suas “relações de antigamente”, destacando as relações sólidas e boas com o
ministro.
Não é somente porque os redatores dessas cartas solicitam uma intervenção com base
unicamente nas relações existentes que eles insistem tanto em definir os vínculos.
Implicitamente, eles concebem a competência profissional como um saber que se aprende mais
por meio da prática e da frequentação assídua de um meio do que com um curso escolar cujo
diploma forneceria uma prova. Caso contrário, como explicar que ele ache absolutamente
natural “considerar o estágio de três anos de meu filho e meus 31 anos de serviço”? François
Chabanel parece realmente persuadido de que seu filho possui todas as competências para o
cargo almejado, porque ele nasceu e viveu em um ambiente no qual a administração estava
havia muito tempo presente, com sua linguagem, seus trabalhos e suas questões. Da mesma
maneira que os parentes de um comerciante, de tanto circular pela loja, aprendem a conhecer
as engrenagens do comércio, os pais e os parentes de um funcionário são percebidos como
pessoas acostumadas às práticas do mundo dos escritórios da função pública.
Em vários dossiês, encontramos a relação entre família, tecido relacional e área
profissional. No caso de Chabanel, ela está presente ao longo de um percurso familiar que
desenha uma trajetória de integração no espaço físico e social da administração. François nasceu
em 3 de julho de 1805 na rua São Marcos, número 27, no antigo bairro Feydeau,14 e em uma

13
Mais precisamente, nos escritórios encarregados da administração departamental.
14
Atrás da travessa dos Panoramas, no antigo segundo distrito, e no limite do local da nova bolsa.

128
família de proprietários. No entanto, os vizinhos que testemunharam seu nascimento declaram-
se “funcionários”. Em seguida, com 40 anos, na época do nascimento de Émile ele detém o
cargo de chefe do escritório do Ministério da Agricultura e do Comércio, instalado de maneira
burguesa a 300 metros de seu local de trabalho, na rua de Champigny, número 3. No registro
do recém-nascido, François convida seu irmão Oscar, que declara a profissão de funcionário, e
um amigo subchefe de escritório. Também nesse caso, as testemunhas residem a algumas
quadras de distância.15
Do espaço movimentado da margem direita àquele mais opulento e ordenado de Saint-
Germain e da Monnaie,16 onde os hotéis particulares da antiga nobreza estão lado a lado com
os prédios políticos e administrativos, os Chabanel conseguem se inscrever estavelmente no
espaço da alta função pública. Esse espaço aparece, de acordo com a ótica deles, como
estruturado por um denso estabelecimento de vínculos entre os quais é impossível distinguir
relações de família, trabalho e sociabilidade. Esse emaranhado de relações locais e práticas está
bem ilustrado na segunda carta de recomendação redigida por François, destinada ao Ministro
da Agricultura e do Comércio:

Senhor Ministro, permita-me trazer à sua lembrança o tempo em que eu costumava ter a
honra e o prazer de encontrar com frequência a senhora sua mãe e, algumas vezes, o senhor,
na casa da minha prima, Srta. Justine Bousquet. Era na época do casamento da Srta.
Chabaud-Latour, sua sobrinha, com o Sr. Jules Nouguier, meu primo. Eu ficaria muito feliz
se a lembrança destas boas relações já antigas o comprometessem a receber com
complacência o pedido que acredito poder dirigir-lhe, em favor de meu filho, empregado
como auxiliar no Ministério do Interior há quase três anos. [Depois] das perdas
consideráveis experimentadas durante a guerra, [...] o Sr. Durangel, meu antigo colega no
Ministério, quis nomeá-lo empregado auxiliar. [...] Hoje, senhor Ministro, aposentado
desde 1861, prematuramente e nas condições mais desfavoráveis, depois de 31 anos de
serviços tanto no Ministério do Comércio quanto no Ministério do Interior, que eu deixei
como chefe de departamento, tendo atingido idade avançada e sempre doente há 17 anos,
veria como um grande consolo se, graças ao senhor, meu filho obtivesse enfim o título de
funcionário titular, do qual acredito que seja digno em todos os aspectos.17

15
Na rua do Cherche-Midi, número 100, e na rua do Coliseu, número 14, respectivamente.
16
Antigo décimo distrito (atualmente sétimo e sexto distritos).
17
AN, dossiê F12 5069.

129
De modo ainda mais explícito do que na primeira carta citada, ao se dirigir ao ministro, a
principal preocupação de François Chabanel é de posicionar bem seu filho no horizonte das
relações de parentela e de sociabilidade que o vinculam diretamente à família do ministro e,
sobretudo, ao meio da administração central.
O gráfico que se pode obter ao traçar o conjunto das relações citadas é esclarecedor. Ele
mostra a que ponto os elementos informativos insistem quase unicamente na reconstituição fina
dos vínculos que ligam e aproximam a família Chabanel da família do ministro. Émile (nome
circulado), o candidato ao cargo, e seus chefes de escritório situam-se em uma zona secundária
e distante, enquanto o lugar central da história é ocupado por François, o pai (nome sublinhado),
e pelo ambiente familiar, os quais aparecem, portanto, como os verdadeiros asseguradores da
admissibilidade do pedido.

Figura 1
VÍNCULOS E RELAÇÕES CITADOS NA CARTA DE APRESENTAÇÃO DE ÉMILE CHABANEL

Fonte: Elaborada pelo autor.

Uma cultura do “saber das relações”

O princípio que conduziu a este recenseamento especial, sempre tão difícil, tão complicado
[...] encontra-se integralmente nesta pergunta, formulada em 1856, aos agentes de
recenseamento: qual é o número de indivíduos que cada profissão faz viver, na França?
Disso resulta que a estatística de qualquer profissão não contém somente os chefes de

130
família que a exercem, mas contém, ainda, seus filhos, seus criados, seus funcionários e
operários, em suma, todas as pessoas para as quais ela é um meio comum de existência.18

Difícil e complicado. Ainda em 1856, e mais de 20 anos depois de seu nascimento, o


escritório da Estatística Geral da França ainda hesita no tratamento do recenseamento das
profissões. A questão formulada pelos administradores é aquela da natureza de uma prática
profissional. Pode-se pensá-la como uma experiência unicamente ligada àquele que a exerce
pessoalmente, ou, ao contrário, deve-se apreendê-la como um recurso utilizado por um número
determinado de pessoas?
Sabe-se que para esse recenseamento, assim como em 1861, a segunda solução foi a
escolhida. Cada profissão representa um grupo extremamente variado de pessoas que pode
coincidir com a família nuclear, mas, na maioria dos casos, com as famílias extensas, primeiro
à parentela, mas também à criadagem: “no clero secular, para citar o exemplo mais
característico, foram classificados não somente os eclesiásticos [...], mas também as pessoas de
ambos os sexos vinculadas ao seu serviço, bem como os membros de sua família vivendo com
eles”.19 A escolha realizada pelo escritório da Estatística Geral denota, portanto, uma atenção
acentuada à dimensão de recurso de cada atividade profissional. Não obstante, ela também
revela a forte tensão presente, nesse período, em torno da forma de pensar e de definir a natureza
da experiência profissional. Atributo individual que se alcança por meio de uma aprendizagem
ou por um curso bem regulamentado, a profissão também é percebida como um saber que se
inscreve antes de tudo na experiência de uma família ou, ainda, de um grupo de pessoas que
fundamentam sobre ela seu suporte.
No âmbito desse tipo de lógica, acredito que seja necessário ler as cartas depositadas nos
dossiês administrativos. O sentimento de naturalidade que emana de sua linguagem
explicitamente relacional exprime também um modo de pensar a aprendizagem e o saber
profissionais como atributos do espaço relacional de uma família e de um meio. A ideia
subjacente é que se aprende uma profissão principalmente ao ser confrontado com ela
cotidianamente, por meio da família e de suas relações diretas.
Observam-se, logo, os traços de uma verdadeira cultura do “saber das relações”, que
evoca formas e práticas antigas de identidade profissional.20 Entretanto, tal cultura expressa, ao

18
Estatística Geral da França. Recenseamento de 1856, Population par professions, par. 9, introdução às tabelas
8-12, p. 5.
19
Estatística Geral da França. Recenseamento de 1856, Population par professions, par. 9, introdução às tabelas
8-12, p. 5.
20
Ao analisar a correspondência do Castelo de Vincennes nos séculos XVII e XVIII, Gaëlle Piernickarch mostra
que as tarefas e os cargos dos funcionários do território eram considerados gerenciados e tecnicamente adquiridos

131
mesmo tempo, uma forma de identificação e de reconhecimento social que passa menos pelas
qualidades individuais e mais pelo pertencimento e pela proximidade: aqueles que
compartilham as mesmas relações e os mesmos espaços de sociabilidade possuem as mesmas
qualidades e capacidades.
É por esse motivo que, desde a contratação e ao longo da carreira, a qualidade das
relações, o status da família e da parentela constituem os elementos principais a partir dos quais
são julgadas não somente a fisionomia social, mas também a posição profissional dos
empregados e dos altos funcionários do ministério. Sendo assim, por um lado nas anotações
individuais o contexto da família é percebido e apreciado, sua capacidade de viver de acordo
com a categoria à qual pertencia, seus vínculos e, até mesmo, suas formas de sociabilidade; e,
por outro lado, assiste-se a uma atividade incessante de negociação da natureza e da qualidade
dos vínculos dos funcionários que se inicia a partir do momento em que se trata de se candidatar
a um emprego, a uma promoção, a uma adaptação, ou de solicitar uma ajuda financeira.
A análise dessas negociações é particularmente interessante porque revela a geografia
complexa e dinâmica do espaço relacional de uma administração. A gama extremamente
variada de formas que ela implementa, que podem partir desde um pedido humilde e reservado
até uma solicitação mais insistente, de uma rogativa apagada a uma reivindicação arrogante,
desvenda não apenas a extensão de zonas mais estáveis e centrais do espaço de reconhecimento,
mas também os movimentos que o atravessam e as tensões contraditórias que o tracionam.
Dessa forma, é com uma segurança tranquila que Edmond de Beauvais, jovem advogado
oriundo da pequena nobreza do departamento de Eure, pensa poder se dirigir ao ministro em 8
de junho de 1835 para se candidatar a um emprego como extranumerário. Ele o faz com uma
carta breve, redigida com caligrafia regular, mas nem por isso cuidadosa:

Senhor Ministro,

Pertencendo a uma família honorável do departamento da Seine Inferior, depois de ter


concluído meus cursos de direito e dirigido, por mais de um ano, em Paris, um escritório
de advocacia, na qualidade de primeiro escrevente, ficaria feliz em poder colher o fruto
dos meus estudos e ser vinculado ao Ministério do Interior como extranumerário.

por uma família. Desse modo, a viúva do titular de um cargo ou um membro da família podem solicitar, e muito
frequentemente conseguem, herdar a atividade do defunto. Essa transitividade das competências profissionais
chega até mesmo a justificar o pedido de atribuição do cargo de um falecido para o novo companheiro de sua
viúva. Cf. Piernickarch (1999).

132
A situação patrimonial dos meus pais me permitirá aguardar, pelo tempo que for
necessário, que meu zelo e minha assiduidade possam ser apreciados pelo senhor e, depois,
recompensados. Portanto eu lhe pedirei, senhor Ministro, que queira considerar minha
solicitação e, se eu for suficientemente afortunado de ser admitido pelo senhor, esteja
persuadido que justificarei com o meu trabalho o interesse por mim manifestado pelas
pessoas que quiseram apoiar meu pedido junto ao senhor.
Tenho a honra de ser, Senhor Ministro,
Seu muito humilde e muito obediente servidor
Edmond de Beauvais.21

O tom é firme, apesar das viscosas expressões de polidez, adiantadas no encerramento. A


situação da família, que o impetrante tem o cuidado de lembrar no início de cada parágrafo,
parece ser para ele a maior garantia de uma inserção perfeita no mundo da administração. No
entanto, sua posição social e pertencimento são sobretudo confirmados pelos testemunhos de
um grupo de notáveis que aceitam depositar suas recomendações sobre a mesma folha. Muito
provavelmente Edmond deve ter tido que recolhê-las ele mesmo, pois os diferentes bilhetes
estendem-se por um período de 10 dias. Ainda assim, é verdade que ele pôde garantir a
participação de três deputados, um general e titular da Câmara dos Pares, um contra-almirante
e um presidente de tribunal.
A forma de agir dá resultados positivos e Edmond de Beauvais obtém sua nomeação. Em
seguida, três anos mais tarde, quando se trata de se candidatar para sua integração em definitivo
nos escalões do ministério, a família e seus vínculos diretos são novamente solicitados para
pleitear a nova causa. Desse modo, do pequeno Castelo de Couvincourt, seu pai, o conde de
Beauvais, envia uma longa carta para Camille Bachasson, conde de Montalivet e Ministro do
Interior, para apoiar a candidatura do filho. Com uma segurança beirando a arrogância, o conde
de Beauvais pede ao ministro explicações sobre a longa espera pela promoção do filho:
“Portanto eu gostaria, senhor Ministro, que o senhor tivesse a extrema bondade de me informar
se esta situação precária deverá terminar em breve...”.22 Ao mesmo tempo, enquanto pede que
admita Edmond o quanto antes para que faça parte do quadro de pessoal do ministério, ele
lembra a categoria e os vínculos de sua família: “eleitor elegível e membro há nove anos do
Conselho distrital de Rouen [...], vinte e dois anos de serviço militar não recompensados”;

21
AN, F1 Bl 2623, grifos meus.
22
AN, F1 Bl 2623.

133
“todos estão interessados: os senhores de Rosamel, de Salvandy, Henri Barbet, e de la Borde
de Toutesville, meu parente que foi membro do Conselho Geral da Seine Inferior”.
Percebe-se que o tom é abrupto. Ele mostra toda a segurança da família com sua própria
categoria e seu pertencimento ao espaço relacional no qual interfere a alta administração. Essa
é exatamente a mesma percepção que atesta François Chabanel ao pleitear a causa de seu filho,
36 anos mais tarde e em uma conjuntura política totalmente diferente. Nesse caso, também,
estamos longe de qualquer forma de controle sobre um saber profissional que teria sido
adquirido individualmente através da aprendizagem escolar e sancionado por um diploma. E
está claro que, também nesse caso, a negociação diz respeito somente ao grau de centralidade
em um espaço relacional em comum.
Logo, todos esses mecanismos levam a reforçar a percepção do cargo administrativo
como sendo de um saber e de um bem compartilhados por uma família e pelo conjunto de seu
tecido relacional. Entretanto, eles também contribuem para atenuar as fronteiras entre as
qualidades profissionais e as qualidades sociais dos funcionários, alimentando o sentimento de
que a administração é responsável pela gestão e pela manutenção destas últimas.
Esse último aspecto é particularmente impressionante. Encontramos muitos traços dele
em vários dossiês. Entre os mais evidentes, o fato de que o bom resultado de um pedido de
aumento ou de concessão de uma ajuda pontual esteja muito frequentemente subordinado a um
critério de urgência estabelecido de acordo com a situação familiar. Sobre isso, é muito
reveladora a negociação que Louis Claude d’Auvergne inicia em 1809 para que lhe concedam
um aumento de salário.23 Este serventuário quadragenário queixa-se, em uma primeira carta, de
não ter obtido a gratificação concedida a um colega de seu escritório que exercia
“absolutamente as mesmas funções e com o mesmo zelo”. Depois de lembrar com extrema
minúcia sua carreira e posição hierárquica no quadro do ministério, d’Auvergne encerrou
lembrando a importância de seu trabalho “tão indispensável para a Seção das Construções Civis
que seria impossível deixá-lo sem paralisar o serviço”. O candidato enganou-se manifestamente
no tom ao evocar a importância de suas tarefas e a similitude entre o próprio cargo profissional
e aquele do colega. A resposta é negativa. Logo, ele é obrigado a voltar atrás em seu pedido,
enviando, algumas semanas depois, uma segunda carta sempre marcada de humildade, mas na
qual apaga referências ao trabalho e ao “equívoco” sofrido, introduzindo novos elementos
relativos à história da família, à perda de categoria e aos esforços para restabelecê-la. Ele insiste
principalmente na pessoa das duas tias, das quais ele cuida há muitos anos; mulheres

23
AN, F1 1bI/2641.

134
pertencentes à alta burguesia arruinada pela revolução, mas dispondo de vínculos sólidos e
ligações com os meios mais ricos da sociedade, em especial aqueles da alta administração.24
“Eu sequer havia dito que minhas tias perderam todo o seu patrimônio”, ele escreve agora
ao ministro. “Eu mesmo estou arruinado”, ele acrescenta, logo em seguida. Ele foi aconselhado?
Sem dúvida. Nesta segunda carta, toda a argumentação foi deslocada do eixo do trabalho para
aquele das relações e da categoria da família da senhora Billotte, que é, especialmente, uma
vigorosa protetora de suas tias que parece pertencer ao círculo restrito das pessoas mais
próximas de Émile Cretet, o riquíssimo Ministro do Interior que o imperador tinha acabado de
tornar nobre com o título de conde de Champmol, nome das propriedades nacionais cuja compra
havia constituído sua riqueza. São novos elementos que surgem de forma decisiva, visto que,
tendo enfim sido reconhecido por suas qualidades sociais, d’Auvergne obtém o aumento
pedido.
Louis Claude d’Auvergne faz parte do grupo de funcionários proveniente de uma família
que experimentou uma vida bastante cômoda, mas que atravessa com dificuldade as numerosas
turbulências políticas e sociais do século. Se quiséssemos situar sua fisionomia no interior do
espaço das relações e dos vínculos subentendidos por essas práticas, poderíamos dizer que ela
traça uma trajetória descendente de mobilidade social. O assunto da negociação é, portanto, o
restabelecimento de uma posição e de uma categoria pensadas como relativamente importantes
e quase iguais àquelas de seus interlocutores. Porém, percebemos, além disso, vários exemplos
de funcionários vindos de camadas bem menos prósperas que negociam a possibilidade de
acessar pela primeira vez uma posição social assim:

Sem nenhuma outra riqueza além da minha modesta remuneração, apenas suficiente para
satisfazer às necessidades mais modestas da vida, [escreve, por exemplo, Alexandre Joseph
Cassard em 18 de outubro de 1859 ao secretariado do Ministério do Interior] devo buscar,
seja por meus próprios meios, seja por aqueles de minha esposa, criar recursos para mim
que me possibilitem uma expectativa mais descomplicada de remunerações mais
robustas.25

Essa é a primeira frase da carta desse funcionário, na época um jovem de 26 anos, com
cargo no ministério há apenas dois anos. Nascido em Albi, em uma família desamparada, ele
vive com sua esposa em um imóvel de Suresnes; 25 anos depois, o casal declara cinco filhos

24
AN, F1 1bI/2641..
25
AN, F1 1BI 2632.

135
como dependentes. A situação de Alexandre Joseph é análoga àquela de centenas de outros
pequenos empregados que têm como único recurso um magro salário. Assim, foi neste contexto
que ele abriu, com a mulher, um ateliê de roupas íntimas. De acordo com o que evoca, de modo
muito preciso, em sua solicitação, acaba de conseguir uma encomenda de “várias lojas de Paris”
para a confecção terceirizada de produção de roupas íntimas. Para fazer face à produção, o casal
contratou, portanto, várias costureiras como mão de obra assalariada. Infelizmente, as operárias
pedem para ser remuneradas antecipadamente, enquanto as lojas pagam somente muito tempo
depois do recebimento dos produtos. Após de terem esgotado todas as economias e até mesmo
o dinheiro do aluguel, Cassard e a esposa se veem obrigados a pedir ao ministério uma ajuda
extraordinária sob forma de um adiantamento de 300 francos.
Os Cassard obterão a soma pedida, mas o resultado, aqui, é menos importante do que a
lógica à qual a forma de proceder remete. De fato, uma negociação assim somente pode
acontecer porque se fundamenta na reivindicação de um direito reconhecido de assegurar à sua
própria família um conforto digno e adaptado à categoria de funcionário. E, também nesse caso,
ela nunca tratou das capacidades profissionais do funcionário, mas, sobretudo, do status que
sua família poderá alcançar se a ajuda for efetivamente atribuída. Alexandre Joseph lembra de
forma muito clara que a implementação da pequena empresa teria como resultado retirá-lo “de
um estado próximo à indigência” e, especialmente, fazê-lo ter acesso a “uma certa comodidade
relativa”, que seria para ele “nova”.
Cassard não é o único a seguir uma linha de conduta desse tipo. Os dossiês
administrativos estão cheios de pedidos de funcionários que imploram somas variáveis para
prosseguir com um projeto ou enfrentar uma conjuntura crítica. Em todos esses casos, a
necessidade e a urgência só parecem provocar uma resposta positiva se corresponderem à
possibilidade de manter ou melhorar a categoria da família. Dessa forma, quando uma ajuda
desse tipo é concedida, então a família beneficiária está realmente integrada no espaço
relacional da administração que segue e controla sua evolução. Muitas vezes, portanto, a
carreira profissional e o progresso social combinam-se intimamente no horizonte dos
funcionários de categoria inferior, um aspecto favorecendo ou obstaculizando o outro por
ressonância.

Uma sociedade em movimento: o enraizamento social de uma administração

Ao desvendar a surda e incessante atividade propagada por trás das fachadas das instituições,
os dados dos arquivos restituem-nos os vestígios de um processo de estruturação muito

136
complexo que somente Honoré de Balzac, entre todos os seus contemporâneos, tinha sabido
apreender e ilustrar no romance Os funcionários, que permanece, sem dúvida, a análise mais
fina e penetrante do mundo da administração francesa da primeira metade do século XIX
(Balzac, 1844).
A trama é simples e bastante conhecida. Ela se fundamenta na competição longa e covarde
à qual se entregam dois chefes de escritório, Xavier Rabourdin e Isidore Baudoyer, para
conseguir ocupar um cargo de chefe de repartição. Como muitas vezes ocorre nos romances de
Balzac, os dois personagens principais situam-se e definem sua fisionomia por oposição.
Rabourdin é filho natural de uma cortesã, protegida, à sombra, por um pai vigoroso e educado
em boas escolas, bem casado e que pode contar com relações sólidas com a alta administração.
Baudoyer é filho de um casal de operários curtidores de couro, admitido na administração
central graças ao auxílio de um tio, oficial de justiça, casado com Elisabeth, filha de um caixa
do ministério e enraizada em uma genealogia de pequenos comerciantes e artesãos parisienses.
Conhece-se o desdobramento dessa luta, que permaneceu confusa durante longos
capítulos e arbitrada pela ação contraditória de toda uma gama de intermediários que vinculam
as duas famílias e seus parentes à alta administração e às esferas do poder econômico e
financeiro. Sabe-se também que a pluma de Balzac atribuirá o cargo a Isidore Baudoyer,
exemplo, para ele, de um movimento funesto de mobilidade do povo esperto e obtuso em
direção às camadas medianas da burguesia. No entanto, para além da obsessão do autor, o que
permanece é que o romance apreende com uma extraordinária eficácia as linhas de força e as
tensões que articulam e estruturam, ao longo do século XIX, o espaço da administração francesa
no qual evoluíam Chabanel, De Beauvais, D’Auvergne, Cassard e todos os outros empregados
e altos funcionários que deixaram um vestígio no acervo do Arquivo Nacional.26
As fontes aqui estudadas coincidem com a descrição romanesca e oferecem quase
exatamente a mesma imagem de um espaço administrativo estruturado por duas formas
diferentes de articulação dos vínculos, ao mesmo tempo contraditórias e complementares. Por
um lado, articulações, por assim dizer, horizontais, marcadas pela imagem da proximidade, do
interconhecimento e do compartilhamento das mesmas referências culturais. Rabourdin e sua
mulher, em seu cômodo apartamento do primeiro distrito,27 estão no centro de um perfil de

26
Sabe-se que os temperamentos de Laure, a irmã de Honoré de Balzac, e de Eugène Surville, seu marido, foram
fonte direta para a construção das personagens de Xavier Rabourdin e de sua esposa Célestine. Cf. especialmente
Meininger (1985).
27
No antigo e atual primeiro distrito: Balzac situa o apartamento dos Rabourdin na rua Duphot, uma travessa da
rua Saint-Honoré e da avenida des Capucines “construída sob o Império […], notável – como ele mesmo lembra
– em razão de algumas casas elegantes por fora e cujos apartamentos eram, geralmente, bem equipados” (Balzac,
1844:115).

137
vínculos nos quais encontramos uma gama de fisionomias muito próximas daquelas evocadas
nos dossiês de Émile Célestin Chabanel, Edmond de Beauvais ou Louis Claude d’Auvergne.
Todas as sextas-feiras, no salão da senhora Rabourdin, pode-se ficar lado a lado com deputados,
com um secretário de ministro, com administradores, com funcionários, mas também com
banqueiros, aristocratas, artistas e uma pequena multidão de arrendadores. O que nos lembra,
obviamente, as noites da família Bousquet, em que Chabanel pai tinha “a honra e o prazer” de
reencontrar o ministro e sua família, srta. Chabaud-Latour, Jules Nouguier e tantas outras “boas
relações”. Além disso, pensamos também no grupo de personagens reunidos em torno do dossiê
de Edmond de Beauvais, isto é, o conde, seu pai, três deputados, um general e titular da Câmara
dos Pares, um contra-almirante e um presidente de tribunal. Ou ainda, no meio social de Louis
Claude d’Auvergne, os vultos das tias, que poderiam perfeitamente ter lugar em uma das
páginas de Balzac para saborear “uma xícara de chá” na casa da sra. Billotte, sua amiga
importante.
Por outro lado, há relações verticais, que vinculam esse mesmo terreno a zonas mais
pobres do espaço social. Baudoyer, o adversário vitorioso de Rabourdin, vem de baixo. Em sua
família, como naquela da mulher, o bem-estar recente foi alcançado sobretudo mediante o
trabalho diligente no mundo do artesanato e do comércio. Nas recepções noturnas organizadas
pela esposa Elisabeth, no apartamento deles, no bairro popular do Templo, os convivas são
oficiais de diligências e funcionários de baixo escalão, artesãos e mercadores, penhoristas e um
abade. Encontramos, portanto, as mesmas raízes e os mesmos vínculos nos dossiês desses
funcionários, oriundos de famílias mais pobres, que tentam alcançar o bem-estar relativo do
qual falava Alexandre Joseph Cassard em seu pedido de ajuda. Essas raízes e vínculos articulam
um espaço vasto que surge para nós ao mesmo tempo marginal e profundamente solidário com
as áreas “altas” da administração. Como no caso de Cassard, isso confere, muitas vezes, uma
impressão negativa, com as queixas e solicitações de reembolso dos credores. Uma multidão
composta de proprietários, joalheiros, donos de armazéns e fornecedores de todo tipo revela a
tensão dessas famílias, desmembradas entre a pobreza e a busca do bem-estar, mas que surgem
como se estivessem profundamente entrelaçadas no espaço institucional.
O mundo administrativo assim retratado é naturalmente estruturado de maneira
importante pelos eixos das hierarquias sociais. Em primeiro lugar, os altos funcionários (e uma
parte dos funcionários medianos) que avançam em um ambiente modelado por relações
formadas horizontalmente nas camadas mais privilegiadas da sociedade parisiense. Em seguida,
os pequenos e médios funcionários, todos aqueles que vêm das camadas mais baixas da
sociedade e que constituem a base, que se pode denominar popular, da administração. Ainda

138
assim, tanto o perfil balzaquiano quanto a imagem decorrente da nossa leitura dos documentos
se afinam para mostrar o quanto essa configuração está longe de estar estabilizada e bem
ordenada. Mais do que uma estrutura sólida e inviolável, observamos um campo de forças
tracionado pelas tensões contraditórias que o atravessam. No centro desse campo, há um núcleo
duro constituído pelas famílias que adquiriram sua posição graças ao patrimônio e às múltiplas
relações que mantêm, além da presença importante na administração e em um meio social
próximo. Em torno disso, estão as outras famílias, situadas a distâncias que variam em função
não somente da natureza de seus vínculos e categoria, mas também de sua capacidade de
interagir dentro desse sistema relativamente complexo.
Assim, torna-se indispensável observar melhor a natureza dos movimentos e dos fluxos
que compõem e atravessam esse campo de forças, para compreender quais são as expectativas
e as lógicas sociais presentes por trás dos discursos e das práticas administrativas. Podemos
fazê-lo fundamentando-nos na análise dos enraizamentos sociais das famílias de origem e, mais
precisamente, graças à profissão declarada pelos pais dos funcionários no momento do registro
de seu nascimento. Como veremos, os dados são desiguais, pois as informações se tornam mais
numerosas à medida que se avança ao longo do século.28 Apesar disso, eles fornecem uma
medida útil e, por enquanto, única, das diferentes forças que estruturam uma administração
central no decorrer do tempo.
Consideremos, em primeiro lugar, as profissões declaradas pelos pais no momento do
nascimento daqueles que ocupam, no fim de carreira, um cargo de alto funcionário, isto é, de
chefe de escritório até chefe de repartição ou secretário-geral do ministro.

Tabela 1
PROFISSÕES DECLARADAS PELOS PAIS DOS ALTOS FUNCIONÁRIOS NO MOMENTO DO NASCIMENTO DE SEUS FILHOS

1802-1847 1848-1870 1871-1904


Administração 5 (19,2%) 6 (15,8%) 12 (27,3%)
Justiça 7 (26,9%) 10 (26,3%) 12 (27,3%)
Exército 3 (11,5%) 2 (5,3%)

Comerciantes 3 (11,5%) 7 (18,4%) 7 (15,9%)

Artesãos 1 (2,6%) 2 (4,5%)


Operários 1 (2,6%) 2 (4,5%)

28
Para a primeira metade do século, a porcentagem de certidões encontradas é muito baixa, variando entre 30% e
55%, enquanto pudemos encontrar mais de 70% das certidões para o período 1860-1903. Para uma descrição mais
detalhada dos dados e das técnicas utilizadas na construção da pesquisa, cf. Cristofoli et al. (1999)

139
1802-1847 1848-1870 1871-1904
Criados 3 (11,5%) 2 (5,3%)
Agricultores 2 (7,7%) 2 (5,3%) 4 (9,1%)
Profissionais. liberais 1 (2,6%)

Proprietários 3 (11,5%) 5 (13,2%) 4 (9,1%)


Outros 1 (2,6%) 1 (2,3%)
Fonte: Elaborada pelo autor.

Na tabela 1, reuni as profissões declaradas por 109 pais de futuros funcionários de alto
escalão em 11 grupos que parecem melhor corresponder à natureza dos dados e das perguntas
aqui formuladas. No momento da assinatura das certidões de nascimento, portanto bem antes
de os funcionários dos quais falamos iniciarem sus carreiras, a maior parte dos pais já estava
fortemente enraizada na administração (ou em uma instituição próxima). Ao longo do século,
entre 19 e 27% dos pais tinham feito parte da administração central. Além disso, se
considerarmos também os filhos de militares de carreira, juízes, advogados, escrivães (os três
últimos estando aqui agregados na categoria justiça), alcançaremos um número que
permanecerá constantemente acima de 54%.
Também observamos um núcleo duro de famílias que ocupam estavelmente as áreas altas
da administração do Estado. E a análise qualitativa mostra ainda mais claramente que uma parte
relativamente importante dos altos funcionários fundamenta sua legitimidade e saber
administrativos nas relações e nos conhecimentos de um pai e de uma família que evoluíram
sob um regime precedente. Ao mesmo tempo, observamos também a presença de vários
movimentos que se agitam em torno desse núcleo aparentemente estável. No meio desses
movimentos, dois mostram-se particularmente importantes. Por um lado, o progressivo
esgotamento do exército como fonte de recrutamento dos altos funcionários. No decorrer da
primeira metade do século, temos altos funcionários com um pai oficial, enquanto, a partir da
segunda metade do século, sua presença se enfraquece até desaparecer completamente na
Terceira República.29 Por outro lado, assiste-se à abertura crescente da alta administração ao
mundo do artesanato e do comércio. Os pais comerciantes passam, com efeito, de 11 a 16% e,
a partir dos anos 1850, vemos o aparecimento dos primeiros filhos de operários e de artesãos.

29
Trata-se de uma quantidade de dados muito fraca, mas se considerarmos que esse esgotamento ocorre
simultaneamente ao aumento do número de filhos de administradores (passados de 18 para 27,8%), torna-se claro
que esses números mostram uma mudança importante dos grupos sociais nos quais a administração recruta seus
membros.

140
Um núcleo de famílias muito estáveis, uma zona de turbulência marcada pelo
relaxamento de antigos vínculos e pela atração progressiva de novas fisionomias sociais – todos
esses elementos mostram que o fenômeno de atração da administração central em direção às
trajetórias de mobilidade oriundas do mundo do artesanato e do comércio se manifesta de modo
sensível sobretudo a partir da segunda metade do século.30 O perfil torna-se ainda mais claro se
considerarmos as profissões declaradas pelos pais dos empregados que ocupam as categorias
médias e baixas.
As mesmas tendências já evocadas também se aplicam aqui. Entre os funcionários
medianos, observamos a quantidade crescente de famílias que já possuem vínculos diretos com
a administração (16, 21 e 33%), um esgotamento paralelo da presença do Exército e também
do mundo da Justiça (de 55,6 a 19,7%) e, sobretudo, o impacto das atividades artesanais e de
comércio (de um único caso na primeira metade do século aos 16 casos sob a Terceira
República). Os dados sobre os empregados das categorias inferiores seguem esse movimento,
mas com nuances interessantes. A mesma tendência observada de aumento do
autorrecrutamento ocorre graças à estabilização de famílias com raízes artesanais e operárias,
principalmente. E também observamos a presença contínua de filhos de criados, ainda que
fraca, no interior desse universo.
É difícil resumir as dinâmicas e os movimentos que convergem nesses espaços sem
reduzir a complexidade com que estão entremeados. Entretanto, certo número de tendências é
claro e permite completar as imagens restituídas pelos dados qualitativos.
A primeira, e a mais evidente, é certamente aquela que é dada pela importante estabilidade
do meio que ocupa o núcleo central do espaço administrativo. Esse fenômeno, que vimos
reiteradamente, aparece como particularmente dominante, sobretudo nas categorias da alta
administração. Não obstante, a comparação dos três grupos mostra que ele se manifesta também
de modo significativo nas categorias medianas, a partir da segunda metade do século e, a partir
dos anos 1870, nas categorias mais baixas da administração. Portanto, nos mesmos organismos
coexistem duas formas diferentes de agregação e de reprodução. De um lado, há aquela, mais
antiga, articulada em torno dos vínculos dos altos funcionários, duravelmente enraizada no

30
Portanto, com sua especial sagacidade crítica, Honoré de Balzac apreendeu, no momento em que escreveu, um
fenômeno que foi apenas delineado no reino de Luís Filipe, mas que parece se tornar importante sobretudo a partir
do Segundo Império. Com efeito, ao me reportar particularmente aos personagens que compõem os números das
tabelas para a primeira metade do século e aos 26 altos funcionários para os quais pude reencontrar informações
sobre a família de origem, registro um único caso de mobilidade importante e assimilável ao percurso social de
um personagem como Baudoyer. No entanto, para a segunda metade do século, pude observar pelo menos uma
dezena de percursos que se encaminham pelo mundo do pequeno artesanato e do comércio, do interior e da capital,
para alcançar os cargos centrais desta administração.

141
terreno povoado pelo conjunto de recursos econômicos e simbólicos do Estado, no interior do
qual reencontramos os juízes e arrendadores, advogados e conselheiros, responsáveis políticos
e proprietários. Por outro lado, existe uma forma mais recente de agregação que coagula o
percurso das famílias dos funcionários de categoria mediana, mostrando ligações muito mais
relaxadas com os meios políticos e jurídicos, porém dotadas também de várias relações abertas
para as zonas de mobilidade que acabamos de observar. A segunda tendência é dada pela
crescente atração exercida pela administração central sobre o mundo dos pequenos artesãos e
comerciantes. Essa tendência é muito clara, mas eu gostaria de destacar a especificidade do
valor social de um fenômeno assim. De fato, estamos habituados a pensar os mundos do
comércio e do artesanato como próximos do mundo da administração, graças também às
imagens direcionadas pela literatura. Ora, isso está longe de ser óbvio, no início do século XIX.
Os cargos administrativos, muitas vezes percebidos como mais estáveis e simbolicamente mais
prestigiosos, poderiam ter sido cobiçados e utilizados por outros meios, por outros setores da
sociedade. Aliás, no princípio do século, eles não somente parecem estar mais visíveis, como
também mais facilmente ao alcance das famílias dos militares de carreira, dos criados e de uma
parte específica do mundo artesanal.31 Logo, não é óbvia nem natural a orientação para a
administração e para as profissões do setor público por parte das famílias enraizadas em uma
experiência social na qual se misturam o comércio e o pequeno artesanato. Essa orientação está
ligada a uma conjuntura precisa que aumenta a visibilidade e abre o acesso a esses grupos e a
terrenos sociais específicos, ao mesmo tempo que também os reduz para outros.

Tabela 2
PROFISSÕES DECLARADAS PELOS PAIS DOS FUNCIONÁRIOS DAS CATEGORIAS MEDIANAS E INFERIORES NA ÉPOCA DO
NASCIMENTO DE SEUS FILHOS (%)

1802-1847 1848-1870 1871-1904 1802-1847 1848-1870 1871-1904


Administração 3 (16,7) 12 (21,4) 19 (33,3) 3 (10,7) 4 (13,8) 10 (21,3)
Justiça 5 (27,8) 7 (12,5) 7 (12,3) 2 (7,1) 3 (10,3) 3 (6,4)
Exército 5 (27,8) 6 (10,7) 4 (7,0) 3 (10,7) 1 (3,4)

Comerciantes 6 (10,7) 9 (15,8) 3 (10,7) 3 (10,3) 7 (14,9)

Artesãos 2 (3,6) 4 (7,0) 4 (14,3) 8 (27,6) 7 (14,9)

31
Muitas vezes, trata-se de atividades artesanais com um conteúdo técnico que as aproxima do Exército e do
trabalho doméstico, como parecem indicar não somente as profissões dos pais, mas também as profissões das
testemunhas, no momento de seu nascimento. Para uma análise mais detalhada desses espaços, cf. Gribaudi e
Magaud (1999).

142
1802-1847 1848-1870 1871-1904 1802-1847 1848-1870 1871-1904
Operários 1 (5,6) 2 (3,6) 3 (5,3) 2 (6,9) 8 (17,0)
Criados 5 (17,9) 3 (10,3) 2 (4,3)
Agricultores 2 (11,1) 1 (1,8) 1 (1,8) 4 (14,3) 4 (8,5)
Prof. liberais 2 (11,1) 3 (5,4) 2 (3,5) 3 (10,7)

Proprietários 7 (30,4) 6 (10,5) 1 (3,6) 5 (17,2) 6 (12,8)


Outros 2 (3,5)
Total 18 (100,0) 56 (100,0) 57 (100,0) 28 (100,0) 29 (100,0) 47 (100,0)
Oficiais de diligências e auxiliares de
Funcionários
escritório
Fonte: Elaborada pelo autor.

Tabela 3
LOCAIS DE NASCIMENTO E POSIÇÕES PROFISSIONAIS ALCANÇADAS

Nascidos no interior Nascidos em Paris Nascidos na área metropolitana de


Paris
Baixo Funcionário Alto Baixo Funcionário Alto Baixo Funcionário Alto funcionário
funcionário funcionário funcionário funcionário funcionário
1800- 60,6% 60,0% 66,7% 27,3% 24,0 % 16,7% 12,1% 16,0% 16,7%
1821
1822- 53,2% 59,1% 61,5% 36,2% 37,3% 25,6% 10,6% 13,6% 12,8%
1847
1848- 56,4% 60,3% 55,1% 34,5% 29,4% 40,6% 9,1% 10,3% 4,3%
1870
1871- 80,0% 66,7% 62,7% 10,0% 27,3% 35,8% 10,0% 6,1% 1,5%
1904
Fonte: Elaborada pelo autor.

Centro e periferia: o enraizamento espacial da administração

A análise das origens profissionais e sociais dos funcionários e dos altos funcionários mostra
que as fisionomias sociais que povoam esses espaços modificam-se sensivelmente no decorrer
do século. Deve-se agora considerar a dimensão espacial na qual se ancoram e se implementam
essas dinâmicas e movimentos, pois, apesar de todos os funcionários avançarem ao longo de
sua carreira no espaço da capital, ocorre que eles, em sua grande maioria, nasceram no interior.
Os dados são claros e não precisam de nenhum comentário em especial: ao longo de todo
o século, nos corredores das administrações, os funcionários do interior prevalecem largamente
sobre os parisienses. A presença massiva e constante de funcionários nascidos no interior
revela, no entanto, mecanismos interessantes que contribuem para consolidar e ampliar, pelo

143
reforço de suas interfaces interioranas, a cultura do saber das relações que acabamos de
observar. Esses mecanismos também favorecem, como procurarei mostrar na seção seguinte, a
eclosão de mutações mais importantes que podemos observar nessa cultura, no século como um
todo.
A história de Edmond de Beauvais, o jovem advogado oriundo de uma família da pequena
nobreza do departamento de Eure, já nos forneceu os elementos centrais para esse tipo de
análise. Ao se candidatar para um cargo de extranumerário, o jovem homem evocava muitos
detalhes do status e dos vínculos de sua família, mas ele também acreditava que fosse necessário
mobilizar diversos personagens que permitissem relacionar o espaço local com o parisiense:
três deputados do departamento, um general e titular da Câmara dos Pares, um contra-almirante
e um presidente de tribunal.
Nos dossiês dos funcionários nascidos no interior, encontramos outra vez os mesmos
elementos. Muito mais do que no caso dos parisienses, cada pedido de contratação, de
progressão ou de atribuição de auxílios financeiros é acompanhado de uma carta de um
responsável político ou de um alto funcionário fortemente ligado aos locais de origem do
impetrante. Pode-se tratar de um eleito que representa a região na Assembleia Nacional ou,
ainda, de alguém notável, originário daquele lugar ou bem enraizado na realidade local. A
presença de uma figura assim parece, então, constituir nos dossiês dos impetrantes do interior
uma garantia indispensável para um desfecho feliz. O que se destaca de forma particularmente
explícita na carta que Pierre Joseph Debionne, tabelião e juiz de paz em Fontainebleau, envia,
em agosto de 1847, ao deputado do departamento, o conde Paul de Ségur, para convencê-lo a
apoiar o pedido de progressão de seu filho Barthélémy, serventuário nos escritórios da seção
departamental do Ministério do Interior:

Senhor Conde,
Lamento importuná-lo novamente, mas o senhor, de alguma forma, autorizou-me a fazê-
lo, uma vez que me prometeu seu indulgente apoio ao meu filho, de quem o senhor já teve
a bondade de cuidar, e para o qual o senhor pode ser mais útil do que nunca neste momento,
da forma como lhe explicarei. O Sr. Tavenet, capitão da marinha, irmão do sogro do meu
filho, encontrou há algum tempo o Sr. Passy para pedir-lhe uma progressão para redator,
nas circunstâncias das primeiras promoções que ocorreram nos escritórios. O Sr. Passy
recebeu muito bem o Sr. Tavenet [...].
Ora, esta ocasião apresenta-se neste momento [...].
Já tive a honra de dizer-lhe, senhor Conde, que os senhores Janvier, Garnier e
Hernoux, deputados, também têm interesse no meu filho. Todos os três haviam-no

144
recomendado ao senhor Subsecretário de Estado, mas também todos os três achavam que
seu apoio seria bem mais eficaz do que o deles, não somente por causa da sua credibilidade
junto ao senhor Passy e do Sr. Duchâtel, mas porque o senhor é o deputado do distrito no
qual reside o pai de seu protegido; e, sobre isso, devo acrescentar que o Sr. Janvier, que
encontrou há pouco tempo o Sr. Passy, disse ao meu filho, prometendo revê-lo: “sua
questão está bem encaminhada; o Sr. Passy está receptivo ao senhor, mas o Sr. de Ségur,
seu deputado, é, para este assunto, a principal alavanca: é necessário pedir-lhe que aja, sem
perder tempo”.[...]
Peço-lhe desculpas por importuná-lo novamente, já agradecendo antecipadamente e
rogando que aceite a expressão renovada dos sentimentos respeitosos com os quais tenho
a honra de ser, bem sinceramente, senhor Conde,
Seu muito humilde e totalmente dedicado servidor.32

Essa carta restitui toda a gama de práticas consideradas evidentes e naturais no


panorama desSa família de pessoas notáveis. Desse modo, observamos novamente que, ao se
dirigir ao deputado do departamento, Debionne pai não acredita ser necessário fornecer
informações técnicas especiais sobre o dossiê do seu filho, que ele lança rapidamente em um
único parágrafo. Ao contrário, ele lembra ao interlocutor sua posição e aquela de sua família,
evocando os vínculos, que considera importantes, que ele soube mobilizar na época desse
pedido. Finalmente, explicita as razões que tornam indispensável a intervenção do
deputado.”Sr. de Ségur, seu deputado, é, para este assunto, a principal alavanca: é necessário
pedir-lhe que aja, sem perder tempo”, escreve em sua carta. O tom e a explicitação dos discursos
conduzidos por terceiros sobre o papel do deputado mostram a que ponto a forma de agir parece
natural aos olhos de todos os protagonistas. O que se pede ao conde de Ségur é que desempenhe
o papel de certificador, com relação aos responsáveis parisienses, das qualidades sociais e
relacionais de que se reveste essa família do interior.
Se os notáveis parisienses podem explicitar os vínculos que os ligam diretamente ao
espaço administrativo, as pessoas do interior devem fazer com que suas relações sejam
traduzidas e certificadas, lançando mão de uma figura que transita entre os dois espaços. Isso
aparece claramente se reconstituirmos de modo esquemático as ligações evidenciadas através
do primeiro dossiê que foi inicialmente evocado, aquele de Émile Chabanel, e aquele de
Debionne. As distâncias entre as formas de vínculos envolvidas nos dois casos são óbvias. No
primeiro caso, as ligações de sociabilidade (em linha pontilhada), de parentesco (em negrito) e

32
AN, F1 Bl 2641.

145
de trabalho (em traçado simples) superpõem-se sobre as mesmas pessoas e nos mesmos meios
físicos, contribuindo para aumentar a coesão do espaço no qual se inscreve a figura de
Chabanel. Já na segunda situação, nenhum vínculo liga Barthélémy Debionne diretamente ao
espaço de relação dos altos funcionários do ministério. Sendo assim, sua ancoragem e
pertencimento devem ser certificados por uma pessoa dotada de ligações sólidas com ambos os
espaços, o que é o caso de Paul de Ségur.33

Figura 2
VÍNCULOS E ANCORAGENS GEOGRÁFICAS EXPLICITADAS NA CONTRATAÇÃO DE ÉMILE

Fonte: Elaborada pelo autor.

33
O conde Paul de Ségur era uma figura bastante importante durante a Monarquia de Julho. Filho de um nobre do
Primeiro Império, tendo ele próprio combatido com Napoleão, foi nomeado general e titular da Câmara dos Pares
pela Monarquia de Julho e recebeu o título da Ordem Nacional da Legião de Honra em 1847.

146
Figura 3
VÍNCULOS E ANCORAGENS GEOGRÁFICAS EXPLICITADOS NO PEDIDO DE PROMOÇÃO DE BARTHÉLÉMY DEBIONNE

Fonte: Elaborada pelo autor.

Os vínculos e a linguagem podem ser mais ou menos relaxados e compartilhados. No


entanto, através dessas práticas, é sobretudo o status do tabelião atuando na mediação que se
destaca. Esse é, aliás, chamado, em vários casos para intervir novamente quando é necessário
auxiliar na progressão profissional do protegido. E ele o faz utilizando muito explicitamente a
linguagem do pertencimento e das origens, significando, dessa maneira, a pertinência de seu
julgamento.
“Sr. Delort, meu compatriota”, é, por exemplo, o incipit da carta redigida pelo sr. De
Barris, presidente da Corte de Cassação, para apoiar o processo de Joseph, jovem empregado
do departamento de Gers que pleiteia sua primeira promoção.34 Do mesmo modo, quando o
general do duque de Bordeaux escreve, em 1822, para apoiar o pedido de aumento de Maurice
Palluys, chefe de escritório do Ministério do Interior, ele rapidamente lembra-o de que esse é
um de seus “compatriotas e antigo conhecido”.35 E se fala do “interior”, no sentido de região
de origem, nos dossiês de Sari, de Rouxel, de Vallet e de dezenas de outros funcionários do
interior que devem fazer referência, ao longo da carreira, à figura de um mediador para provar
a qualidade de seu enraizamento social e, através disso, justamente, a qualidade de suas
competências profissionais.

34
AN, F1 Bl 2633.
35
AN, F1 Bl 2633.

147
A centralidade de tais figuras parece reforçada pelos vínculos que se estabelecem em
torno das contratações de pessoas do interior nas categorias menos qualificadas da
administração. Os cidadãos notáveis, que se mobilizaram para pedir um cargo ou uma
progressão de um membro da boa sociedade local, solicitam as mesmas relações “parisienses”
para introduzir um filho ou o parente de um protegido, muitas vezes de um criado ou de um
simples funcionário da administração local. Podemos citar como exemplo o dossiê de Pierre
Lagravère, nascido em Bayonne em 1798, indicado na certidão de nascimento como filho
natural “de pai desconhecido”, mas que será reconhecido, 31 anos depois, por um comerciante
do lugar.36 Pierre entra no segundo escritório da seção municipal do Ministério do Interior em
1843, com 45 anos. Mesmo não dispondo de muitos meios, ele possui, no entanto, uma série de
vínculos que lhe garantem contato com as camadas mais favorecidas da sociedade do interior.
Sendo assim, é uma certa sra. Barbedat que pede ao conde d’Argout, seu parente, para intervir
junto ao ministério para recomendar Lagravère para seu primeiro cargo de extranumerário. Em
seguida, dois anos mais tarde, é o arcebispo de Bordeaux que se dirige ao ministro do interior
em pessoa para apoiar o pedido de promoção. E, finalmente, na nova conjuntura política de
1848, os deputados dos Pirineus Atlânticos, Cheyron e Lefèvre, recomendam-no para receber
um aumento.
O que nos chama a atenção, aqui, é que a discussão e a avaliação da qualidade dos
vínculos não dizem mais respeito à família do candidato, mas sim àquela de seus protetores
locais. Desse modo, a carta do Conde d’Argout surge de forma decisiva, principalmente por
fazer referência às qualidades sociais da senhora Barbedat, a dama que”apresenta” Pierre
Lagravère. Com a contratação de um funcionário de categoria inferior e vindo do interior,
ocorre, portanto, um completo jogo de reconhecimentos que contribui, antes de mais nada, para
reforçar o amplo tecido de relações vinculando os altos funcionários parisienses a uma parte
das elites e dos notáveis do interior. Entretanto, ao mesmo tempo, esses mesmos mecanismos
contribuem para consolidar a presença do interior do país nas categorias da administração
central, abrindo novos canais de mobilidade para as famílias menos favorecidas.

36
A certidão de nascimento indica Pierre como sendo filho de Josèphe Labadie. Trata-se de uma certidão
depositada de forma anônima, pois a parteira é a declarante e dois guardas municipais são testemunhas. Uma
inscrição à margem indica, entretanto, que 31 anos depois Pierre foi reconhecido como filho de Jean Marcel
Lagravère, antigo comerciante, e de Josèphe Labadie, “de acordo com a certidão do casamento deles, celebrado
em 7 de novembro de 1812” (A-ldh/M1INEDA750).

148
A Terceira República e a politização do vínculo

Longe de parecerem marginais, as trocas abertas entre a administração central e a província


parecem adquirir importância ao longo do século, como mostra o crescente número de pessoas
do interior presentes nos escritórios ministeriais.37 O aumento torna-se particularmente sensível
no que diz respeito às categorias medianas e inferiores da administração: no decorrer do último
quarto do século XIX, 80% dos funcionários de categoria inferior e 67% daqueles de categoria
mediana nasceram no interior.
Se nos mecanismos de contratação de pessoas do interior observamos, muito
provavelmente, a reprodução de práticas antigas, a importante aceleração experimentada pelo
fenômeno, no final do século, reflete, por sua vez, as mutações significativas que ocorrem nesse
momento no sistema administrativo e na política global. O término do Segundo Império e a
instauração progressiva do sistema republicano acompanham-se, portanto, de uma politização
crescente do espaço administrativo que esmorece diretamente sobre a cultura e a linguagem
relacionais dos dossiês, transformando sua natureza e significação.
Um exemplo claro das modalidades pelas quais acontecem essas modificações é dado
pelo dossiê de contratação de Jacques Jean-Marie Candel.38 Nascido em 1848 em Bessières,
uma cidade do departamento Haute-Garonne, Jacques Jean-Marie é filho de pequenos
comerciantes que se esforçaram para lhe oferecer a possibilidade de estudar e obter a
certificação do exame final do ensino médio. É interessante observar que qualquer negociação
iniciada com a administração se faz explicitamente com relação às formas de lealdade e dever
de fidelidade política que a contratação permite confirmar. A carta de recomendação redigida
para apoiar seu pedido é, nesse sentido, muito explícita. Escrita em Toulouse, em 22 de março
de 1898 por Jean Gruppi, é endereçada com o carimbo “urgente e muito confidencial” a um
alto funcionário do Ministério do Interior que permaneceu anônimo:

Meu caro amigo,


Na nossa Gascogne as coisas tornam-se ruins bem no momento em que elas parecem
melhor funcionar... Eis-me aqui mergulhado em problemas! A quem me dirigir se não a ti?
Aqui está o assunto de que se trata: Candel, de quem te falei várias vezes, é amigo
íntimo do Sr. Montané. Ora, este Sr. Montané, diante da inutilidade dos procedimentos já
realizados, está disposto a recusar de me ajudar se eu não obtiver para o seu amigo o cargo
solicitado, seja na segurança geral, seja na administração penitenciária.

37
Cf. os dados da tabela 3, acima.
38
AN, F1 1bI/406.

149
O Sr. Candel é um homem com força plena, ativo, inteligente, enérgico. Ajuda-me,
eu te peço, a inseri-lo; foi ele que lutou por Montané sob qualquer circunstância; ele luta
por mim
Se Candel fosse do clã socialista, escreveu-me o Sr. Montagné em uma carta pouco
amistosa, ele já teria sido nomeado. É bem verdade que nossos adversários sabem melhor
do que nós se colocar a serviço de seus amigos. Tu vês este caso Mirrirel que tanto me
incomoda, no cantão de Castanet (?)! E isto no momento em que Jaurès triunfa no Tarn; no
momento em que Amilheres, pressionado por todos os meus adversários, talvez deposite
sua candidatura!
Perdoa-me por este pessimismo, caro amigo, tenho andado um pouco preocupado
ultimamente, e não queria que minha candidatura, depois de um sucesso que pareceu
assegurado demais, terminasse em uma derrota, em parte resultante do descontentamento
de certos amigos.
A ti, de coração
Jean Gruppi.39

Como nos dossiês precedentemente evocados, o redator não se preocupa em definir as


capacidades profissionais do candidato ao cargo. Poucas palavras são utilizadas para descrever
a fisionomia de Candel (homem com força plena, ativo, inteligente, enérgico). Além disso, sua
significação é certamente reduzida pela frase que imediatamente segue: “Ajuda-me, eu te peço,
a inseri-lo”. Mais uma vez, a troca tem por objetivo principal confirmar e consolidar, por meio
da contratação, os vínculos e as alianças locais. Entretanto, o que chama a atenção, nesse caso,
e que é novidade, é o fato de que a linguagem expresse muito explicitamente a necessidade de
utilizar e de gerar os recursos da administração central em função da competição política.
Jean Gruppi, totalmente absorvido pela campanha eleitoral que se aproxima, quer reforçar
sua posição ao evitar afrontar a suscetibilidade de seus aliados. Parece-lhe, então, natural
responder aos pedidos solicitando a intervenção dos funcionários do ministério. Esses últimos
respondem, aliás, favoravelmente, visto que Candel será contratado quase imediatamente por
meio de um processo particularmente eficaz: uma nomeação direta para um cargo de
funcionário auxiliar com um salário de 1.800 francos anuais proveniente dos fundos secretos
do ministério.40

39
AN, F1 1bI/406.
40
Não se trata, no entanto, de um caso excepcional: vários funcionários são nomeados com base em um
procedimento direto; a utilização dos fundos secretos para pagar os salários era comum.

150
A carreira de Candel será movimentada. O que escreveu, longe de favorecê-lo, mostra-o
como um funcionário inepto e que resiste a qualquer atividade de escritório. Além disso, no
dossiê encontramos vestígio de muitas queixas por dívidas contraídas junto com sua mulher e
cartas endereçadas ao ministro por credores que tentam retomar seus bens. Em uma delas, o
redator, totalmente exasperado, chega até mesmo a ameaçar Candel de morte, chamando-o de
ladrão.
Na sequência das diversas ausências e desvios de conduta, Candel, apesar dos apoiadores
com que conta, será excluído do quadro de pessoal do Ministério do Interior em 1907. Apesar
disso, independentemente do desfecho do percurso profissional, seu dossiê interessa-nos porque
permite estimar uma mutação importante que se produz, paralelamente à politização do vínculo,
na cultura do saber das relações que acabamos de observar. Com efeito, a rede de ligações que
sustenta e apresenta Candel não se propõe mais como garantia de sua moralidade e de suas
capacidades profissionais. Até mesmo Jean Gruppi, que redigiu a carta de recomendação, não
se preocupa por ter fingido conhecer o candidato e sua família. Aos seus olhos, a troca serve,
principalmente, para confirmar o fato de que os funcionários do Ministério do Interior seguem
atentamente os esforços de construção e de reforço dos vínculos políticos locais.
O valor da contratação de Candel permanece, logo, relacional, mas não está mais ligada
à construção e à manutenção de um tecido de vínculos que seria, ao mesmo tempo, garantia de
profissionalismo e fonte de identificação social. A partir de agora, ela será totalmente
independente da figura do personagem. Jacques Jean-Marie Candel é admitido no quadro de
pessoal do Ministério do Interior, mas nem ele nem as competências de seu meio aparecem
como importantes. O que conta é a mensagem de confirmação dos vínculos políticos com o
interior do país, que a alta administração central transmite por meio da sua contratação.
Nesse novo contexto, paradoxalmente, tanto a mensagem parece forte e clara que o
candidato aparece como pessoa de pouca credibilidade. É o caso de Candel. Jean Gruppi tem
consciência disso, porque insiste, em sua carta, na necessidade de responder positivamente, com
o objetivo de enviar um sinal claro aos seus aliados políticos. Da mesma maneira, também têm
consciência disso os funcionários do ministério que apoiam e facilitam a contratação de um
personagem cuja fama local era negativa, como indica o fato de que a totalidade das queixas
depositadas em seu dossiê remontam ao período anterior à sua admissão no ministério.
Evidentemente, Candel não é o único malandro contratado desse modo. É o caso, por exemplo,
de Henri Fabre, filho do prefeito de Villefranche d’Aveyron, recrutado em 1890, levando-se
em consideração as numerosas e insistentes solicitações do prefeito e dos funcionários locais,
mas que se mostra, desde os primeiros dias de serviço, ao mesmo tempo incapaz e patife. Ainda

151
assim, como Jean-Marie Candel, Henri Fabre permanecerá no ministério por mais de 10 anos,
antes de ser exonerado, em 1901.41
Todos esses casos ilustram, portanto, as formas extremas de um fenômeno que vem
acompanhado, como destaquei, de um aumento importante do número de pessoas do interior
contratadas nas categorias inferiores e medianas da administração. Deve-se acrescentar que
grande parte dessas contratações ocorre, efetivamente, com a intervenção direta de um deputado
ou de um responsável político local.
A tabela 4 ilustra muito bem o exposto. Ao longo da primeira metade do século, os
deputados, administradores e homens políticos recomendam principalmente personagens
chamados para ocupar cargos na alta administração, enquanto depois da segunda metade do
século eles se esforçam bem mais em apresentar funcionários de categoria inferior.
Essa tendência está particularmente clara no que se refere aos eleitos locais, o que nos
convidaria a observar o impacto direto da introdução da lei eleitoral de 1875. E a lei, fruto de
uma longa negociação política, institui colegiados eleitorais para a nomeação de senadores,
colegiados nos quais os eleitos de cada município e distrito obtêm o direito de voto.42
Repentinamente, dessa forma, até mesmo o menor dos 30 mil municípios da França se torna
um terreno importante para o concurso eleitoral. Atrás de cada deputado que escreve ao
ministério ou a um alto funcionário parisiense para recomendar um Candel ou um Fabre,
percebemos, portanto, a preocupação em constituir uma reserva de votos para as eleições do
Senado.

Tabela 4
TIPOLOGIA DAS PESSOAS ÀS QUAIS SE ESTENDEM AS CARTAS DE APRESENTAÇÃO, DE ACORDO COM OS TIPOS DE
FUNCIONÁRIO E DOS ORGANISMOS ENVOLVIDOS

1805-1850 1851-1901
Func. Alto Func. Alto
Func. Total Func. Total
inferior func. inferior func.
Admin. e políticos
8,46 7,69 53,85 100 33,8 19,72 46,48 100
locais

41
O caso de Henri Fabre é muito interessante e mereceria um estudo aprofundado. Trata-se do filho de Joseph
Fabre, republicano conhecido pela força de seu comprometimento político. Dessa forma, seria interessante estudar
mais detalhadamente o emaranhado complexo de vínculos e a origem das diferentes pressões e interesses que se
manifestam em torno da contratação e do percurso profissional desse jovem homem, provavelmente até mesmo
para além das solicitações do pai. Ver AN, F1 Bl416. Sobre Joseph Fabre e as tensões políticas no interior de
Aveyron sob a Terceira República, cf. também Simpson (2005).
42
O artigo 4 da Lei Constitucional de 1875 estipula principalmente que “os senadores dos departamentos e das
colônias são eleitos por maioria absoluta e, quando for o caso, por escrutínio de lista, por um colegiado reunido na
cidade principal do departamento ou da colônia, e composto: 1o dos deputados; 2o dos conselheiros gerais; 3o dos
conselheiros distritais; 4o dos delegados eleitos, um por cada conselho municipal, entre os eleitores do município”.

152
1805-1850 1851-1901
Func. Alto Func. Alto
Func. Total Func. Total
inferior func. inferior func.
Assembleias
29,29 17,17 53,54 100 9,09 10,61 30,31 100
legislativas
Família e
31,43 40 28,57 100 41,67 31,67 26,67 100
parentela
Administrações 41,89 31,08 27,03 100 32,28 27,56 40,16 100
Jornais, Igreja 1,43 64,29 14,29 100 27,54 17,39 55,07 100
Profissões
médicas e 46,15 46,15 7,69 100 66,67 17,78 15,56 100
judiciárias

Total 246 236 237 719 668 436 532 1.636


Em % 34,21 32,82 32,96 100 40,83 26,65 32,52 100
Fonte: Elaborada pelo autor.

Porém as cartas, e mais geralmente o conjunto de documentos administrativos referentes


ao período, revelam também que a tomada de posição explícita da administração central na
gestão da vida política do interior está expressa no contexto de uma tendência mais geral de
traduzir os antigos discursos de pertencimento ao meio administrativo em termos de lealdade
política. Se, até então, a posição e a qualidade de um funcionário definiam-se pelas
especificidades dos vínculos que ele compartilhava com o espaço e com os meios da
administração, já a partir da consolidação progressiva da república são a proximidade com a
linguagem e as instituições do regime que se tornam instrumentos indispensáveis de medida.
Esse aspecto é particularmente importante, porque sugere uma mudança significativa na
relação com o discurso político e com o discurso republicano em particular. O que até então era
verbo de ruptura se transforma em idioleto de pertencimento às formas institucionais com as
quais as elites econômicas, políticas e administrativas do país vão progressivamente se
envolver, depois do episódio do município de Sedan. Logo, na difusão dessa linguagem, não
percebemos tanto uma forma de controle da qualidade da lealdade que teria por objetivo
purificar a administração, cooptando os militantes republicanos, mas sim os mecanismos de
adaptação das antigas elites e dos grupos dominantes no novo acordo político. De fato, a análise
dos dossiês revela que esse idioleto foi até mesmo utilizado para combater a ação de
administradores próximos demais de um ativismo reformador.43 E é por esse motivo também

43
Esse é o caso, em especial, de Charles Monod, alto funcionário e republicano progressista, atacado em seu
trabalho como “falso republicano” por um grupo de notáveis e administradores coalizados e organizados em torno
e fortes interesses locais (AN, F1 bl/424).

153
que não somente as cartas de apresentação, mas também o conjunto da correspondência
administrativa se colore de um verniz republicano.
Citarei, aqui, um único exemplo, extraído do dossiê de Émile Campagnole, que ilustra
bem as modalidades pelas quais a linguagem do pertencimento a um meio se metamorfoseia
naquela da lealdade republicana.44
O dossiê é muito rico. Além da sua descrição individual e do acompanhamento de
carreira, ele inclui várias cartas de recomendação, bem como uma cópia de seus títulos e escritos
de concurso. As poucas linhas do curriculum vitae apresentado por Émile quando pediu sua
contratação são, no entanto, e por si mesmas, muito significativas. Vê-se aí a ruptura importante
constituída pela implementação do novo regime. Essa vem acompanhada da reorientação dos
vínculos de acordo com as clientelas eleitorais, mas significa, principalmente, uma
transformação que surge de maneira definitiva da antiga linguagem do saber das relações que
toma as formas de um jargão específico, muito explicitamente fundamentado na utilização de
referências à ideologia e aos organismos do espaço republicano:

A partir do meu terceiro ano de direito (1882), fui vinculado à redação do Jornal “Le
Républicain” do Sudoeste. Como este jornal parou de ser publicado em dezembro de 1883,
acompanhei a redação do jornal “Le Petit Républicain” do departamento Haute-Garonne,
com o qual colaborei até 1885, época em que a preparação de minha tese de doutorado e
concursos para a bolsa municipal absorveu todo o meu tempo. [...]
Secretário da Conferência dos advogados estagiários em 1883 e em 1885, participei
ativamente dos trabalhos e discussões da conferência e pude afirmar muito claramente
minhas opiniões republicanas [...].
Admitido em 1887, membro da União da juventude republicana, realizei, em nome
desta sociedade de instrução e de educação democráticas, várias conferências [...].
Resido em Paris, na rua Brey, no 9, com meu pai, antigo coletor de contribuições
diretas em Castres (Tarn), e que, depois de se aposentar, em 1881, acompanhou-me,
primeiro em Toulouse e, em seguida, em Paris.
Além dos senhores Léon Say e Frézouls, senadores; G. Compayré e Fernand Faure,
deputados; Léon Donnat, conselheiro municipal de Paris, que quiseram comentar meu
pedido, posso indicar como referências:
Os senhores Elie Montagné, redator-chefe do “Petit Républicain” da HauteGaronne,
Alameda Lafayette, número 10 bis, em Toulouse;
Mandeville, conselheiro geral, em Fronton (Haute-Garonne);

44
AN, F1 1bI/564.

154
Pillore, antigo presidente da Ordem dos Advogados (exerceu o cargo durante meu
estágio como advogado), advogado da Corte de Apelação, na rua do Sénéchal, número 9,
em Toulouse; Adrien Hébrard, senador da Haute-Garonne cuja assinatura constaria ao lado
daquela de seu colega Sr. Frézouls, caso o Sr. Hébrard não estivesse, no momento, ausente
em Paris.
E como referências com respeito especialmente à minha família: os senhores
Mercadier, antigo prefeito do Governo da Defesa Nacional, cobrador particular em Castres,
quando meu pai era coletor naquela cidade, e, atualmente, tesoureiro contador geral do
Tarn, em Albi;
Mandeville, membro do Conselho Geral da Haute-Garonne, em Fronton (Haute-
Garonne).45

Conclusão

Observados através da imponente massa de correspondências e anotações que acompanham


cada funcionário no decorrer de sua carreira, os escritórios dos ministérios do Interior e do
Comércio surgem como se fossem nós, como pontos de aglutinação nos quais se reflete a
sociedade. Tanto quanto a sociedade que os assombra, eles se caracterizam mais por seus
sincretismos, pelas maneiras como os pedidos e as práticas – diversas e, muitas vezes,
contraditórias – conseguem coexistir ao se articularem nos mesmos espaços, do que por formas
únicas e coerentes.
No centro dessas dinâmicas e destas tensões, observamos a enorme importância que a
linguagem e as práticas relacionais adquirem ao longo do século na gestão do pessoal
administrativo. Em milhares de cartas e anotações depositadas nos dossiês individuais dos 534
funcionários cujos perfis reconstituí, há pouquíssimas referências às suas tarefas ou às suas
capacidades individuais. A atenção concentra-se sempre na avaliação extremamente precisa do
número e da qualidade dos vínculos que inscrevem cada empregado no espaço das relações da
administração.
Através dessas práticas, lemos, em primeiro lugar, a sobrevivência e a revitalização de
formas antigas de identidade profissional que pensam o saber técnico como um conhecimento
compartilhado por uma família e por um meio, que é transmitida principalmente através dos
vínculos diretos. É por isso que, desde a contratação e ao longo de toda a carreira, muito mais
do que diplomas ou títulos profissionais, o status da família e da parentela, a quantidade e a

45
AN, F1 1bI/564.

155
qualidade das relações recortadas no espaço concreto da administração constituem os elementos
principais sobre os quais se julga o saber profissional dos empregados e dos funcionários.
O todo revela a presença e o enraizamento profundo, em parte da sociedade francesa, de
uma verdadeira cultura de relações que pesa sobre as modalidades de pensar e de gerir a carreira
dos funcionários. Além disso, marca as formas de estruturação da administração, pois o fato de
pensar o conhecimento profissional como um saber compartilhado pelo ambiente relacional tem
por consequência, adicionalmente, que as fronteiras institucionais se atenuem e se ampliem para
o conjunto desses vínculos. Nós vimos isso. Por um lado, por meio desses mecanismos, os
organismos administrativos contribuem para modelar esses vínculos e as relações de seus
membros, incentivando certas práticas e obstaculizando outras, favorecendo ou restringindo o
acesso a novos recursos econômicos e profissionais. Por outro lado, por meio dessas ligações,
as estruturas administrativas tornam-se alvo da cobiça cada vez mais premente de uma parcela
crescente da população que as considera, antes de mais nada, inserida na ótica de estratégias de
mobilidade profissional e social.
Longe de surgir como um organismo bem estruturado e delimitado por suas funções, a
administração revela-se, na verdade, como uma colmeia agitada e totalmente integrada no
interior de uma sociedade que se transforma sob o efeito da tração de forças contraditórias. A
aparente continuidade dessas práticas relacionais dificilmente mascara as mudanças mais
importantes que ocorrem ao longo do tempo. Essas modificações vão globalmente no sentido
de uma abertura e de uma democratização das administrações centrais, mas marcam também o
deslocamento de suas raízes de uma zona a outra da sociedade francesa.
No decorrer das primeiras décadas do século XIX, o espaço dessas administrações está
fundamentalmente marcado pela taxa muito expressiva de autorrecrutamento das elites e pela
presença de relações diretas com o Exército e com as profissões menos humildes das
administrações locais. A fraca mobilidade que lemos ao longo desses anos acontece, portanto,
quase que exclusivamente por meio dos movimentos estabelecidos graças aos vínculos verticais
que religam essas zonas relativamente pobres da sociedade com a alta administração. A partir
da segunda metade do século, observamos, no entanto, uma mobilidade mais importante que
vem acompanhada de uma queda da taxa de autorrecrutamento das elites, de um aumento
considerável do número de funcionários com origem no interior do país e, sobretudo, da
abertura do recrutamento das categorias medianas aos espaços da sociedade marcados pela
presença de pequenos comerciantes, dos lojistas e dos artesãos das pequenas cidades do interior.
Apesar da estabilidade evidente de uma grande parte das elites administrativas,
observamos, portanto, uma mudança muito importante na composição relativa dos grupos e das

156
forças sociais que as povoam e as encarnam. Os pedidos e as tensões sociais que convergem
nesses espaços se transformam, assim, contribuindo para modificar radicalmente os conteúdos
de práticas aparentemente imutáveis.
A linguagem que estrutura a cultura do saber das relações e que continua a dominar as
trocas do conjunto da administração altera sensivelmente sua natureza. Até então, a ferramenta
de medida e de reconhecimento de um saber compartilhado, a linguagem, modifica-se
progressivamente, tornando-se um instrumento graças ao qual a administração central reforça
seus vínculos com o interior. No princípio da Terceira República, esse processo atinge seu
apogeu. É nesse momento que a cultura do saber das relações e os vínculos que ela tinha
possibilitado ampliar e manter com o interior passam a ser repentinamente solicitados e
reorientados para enraizar e estabilizar as camadas dirigentes ainda mal adaptadas às novas
vestes republicanas. A linguagem e as trocas politizam-se para se tornar, ao mesmo tempo,
expressão e controle de lealdade ao novo regime.
O próprio funcionamento administrativo não pode sair indene dessas transformações; ele
também não é autônomo com relação às tensões, tanto profundas quanto, muitas vezes,
invisíveis, produzidas pelas diferentes origens sociais dos funcionários, pelas relações que eles
estabelecem também por meio da administração, pela configuração complexa e variável na qual
eles estão inscritos ao longo de sua carreira.

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157
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_____. La bureaucratie aux xixe et xxe siècles. Paris: Economica, 1999
VIVIEN, A. Études administratives. Paris: Guillaumin, 1859.

159
7 Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na
França do século XIX

Maurizio Gribaudi

Introdução

O trem do tempo [escreveu Robert Musil no início do século XX] é um trem que vai à
frente de seus próprios trilhos. O rio do tempo é um rio que leva consigo suas margens.
Quem viaja se desloca por entre paredes sólidas e sobre um piso firme; mas piso e paredes
se descolam de forma muito rápida, acionados pelos movimentos dos viajantes, de forma
imperceptível [Musil, 1957:517].

Essas poucas linhas sintetizam a natureza da história e das dinâmicas que a envolvem. A
ideia é que, a cada momento, a realidade surge como algo totalmente determinado pelo conjunto
de atos que a precede, mas também como algo totalmente aberto, fruto instável do cruzamento
de inúmeras ações realizadas intempestivamente, por seres totalmente imersos em um presente,
composto por olhares e práticas que os acompanham.
Pelo menos teoricamente, as ciências sociais parecem, por fim, convergir para imagens
análogas, propondo-se recuperar a distância que as separa da literatura. Mas elas se mostram
muito mais reticentes na busca de se instrumentalizar adequadamente para o trabalhar empírico
dentro dessa ótica. Como apresentar e, sobretudo, como descrever percursos que se cruzam num
espaço que se modifica a cada movimento?
Colocados diante de tais questões, mesmo os pesquisadores mais sensíveis sempre
consideraram útil dar uma resposta, por assim dizer, pragmática. Parecia, e para muitos ainda
parece, mais simples e mais eficaz pensar em apresentar e descrever de um lado a evolução de
uma sociedade e de outro os percursos mais ou menos complexos dos indivíduos que a
compõem.
Tal resposta pareceria eficaz se considerássemos a produção de uma grande quantidade
de trabalhos sobre os mais variados momentos e espaços históricos, nos quais fossem analisados
os contextos e as ações individuais. Na realidade os resultados surgem de forma muito relativa,


Artigo originalmente publicado como: “Percorsi individuali ed evoluzione storica: quattro percorsi operai
attraverso la Francia dell’Ottocento” (Gribaudi, 2001).

160
visto que, de fato, em nome do pragmatismo, chegou-se a desvincular a história dos seus
mecanismos mais característicos, aqueles por meio dos quais ela gera continuamente as próprias
formas.
Assim, de um lado, pela exigência de apresentar e descrever a natureza de um contexto
foram criadas paisagens compactas e unidimensionais, com objetos que não têm nada de sólido
a não ser as crenças que suscitam, e de outro lado a biografia se isolou e se enrijeceu. Uma vida,
a evolução de um ser orgânico ao longo do tempo que contribui para construir com o próprio
movimento e as próprias relações, “os pisos e as paredes da história”, reduz-se a algo único,
duro e compacto, colocado como pedra fundamental da sociedade. Os paradoxos e os enormes
limites derivados da dificuldade de pensar a evolução dos indivíduos como um movimento
contínuo e indissociável do movimento da sociedade em que eles vivem, parecem-me
particularmente evidentes no quadro dos estudos migratórios. Apesar dos avanços conhecidos
no curso dos últimos decênios, os indivíduos têm uma tendência, no fundo, a reproduzir uma
única e rígida imagem: a imagem de um indivíduo ou de um grupo, um emigrante ou uma
comunidade, que se deslocam entre dois espaços físicos e culturais pensados, ao mesmo tempo,
como diferentes e estáveis. O emigrante é aquele que deixa um lugar e uma cultura bem
definidos para ir em direção a outro lugar e outra cultura, igualmente compactos e coerentes. O
indivíduo ou o grupo, de acordo com a situação, giram como uma bússola, entre esses dois
polos, também compactos. Definidos nas suas práticas e nas suas aspirações, de acordo com
suas origens, esses indivíduos podem adaptar-se ao novo espaço somente por meio de um
percurso de integração.
Os paradoxos são muito evidentes. Os dois polos, o indivíduo e o contexto, uma vez
criados, tornam-se inevitável e irremediavelmente enrijecidos, não sendo mais possível
compreender a natureza desse processo, por meio da sua real interação. Como é possível pensar,
como o fazem quase todas as pesquisas sociológicas, que exista um grupo de pessoas, cujo
comportamento é determinado por uma variável “origem”, definida pelo pertencimento físico
a um mesmo local de nascimento? Que esse pertencimento pese para todos, exatamente da
mesma forma? Que isso se mantenha estável ao longo do tempo até um fatídico momento de
ruptura, em que o indivíduo ou seus descendentes passam a fazer parte da categoria dos
integrados?
Tomando o indivíduo e o contexto como duas entidades separadas, perde-se a
possibilidade de considerar a natureza do espaço social através dos usos concretos feitos pelos
indivíduos que o compõem. O indivíduo e o espaço social evoluem e se modificam mutuamente,
um sendo parte do outro. É o que sentem os mesmos emigrantes, por meio de suas experiências

161
de vida, mas que nós, pesquisadores, com os poucos instrumentos de que dispomos, tentamos,
a duras penas, reconhecer e descrever.
Àqueles que lhes perguntam se se sentia dividido entre seus diferentes “pertencimentos”,
Amin Maalouf, o escritor franco-libanês, recentemente respondeu:

Metade francês e metade libanês? Absolutamente. A identidade não se compartimenta, não


se divide pela metade, nem em um terço, nem em zonas estanques. Eu não tenho diferentes
identidades, tenho uma só, feita de todos os elementos que a compõem, segundo uma
medida particular que nunca é a mesma, e muda de uma pessoa para outra [Maalouf, 1998].

Desenvolvendo seu pensamento, ele destaca como é impossível pensar em uma


identidade única, determinada de forma definitiva, pela origem. Para ele, a identidade é o
próprio processo da vida humana. E, enquanto processo, é mudança, diversificação contínua.
A imagem evocada por Maalouf não é, portanto, distante daquela de Musil. Ambos
consideram a experiência humana indissociável do espaço em que ela se concretiza. E ambos a
consideram indissoluvelmente ligada ao movimento, à transformação. Trata-se de imagens
convincentes que restituem, com uma rara potência, o sentido da história e das experiências
humanas. Mas é possível apreender e formalizar esses aspectos? É possível pensar a evolução
dos indivíduos como indissociável da evolução de seus contextos? É possível fundamentar uma
análise histórica sem separá-los? É o que procurei fazer neste ensaio, analisando percursos de
quatro operários, que se desenrolam no espaço geográfico e social da França do século XIX.
Quatro emigrantes que deixam, em momentos diferentes, suas vilas e suas famílias de origem
e chegam à capital após percorrerem caminhos mais ou menos longos e tortuosos. A tentativa
é, portanto, focalizar sua maneira de evoluir, evidenciando os próprios movimentos, “os
pavimentos e as paredes” da história. Os resultados são interessantes.
Tentar pensar a experiência individual em toda a sua particularidade como parte
indissociável de um contexto permitiu, acima de tudo, destacar a natureza pluridimensional do
espaço social. As experiências desses indivíduos se inscrevem e adquirem significados dentro
de um horizonte social no qual são interpretadas formas específicas de combinar símbolos,
recursos, lembranças e expectativas etc. Por tal ótica, a França do século XIX se mostra,
portanto, como um espaço no qual coexistem e se sobrepõem diversas sociedades.
Não se trata, evidentemente, de sociedades claramente estruturadas, para as quais
podemos traçar fronteiras definidas, mas sim, de zonas em que se consolidam experiências.
Tais zonas estruturam e hierarquizam, de maneira forte, a sociedade, visto que elas orientam e

162
controlam frequentemente importantes recursos econômicos e institucionais. Porém, ao mesmo
tempo, elas parecem instáveis e em contínua redefinição, exatamente porque são estruturadas e
reproduzidas pelas formas com as quais os indivíduos têm de experimentá-las, na dinâmica das
ações sociais.
Por essa ótica, fica claro que o percurso individual aparece não tanto como uma trajetória
mais ou menos linear de um conjunto compacto, mas como uma série de deslocamentos e de
reajustes de um enorme emaranhado de relações, experiências, lembranças e imagens
aglutinadas ao redor de um ponto de uma dessas zonas sociais. Esse emaranhado possui nós
que se reproduzem ou tendem a reproduzir-se ao longo dos movimentos migratórios,
englobando novos elementos, readaptando-os à própria lógica e transformando-se, todavia, por
meio dessas mesmas dinâmicas.
Esse é um processo ativo cuja natureza mostra ao menos duas importantes implicações:
de um lado, a presença de numerosas relações, abertas entre espaços geográficos os quais
estamos acostumados a interpretar por meio dos conceitos de origem e destino, como
definitivamente separadas; do outro lado, cada um desses espaços é dotado e caracterizado pelas
modalidades por meio das quais as experiências e as práticas sociais se transformam
continuamente.
Por fim, duas palavras sobre o material que eu utilizei. Foi extraído de um trabalho
conduzido em colaboração com Alain Cottereau sobre a releitura e a análise das 93 monografias
sobre operários reunidas na França, ao longo da segunda metade do século XIX, pelo grupo
criado por Frédéric Le Play.1 Como se sabe esse material riquíssimo e único no panorama
europeu do século XIX é composto por 170 monografias, nas quais foram reportados os
resultados de outras tantas pesquisas qualitativas conduzidas a partir de uma amostra
extremamente heterogênea de indivíduos pertencentes às faixas mais pobres da população.2
Trata-se de pesquisas extremamente detalhadas sobre a vida de cada indivíduo, sobre sua
história e sobre a história de seus familiares: análises extremamente minuciosas do budget
familiar (recursos disponíveis e suas gestões), genealogia e percursos dos diversos membros da
família (e de parentes, em muitos casos), análises das práticas profissionais e relacionais, das
formas culturais, das referências políticas etc.
É, portanto, um material conhecido, mas que foi até agora estudado unicamente pela
possibilidade que oferece de analisar os aspectos ideológicos da escola leplaysiana ou pelos

1
Para um relatório mais detalhado sobre este trabalho, ver Cottereau e Gribaudi (1999).
2
Os inquéritos europeus mobilizaram um total de 90 pesquisadores, entre os quais 55 foram os autores dos 93
inquéritos franceses.

163
dados colhidos sobre o consumo dos operários.3 Como veremos, o uso que faço desse material
é diferente e, digamos, menos refinado. Decidi utilizar a enorme massa de dados de cada
“monografia operária” como uma fonte possível para a leitura de percursos biográficos dentro
do espaço geográfico e social da França do século XIX. A partir de uma análise detalhada dos
capítulos relativos à composição e à história das famílias, reconstruo o percurso desses
operários, com uma atenção especial à configuração dos vários tipos de recursos presentes nas
diversas fases. Para isso, analiso transversalmente as monografias, criando relações entre fatos
e eventos, os quais a estrutura da narrativa leplaysiana separou.

O percurso de Alexis: a evolução de uma coerência social baseada em ligações verticais e


ideologia conservadora

O percurso de Alexis, que surge dos dados registrados pelo pesquisador, é aparentemente linear,
relativo aos planos social e profissional, que parece evocar as imagens estereotipadas e
frequentemente utilizadas para ilustrar o mundo artesanal do século XIX: uma relativa
prosperidade, mas também certa sensibilidade em relação às grandes transformações
econômicas e sociais (industrialização, urbanização, tendência a proletarização). Alexis nasce
em Tours, em 1806, filho e neto de sapateiros, distancia-se da cidade e do trabalho paterno e
migra para Paris, onde, após um breve parêntesis como aprendiz de pintor de porcelana,
desenvolve uma carreira de operário tipógrafo. Casa-se em 1832 com uma operária costureira
que lhe dará seis filhos, dos quais somente uma menina sobrevive. Fica viúvo em 1851 e se
casa novamente no mesmo ano com uma trabalhadora doméstica com a qual terá mais dois
filhos. A família observada pelo pesquisador, em 1861, em um minúsculo apartamento do
quinto arrondissement parisiense é, portanto, uma “típica” família operária que alcançou uma
estabilidade social e econômica graças ao trabalho do marido e às atividades de integração da
esposa. Mas se considerarmos as imagens e os acontecimentos que acompanham o percurso de
Alexis, a imagem estereotipada se fragmenta. Não encontramos nem a influência de um grupo
profissional nem a influência de grandes mudanças socioeconômicas, mas uma série de
determinações cruzadas em que se misturam o acaso e o peso da configuração de relações e de
referências específicas, na qual Alexis se inscreve e se transforma gradualmente. É uma
configuração ao mesmo tempo individual e social. Individual, aos seus olhos, porque não é mais
do que uma série de experiências, de memórias e de relações que se consolidaram sobre a base
da sua vivência e das suas emoções, as quais marcam e orientam, no presente, suas práticas e a

3
Sobre esse propósito, ver Kalaora (1989).

164
construção de seus projetos de vida. Social, porque os recursos utilizados, as relações
gradualmente iniciadas, as referências e os símbolos presentes pertencem todos, a um espaço
de relações atravessado e estruturado por vivências análogas.
Essa configuração de relações, referências emotivas, recursos, símbolos etc. é, acima de
tudo, a configuração da família de origem, que marca desde o início a percepção de seu
enraizamento social e do tipo de sociedade que o circunda. Ao longo da pesquisa, Alexis evoca
a figura dos pais: do pai, definido não tanto pela sua origem profissional quanto pela “boa
reputação de honra e de honestidade” da qual gozava em Tours, pelo fato de ter sofrido um
processo do Tribunal Revolucionário, por ter escondido dois padres refratários e por ter sido
convocado à força para a guerra de Vandée;4 da mãe, “proveniente de uma família que se tornara
nobre por aliança matrimonial”, arruinada pela revolução, mulher religiosa, boa, satisfeita com
o casamento e dedicada à família, que adorava os filhos e Alexis em particular – o único filho
homem dos quatro que sobreviveram a nove nascimentos.
Numerosos elementos de natureza diversa se encontram, portanto, reunidos no horizonte
dessa família, a qual surge das lembranças da testemunha: um sentimento de mobilidade
descendente e de perda de status social, uma gama de referências a espaços e a grupos
percebidos como culturalmente e socialmente mais elevados, uma ênfase sobre a cultura, em
particular a cultura católica, a presença de relações verticais ativas e a fonte de definição de
identidade. Todos esses elementos se tornam hierarquizados e conectados entre si na forma de
relações causais, por meio de referências históricas: a revolução provoca a ruína da família
materna, a defesa dos padres refratários produz e reforça certas ligações, em que a reputação é
mais importante que a profissão. Acima de tudo, essas referências se consolidam por fortes
sentimentos, como o amor materno, o medo da guerra e dos revolucionários, o bem-estar da
família etc.
É claro que, nessa ótica, um conjunto sincrético de fatos, recordações, recursos e eventos
diversos surge como uma configuração que se consolidou no horizonte de um indivíduo após
sua experiência em relação ao espaço e às práticas sociais. Eu gostaria, nesse ponto, de focar
brevemente aspectos que, em minha opinião, são fundamentais para a análise. Cliffort Geerz
evocava dinâmicas análogas, afirmando que cada indivíduo possui uma agenda oculta, uma
espécie de lista de relações, interpretações causais, imagens, crenças, tudo quanto possa lhe ser

4
A guerra de Vandée – um departamento da França ocidental banhado pelo oceano Atlântico – faz parte de uma
série de quatro conflitos civis que eclodiram entre os anos de 1793 e 1815, em que grande parte de sua população
mais conservadora, ligada à tradição católica e à monarquia insurgiu-se contra o governo revolucionário de Paris
quando este pôs em prática medidas consideradas repressivas contra o clero e aumentou os impostos para suportar
as despesas militares, fruto da política externa agressiva e do processo de reconstrução da França (N. do T.).

165
útil, a fim de observar a sociedade, interpretá-la e agir sobre ela (Geertz, 1973). Isso o obriga a
retomar as sugestões de Ricouer e Gadamer para tentar ler as práticas sociais como textos que
precisam ser decifrados, para deles serem apreendidas as formas e as lógicas internas.5
O sucesso dessa metáfora é amplamente conhecido entre os historiadores americanos e
europeus, mas também é notório que, na maioria dos casos, os desconstrutivistas americanos,
assim como os representantes do linguistic turn britânico, não souberam pensar tais listas como
chaves culturais compartilhadas por todos os membros de um mesmo grupo ou de uma mesma
sociedade. E é por isso que, paradoxalmente, a pesquisa voltou ao ponto de partida, criticado
por Geertz: a história das mentalidades ou das ideias, os comportamentos como reprodução de
códigos e de normas comuns. Mas é interessante notar que, para além dessas distorções, a ideia
que Geertz toma de Ricouer e Gadamer, simplificando-a, é uma ideia mais precisa e potente,
que fora formalizada por Dilthey há mais de um século, sobre as modalidades individuais e
relacionais através das quais se determinam as práticas sociais.
O pensamento de Dilthey é rico demais para ser citado sem reduzi-lo brutalmente. Mas é
útil recordar que, para ele, o indivíduo deve ser considerado um organismo psicofísico, uma
unidade viva “determinada pelo contexto em que vive e reage, por sua vez, sobre ele” (Dilthey,
1985:407). Enquanto for viva, essa unidade não é, portanto, estável nem definida nos seus
limites, mas pulsa, é parte integrante da história e sua identidade não é concebível senão como
uma sequência de estados de consciência dentro dos quais experiências do real, necessariamente
diferentes, estão coligadas “através da consciência da identidade pessoal” (Dilthey, 1985:408).
Essa “consciência” de identidade pessoal é, portanto, o único elemento estável que permite
interpretar, organizar e conectar a variedade de experiências dos atores sociais, contribuindo
para formar o que Dilthey definiu como o conjunto estrutural de cada indivíduo.
Esse conjunto não é muito diferente daquele que acabei de definir anteriormente, em
termos de configuração individual, ou o que Geertz chama de agenda oculta: um conjunto
sincrético de fatos, recordações, recursos e eventos diversos que se consolidou no horizonte de
um indivíduo ao longo da sua experiência específica, do espaço e da prática social. Mas Dilthey
destaca também como esse conjunto se consolida e se decanta por meio da experiência vivida
(erlebnis), principalmente graças às sensações de alegria ou de sofrimento que cada evento
ocorrido gera:

5
Sobre a leitura geertziana de Ricoeur e Gadamer, ver Geertz (1980).

166
uma zona instintiva e emocional, eis o centro da nossa estrutura psíquica, na qual se baseia
o jogo das impressões e a cota de emotividade, colocadas em evidência pela atenção,
enquanto se formam as percepções, as lembranças à elas ligadas, a série de pensamentos
aos quais se associa uma intensificação de existência, ou mesmo a dor, o medo, a cólera.
Assim, são colocadas em movimento todas as profundidades da nossa essência [Dilthey,
1985:413].

Para Dilthey, não é possível pensar em sentimentos. Em cada conjunto estrutural,


imagens ou palavras, como revolução, padres refratários, profissão etc., são etiquetadas e
conectadas – frequentemente para além da consciência e, portanto, com maior força – outras
palavras e outras experiências, por meio de sensações e sentimentos específicos.
Acontecimentos comuns a muitos indivíduos conjugam-se, portanto, de formas diversas
no horizonte individual. A experiência revolucionária evidentemente marcou os percursos e as
experiências de vida da totalidade da população francesa durante os séculos XVIII e XIX. Mas
seu peso e seu significado são modulados de formas muito diferentes, de acordo com a natureza
dos elementos presentes na configuração específica de símbolos, recursos e referências na qual
está inscrita. Sobretudo, esse conjunto estrutural favorece a formação do que Dilthey chama de
valor vital, espécie de intuição que cada um tem sobre o sentido da própria existência, que
orienta o indivíduo não somente na percepção do espaço social, mas também na construção dos
próprios projetos de vida. Isso ocorre porque cada conjunto estrutural é também um sistema
que leva o indivíduo a antecipar o fluxo dos acontecimentos para renovar as experiências mais
felizes e evitar aquelas percebidas como mais duras e difíceis. Vita motus perpetuus, lembrava
Dilthey. Essa dupla dimensão – da interpretação e da antecipação da experiência – parece
particularmente interessante enquanto permite entender a evolução histórica como um
movimento contínuo, produto da ação de cada um de seus componentes.
Retornamos agora a Alexis e ao início do seu percurso de vida. O conjunto estrutural e o
valor vital que marcam e orientam seus projetos e suas práticas são recortados do quadro das
memórias e das relações da sua família de origem, como se observa claramente em sua
narrativa, na qual se entrelaçam diversas imagens: a queda social da família, os acontecimentos
políticos, as figuras dos familiares, as relações com pessoas conhecidas da cidade etc. Tudo isso
é amalgamado, hierarquizado e integrado por meio de sensações e emoções fortes e específicas.
É, portanto, com base nesse conjunto que Alexis e seus familiares observam e interpretam a
sociedade francesa do início do século XIX, e é o valor vital que dele deriva que orienta a
construção de seus projetos de vida e daqueles imaginados para seus filhos.

167
Alexis foi o único filho homem que sobreviveu em uma família que, por pelo menos três
gerações, viveu da atividade de fabricação de chinelos. Em outras famílias, que se mantinham
por meio de outras atividades, uma escolha possível seria a de induzir o filho a reproduzir uma
prática familiar consolidada. Ou então, caso muito frequente nas monografias leplaysianas,
seria a de forçar o filho a tentar um percurso de aprendizagem profissional. Mas, no quadro da
configuração dessa família, “a condição de fabricante de chinelos” é considerada “com
profunda antipatia” (Le Play, 1961:254). Todas as esperanças são recolocadas em um percurso
de melhoramento do estado social que permitiria restabelecer a antiga posição da família: um
objetivo considerado como alcançável através da cultura e da escola.
Alexis então inicia os estudos. Não é uma escolha fácil nem difundida entre as famílias
artesãs da época, mas, no quadro dessa configuração familiar e do conjunto de lógicas, imagens
e sentimentos que a compõem, parece natural, quase necessária. A seleção e a ativação de
recursos bem precisos, são consequências: “um velho amigo, ex-professor” dá aulas noturnas
ao jovem Alexis e seus pais descobrem suas “aptidões para a língua latina”. O pagamento do
alojamento e da alimentação do professor era feito pelo pai de Alexis, que confeccionava
sapatos para toda a família do diretor da escola.
Tais investimentos e esforços parecem trazer resultados: o rapaz se classifica em segundo
lugar entre 300 candidatos ao concurso para o ingresso no seminário diocesano. Mas a esse
ponto o caso esbarra, pela primeira vez, na determinação e na lógica familiar. Alexis sofre um
acidente em que seu tímpano fica prejudicado. Esse fato imprevisto agrava as restrições
econômicas da família, impondo-lhe numerosas despesas médicas, impactando sobretudo na
formação escolar de Alexis a ponto de impedi-lo de continuar com as aulas. O rapaz é então
forçado a trocar o seminário por uma escola menos exigente. Por fim, quando sua surdez se
acentuou, ele teve de abandonar definitivamente o projeto de estudo.
São acontecimentos dolorosos e inesperados que pesarão enormemente sobre a evolução
da vida de Alexis e, em particular, sobre sua carreira profissional. Mas me parece importante
destacar como seu significado e seu peso específico foram determinados pela natureza da
configuração em que se inscrevem. No quadro de uma orientação familiar baseado na
reconquista do status perdido por meio dos estudos do filho homem, esses acontecimentos têm
consequências drásticas. Alexis deixará para sempre sua cidade natal, aos 20 anos, “após
inúmeras tentativas inúteis para encontrar meios de subsistência com um trabalho”. Os
acontecimentos que se seguem e que dão ritmo à história de Alexis revelam lógicas análogas:
sendo esperados ou imprevistos, desejados ou temidos, eles adquirem seu significado específico
dentro da configuração global das relações, das memórias e das aspirações em que evolui. Mas,

168
ao mesmo tempo, cada novo acontecimento e cada nova relação induzem a um reajuste contínuo
do conjunto e modificam, portanto, a condução dos elementos presentes.
Certamente, para apreciar plenamente as características dessas histórias, seria interessante
poder conhecer a inteira gama de possibilidades que não foram aproveitadas pelos envolvidos,
em cada momento, ou que simplesmente deram lugar a tentativas desafortunadas. Quanto a
Alexis, sabemos somente que ele chegou a Paris e encontrou refúgio na casa de sua irmã mais
velha.
Na figura 1 (abixo), expus em uma linha do tempo os eventos mais importantes que
marcaram a narrativa: as etapas da carreira profissional de Alexis e suas outras atividades; as
doenças, os incidentes e os eventos demográficos; os deslocamentos geográficos e as relações
citadas, relativas a uma escolha ou a um acontecimento particular.
Mesmo sendo extremamente esquemática, a figura ilustra a ressonância constante
observável a cada momento, entre os diversos elementos que compõem uma configuração, e o
peso que eles têm, globalmente, na definição de cada novo acontecimento. Mas isso permite
também interpretar as reestruturações sucessivas que a série de pequenas mudanças impõem à
configuração originária: o quadro da família de origem sofre uma metamorfose progressiva até
transformar-se no que foi observado em 1861.
Consideremos alguns dos elementos que compõem tais dinâmicas. Na sua chegada à
capital, Alexis encontra um trabalho como aprendiz de pintor em porcelana. Esses seus
primeiros passos na vida profissional parecem ainda inscrever-se na configuração das relações
e das óticas familiares. Acima de tudo, trata-se de uma atividade que se afasta das práticas de
fabricante de chinelo, odiadas pelo pai, e que exige inclinações artísticas. Em segundo lugar,
sabemos que Alexis foi ajudado, nessa primeira tentativa, pela intervenção de um protetor.
Como no passado, encontramos, portanto, um personagem de status superior que intervém
ativamente: visto que Alexis “não tinha a mínima noção de desenho, protegido pelo vice-diretor
da Manufatura Gobelins, ia três vezes por semana tomar aulas de desenho nesse
estabelecimento” (Le Play, 1961:256). Porém, mais uma vez, a rede tecida ao redor do jovem
aprendiz não garantirá o sucesso de suas tentativas. A história nos diz que Alexis deve resignar-
se em mudar novamente de perspectiva. Dessa vez ele se dirige a um “compatriota” (assim se
definia, na França do século XIX, aqueles que provinham de um mesmo município ou região)
que o contrata como aprendiz tipográfico. O espectro parece, portanto, reduzir-se. A relações
ativadas não são mais aquelas de uma rede hierárquica vertical, mas sim aquelas selecionadas
no tecido das relações entre compatriotas.

169
Se não pôde seguir sua vocação, Alexis pelo menos encontrou uma atividade profissional
que o acompanhará por quase toda a vida. Naquela época tinha 25 anos. Tudo parecia indicar
que a estabilidade profissional alcançada permitir-lhe-ia abrir e estabelecer relações sempre
mais amplas, dentro do espaço social parisiense. Entra para a Guarda Nacional e, nessa função,
contribui em pelo menos dois casos de restabelecimento da ordem.6
A configuração que observamos mediante os primeiros passos do percurso de Alexis se
transformou, portanto, notavelmente. Entretanto, o conjunto de suas relações e de suas práticas
mostra que a quase totalidade dos elementos que formavam sua especificidade reproduziram-
se, apesar de sua presença se manifestar em formas e articulações novas. Em primeiro lugar, as
referências à cultura continuam a dominar as anedotas e os projetos de vida evocados no texto;
em segundo lugar, estão as relações hierárquicas verticais e de proteção que ele estabelece com
numerosas pessoas e que mantém, reforçando-as, ao longo de toda a sua vida. Por fim,
observamos a presença da fé católica, suas orientações políticas, seu senso de solidariedade
com os fracos e necessitados e a centralidade das emoções e dos afetos familiares, em particular
a relação privilegiada da infância.
É, portanto, o conjunto dessa configuração que define o horizonte social concreto de
Alexis, assinalando a natureza de sua inscrição profissional e dos recursos concretamente
disponíveis. Consideramos, assim, ainda dois exemplos: a doença da sua primeira esposa e um
fato parcialmente correlacionado à perda temporária de trabalho nos anos 1848-1849, conforme
figura 1
A doença da esposa, assim como toda nova experiência e todo novo acontecimento
imprevisto, se insere e define os significados dentro de um horizonte individual e relativos à
configuração de elementos específicos que o compõem. No início dos anos 1830, Alexis
trabalha por fim, de forma estável, na mesma oficina tipográfica. É admirado pelo patrão, se
casa e começa a poupar uma pequena quantia com a ajuda da esposa, mas por volta de 1835 ela
adoece com câncer e morre depois de 14 anos de sofrimento. A doença absorve rapidamente
suas economias e leva a uma reorganização total dos papéis e das relações familiares. Marie-
Stephanie, a filha, é obrigada a interromper seu curso de costura para poder cuidar da mãe em
tempo integral. Alexis, que não está mais em condições de pagar suas contribuições, deve
retirar-se da sociedade de socorro mútuo dos tipógrafos parisienses, da qual foi um dos
fundadores.

6
Alexis permanece na Guarda Nacional até o atentado de Giuseppe Fieschi contra Luís Felipe [então rei da
França], em 25 de julho de 1835. Retorna em 1848, ano em que a narrativa o evoca novamente como defensor da
ordem pública, atividade que o leva inclusive, a distinguir-se na defesa da tipografia de seu patrão.

170
As relações da família, baseadas até então na ajuda e na colaboração recíprocas, se
reorientam em direção a um sistema de dependência total, no centro do qual está o estado de
saúde da mãe. Essa dependência se torna ainda mais pesada no quadro específico do conjunto
estrutural de Alexis, no qual a solidariedade tem um papel prioritário, julgando absolutamente
necessário, em caso de doença, a busca dos melhores especialistas. Dois elementos evocados
pelo pesquisador me parecem extremamente significativos a esse respeito. O primeiro é que
Alexis hospeda por quase três meses um rapaz que havia anos mendigava pela rua. Estamos em
1849, dois anos apenas antes da morte da esposa, período no qual, como eu disse, ele
encontrava-se na impossibilidade de pagar sua cota social à sociedade dos tipógrafos. O
segundo elemento, é que Alexis recorre a “bons médicos”: um hábito que o pesquisador registra
como profundamente radicado em suas práticas. Assim como haviam feito seus pais quando
tentaram curá-lo da surdez, Alexis não se dirige a um hospital ou a médicos de assistência
pública para curar sua família.7
O segundo exemplo se coloca também no quadro desse período de privações. Em 1848,
Alexis deve deixar a oficina porque “faltava trabalho”, mas

foi muito afortunado de poder encontrar um emprego nos escritórios que preparam a
formação das primeiras listas eleitorais [e] passou em seguida ao escritório de beneficência
do segundo arrondissement na qualidade de empregado auxiliar para distribuição de
socorro à domicílio [Le Play, 1961:256].

Trata-se de acontecimentos muito importantes para compreender a natureza específica do


espaço social em que Alexis evolui. O trabalho nos municípios de arrondissement eram de fato,
na época, tão procurados quanto difíceis de serem obtidos. A documentação administrativa dos
arquivos8 mostra a existência de práticas de gestão que fazem da contratação de cada
funcionário um momento privilegiado, que permite confirmar as relações sociais e políticas
presentes em níveis central e local. Alexis pôde, portanto, encontrar uma atividade alternativa
e enfrentar esta enésima difícil conjuntura, ativando as relações verticais que, analogamente às
práticas de sua família de origem, ele sedimentou no espaço social parisiense e que constituem
verdadeiros recursos ativáveis nos momentos críticos. A importância de tais relações é

7
Alexis pagou, por exemplo, entre 30 e 60 francos ao serviço médico para cada um dos seis partos da esposa. É
possível notar que ele gastou 200 francos em três anos com cuidados variados com seu último filho. Essas somas
constituem evidentemente, um peso considerável no orçamento familiar, essencialmente baseado no seu salário
que era, então, de 125,00 francos por mês.
8
É um dos resultados que emergem de uma pesquisa, que eu dirijo, ligada ao Ministério da Saúde francês e do
INED, a respeito da ação pública nos campos sanitário e social na França do século XIX. Cf.: Gribaudi (1999).

171
confirmada. Ao mesmo tempo, podemos notar como a configuração e as formas de coerência
sociais em que se inscreve seu percurso são bem diferentes daquelas em que evoluem outros
operários e artesãos parisienses que, no mesmo período e encontrando-se na mesma conjuntura
profissional, procuram, contrariamente, ser contratados pelos ateliês nacionais, como
carregadores nos mercados gerais ou como mão de obra nos trabalhos de escavação nos bairros
da periferia.9
Poderíamos continuar na leitura desse texto extremamente rico sobre o percurso
geográfico e social de Alexis e de sua nova família, mas me parece útil insistir mais sobre a
natureza configuracional das experiências sociais, destacando seu segundo casamento. Trata-se
de um episódio que nos é apresentado, ainda uma vez, como concretizado após uma série de
circunstâncias casuais. O pesquisador recorda, principalmente, a promessa de casar-se
novamente, feita sobre o leito de morte da primeira esposa. Inicia-se, portanto, o longo e
complexo percurso que leva uma jovem serva originária da Gascogne até a casa parisiense de
seus patrões em Bordeaux. E é nessa casa que Alexis a conhece e “tocado pelas suas qualidades,
pediu-a em casamento, o marido e o pai de sua patroa em sinal de estima, quiserem ser os
padrinhos” (Le Play, 1961:257).
A narrativa quase anódina do fato não deve levar a um engano. A aura de aleatoriedade
presente é fortemente diminuída pela configuração de elementos que compõem o ambiente de
Alexis e que determinam, portanto, eu sentido. Mais uma vez, o encontro pôde acontecer graças
às ligações verticais do operário, que o introduzem na casa burguesa em que conhecerá a jovem.
Além disso, é evidente a importante proximidade existente entre as experiências e as formas de
inscrição social dos cônjuges. A esposa Catherine também conheceu um percurso de
mobilidade social descendente. Filha de “fazendeiro bem sucedido” de Saint Julien, em
Gascogne, foi, literalmente, expulsa de casa pelo pai que se casa pela segunda vez logo após
ficar viúvo. Em um primeiro momento sozinha, e mais tarde com suas três irmãs, Catherine
trabalha como empregada doméstica para diversas famílias burguesas da região. As quatro
irmãs são muito ligadas à prática religiosa e duas delas se tornam freiras. A jovem segue a
família para a qual trabalha, quando esta se transfere de Bordeaux para Paris. Por fim, como
destaca o pesquisador, as ligações que Catherine estabelece por meio de suas práticas
relacionais são sobretudo verticais. Na escolha matrimonial de Alexis encontramos, portanto,

9
Conforme o percurso de Bernard D., que se articula em um movimento pendular entre as atividades artesanais e
as atividades braçais (Frédéric Le Play, O. M. - n. 45); ou conforme ainda o caso de Jean M. mestre em carpintaria
parisiense que “se resigna” em 1848, a “vender nas ruas jornais, frutas e verduras” (Frédéric Le Play, O. M. - n.
34, p. 42).

172
mais uma vez, a marca de práticas que se inscrevem no leque de suas relações possíveis, dentro
de um espaço social que parece fortemente estruturado e diversificado. O significado que ele
pôde atribuir a sua união com a jovem encontra suas determinações naquele conjunto de
elementos que podemos definir com termos diversos: “configuração, agenda oculta ou
conjunto estrutural” – um conjunto que, mesmo sendo formado por ligações, práticas, imagens
e crenças amplamente compartilhadas, adquire uma coerência e um sentido unicamente nas
concretizações singulares da experiência vivida.

O percurso de Bertrand: Auvergne, França, o mundo dos rigattieri10 e a mobilidade social

As imagens presentes na monografia de Alexis evocam largas temporalidades, diferentes fatos


históricos e espaços sociais relativamente vastos e diferenciados. As imagens registradas no
mesmo ano e na mesma cidade por F. Gautier, tendo como base a narrativa de Bertrand L.,
comerciante de objetos usados de Auvergne e emigrado para Paris, nos remetem, por sua vez,
a um universo em que os horizontes são percebidos diretamente ou através das figuras dos
familiares, no qual estão totalmente ausentes os acontecimentos políticos e o resto da
sociedade.11
A diferença entre as duas monografias é quantificável. Na segunda parte, dedicada à
apresentação das “fases principais da existência” dos membros da família de origem e da família
ampliada, os pesquisadores focaram na construção do desenvolvimento temporal dos percursos,
com base na narrativa das testemunhas. Existe uma diferença muito evidente no número e na
natureza dos elementos evocados. No caso de Alexis, a simples lembrança do pai e do avô
evoca grandes acontecimentos históricos, batalhas, conflitos locais e introduz os termos
qualitativos boa reputação, honra, probidade, audácia. No caso de Bertrand, evoca-se
unicamente a fisionomia global da família, os pais e os oito irmãos e irmãs, direcionando o
olhar para sua pobreza, sua ausência de bens e seu trabalho: no episódio do primogênito que
“bem cedo havia iniciado em sua região a atividade de limpador de chaminé”;12 e no caso de
Bertrand e da sua irmã, quando crianças, quando pastoreavam os animais e na passagem que

10
Os rigattieri eram aqueles que exerciam o comércio de compra e venda de roupas e objetos usados –
especialmente vestidos, peças de cozinha e móveis –, notadamente voltado para a população mais pobre das
cidades. Em Firenze, essa atividade estava ligada às artes menores da corporação de Artes e Ofícios, que
juntamente com as artes maiores constituiu, a partir do século XII, o sistema de organização das atividades
econômicas das cidades, como o comércio, as finanças, as manufaturas e o artesanato (N. do T.).
11
(Frédéric Le Play, O. E. – n. 34).
12
Traduzo como região o termo pays utilizado pelo pesquisador leplaysiano, como já ocorreu no caso de Alexis,
para definir o espaço de origem. O uso desse termo, que define no francês contemporâneo um espaço nacional, é
interessante em si e leva à presença de uma real descontinuidade do espaço francês do século XIX.

173
narra sua partida, aos seis anos, com o pai e o irmão mais velho “em direção ao sul da França
para dedicar-se à atividade de limpador de chaminés”.
O conjunto dessa monografia remete aos mesmos tipos de lembranças, todas centradas
em uma visão local que coloca em foco as mudanças e os movimentos sucessivos, unicamente
através da situação e dos gestos da família no trabalho cotidiano. Nada mais faz parte do campo
visual: nenhum personagem externo, nenhum acontecimento histórico, nenhum objeto fora da
casa e do trabalho. A configuração das ligações, das referências emocionais, dos recursos e dos
símbolos na qual Bertrand evolui no início do seu percurso é, portanto, compacta, e se inscreve
unicamente no presente. Sua família é muito mais pobre do que a família de Alexis, mas não se
compara com nenhuma outra. Não existem aqui, sentimentos de declínio e de pobreza nem a
necessidade angustiante de melhora e de mobilidade social que marcam os primeiros passos de
Alexis. Bertrand e sua família parecem viver radicados no presente, na sua casa e na sua região.
O cotidiano, suas figuras, seus espaços e o território são, de fato, os únicos elementos que
constituem, unidos por sentimentos muito fortes, o conjunto estrutural de Bertrand, e são essas
figuras e esses espaços que orientam suas escolhas e suas perspectivas.
Esse sentimento extremamente forte em relação ao presente e a miopia social que o
acompanha parecem poder explicar a relativa facilidade com que Bertrand e sua família
decidem mover-se, iniciar uma nova atividade e enriquecer. Visto que, mesmo dentro de um
horizonte física e socialmente muito limitado, essa monografia nos apresenta um percurso
geográfico e social extremamente complexo, sempre desenvolvido a partir de uma causalidade
que surge e é representada como contextual. Vamos segui-la mesmo que brevemente. Depois
de focar longamente na imagem de Bertrand e de sua irmã mais velha como pastores da vila de
origem, a narrativa repentinamente se desloca para focalizar o pai, o qual “não encontrando
mais na região de origem os meios para sustentar uma família que aumentava rapidamente,
decidiu emigrar”, com Bertrand e o irmão mais velho. Começa assim um longo período
caracterizado por movimentos pendulares das migrações temporárias. A cada primavera,
Bertrand e seus familiares voltam ao vilarejo e “retomam o trabalho no campo”. A cada outono,
partem novamente, a pé, levando nada mais do que o esfregão e a mochila, seus instrumentos
de trabalho como limpadores de chaminés.
A ótica se desloca, portanto, do espaço do vilarejo para o espaço das cidades do sul da
França, mas o foco permanece rigidamente o mesmo. Nenhuma imagem ou passagem da
narrativa nos remete a Tulles, Bordeaux, Cahors, Carcassonne, Nîmes, Montpellier e todos os
locais, ao longo e ao largo, por onde Bertrand recorda ter passado com o pai e o irmão durante

174
os longos oito anos de migrações sazonais. Dessas cidades não nos é dada nenhuma imagem de
um lugar físico; nada.
Não são ausências anódinas. São indicações de uma fragmentação na forma de perceber,
experimentar e atuar no espaço social que as monografias leplaysianas permitem compreender.
O espaço social de Bertrand faz parte do grupo restrito de percursos que revelam um leque de
possibilidades extremamente reduzidas. As lembranças são somente aquelas que evocam a
incansável necessidade de acumular “quanto mais dinheiro possível graças ao trabalho”. Na
única passagem referida, Bertrand conta que “depois de longos dias de trabalho ele e o pai
seguiam os ‘senhores de bem’ pelas estradas e pelas praças até que os mesmos lhes lançassem
alguns trocados, a fim de livrarem-se deles” (Le Play, 1961:297).
O espaço da sociedade francesa que Bertrand percebe e no qual atua nesses anos é,
portanto, realmente limitado e se restringe aos míseros recursos de uma minúscula propriedade
agrícola no campo e aos recursos da atividade de limpador de chaminé. O resto da sociedade é,
para ele, um espaço indistinto e globalmente povoado por “senhores de bem” dos quais ele
percebe unicamente as silhuetas, que se movem nos espaços públicos e aos quais estende a mão
para pedir esmolas. Seus desejos, seus projetos e todas as suas escolhas se inscrevem dentro do
restrito horizonte composto pelos recursos e pelas oportunidades oferecidas cotidianamente ao
longo de tempo.
Podemos antecipar que Bertrand se tornará um dos personagens mais bem-sucedidos
entre aqueles estudados pelas monografias leplaysianas. Mas, como veremos, sua ascensão não
implica absolutamente uma ampliação desse horizonte, das suas relações e do seu conhecimento
do espaço social. Essa ascensão se concretiza por meio da capacidade de desfrutar ao máximo
dos recursos disponíveis, de aproveitar as oportunidades oferecidas e também, eu diria, pelo
fato de limitar e concentrar o próprio olhar e as próprias estratégias dentro desse espaço.
Vamos seguir, portanto, as etapas principais do seu percurso. As migrações anuais em
direção ao sul duram até o momento em que o pai “já velho” decide “renunciar às viagens”.
Nessa conjuntura, Bertrand e o irmão concebem o “projeto de dirigir-se a Paris”. Mesmo
mantendo-se sempre o mesmo foco, o olhar se desloca novamente. Este focaliza o esforço dos
dois irmãos que se associam para “iniciar a atividade de limpeza de chaminés” em Paris e na
sua periferia. Como no passado, trata-se de uma atividade sazonal que dura de outubro a março.
No resto do tempo, os dois irmãos voltam à vila onde encontram regularmente trabalho como
pastores ou lavradores. É na atividade de limpadores de chaminé que eles descobrem um novo
recurso disponível e iniciam um percurso de mudança profissional. De fato, nas casas visitadas
eles começam a recolher “ossos, trapos, ferro velho, peles de animais etc., que revendem aos

175
comerciantes licenciados” (Le Play, 1961:297). Quatro anos depois do primeiro período em
Paris, os dois irmãos se tornam comerciantes de objetos usados. Bertrand, que tem somente 18
anos, se lança com extrema energia nessa atividade, conseguindo economizar, em menos de
dois anos, a considerável soma de dois mil francos.
Apesar desse início promissor, os irmãos não conseguem estabilizar-se em suas atividades
comerciais. Seu primeiro sucesso surge com uma derrota, visto que eles perdem todo o seu
dinheiro por conta de aquisições erradas de mercadorias. Sem desencorajar-se, os dois irmãos
retornam à sua velha atividade, mas uma nova perspectiva se abre e, dois anos depois, podem
retomar o novo trabalho, solicitando sua inclusão na lista dos comerciantes oficiais.
Estamos em 1823. Bertrand acabou de completar 23 anos. Abandona o negócio com o
irmão e decide estabelecer-se definitivamente em Paris. Desse momento em diante, seu
percurso será exclusivamente dentro da capital e da sua periferia, que ele percorre, ao longo e
ao largo “comprando e revendendo, por toda parte, aproveitando toda boa ocasião que se
apresentasse, gastando o mínimo possível e economizando, mesmo comprometendo a sua
saúde” (Le Play, 1961:298). Acima de tudo, seus movimentos consistirão, de agora em diante,
em uma lenta mas constante melhora de posição dentro desse espaço, marginal em relação ao
resto do mundo social e profissional, mas fortemente estruturado no seu interior, com suas
hierarquias e possibilidades de sucesso.
Diferentes fases marcam as etapas de sua ascensão, principalmente um período de sete
anos durante o qual Bertrand se dedica a uma atividade frenética que o leva a guardar uma
“quantia considerável”, o que lhe permite poder programar seu casamento com Madeleine, uma
jovem que conheceu em Paris, originária de sua região e que exercia a mesma atividade que
ele, fazendo parte do universo dos comerciantes de Auvergne.
O casamento marca o início de uma segunda fase de acúmulo de economias, mas também
de uma profunda reestruturação das atividades de Bertrand. Mais uma vez, mesmo
permanecendo dentro do mesmo horizonte, sua configuração se modifica e se baseia, agora, em
uma forma de pluriatividade familiar, que implica a racionalização e a integração das atividades
de marido e mulher. Bertrand procura e recolhe os materiais, a esposa, que deixara a atividade
comercial, dedica-se à atividade de cortadora de peles de animais. Com a ajuda da irmã, que
veio morar com o casal, Madeleine separa as peles recolhidas pelo marido, faz a limpeza, o
corte e a preparação para a revenda. Essa atividade se desenvolve a ponto de ser necessário
contratar primeiramente uma, depois duas e por fim, “várias operárias” que a ajudam em
domicílio, o que permite ao jovem casal iniciar uma nova fase da vida e abrir, em 1840, uma

176
loja no bairro do Pantheon, uma zona conhecida na época pela presença considerável de
comerciantes de objetos usados.
A abertura da loja marca uma etapa importante no percurso de Bertrand. Isso lhe permite
continuar a expansão do comércio e melhorar, posteriormente, sua posição econômica. Em
1846, sua renda cresce de tal forma que ele pode, com um empréstimo, adquirir uma casa de
cinco andares, próxima à igreja de Saint Eustache, parar a qual a família se transfere, com todas
as suas atividades. Dez anos depois, saldadas todos as dívidas, Bertrand adquire outra
propriedade, em Ivry, na periferia ao sul de Paris. Dessa vez, trata-se de um sobrado de três
andares dos quais ele aluga os dois últimos, reservando o jardim e o primeiro andar para fazer
um local de repouso dominical durante o verão.
É, portanto, nessa situação de bem-estar material concretizada, que F. Guatier, o
pesquisador leplaysiano, visita Bertrand, que tem então 59 anos, e sua família. Os dois filhos
casados vivem próximo: a filha mora com o marido, vendedor de bebidas, e os dois filhos no
bairro de Chapelle; o outro filho, comerciante e proprietário de uma loja de móveis, vive com
a esposa e o filho no bairro de Temple.
Exatamente porque é proprietário, Bertrand é o único personagem parisiense, das
monografias, do qual pude encontrar traços nos arquivos, e mais precisamente nos documentos
cadastrais da casa parisiense, no período de 1862 a 1913. É possível, assim, confrontar os
relatórios do pesquisador com esses documentos. O resultado é interessante e ratificador, já que
a imagem obtida pela documentação é a mesma obtida na monografia, confirmando sua
credibilidade como fonte. Com esse propósito, eu queria destacar dois aspectos que me parecem
relevantes. O primeiro é que temos a medida do nível de exatidão do trabalho do pesquisador.
A estrutura da casa é descrita por Gautier em 1861, quase com as mesmas palavras utilizadas
na documentação cadastral de 1862. Na sua precisão, ele chega a registrar, inclusive, a planta
dos quartos, o número e a posição das janelas, o quarto em que dormia Marguerite, a cunhada
de Bertrand etc. O segundo aspecto é que, através dos dados cadastrais, é possível seguir para
além do período da pesquisa, pelo menos em parte, o futuro dessa família.
Sabemos, assim, que em 1868, aos 62 anos, Bertrand se retira dos negócios, cedendo a
loja ao filho Guillaume com um contrato de aluguel de 12 anos por um valor de 6 mil francos.
A partir dessa data, Guillaume se transfere para o primeiro andar, no apartamento que até então
era ocupado pelo pai. Bertrand, nessa época, provavelmente viveu mais na casa localizada em
Ivry, que declara como sendo sua residência principal, apesar de só ocupar alguns cômodos do
segundo andar da casa, da qual, nos dados cadastrais de 1876, aparece como proprietária sua
esposa, registrada como viúva. O nome de Bertrand, vivo até a data do primeiro registro

177
cadastral da residência, foi excluído em uma data não precisa. Guillaume também foi excluído,
sem que se saiba o motivo, mas provavelmente veio a falecer, visto que Antoinette, a irmã,
herda os bens da família e em 1889 e reestrutura a casa. São mudanças importantes. Os quartos,
desprovidos de água e lavatório, que Bertrand e Guillaume haviam alugado para um grupo de
comerciantes de objetos usados, são substituídos por apartamentos maiores alugados a
comerciantes e artesãos. Pelos dados cadastrais, sabe-se também que Antoinette, viúva, morreu
em 1909, deixando a casa para a filha Amande-Julie, e que em 1913 a mesma casa foi adquirida
pela Prefeitura de Paris, que a demoliu.
No entanto, à parte esses aspectos, os dados cadastrais parecem importantes, sobretudo
porque permitem confirmar a natureza da configuração social no interior da qual vive e evolui
Bertrand, no apogeu do seu percurso. Até o momento da reestruturação feita pela filha, a casa
foi constantemente povoada por uma miríade de personagens pertencentes, todos, ao mundo de
sua atividade profissional e de suas relações diretas: como indicam as profissões registradas no
cadastro dos inquilinos, com exceção de dois capelães e alguns trabalhadores braçais dos
mercados que se revezavam nos dois quartos mobiliados do segundo e do quarto andares. Os
demais são principalmente rigattieri, que por mais de 30 anos ocuparam a casa.
Tais aspectos confirmam a forte impermeabilidade do espaço social e profissional em que
vive Bertrand, espaço esse estruturado pela percepção e pela utilização de um número limitado
de recursos e com pouquíssimos pontos de contato com o resto da sociedade. Dentro dele não
vemos nenhuma ligação com outras figuras profissionais ou sociais. Isso foi constatado mais
de uma vez. A sociedade que surge no horizonte de Bertrand é a única que compõe seu presente
e seu nicho profissional, onde não se distingue nada além dos recursos especificamente ligados
à compra e venda e objetos usados.
A imagem que surge, tem um toque ligeiramente dickensiano. No percurso de Bertrand,
o mundo dos rigattieri, dos vendedores de tecidos usados e trabalhadores braçais de Auvergne,
em Paris, aparece-nos por meio de traços de uma microssociedade estruturada ao redor de
valores e de recursos específicos, com suas hierarquias internas e seus possíveis percursos de
sucesso ou de fracasso. Como foi observado claramente por Dickens em relação aos bairros
pobres de Londres, nesses ambientes coexistem diferentes universos sociais separados que
possuem formas próprias de estratificação. Bertrand não é talvez o rei da corte dos rigattieri
parisiense, mas é, certamente, uma de suas figuras principais, uma referência em termos de
status moral, profissional e econômico. É ele que administra as relações com os vendedores de
tecidos usados, os revendedores ambulantes e os atacadistas. É ele que emprega os carregadores
de Auvergne nos mercados, nos momentos de crise. A vida de Bretrand é, portanto, bem-

178
sucedida, como destaca também o compilador de sua monografia: esse rigattiere “ocupa, entre
os seus compatriotas, um certo lugar social, que conquistou, por um lado pela sua posição
econômica, e por outro lado, pela sua conduta moral e reputação de bom homem” (Le Play,
1961:298). Mas também é bem-sucedida porque, desde o início, insere-se unicamente no
interior do horizonte limitado das figuras e dos recursos disponíveis no presente. Isso significa
também que Bertrand não aspira realmente a outros modos de vida, minimamente distantes do
seu conjunto estrutural e do seu valor vital. É o mesmo Gautier, o pesquisador que o entrevista,
que destaca que Bertrand “declara sentir-se perfeitamente feliz [...] nesse ambiente” (Le Play,
1961:299). Mas não consegue, evidentemente, interpretar a natureza de tal distância, que o
pesquisador define como impotência, quando escreve que esses rigattieri, quando se tornavam
proprietários ou quando passam a viver de renda “poderiam, às vezes, começar a fazer parte da
burguesia, caso a sua falta de instrução e os seus hábitos parcimoniosos não lhe impedissem de
ascender a este grau” (Le Play, 1961:288).
Gautier pensa a sociedade francesa baseada em uma única hierarquia. Igualmente a
muitos historiadores e sociólogos contemporâneos, ele julga os fracassos e os sucessos com
base em uma escala única de hierarquias sociais e profissionais. E, desse ponto de vista,
Bertrand não aparece como um homem que se realizou plenamente, nem mesmo seus filhos.
No entanto a sociedade não é unidimensional. Bertrand vive dentro de um universo que não
tem como referência nem as figuras da burguesia nem as figuras dos artesãos ou dos operários
qualificados de Paris. Ele se confronta com as posições dominantes dentro do espaço que
percebe e onde atua, por exemplo, a do rico rigattiere, estimado por seus pares, que baseia o
próprio bem-estar na capacidade de enraizar-se profundamente nesse ambiente e no ambiente
da comunidade de origem. Creio que, portanto, se queremos pensar em termos de vida bem-
sucedida, é necessário fazê-lo, sobretudo, no sentido goethiano do termo, pela capacidade que
um indivíduo possui de administrar os próprios limites e as próprias possibilidades, alcançando
um desenvolvimento harmônico do seu conjunto estrutural.
Voltamos às perguntas de onde partimos. Interpretar a natureza de um percurso, com suas
permanências e rupturas, suas crises e suas conquistas, significa também reconstruir a
configuração dos elementos que constituem sua lógica particular. No caso específico de
Bertrand, isso é muito claro. Assim, por exemplo, a extrema pobreza em que viveu com sua
família durante toda a sua infância não nos parece definida como miséria. Mesmo a
mendicância praticada pelo pai e pelo irmão, longe de ser dramática, é percebida e usada como
uma verdadeira atividade secundária, que faz parte dos recursos possíveis no quadro de sua
atividade principal como limpador de chaminés. Essa percepção teria sido impossível dentro da

179
configuração em que vimos Alexis evoluir. No seu caso, a mendicância teria sido vivida como
o último ato de um declínio familiar, iniciado com a revolução. Não estando ligada a nenhuma
outra atividade ou recurso, e sendo analisada no interior de uma gama de referências temporais
e sociais extremamente ampla, ela não poderia resultar em uma condição diferente da miséria
total.
O confronto entre esses dois percursos confirma, portanto, a natureza, ao mesmo tempo
individual e social, dessas configurações. Por um lado, é evidente que elas são totalmente
estruturadas e definidas em seus conteúdos pelo conjunto das experiências e das práticas
concretas dos indivíduos que as encarnam. Isso é destacado várias vezes. Um recurso, um fato
histórico, um discurso, uma relação, um salário ou ainda um acontecimento demográfico não
tem em si nenhum significado. Assume um significado unicamente no horizonte concreto e
preciso da experiência individual. Por outro lado, é igualmente evidente que tais configurações
se formam e se mantêm também porque articulam grupos de experiências e de práticas sociais
análogas, ou ao menos convergentes em relação ao modo como utilizam certos recursos mais
do que outros, como propõem certos tipos de relação mais do que outros, como imaginam e
como constroem as hierarquias sociais, como concebem, fabricam e põem em funcionamento
as cosmografias sociais.
Mais uma vez, retomamos o pensamento diltheyano que refuta o senso comum que pensa
a sociedade e os indivíduos como duas entidades separadas. Voltamos assim também à imagem
da história como um organismo vivo e em movimento perpétuo, que se constrói no presente e
por meio da atualização do passado. No entanto, se essa imagem é intuitivamente clara, talvez
seja necessário explicar melhor seus conteúdos e, em particular, a que se refere, por um lado, o
problema da ressonância entre configurações individuais e configurações históricas, e por outro
lado, o problema da organicidade do processo histórico, da sua extrema mobilidade, da contínua
atualização dos quadros dessas configurações nos diversos níveis em que se inserem. Tentarei
fazer isso por meio da análise dos percursos de dois outros migrantes, que convergem dentro
do espaço das atividades artesanais com madeira, em Paris. Trata-se de casos interessantes,
visto que permitem fazer emergir formas de lógicas diferentes daquelas que acabamos de
observar, baseados majoritariamente na experiência profissional e em uma gama de elementos
em que as relações horizontais são dominantes. Trinta anos separam esses percursos, que se
desenrolaram nos mesmos ambientes físicos e profissionais, os quais destacam muito
claramente os mecanismos específicos que conectam o local e o global, o indivíduo e a história.
Assim como as configurações individuais, os espaços profissionais e sociais evocados pelas
experiências desses personagens evoluem no sentido da continuidade e da ruptura:

180
continuidade, em função da extrema permanência que o número de elementos interagentes
confere a cada forma social; ruptura, pela extrema flexibilidade que caracteriza essas mesmas
formas em cada mudança ocorrida em qualquer uma das suas partes, seja periférica ou central.

Dois percursos através de espaços e temporalidades históricas

O primeiro dos dois percursos que pretendo evidenciar é o de Jean M., um carpinteiro parisiense
entrevistado em 1856 pelo mesmo Frédéric Le Play, em colaboração com A. Focillon.13 É um
percurso marcado por numerosas rupturas que geram mudanças importantes e um efeito de
aceleração progressiva nos acontecimentos cotidianos.
Jean nasce em Troyes em 1815, em uma família em que prevalece a profissão de
carpinteiro: o pai, o avô e dois tios paternos são carpinteiros, e dois irmãos passam a ser. Essa
atividade constitui, sem dúvida, o elemento central que marca a configuração das práticas e das
relações em que a família se insere, e que parece impor-se em termos tão fortes que coloca à
margem qualquer outro aspecto do ambiente familiar de Jean, quando criança. Nenhuma
referência é feita a respeito da vida e da fisionomia social dos outros familiares. Podemos
somente supor que, mesmo tendo fortes vínculos com a profissão, sua família não se encontra
em uma situação economicamente próspera: sabemos, de fato, que em 1825 e pouco depois da
morte da esposa o pai emigra para Paris com Jean “à procura de fortuna”, uma tentativa
fracassada visto que pai e filho, após dois anos, são obrigados a voltar para a cidade natal.
Esses acontecimentos se constituem como um nó que marca a primeira grande ruptura no
percurso de Jean (cf. fig. 2, abaixo). A morte da mãe, que o induz a abandonar pela primeira
vez sua cidade natal e seu ambiente de origem, coincide com o início do seu percurso
profissional. Esse se faz acompanhado, também, de experiências indubitavelmente fortes: a
migração para a cidade grande, o fracasso dos projetos implicados nessa sua escolha, o retorno
ao vilarejo e o início de um aprendizado que se dá sob o controle do pai.
O aprendizado de Jean será extraordinariamente longo. Depois de ter trabalhado um ano
“sob as ordens” do pai, ele começa a trabalhar com um mestre carpinteiro de Troyes, com quem
permanecerá por sete longos anos sem nenhum aumento de salário.
É difícil interpretar a natureza da experiência e dos projetos de vida de Jean durante esse
período, que parece constituir um momento de reposicionamento. É certo, porém, que o período
se encerra com uma nova ruptura: o jovem aprendiz é liberado do serviço militar, o que lhe

13
(Frédéric Le Play, O. M. – n. 1).

181
permite, assim, retomar um percurso de iniciação cujos conteúdos lembram, paradoxalmente,
as vivências dos jovens em formação.
Em 1836, ele deixa Troyes e vai a Paris, onde espera continuar o aprendizado e onde
encontra os Compagnons du Devoir14 que o aceitam como membro aspirante. É, portanto, nessa
função e por meio das redes dessa corporação que Jean inicia, em 1838, seu tour de France.15
A primeira etapa é Auxerre, onde ele trabalha por um ano e onde se torna um compagnon, tendo
seu status e seu salário, modificados. Jean começa a dirigir alguns trabalhos, mas, protagonista
de violentos confrontos com os Compagnons de la Liberté, uma corporação concorrente de
artesãos que trabalham com madeira, deve deixar a cidade. Dirige-se a Lion, mas é “atacado na
estrada por membros pertencentes às sociedades rivais: após uma luta sangrenta, foi obrigado
a mudar o seu destino para fugir das buscas das autoridades”.
Depois de sete anos de lento aprendizado em Troyes, Jean vive cinco anos muito intensos
marcados por numerosos rituais de passagem, principalmente aquele referente à ruptura com a
família de origem, no momento em que decide partir para Paris, e aqueles das corporações e do
tour de France que implicam rituais complexos baseados em gestos, relações e símbolos
extremamente hierarquizados e também violentos. Por fim, ocorrem também aqueles da relação
com a violência de grupo, por meio de conflitos sangrentos com outros compagnos em que Jean
parece ter um papel central.
Ao longo desses anos e por meio dessas experiências fortes e ritualizadas, parecem
sedimentar-se os elementos mais importantes que compõem o conjunto estrutural e o valor vital
de Jean. Durante o tour, ele segue todo o ritual previsto pelas corporações, integrando-o em
seus conteúdos e remodelando, por meio dessa linguagem, a configuração das referências
profissionais e sociais herdadas pela família.
Mais uma vez podemos, portanto, notar a dupla dimensão de continuidade e de
diversificação que caracterizam os processos de evolução histórica assim como os percursos
biográficos. Jean é um carpinteiro como foram o pai, os tios e o avô. Uma grande parte de suas
imagens, de seus conhecimentos e de seus projetos são, portanto, marcados pelas falas e pelas
práticas dessas figuras, assim como pelos sentimentos e pelas emoções que as lembranças de
todos esses elementos trazem. Ao mesmo tempo, por meio de suas novas experiências de vida,

14
O termo, em tradução livre significa “companheiros do dever” e se refere à forma e à sistemática de organização
e funcionamento das corporações de trabalhadores artesanais, organizadas por ofícios e divididas em três estágios:
aprendiz, companheiro e mestre. O título de “companheiro” era atribuído ao trabalhador após este completar seu
tempo de aprendizagem e se aperfeiçoar no tour de France (N. do T.).
15
O tour de France era uma das formas de aprendizado e um ritual de integração às corporações artesãs. Um
jovem aspirante “compagnon” aprendia o ofício e as regras da corporação ao longo de uma viagem de estudo e de
trabalho que se desenrolava por toda a França e pelas diversas sedes sociais do grupo.

182
essas mesmas imagens, esses conhecimentos e esses projetos se reatualizam e se reconstituem,
abrindo novas conexões e encontrando novos conteúdos. Se a experiência que traz esse jovem
carpinteiro de Champagne contribui para orientá-lo em direção ao mundo dos mestres artesãos
de Paris, ela se redefine também na relação com seus novos contatos até ser radicalmente
transformada por eles.
Assim como para Alexis e Bertrand, a configuração na qual se insere Jean, mesmo
reproduzida, se transforma por meio de cada nova experiência vivida, mas, ao mesmo tempo,
ela investe e transforma também, com sua marca pessoal, os espaços e os ambientes que
encontra. Ao determinar as modalidades específicas com que Jean reproduz os rituais das
corporações, ou ainda o grau não indiferente de violência que marca seus encontros com os
compagnons rivais, pesam também a visão de mundo e as questões induzidas por sua
experiência.
É através de tais mecanismos que é possível observar uma perfeita solidariedade entre
indivíduo e ambiente, entre evoluções individuais e evoluções sociais. Por volta de 1830,
momento em que penetram no rol das práticas das corporações também as linguagens e os
símbolos dos conflitos entre grupos rivais,16 Jean é levado, de forma natural, a encarnar uma
das posições mais extremas, contribuindo assim diretamente para reforçar tais conteúdos em
detrimento de outros que também estavam presentes como possibilidade.17
Tais práticas, portanto, contribuíram para restringir as possibilidades da história francesa.
No entanto, no quadro da configuração de Jean, longe de serem percebidas como negativas,
elas consolidam e reforçam suas capacidades profissionais, embasando, portanto, de maneira
positiva, sua identidade social. É também a partir dessas experiências que Jean se identifica
com seu grupo de compagnons, com um modo de administrar as relações profissionais, com
um discurso e com práticas específicas. A partir do momento de seu retorno forçado a Paris,
Jean é, portanto, “o” compagnon. Ele vive para a corporação a qual, por sua vez, não hesita em
confirmá-lo no seu papel e no seu status de membro plenamente ativo, encontrando
imediatamente um bom trabalho para ele. Somente um ano após sua chegada, ele recebe “a
honra de ser designado para realizar, com dois outros comissários, a troca e a instalação da Mãe
dos Compagnons Charpentiers”.18

16
A respeito do crescente conflito entre grupos de corporações durante a Monarquia de Julho, consultar Coornaert
(1966). Para uma reevocação direta desses conflitos, conforme a narrativa presente em Mémories d’un compagnon,
ver Perdiguier (1982).
17
Se considera, por exemplo, os discursos e as práticas sansimonistas, em minoria naquele período, caracterizado
também por posições e práticas como aquelas expressas por Jean.
18
(Frédéric Le Play, O. M. – n.1, p. 42).

183
Por fim, plenamente estável nessa configuração, Jean se casa em 1843. A corporação não
aceita compagnons casados e ele tem que deixá-la. Todavia isso não parece minar sua posição.
A exclusão é, acima de tudo, formal. Jean mantém a totalidade dos seus contatos, continuando
a viver e a trabalhar nesse e para esse ambiente. De fato, o casamento parece, acima de tudo,
consolidar sua posição social, reforçando sua imagem de estabilidade e o status nessa fase do
percurso de vida. Marie, sua esposa, teve uma infância difícil. Nascida em Meurthe, em 1814,
filha de um ferreiro “bom trabalhador, mas com tendências ao alcoolismo”, assim como seus
quatro irmãos e irmãs, teve de aprender desde cedo a trabalhar, adaptando-se às circunstâncias
e a administrar, sozinha, suas economias, o que ela continuará a fazer no novo lar. Marie tinha
sido “operária costureira e serviçal doméstica”. Depois do casamento, ela encontra um trabalho
como vendedora nos mercados de Paris.
Para cada uma dessas monografias, seria necessária uma análise mais aprofundada das
especificidades dos vários percursos, mas aqui é útil destacar os acontecimentos sucessivos ao
casamento, o que permitem avaliar com mais clareza a natureza das lógicas sociais que se
estabelecem na Paris da metade do século XIX e as experiências de muitos dos artesãos que
trabalhavam com madeira.
A estabilidade da nova configuração de Jean dura somente alguns anos. A partir de 1844,
com o nascimento dos primeiros filhos, a família adquire um peso suplementar. No início, trata-
se, sobretudo, de um peso físico para Marie, descrita como uma mulher de saúde frágil e que
em quatro anos dá à luz três filhos, dos quais somente o primeiro sobrevive. Mas esse peso se
torna economicamente comprometedor quando, em 1848, a mãe de Marie, gravemente doente,
vem morar com o casal (até sua morte em 1858). A situação se torna insuportável quando Jean
perde o emprego.
Mais uma vez, observamos a extrema precariedade do equilíbrio de uma configuração
individual e da sua forte sensibilidade às variações das cargas impostas pelos membros da
família nos diferentes momentos no ciclo de vida. Assim como ocorreu com Alexis, o
nascimento dos filhos ou uma série de partos desafortunados contribuem para o forte
desequilíbrio da economia familiar. É preciso observar o comportamento de Jean quando perde
o emprego. Diferentemente de Alexis, que pôde deslocar suas ligações verticais na crise de
1848, Jean não está em condições de ativar recursos ou ligações que lhe permitam fazer frente,
de forma eficaz, à difícil conjuntura. Ele passa, portanto, a trabalhar nos Ateliers Nationaux
criados pelo governo provisório imediatamente após os conflitos de fevereiro. Portanto, após o
fechamento desses ateliers, observamos que Jean se transforma em um vendedor ambulante
(primeiramente de jornais, depois de frutas e verduras), utilizando as ligações e as redes

184
profissionais da esposa. É de fato Marie que ajuda a família e parece salvá-la do naufrágio
econômico nessa crise, que extingue suas reservas. Ela redobra os esforços, procurando
trabalhar autonomamente nos mercados. Tudo isso ocorre em um período de repetidas
gestações e de cuidados com crianças de tenra idade.
Como revelam Le Play e Faucillon, “a vida de corporação contribuiu para formar[em
Jean] uma forte opinião a respeito da sua própria posição”19 e ele não parece perceber como
possível nenhuma atividade fora do seu ofício. Se ele se adapta, aproveitando as oportunidades
criadas pelas ligações da esposa, o faz, portanto, “não sem uma profunda humilhação”,20 e o
faz unicamente porque percebe Marie, fisicamente e nas relações, distante do ambiente dos
artesãos que trabalham com madeira. Fortemente estruturada pelos elementos mais fortes da
experiência das corporações, a configuração em que se insere Jean fornece, portanto, recursos
(relacionais, simbólicos e profissionais) numerosos, mas que se revelam também muito rígidos.
Para Alexis e para Bertrand, suas configurações implicavam o acesso a recursos profissionais
mais diversificados, mesmo que cada uma delas de forma completamente diferente. Numa área
em que se tornam mais densos os recursos marginais e regionais para Bertrand, para Alexis as
ligações verticais se ampliam, no espaço e no tempo, em grande parte da sociedade francesa.
No caso de Jean, a configuração se baseia somente nos recursos profissionais alcançáveis por
meio das ligações horizontais do ofício.
Mais uma vez, o percurso individual nos leva a uma maneira particular de conexão, por
meio da experiência vivida, dos recursos, das relações, das imagens, dos discursos e das
representações da sociedade mais ampla. E, mais uma vez, essas formas sincréticas nos
aparecem como reais e possíveis, como parte das áreas mais vastas povoadas por outras figuras,
cujas experiências estão em consonância ou se integram com aquelas que observamos.
Enquanto para algumas pessoas existe um significado pensar a sociedade como caracterizada
pelo pertencimento regional, para outras faz sentido pensá-la como hierarquizada, dividida em
classes, mas com ligações diretas de troca, e para outras, ainda, faz sentido pensar a prática do
ofício não somente como recurso econômico, mas também, e sobretudo, como lugar de
construção de identidade social.
A área em que se articulam as experiências das corporações artesãs constitui, sem dúvida,
uma parte que caracteriza a sociedade francesa do século XIX. A história de Paul Antoine, outro
carpinteiro nascido em 1847 em uma vila, em Indre, e que se move também no interior desse
mesmo espaço ao longo de um período de 20 anos, nos permitirá não somente interpretar sua

19
Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p. 339.
20
I Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p. 339.

185
relevância, mas também observar sua evolução ao longo do tempo em relação às experiências
dos indivíduos que passam através dela.21
Paul Antoine nasce em uma família de trabalhadores braçais que cultivam as terras de
uma família da alta nobreza francesa. Numerosas imagens fortes dominam a narrativa que o
pesquisador, Pierre du Maroussem, reconstrói a partir das suas lembranças de infância. Destaca-
se o enorme contraste existente entre a condição da sua família e a dos proprietários, visto como
a base do “vivo sentimento de desigualdade social” que agita o espírito de Antoine. Além disso
observa-se o desenrolar de uma vida em ritmos binários entre o verão e o inverno, entre o pasto
e a escola elementar, entre os prados e os bancos escolares. Por fim, observa-se a condição da
mãe, viúva, que procura “fazer frente, com sua baixa renda como lavadeira, às necessidades de
uma filha e do jovem filho”.
É isso que se destaca da bagagem de conhecimentos, ligações, recursos e sentimentos
desse jovem provinciano no momento em que deixa os familiares para iniciar seu tour de
France: uma paisagem conhecida, fortes contrastes entre a riqueza de uns e a necessidade de
outros, entre modos de vida arrogantes e estranhos aos seus e o sofrimento vivido por causa de
dois membros da sua família e, talvez, alguns livros, mas quase nenhuma prática do ofício.
Diferentemente de Jean, Paul Antoine não possui uma raiz familiar no mundo do trabalho com
a madeira, do qual se aproxima, tarde, aos 17 anos, depois de ter trabalhado por algum tempo
como carroceiro e depois de um breve aprendizado de um ano junto a um carpinteiro da vila. O
valor vital que orienta seus passos e seus projetos de vida no momento de sua partida não é,
portanto, como no caso de Jean, tão baseado em um projeto de consolidação de um
pertencimento profissional quanto na gama de sentimentos, fortes e contrastantes, que surgem
a partir de sua experiência dentro do espaço do social.
Iniciando seu tour de France, Paul Antoine espera obter, portanto, da corporação, não
somente o aperfeiçoamento do seu aprendizado, mas, também, o acesso a uma prática de vida
diferente daquela conhecida na vila, baseada no respeito ao outro e na igualdade. No entanto
ele se encontra em um ambiente que é, ainda, em muitos aspectos, o mesmo encontrado por
Jean, 20 anos antes.
Na primeira etapa, em Blois, Paul Antoine entra em contato com os Compagnons du
Devoir, e como Jean, confronta-se com as práticas e os rituais complexos do grupo, mas sua
percepção, recuperada pelo pesquisador, é bem diferente da percepção de Jean. Ele julga seus
novos companheiros como personagens totalmente fechados em si mesmos, enquadrados em

21
Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p.339).

186
uma rígida hierarquia e incapazes de administrar relações isentas de violências. Hierarquia,
individualismo, ciúmes, coerção, traição são as palavras recolhidas ao longo da narrativa que
ele faz das suas primeiras experiências, sobretudo em relação à violência, em relação aos outros
grupos, mas também em relação aos seus companheiros quando ele procura distanciar-se dos
comportamentos previstos. Destacamos aqui a passagem da emboscada feita pelos membros de
sua sociedade quando descobrem que ele teve a coragem de fazer cursos de desenho técnico em
outra corporação.
O ódio pela violência e pela arrogância e todos os sentimentos vivenciados na vila se
reproduzem na nova situação. Apesar de Paul Antoine não abandonar a corporação, que para
ele é indispensável não somente para encontrar um trabalho, mas, sobretudo, para aprender
bem o ofício, desenvolve uma atitude que no início é de participação não muito engajada, mas
que se torna, aos poucos, crítica ferrenha e profundamente antiautoritária. Quando pode, exige
de seus companheiros atitudes diante de situações que lhe parecem regras não justificadas. Isso
ocorre até a dissolução do seu relacionamento com eles, momento forte desse percurso, no qual
se expressam, ao mesmo tempo, seu ódio em relação ao grupo, seu escárnio em relação aos
chefes e suas arrogâncias, mas, também, paradoxalmente, a necessidade de reconhecimento
desuas capacidades profissionais por parte dessas mesmas pessoas.
Os fatos são interessantes pela natureza dos sentimentos que mostram. Estamos em 1871.
Paul Antoine está em Paris, onde chegou ao final de um tour de France interrompido pela
guerra (da qual participa) e pela Comuna (da qual participa em suas últimas horas). Decide,
portanto, terminar seu aprendizado com os Compagnons de la Liberté, visto que a sede não é
distante de sua casa. Frequenta os cursos até o momento em que deveria ser nomeado
compagnon, mas nesse momento, ao invés de respeitar o ritual, apresenta-se com um grupo de
amigos na sua velha corporação, os Compagnons du Devoir, como se tivesse acabado de chegar
à cidade após ter terminado o aprendizado na província. Pede, portanto, para ser nomeado
compagnon e passa, com seus amigos, por todas as provas previstas. É então nomeado, mas
após ter aproveitado largamente o grande banquete oferecido em sua homenagem, um pouco
antes de pagar a cota prevista pela nomeação, vai embora com seus amigos, abandonando
definitivamente a corporação. A necessidade de reconhecimento por parte dos artesãos os quais
ele respeita pelas suas capacidades profissionais se mistura, portanto, nessa passagem, com a
falta total de respeito às hierarquias e às regras que perderam completamente, aos seus olhos e
aos olhos de seus companheiros de aventura, o significado.
Toda essa confusão custará muito caro a Paul Antoine, que será obrigado a confrontar-se
com os Compagnons de la Liberté e ficará marcado ao longo da vida pelos Compagnons du

187
Devoir,22 mas constitui também um verdadeiro ritual de passagem por meio do qual a velha
configuração de um jovem compagnon insatisfeito e desrespeitoso se transforma na
configuração de um dos carpinteiros independentes que povoam, sempre em maior número, o
mundo parisiense do artesanato em madeira. O olhar acurado de du Maroussem mostra essa
transformação. Ele observa que se “a primeira parte da vida do operário foi empregada em
combater o compagnonnage [...] a segunda será consagrada à luta contra os patrões”.
Efetivamente a natureza da nova configuração na qual se inscreve a vida de Paul Antoine é
marcada por uma série de referências à ideologia socialista que permitem reatualizar em uma
nova forma de coerência as relações, as referências emocionais, os recursos, os símbolos etc.,
em suma, todos os elementos que formam seu conjunto estrutural.
O percurso de aprendizado de Paul Antoine é quase idêntico ao percurso de Jean, 20 anos
antes. Se os confrontamos, (conf. fig. 2 e 3, abaixo) poderemos observar a presença da mesma
série de acontecimentos em quadros de configurações históricas profundamente diferentes. Em
1836, quando Jean inicia seu tour, a linguagem e as práticas das corporações, inclusive aquelas
ligadas à violência, se articulam com uma série de referências e de práticas sociais que se
encontram, em sua grande maioria dentro da profissão ou, pelo menos, no universo artesão.
Nesse quadro, a gama de possibilidades disponíveis para interpretar a violência parece dispor-
se entre a imagem da glorificação, que tende a perceber o caráter ritual da formação de
identidade, e a imagem que vê a violência como o preço a pagar para fazer parte de um grupo.
Os numerosos aprendizes e compagnons que se rebelam contra essas práticas faziam essa
leitura,23 mas eram poucos aqueles que se permitiam pensar a violência dessas práticas como
inadmissíveis e que chegavam a ficar à margem das corporações.
Em 1865 os mesmos discursos e as mesmas práticas se enraízam em uma gama de
referências sociais mais amplas e mais contraditórias, que não somente tornam mais fácil a
afirmação de posições de ruptura, mas que mudam também a própria natureza da coerência do
conjunto que anima esses espaços. Ao mesmo tempo, a linguagem dos numerosos grupos
socialistas que se difunde progressivamente nos ateliers parisienses a partir do final da
Monarquia de Julho, fornece, sem dúvida, um quadro de expressão para as imagens trazidas
pelos compagnons da segunda metade do século, favorecendo também o desenvolvimento de
papéis, de práticas e até mesmo de estruturas profissionais alternativas. As formas e os rituais
de aprendizado e de trabalho não mudaram substancialmente entre as experiências de Jean e de

22
“Os Compagnons du Devoir não disseram nada, mas cultivam um ódio que viria à tona mais tarde, na época das
greves” (Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p. 339).
23
É o caso de Mémoires de’um compagnon (Perdiguier, 1982).

188
Paul Antoine, mas os mesmos gestos e as mesmas práticas se reproduziram em uma
configuração que modificou profundamente seus conteúdos. Os dados resultantes foram: na
pesquisa de 1856, Le Play e Faucillon estimam a presença de 400 artesãos independentes contra
3 mil carpinteiros presentes na cidade, isto é, 13% do total. Em 1889, du Marrousen avalia uma
presença de 1.500 artesãos independentes contra um grupo estimado de pouco mais de 3.500
pessoas, isto é, 43%.
Paul Antoine é um deles. As configurações que estruturam o espaço exterior das guildas
de artesãos são marcadas pela confluência de sentimentos, imagens e questões exaltadas ao
longo das experiências que marcam seu caminho e que formam seu conjunto estrutural. No
entanto, elas se reatualizam, graças às últimas experiências sociais e profissionais e às mais
diversas e recentes relações causais que se se estabelecem.
Essa força estruturante da experiência social que se reatualiza e que transforma os
sistemas de coerência individuais e de grupo, parece-me um elemento central para a
compreensão das dinâmicas históricas. Ela nos permite não só apreender a evolução constante
de cada configuração e de cada prática social, mas também explicar as transformações de
perspectiva, muitas vezes dramáticas, que podem ser observadas tanto na evolução de uma vida
como de um grupo ou de uma sociedade. Como escreveu Wilhelm Humboldt (1985:49, trad.
livre) no seu ensaio originalmente escrito em 1812, “existe um momento de procriação moral,
no qual o indivíduo (ou nação) se torna aquilo que deve ser, não por etapas, mas repentinamente,
de uma só vez”.
As experiências sociais apresentam a possibilidade de novas conexões (lógicas, mas,
muitas vezes materiais). Frequentemente, isso ocorre pela inserção, de um modo ou de outro,
das experiências em uma série de conexões, de imagens e representações já existentes, mas às
vezes esse processo permite a reorganização dos elementos presentes dentro de uma velha
configuração, de um conjunto estrutural, sob uma nova forma que pode parecer melhor e mais
coerente. Essa reconfiguração, concretizada de imediato ou num lapso de tempo mais longo,
pode, contudo, tornar-se global e abrir perspectivas de ações drasticamente novas para o
indivíduo, o grupo ou a sociedade que passe por essa experiência.
No caso de Paul Antoine, é difícil entender exatamente os ritmos da reconfiguração do
seu conjunto estrutural e se ela se concretizou progressivamente por meio da maturação e da
revisão constante das imagens das quais ele era portador desde sua primeira infância, ou se ela
se concretizou repentinamente, com base nas novas experiências, fortes e fundadoras.
Certamente, sua maneira de observar o espaço profissional e relacional parisiense, de interpretá-

189
lo, de identificar recursos e construir seus projetos, parece realmente marcada por uma
reconfiguração global no interior da qual adquiriu um papel central a ideologia socialista.
A investigação particularmente precisa de du Maroussem nos fornece numerosos indícios
do peso e da lógica da nova configuração. Primeiro, sua escolha matrimonial. Pouco depois do
abandono das corporações e do início da atividade de carpinteiro autônomo, Paul Antoine
encontra Marie. Ela é filha de um agricultor proprietário de Dordogne, o qual arruinou-se na
tentativa de desenvolver, com sua esposa, uma atividade de produção de telhas. Na memória da
jovem, esses acontecimentos familiares desempenham o mesmo papel de base que
desempenhavam as imagens dos contrastes sociais na vila de origem de Paul Antoine. Na versão
transcrita pelo pesquisador, a lembrança da falência é acompanhada da imagem de injustiça e
de queda social, que Marie interpreta como a causa direta da sua partida precoce do vilarejo
“para trabalhar em estabelecimentos comerciais muito modestos”. O percurso de Marie, em si,
é interessante, mas aqui, bastará lembrar como os acontecimentos marcam e contribuem para
construir uma visão das relações sociais muito próxima à de Paul Antoine. Se esses dois jovens
parecem se encontrar e se unir sob uma base ideológica semelhante, é também verdade que ela
se baseia fundamentalmente sobre uma profunda analogia das experiências vividas por ambos.
Os dois jovens, casados civilmente em 1874, construíram sua vida em nome de uma visão
baseada na ideia de justiça social que se exprime também (e sobretudo) nas imagens de
modernidade, largamente identificadas com a evolução técnica e científica. Tais imagens
emergem muito claramente em muitas partes da monografia, por exemplo, naquela dedicada a
analisar a higiene da família. Assim, sabemos que os cônjuges têm, decisivamente, voltado as
costas a todos “os medicamentos empíricos” e que seu “respeito pela Faculdade (de medicina)
é, portanto, sem reservas”. E sabemos também que, para poder colocar em prática essas
convicções, a família muitas vezes enfrenta despesas significativas com médicos e remédios.
Mas as imagens da modernidade transparecem também nas opções de lazer feitas em seu tempo
livre que, entre os passeios evocados, à parte aqueles primaveris nos bosques de St. Cloud, na
periferia parisiense e sobre os barcos no Sena, são citadas unicamente as visitas da família à
Exposição Universal, ao Museu dos Automóveis e à Torre Eiffel. Paul Antoine é também um
“membro influente do partido coletivista”, que participa ativamente das atividades de um
círculo político e de numerosos comitês. Uma vez por semana, ele vai a um círculo de estudos
sociais e lê regularmente jornais e duas revistas semanais de tendência socialista. Poderia
continuar detectando inúmeros indícios que confirmam a mesma imagem da configuração
social na qual se inscrevem Paul Antoine, Marie e suas três filhas. Limito-me a salientar como
essa configuração é baseada em traços formalmente similares àqueles observados a partir das

190
práticas sociais e profissionais de Jean. A centralidade do trabalho em primeiro lugar,
evidentemente, é um ponto, mas também suas formas de organização social e, até mesmo,
paradoxalmente, certos rituais baseados nas relações de trabalho, e até a imagem, muito forte,
de moralidade operária que Jean e Paul Antoine compartilham claramente devem ser
considerados. No entanto, tudo é muito diverso nas duas configurações, inclusive a diferença
de suas raízes no interior do espaço social. As relações de Jean são todas horizontais. Nos
momentos de crise, se não puder contar com sua corporação, ele não tem outros laços que lhe
possam dar acesso a outro modo de ajuda, como vimos. Notamos, também, como essa
horizontalidade pode ser percebida em perspectiva aberta. Jean não percebe nem concebe
nenhuma outra perspectiva além daquela oferecida pelo ambiente dos artesãos de madeira e da
carreira de mestre carpinteiro. As relações e as perspectivas de Paul Antoine, ao contrário, são
mais abertas e unidimensionais. Por meio de suas diversas afiliações, ele está cotidianamente
em contato com muitas pessoas pertencentes a ambientes diversos daquele dos artesãos
carpinteiros. Além disso, e este a meu ver é o aspecto mais importante, pela sua ideologia, mas
também pela natureza de seu percurso, está em contato com personagens que evoluem dentro
de zonas sociais muito mais adequadas, mas que se inscrevem em configurações marcadas por
referências e práticas fundadas sobre o trabalho técnico, sobre imagens da modernidade e do
progresso social. Áreas e coerências essas, que parecem estruturar uma parte importante da
sociedade laica e republicana francesa na segunda metade do século XIX.24
Quando Paul Antoine “é colocado na lista negra [visto que]) o seu comportamento, nas
reuniões, é marcado pela associação patronal”, será literalmente salvo, juntamente com seus
familiares, pela intervenção de uma família abastada com a qual Marie está em contato e que
lhe propõe custódia em um colégio feminino privado. Paul Antoine pode, assim, dispor
gratuitamente de um apartamento em “um velho palácio no quarteirão de Saint-German, que
não tem nada a ver com as casas operárias”.25 Du Maroussem não fornece mais detalhes. Não
sabemos, porém, exatamente de qual família se trata, mas é muito provável que seja a família
de editores de Bordeaux, à qual Marie serviu, tendo sido levada por eles para Paris na ocasião
de sua transferência para lá. Uma família que pertence, escreve o pesquisador, à “pequena
burguesia de tendência materialista”.26 Existe, portanto, nessa configuração, a presença de

24
É o que emerge, em particular, da pesquisa sobre as origens sociais dos técnicos e administradores da Saúde e
da Higiene Pública na França. Os dados dessa pesquisa mostram claramente a presença de uma zona de
congruências compartilhadas por muitos engenheiros, médicos e oficiais do Exército, mas também por mestres
artesãos e operários especializados, estruturada em torno da identidade de profissões técnicas bem como de
discursos e ideologias modernistas. Gribaudi (1999).
25
Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p. 325.
26
Frédéric Le Play, O. M. – n. 70, p. 328.

191
relações do tipo vertical que fornecem, ao mesmo tempo, referências e recursos bem precisos.
Formalmente, são as mesmas relações que havíamos observado na monografia de Alexis e de
sua família, fato que confirma sua importância na estruturação da sociedade francesa do século
XIX, mas também mostra como a natureza de tais relações pode ser definida, efetivamente,
pelo tipo de práticas, recursos, referências, imagens e discursos que a acompanham; em suma,
pode ser definida em formas de coerência específicas.

Conclusões

Na introdução deste trabalho, lembrava a percepção de Musil sobre o tempo histórico como um
rio que carrega consigo suas margens ou de um trem que vai à frente de seus próprios trilhos.
Uma imagem forte e de clara ruptura com o senso comum que, desde sempre, pensou o homem
e a história como dois objetos separados, envolvidos em ritmos e dinâmicas diferentes. Musil,
ao invés disso, nos impele a pensar o homem e a história relacionados de modo indissociável e
numa dinâmica de evolução que é inevitavelmente determinada pela própria natureza do mundo
social.
Por meio da leitura de quatro percursos operários, tentei focalizar minha atenção sobre a
especificidade dessa relação. Buscando não pensar a biografia como um caminho compacto,
cuja trajetória é determinada por poucas variáveis fundamentais e de intensidade
estatisticamente definida, mas antes, de apreendê-la como a progressão de um organismo vivo
e imerso no interior de um espaço que evolui e se transforma.
Evidentemente, pude operar unicamente uma leitura extremamente esquemática dessas
vidas, que mereceriam uma análise muito mais aprofundada. No entanto, creio que a riqueza
do material tenha permitido apreender alguns aspectos importantes que confirmam plenamente
essa imagem.
A relação indissociável de cada percurso com a natureza do espaço social no qual eles se
desenvolvem pôde ser vista claramente através das biografias analisadas. Desde o nascimento,
os personagens evocados se inscrevem no interior de configurações sociais que se caracterizam
pelas modalidades de articular e utilizar uma gama específica de recursos, símbolos e memória.
Por meio dessa perspectiva, pudemos notar como a sociedade francesa do século XIX é
fragmentada pela presença de zonas marcadas por diferentes experiências sociais, dentro das
quais não somente as perspectivas, mas também, e eu diria, sobretudo, as possibilidades
objetivas de cada indivíduo podem variar drasticamente.

192
Também nesse caso, os dados são mais que eloquentes. Alexis e Bertrand abandonam,
quase com a mesma idade, seus vilarejos para emigrar para Paris e moram a poucas centenas
de metros de distância um do outro. No entanto, vimos como eles viveram e evoluíram em duas
sociedades totalmente separadas e, entre si, incomunicáveis. O mesmo vale para Jean e Paul
Antoine. Cada um desses personagens vive em uma França diferente, estruturada a partir de
suas práticas e de suas emoções, e também pelas relações de força que se estabelecem dentro
do espaço mais vasto. Para apreender os sentidos de tais percursos e experiências sociais é,
portanto, mais que necessário reconstruir a geografia desses espaços, inventariar a gama de
elementos que os compõem, medir sua consistência e identificar suas proximidades com outros
espaços, outras zonas de coerência.
Mas, ao mesmo tempo, e precisamente por causa de tais mecanismos, parece claro como
essas zonas diferentes, essas diversas formas de coerência pulsam junto com as vidas desses
indivíduos que as povoam e evoluem junto com elas. Uma biografia, um percurso individual,
nos parece, portanto, o desenvolvimento de um ser orgânico totalmente imerso no espaço social
e determinado pelas relações ali presentes.
É, pois, nessa ótica que a metáfora de Musil nos parece particularmente profícua para
pensar o tema da identidade do emigrante. Ela, de fato, nos permite apreender a identidade não
como um estado determinado a partir de uma origem ou adquirido ao final de um percurso,
mas, acima de tudo, nos termos de um processo no curso do qual há mudanças não somente do
indivíduo, mas também do espaço social no qual ele se inscreve. Evidentemente, estes temas
serão posteriormente desenvolvidos com mais cautela, mas me parece interessante notar que,
se confirmado, isso implica também a necessidade de reconsiderar as imagens que foram
tradicionalmente construídas em espaços da sociedade e acometidas pelos fenômenos
migratórios. Não me refiro aos espaços culturalmente compactos nos quais as culturas dos
imigrantes são desrespeitadas, mas às áreas de confluência cujas coesões, como nos recorda
Amin Maalouf no texto autobiográfico que citei na introdução, não podem ser apreendidas por
meio dos conceitos de proximidade e distância, mas, justa e unicamente por meio das formas e
conteúdos dos processos que as estruturam.

193
Figura 1

194
Figura 2

195
Figura 3

196
Referências

COORNAERT, E. Les compagnonnages. Paris: 1966.


COTTEREAU, Alain; GRIBAUDI, Maurizio. Précarités, cheminements et formes de cohérence
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GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Nova York, NY: Basic Books, 1973.
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179, 1980.
GRIBAUDI, Maurizio. L’action publique dans les domaines sanitaire et social en France de 1800

à 1900. Paris: Convention MIRE-INED, p. 87-115, 1999. Rapport final.


____. Percorsi individuali ed evoluzione storica: quattro percorsi operai attraverso la Francia
dell’Ottocento. Trad. Carla Miucci Ferraresi de Barros. Rev. téc. Maíra Ines Vendrame
(Unisinos). Quaderni Storici, v. 36, n. 106 (1), p. 115-151, 2001. Nuova Serie.
HUMBOLDT, G. La tache de l’historien. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1985.
KALAORA, B; SAVOYE, A. Les inventeurs oubliés. Seyssel: Champ Vallon, 1989.
LE PLAY, Frédéric. Compositeur typographe de Paris. Ouvriers Européens, n. 33, p. 254, 1961.
MAALOUF, Amin. Les identités meurtrières. Paris: Grasset, 1998.
MUSIL, Robert. L’uomo senza qualità. Turim: Einaudi, 1957. v. I.
PERDIGUIER, Agricole. Mémoires d’un compagnon. Paris: Maspero, 1982.

197
8 Microstoria/microhistoire/microhistory

Francesca Trivellato

Em 11 de abril de 2014, o Instituto de Estudos Franceses da Universidade de Nova York


patrocinou um simpósio intitulado “History, Memory, and Scaling of the Past: a Tribute to
Jacques Revel”.1 Ao preparar meu texto para a ocasião, que publico aqui com pequenas
revisões, me vi surpreendida pela extensa bibliografia acadêmica que existe atualmente, e em
várias línguas, sobre um dos assuntos propostos, qual seja, “a escala do passado”, e, mais
especificamente, sobre a micro-história. Ainda assim, esse tributo nos leva a lançar mais uma
vez a questão: o que é a micro-história?
Cerca de 40 anos depois da publicação de O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg,
considerado a mais famosa das micro-histórias, a pergunta permanece mais relevante do que
nunca. Desde o surgimento desse estudo de referência, a micro-história evoluiu, assumiu
diferentes significados para diferentes públicos, dentro e fora da universidade, mesclou-se e
entrou em choque com outros gêneros e agendas da academia.
Mais do que qualquer outra tendência historiográfica, a chamada a história global
levantou novos desafios para a micro-história. A micro-história foi literalmente acachapada
pela ascensão das histórias mundial e global, pela virada espacial (spatial turn), pela grande
história (big history) e pela big data. Ao mesmo tempo, o argumento central da micro-história
– que diz que a variação de escalas de análise semeia novas e radicais interpretações para as
grandes narrativas que são comumente aceitas – adquiriu uma nova urgência à medida que a
globalização e seus antagonistas passaram a demandar que historiadores produzissem novas
grandes narrativas que versassem sobre as maneiras pelas quais as interconexões e hierarquias
foram desenvolvidas em escala planetária. Num fórum intitulado “How Size Matters: The
Question of Scale in History”, cujos debates foram publicados na American Historical Review,
historiadores de campos diferentes discutiram sobre alguns dos caminhos que a profissão tomou
em resposta a essa demanda. E é interessante notar que “a questão da escala” é entendida tanto
na sua função temporal como na sua função espacial (Aslanian et al., 2013).

 Título original: “Microstoria/Microhistoire/Microhistory (Trivellato, 2015).


1
Eu gostaria de agradecer a Edward Berenson por ter me convidado e a Herrick Chapman por ter recebido minha
contribuição para esse periódico.

198
Agora, gostaria de conduzir um pequeno exercício, utilizando a variação de escala como
uma ferramenta para analisar o que pode se esconder atrás do rótulo “micro-história”, ou, em
outras palavras, gostaria de aplicar o método micro-histórico na micro-história como se fosse
uma tendência historiográfica. Verdade seja dita, eu apreciaria que Jacques Revel pudesse
conduzir esse exercício. Sem dúvida, o resultado seria uma aula virtuosa. Se o propósito tem
alguma vantagem é a de que ele tem condição de caracterizar com mais liberdade o papel
definidor que o próprio desempenhou e continua a desempenhar na saga da micro-história.
Na função de acadêmico, Revel refletiu mais do que a maioria de seus pares sobre o status
da história como disciplina e sobre suas múltiplas articulações no Ocidente. Como um
administrador de universidade, ele incorporou sua visão da história numa estrutura de
programas acadêmicos. A micro-história esteve no centro de seus interesses por um longo
tempo. Na verdade, ele fez mais do que qualquer outro para traduzir (literal e conceitualmente)
as ambições teóricas de um pequeno grupo de micro-historiadores italianos, colocando-os num
campo mais amplo de debates. Enfatizo o papel duplo de Revel – acadêmico e administrativo
– porque a sinergia entre os dois não pode ser separada. Hoje, nos EUA e em grande parte da
Europa, os dois papéis são vistos cada vez mais como rotas paralelas, quando não divergentes,
tanto mais que o corpo docente, particularmente na área de humanas, vê os administradores
como uma casta gerencial cada vez mais desconectada das missões de ensino e de pesquisa. A
administração da Universidade de Nova York, onde Revel é global distinguished professor
desde 2005, não está sozinha nos seus esforços junto a vários professores em torno de decisões
importantes para o futuro da universidade, incluindo questões concernentes aos seus campi de
Manhattan e Abu Dhabi.2
A carreira de Revel se desenvolveu na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS), da qual ele também foi presidente entre 1995 e 2005. Essa famosa instituição parece
ter permitido uma invejável sinergia entre pesquisa e objetivos institucionais. Além disso, Revel
ensinou por breves períodos (às vezes de forma recorrente) não apenas na Universidade de
Nova York, mas também em várias instituições destacadas dos EUA, Europa, Israel, Argentina,
China, Coreia e Índia, desenvolvendo laços pessoais e intelectuais em cada um desses lugares.
A micro-história nos ensinou a importância de se reconstruir redes de relações, a fim de
entendermos como são forjados os significados e como o poder é distribuído. Podemos aprender

2
No que é provavelmente a mais hiperbólica crítica contra administradores universitários divulgada em meio
impresso, um acadêmico inglês recentemente comparou aos colaboradores do regime de Vichy os administradores
dispostos a acatar as demandas do ministério do Reino Unido para implementar índices quantificáveis como
ferramenta para medir resultados acadêmicos (Collini, 2012:131).

199
bastante ao traçarmos as conexões pessoais, intelectuais e institucionais construídas por Revel
em cada instituição visitada por ele. Entretanto, tal tarefa ultrapassaria os objetivos deste texto.
Gostaria de enfatizar, em vez disso, um ponto menor, porém essencial. Mesmo nosso mundo
acadêmico globalizado – no qual uma classe privilegiada de estudantes e pesquisadores viajam,
estudam, ensinam e trocam ideias através de fronteiras políticas e linguísticas – não está livre
de fronteiras ou hierarquias. Ideias e conceitos viajam, mas eles são modificados no processo
e, às vezes, não são facilmente traduzidos ou, pior, não chegam a ser traduzidos. Modernidades
como e-mail, aviões comerciais, cartão de crédito e o euro alteraram dramaticamente nossas
vidas quando comparadas às vidas de globe-trotters pré-modernos, como Ibn Battuta ou Leo
Africanus. Mas mesmo as universidades globalizadas de hoje ainda necessitam de brokers
transculturais – acadêmicos que formulam projetos intelectuais que transcendem interesses
locais, cujo exemplo seja inspirador, e que conhecem as alegrias e armadilhas da comunicação
intercultural. Para os micro-historiadores italianos e muitos outros, Revel tem se prestado a esse
e muitos outros papéis.
Para minha sorte, posso falar sobre esse assunto, ao menos em parte, baseada em
experiência própria. Conheci Revel no pátio de um lindo edifício do século XV que, nos anos
de 1980 e 1990, foi usado como sede do Departamento de História da Universidade de Veneza,
na Itália, que frequentei como aluna graduanda sob a tutela de Giovanni Levi. Levi costumava
convidar seus distintos amigos para falar em eventos, e nós – jovens sequiosos – nos juntávamos
ao seu redor. Na época, a exemplo da maioria dos graduandos, eu não estava segura se tinha
capacidade ou mesmo se realmente desejava “me tornar uma historiadora” – seja lá o que isso
significasse. Eu estava mais preocupada com um movimento de política estudantil chamado La
Pantera, que lutava por uma reforma no sistema universitário3 (Berlusconi ainda não havia
ascendido ao poder e nós não tínhamos consciência de como as coisas ainda piorariam). Eu
ficava mais do que entediada com o fato de que muitas das minhas aulas de história
demandavam que eu lembrasse nomes e datas (o que sempre achei desafiador). Não tinha
nenhum fascínio real com o passado per se. Até então, eu tinha vivido em apenas uma cidade,
Veneza, que se vangloria do seu passado de glória. Para mim, entretanto, Veneza parecia quase
normal (isto é, o oposto de especial) e achava que seu passado não era merecedor de uma
celebração sem fim.

3
Era a chamada “Reforma Ruberti”, que recebeu esse nome por causa do ministro que a formulou, Antonio
Ruberti. Ele advogava maior autonomia para cada campus do sistema estatal universitário italiano e levantou o
espectro do financiamento privado para pesquisa acadêmica.

200
Como parte de uma série de atividades acadêmicas sem direito a créditos e patrocinadas
pelo nosso movimento estudantil, em 1990 Revel veio para Veneza para discutir com o
novelista Daniele Del Giudice temas ligados à veracidade nas representações históricas. Eu não
tenho certeza do quanto meus colegas e eu entendemos do que foi debatido. Mas durante um
coffee break, munido da grosseria gentil que o caracterizava, Revel se virou para mim e disse
algo assim: “Há historiadores que amam o passado e historiadores que amam o desafio que é
dar sentido ao passado”. Aquele aforismo teve um efeito liberador. Subitamente, ser um
historiador não significava nem recordar nomes e datas nem recriar as cores, cheiros e sons do
cotidiano do passado. Eu não tinha necessidade de me entusiasmar com as reminiscências do
passado que me rodeavam. Eu podia usar minhas questões sobre o presente – inclusive sobre a
problemática reforma ministerial – para interrogar o passado, sem distorcê-lo mais do que
qualquer outro historiador o distorceria. Naquele momento, eu não compreendia
completamente esse movimento, mas em uma sentença lapidar, Revel conseguia explicar a
diferença complexa entre as múltiplas abordagens historiográficas, assim como as variedades
de abordagens da micro-história. Isso, e muito mais, eu viria apreciar nos meses, anos e décadas
vindouros.
O caminho das reflexões de Revel sobre o “projet micro-historique” remonta a 1989,
quando ele incluiu uma introdução estimulante – intitulada Histoire au ras du sol – à tradução
francesa do livro de Levi, Le pouvoir au village,4 sobre um exorcista do século XVII no
Piemonte (Revel, 1989).5 Eu acredito que essa foi a primeira vez que um acadêmico não italiano
teorizou sobre a natureza experimental da microstoria em relação a práticas existentes de
pesquisa e escrita históricas. Levi e seus colegas, incluindo Ginzburg, mas também Simona
Cerutti, Edoardo Grendi, Raul Mezario, Carlo Poni, entre outros, ganharam, depois disso,
importância maior do que as supostas minúcias de experiências do passado. Em aproximando
a lente de observação sobre as transações de terra entre parentes e vizinhos numa comunidade
fechada, sobre a vida de um moleiro excêntrico, sobre a mudança na organização institucional
de um grupo de artesãos ou sobre a corrente de emigração de vilas montanhesas, eles se
propuseram a nada menos do que revisitar narrativas consolidadas sobre a emergência da
modernidade, além de lançar amplas questões metodológicas, tais como a relação entre estudos
de caso e generalizações, entre condições materiais e representações simbólicas e entre
reconstruções empíricas e narrativas.

4
Publicado no Brasil com o nome A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.
(Levi, 2000).
5
A expressão “projet micro-historique” aparece nas páginas ix e xi, mas a noção de “projet” perpassa todo o texto.

201
A leitura de Revel sobre a microstoria italiana naquela introdução e nas publicações
subsequentes se tornou importante por várias razões. Em primeiro lugar, ela concedeu à
microstoria uma coerência que lhe faltava e contra a qual impunha resistência. Micro-
historiadores italianos sempre rejeitaram a ideia de que eles pudessem constituir algo
remotamente parecido a uma escola (todos eles são contrários por natureza, mas também, eu
presumo, são menos propensos a abraçar um rótulo que na Itália é mais frequentemente
associado ao feudalismo acadêmico do que à criatividade). Eles estão dispersos em várias
instituições acadêmicas, e são autodescritos como micro-historiadores. Além disso, seus
colaboradores estão mais próximos de uma galáxia intelectual do que de um império dotado de
um centro e de periferias. A série de livros Microstorie, publicada pela Einaudi desde 1981 e o
periódico Quaderni Storici, lançado em 1980, serviram como suas plataformas principais, ainda
que nunca tivessem se transformado em instrumentos de ortodoxia. Poucos artigos teóricos,
alguns publicados em inglês por Levi e Ginzburg, foram a fundo na articulação de premissas
comuns e aspirações dos micro-historiadores italianos com as diferentes contribuições
realizadas por vários autores.6 Mas, como é sempre o caso, esses manifestos exercem controle
apenas parcial sobre interpretações subsequentes. Tornou-se uma questão importante a de se
definir exatamente quais objetivos a micro-história perseguia; e essa questão podia ser
respondida de formas diferentes, dependendo do ponto de observação e da escala de análise de
cada um.
Em 2004 e 2005, em duas publicações separadas, Cerutti e Ginzburg negaram que os
micro-historiadores italianos pudessem ser divididos em uma ala socioeconômica e outra
cultural ou mesmo que pudessem ser designados a partir de uma perspectiva êmica, isto é, a
perspectiva dos atores envolvidos no processo, intenções comuns entre as duas alas (Cerutti,
2004; Ginzburg, 2005). Que eles tenham sentido necessidade de fazer essa assertiva é, por si
só, revelador. A perspectiva êmica – emprestada da terminologia antropológica utilizada tanto
por Cerutti como por Ginzburg – não corresponde totalmente, é fato, ao relato ético de
observadores externos. Outros protagonistas pioneiros da microstoria italiana foram mais
ambivalentes sobre a unidade do grupo. Grendi notou uma fricção entre os seguidores da análise
cultural de Ginzburg e os interessados numa micro-história de base político-econômica. Com a
linguagem emotiva, quando não elusiva, que lhe é característica (foi Grendi, que cunhou o
famoso oximoro “o excepcional normal”), fala de “une communauté de style” formada por um

6
Em inglês, ver principalmente, Levi (1992), publicado no Brasil com o nome A escrita da história (Levi, 1991);
e Ginzburg (1993). Este último também publicado Brasil no livro O fio e os traços: verdadeiro, falso e fictício
(Ginzburg, 2007).

202
grupo disperso de acadêmicos que compartilham uma aversão aos excessos retóricos dos quais
a maioria dos historiadores italianos se satisfazem, além do que, ainda segundo Grendi, os
micro-historiadores preferem a análise à síntese.7 Mas, pergunta-se, o que exatamente manteve
os micro-historiadores unidos? Teria sido uma posição comum que rejeitou a abstração e as
grandes teorias? Um compromisso com a empiria e a autorreflexão? Uma fé pronunciada na
habilidade de indivíduos (a maioria deles homens) de forjar o curso dos eventos? Uma
inclinação política na direção da esquerda não comunista no país do maior Partido Comunista
da Europa ocidental? Talvez uma mistura de todas essas coisas.
E pluribus unum? Diante da heterogeneidade de temas, personalidades e abordagens, será
que a microstoria tem uma unidade? No momento em que Cerutti e Ginzburg afirmaram a
unidade da microstoria, 15 anos haviam se passado desde a publicação de Histoire au ras du
sol, de Revel. Durante esse tempo, micro-historiadores italianos se digladiaram em divisões
internas, enquanto uma multiplicidade de autores na Europa e no resto do mundo emprestaram
seu trabalho para uma variedade de objetivos e, ao fazer isso, transformaram a abordagem da
micro-história.
Em Jeux d’échelles: la micro-analyse à l’expérience, uma coleção de ensaios de
acadêmicos franceses e italianos publicada em 1996, muitos dos quais em associação estreita
com a micro-história, Revel fala de uma “réception américaine” da microstoria italiana centrada
em Ginzburg e no seu paradigma de evidências e de “une version française” escorada na
história social e em sua reconceitualização (Revel, 1996b:15). Essa divisão transatlântica na
recepção da micro-história é uma das várias razões pelas quais o termo desperta associações
diferentes. O imbróglio poderia ser ainda mais complicado se somássemos os britânicos, os
alemães e outras variedades nacionais de micro-história em nossa demonstração, mas, para
nossos propósitos aqui, mantenho as fronteiras entre EUA, França e Itália.

7
Cito a partir da tradução francesa de “Ripensare la microstoria?”, de Edoardo Grendi (2004), publicada como
“Repenser la microhistoire?” em Revel (1996a). Além de identificar tendências comuns cruciais na primeira
geração de micro-historiadores italianos, esse artigo também coloca Ginzburg de lado, devido a seu interesse em
formas culturais em contraste com a ênfase nas práticas sociais prevalecente em outros historiadores do gênero. É
importante salientar que, se Grendi não escondeu suas preferências, ele louvou a falta de ortodoxia entre os micro-
historiadores italianos pela dialética que operavam entre a análise histórica de cunho cultural e social. A primeira
vez em que Grendi lançou a noção de “excepcional normal” foi quando se referiu aos “documentos excepcionais
que podem se tornar excepcionalmente ‘normais’ devido à sua relevância” (“il documento eccezionale può
risultare eccezionalmente ‘normale’, appunto perché rilevante”) (Grendi, 1977). Mais tarde, Giovanni Levi
transformou a ideia num conceito mais cogente (acaso fosse conscientemente paradoxal) ao traduzi-lo como “o
excepcional normal” (Levi, 1992:109). Note-se que ao emprestar o conceito de Grendi, Jerrold Seigel (2012) se
referiu à “exceção normal”, talvez uma tradução inglesa mais acurada para o oximoro. Agradeço a Seigel por
chamar minha atenção para esse ponto.

203
A receptividade francesa da micro-história italiana deveu-se à convergência de fatores
estruturais e contingentes. Os temas que micro-historiadores socioeconômicos investigavam
(colheitas compartilhadas, alianças de casamento, migração, clientelismo) ressoavam em vários
historiadores franceses, especialmente aqueles envolvidos com a escola dos Annales, que
estudava tópicos similares. Aqueles italianos escolheram deliberadamente seus tópicos de
forma a colocar em questão princípios-chave da revolução dos Annales. Um sentimento inicial
entre os micro-historiadores italianos foi a aversão em relação a teorias totalizantes e imperiosas
– marxismo, modernização e funcionalismo estrutural, mas também, talvez especialmente, em
relação à longue durée de Braudel e suas variantes. Haveria, portanto, desafio melhor do que
combater o inimigo no seu próprio terreno?8
Os fatores contingentes da “version française” presentes na micro-história italiana são
facilmente sumarizados em duas palavras: Jacques Revel. A EHESS, no boulevard Raspail se
provou um centro essencial de referência único que permitiu a Levi, seus colegas mais
próximos, além de vários de seus alunos entretecer relações com acadêmicos internacionais.
Enquanto a disciplina histórica praticada nos EUA vivia o cisma de identidade entre
humanidades e ciência social, movimento que se tornava mais contencioso nos anos de 1980 e
1990, a micro-história na França podia permanecer confortável em meio às sciences humaines.
A “réception américaine”, assim denominada por Revel, da micro-história italiana
também foi modelada por forças amplas e networks pessoais, mas de uma forma
consideravelmente diversa do que se passou na França. Nos EUA, o processo de adoção
rapidamente começou a despontar como um processo de grande divergência. A clivagem
transatlântica entre microstoria e microhistoire, de um lado, e microhistory, de outro, pode ser
atribuída a pelo menos três fatores. Primeiro, algumas questões que são centrais para todas essas
tendências, especialmente questões sobre narrativa e agência, nos EUA, começaram a ser
discutidas independentemente da micro-história italiana. Natalie Zemon Davis elaborou uma
interpretação muito diferente das virtudes de se reduzir a escala de análise e de se focar em
biografias singulares. Em segundo lugar, os acadêmicos que mais ativamente traduziram (e aqui
eu digo de forma literal) o trabalho de micro-historiadores italianos foram pesquisadores da
Renascença italiana, fascinados mais pelo trabalho de Ginzburg do que pela história social e
econômica. O resultado foi, portanto, muito diferente daquele produzido pelas traduções literais

8
Já no fim dos anos de 1970, Revel (1979) começa a questionar a supremacia dos Annales e a dissecar sua história.
Ver também o texto mais sucinto, porém não menos revelador de Revel (1978). Este último apareceu em um dossiê
temático dedicado ao “The impact of the ‘Annales’ school on the social sciences”, em uma das primeiras edições
do periódico associada ao então recém-criado Centro Fernand Braudel na Universidade do Estado de Nova York,
em Binghamton.

204
e conceituais capitaneadas por Revel. Finalmente, a maré crescente da história global e mundial
nos EUA implicou usos diferentes da micro-história do que aqueles concebidos na Itália num
contexto de Guerra Fria, no qual muros e fronteiras estavam por todos os lados e se mostravam
quase intransponíveis.
Permitam-me revisar brevemente cada uma dessas três áreas de recepção e transformação.
Como consequência de tendências dentro e fora da academia, a micro-história nos EUA é
associada com maior frequência a duas palavras-chave: agência e história narrativa. Agência é
mais do que um conceito guarda-chuva. Em nossa disciplina, ela significa a ênfase na habilidade
individual de resistir e de plasmar as grandes forças da história; é, quase inevitavelmente,
vinculada com o estilo narrativo de escrita. Um estilo narrativo – em oposição a um tipo social
científico de análise – preza não apenas seu acesso a um público mais amplo, mas também sua
propensão a recuperar a subjetividade e mesmo a interioridade de protagonistas individuais –
sejam eles os founding fathers ou figuras marginais (camponeses, escravos, amas de leite), os
quais os historiadores buscaram resgatar do esquecimento. No país que até recentemente podia
afirmar sua fé no “sonho americano”, agência, talento individual e homo faber fortunae suae, a
biografia nunca sofreu os golpes que sofreu na França nas mãos dos Annales. Uma longa
tradição anglófona de transparência e acessibilidade na escrita acadêmica (uma tradição
frequentemente definida em oposição à propalada opacidade da prosa acadêmica francesa)
ajudou a fragilizar as acusações persistentes de elitismo lançadas contra a academia e, ao
mesmo tempo, estabeleceu um terreno fértil para micro-historiadores florescerem. Além de
tudo, foi em 1979 que Lawrence Stone proclamou o retorno da narrativa (Stone, 1979).
O texto mais conhecido de micro-história ao lado de Os queijos e os vermes, de Ginzburg,
é, certamente, O retorno de Martin Guerre, de Davis (1982). Ambos foram justificadamente
louvados e exerceram enorme influência. O retorno de Martin Guerre foi concebido como um
roteiro de filme antes de ser escrito como livro acadêmico. O filme (estrelado por Gérard
Depardieu), relembra Davis, ofereceu-lhe o mais especial “laboratório de história, gerando
possibilidades históricas, ainda que não referendadas em evidência”; ainda assim, esse fato
também “interpôs ao historiador o problema da invenção” (Davis, 1995). O tesouro escondido
em bibliotecas de livros raros e arquivos provinciais podia oferecer tão somente verdades
empíricas parciais. Em vez de escondê-las, Davis, uma das mais imaginativas historiadoras do
século XX, decidiu transformar “o problema da invenção” em uma de suas preocupações
centrais. O retorno de Martin Guerre, assim, não apenas se constituiu num avanço dos estudos
na questão de gênero, identidade e cotidiano camponês no século XVI, como também fomentou
debates sobre os processos de conhecimento associados a story-telling. Para Davis, a micro-

205
história foi apenas uma ferramenta que lhe permitiu analisar essas questões profundas no cerne
do debate acadêmico. No seu Mulheres à margem, uma coleção de três biografias de três
mulheres – uma católica, uma protestante e outra judia – na Europa da primeira modernidade,
Davis incluiu um diálogo ficcional entre si e os objetos de seu estudo (Davis, 2006:13).
Biografias e narrativas provocam empatia. E, no seu último tour de force, Trickster travels,
Davis preenche os “silêncios e as contradições ocasionais e mistérios” que envolvem a biografia
enigmática de Leo Africanus fazendo o uso do “condicional – ‘teria’, ‘poderia’, ‘possivelmente
teria’ – e os especulativos – ‘talvez’, ‘quem sabe’”, de sorte a reconstruir “uma história de vida
plausível” (Davis, 2006:11).9 Propositalmente, Davis nunca se refere a seu livro como sendo
uma micro-história. Sua caracterização de Leo Africanus como “um caso extremo” pode ecoar
o “excepcional normal” de Grendi, mas Trickster travels é também antitético à micro-história,
já que usa o contexto histórico muito mais para preencher lacunas de evidência na biografia de
um indivíduo do que explora as idiossincrasias de uma história de vida (e sua trilha de papel) a
fim de desafiar apanhados historiográficos convencionais que versam sobre o mesmo contexto
(Geertz, 2006). Em sua resenha de Trickster travels, Clifford Geertz (2006) sugere que o livro
toma “um caminho diferente, quando não mais ousado” do que as micro-histórias anteriores de
Davis. Todas essas precauções, no entanto, não preveniram a rotulação de Trickster travels
como sendo uma micro-história, no jargão acadêmico.10 O ponto aqui é menos categorizar os
trabalhos de acordo com uma definição purista de micro-história do que apreciar o largo alcance
a que esse rótulo está associado, especialmente na América do Norte.11
O casamento da micro-história com o “tempo verbal condicional” era o que mais
perturbava Ginzburg e o que contribuiu para a clivagem transatlântica inicial entre microstoria
e microhistory. Ao garantir a tradução de O retorno de Martin Guerre para a órbita da
microstoria, Ginzburg incluiu um prefácio na edição italiana no qual ele asseverava diferenças
mais do que similaridades entre as premissas de Davis e as suas próprias, no que toca à
compreensão de ambos acerca da micro-história (Ginzburg, 1989; Davis, 1984). A chegada de
Ginzburg à Universidade da Califórnia, em Los Angeles, em 1988, coincidiu com a tradução
inglesa daquele prefácio em texto independente e com o começo da fase mais vocal de Ginzburg
em seus alertas persistentes contra “um radical ceticismo antipositivista que atacava a

9
A respeito de Grendi, ver Davis (2006).
10
Tonio Andrade (2011) se refere ao livro como um exemplo pioneiro de “micro-história global” (mais sobre essa
rubrica abaixo). Da minha experiência, posso dizer que é assim que estudantes de graduação compreendem o livro.
11
Para uma compreensão mais abrangente da micro-história nas suas múltiplas encarnações e interpretações
divergentes (ainda que algumas vezes questionáveis) ver Magnússon (2013), além de também ver o website
mantido por Ildikó Kenyó e István Szijártó (Eötvös University, Budapest) e acessível em:
<http://microhistory.eu/home.html>.

206
legitimidade de textos pelo conceito em si” (Ginzburg (2007:3).12 À luz da robustez da história
como uma disciplina e uma profissão, os alvos de suas polêmicas não parecem tão perigosos
como ele os apresentava, mas seu chamado para uma autorreflexão e um empirismo sofisticado
angariaram-lhe vários admiradores mundo afora, inclusive nos EUA, onde a virada linguística
foi mais influente. Por várias razões, a despeito de sua relação óbvia com a teoria francesa, a
virada linguística na Itália e mesmo na França não provocou uma crise no status do
conhecimento e da escrita da história da ordem que provocou nos EUA. Essa divisão
transatlântica tornou-se ainda outro fator que contribuiu para a divergência entre a recepção
francesa e a americana do trabalho de micro-historiadores italianos.
O interesse em história cultural (mais do que em história socioeconômica) também estava
em alta na América do Norte quando Ginzburg se mudou para a Universidade da Califórnia
(UCLA). Foi na mesma época em que Edward Muir e Guido Ruggiero, especialistas na
Renascença veneziana, começaram a reunir, em três volumes traduzidos para o inglês, ensaios
originalmente publicados no Quaderni Storici (Muir e Ruggiero,1990; 1991; 1994). Menos
radical do que o livro editado por Lynn Hunt em 1989 – A nova história cultural – esses
volumes também enfocavam história cultural e de gênero (Hunt, 2001). As traduções para o
inglês omitiram textos seminais de micro-historiadores proeminentes que escreveram sobre
temas sociais e econômicos, ao mesmo tempo que incluíram capítulos de acadêmicos italianos
cuja associação com a microstoria era frágil, para se dizer o mínimo. Muir e Ruggiero
assumiram como pressuposto (e, inclusive, exacerbaram) a distinção entre a ala cultural e a ala
socioeconômica na microstoria, que posteriormente foi negada por Ginzburg e Cerutti. Os
volumes editados por Muir e Ruggiero passaram a refletir e se tornaram fonte para a migração
transatlântica seletiva do “projet micro-historique”.
Conforme testemunha a longa colaboração entre Revel e Hunt, entre outras, a cooperação
acadêmica entre França e EUA fomentou resultados muito frutíferos (Revel e Hunt, 1995).
Dentro do campo da micro-história, no entanto, as disjunções são várias e profundas. Desde os
anos 1990, a ascensão da história global intensificou essas disjunções, mesmo quando ela
pretendeu reconciliá-las. Eu me refiro aqui ao encontro entre história global e micro-história
num velho terreno: o nexo entre agência e narrativa. Linda Colley afirmou que “nunca poderá
ou deverá existir uma versão olímpica da História Mundial, mas sempre existirá sua dimensão
humana e individual” (Colley, 2007:300). Sua referência não tão velada é o Mediterranée, de

12
Numa conferência na UCLA em 1990, que se transformaria num volume influente, Ginzburg se debruça sobre
os sentidos dos termos “relativismo” e “ceticismo”, especialmente em sua polêmica com Hayden White. Ver
Friedlander (1992).

207
Braudel, no qual o historiador francês, depois de enfatizar “o necessário esvaziamento do papel
do indivíduo e do acontecimento” em paralelo com alterações estruturais ditadas pelo clima,
demografia, etc., questionou “se estávamos certos em assumir uma visão tão olímpica”
(Braudel, 1995). A pergunta era meramente retórica. Igualmente olímpica foi a trilogia sobre o
mundo capitalista que Braudel publicou depois do Mediterranée; tão olímpica que Colley e
outros historiadores se avocaram do direito de reivindicar que o pêndulo retornasse para a
posição original. Na virada do século XX para o XXI, eles sentiram a necessidade de reajustar
o foco, mirando a vida de indivíduos; dessa vez, indivíduos que – por vezes de forma forçada,
outras de forma voluntária – atravessassem fronteiras e divisões culturais que assombravam a
mente de viajantes modernos.
O pressuposto de Colley pode funcionar, à primeira vista, como o cumprimento do dictum
de Revel:

Il n’existe donc pas d’hiatus, moins encore d’opposition entre histoire locale et histoire
globale. Ce que l’experience d’un individu, d’un groupe, d’un espace permet de saisir,
c’est une modulation particulière de l’histoire globale [Revel, 1996b:26].

Na realidade, a integração de história local e global, que se tornou uma ambição


fundamental das micro-histórias italiana e francesa, se provou um desafio para aqueles que
prezavam a noção de que a multiplicação de escalas de análise – mais do que a valorização da
microescala e da biografia – é o mais valioso aparato heurístico da micro-história.
Tonio Andrade ecoa Colley ao reconhecer os avanços do que ele chama de “micro-
história global”. “A História Mundial se aproximou do lado ‘Ciências Sociais’ da História”, ele
escreve. “Mas nós tendemos a negligenciar os dramas humanos que fizeram a história se tornar
viva” (Andrade, 2011:574). Isso pode ser uma rendição certeira das tendências prevalentes nas
histórias mundial e global, mas é, ao mesmo tempo, uma rendição das aspirações da
microstoria? Ao vocalizar essas aspirações, nos anos de 1980, Revel cunhou o slogan mais
incisivo para os micro-historiadores italianos da primeira geração: “Pourquoi faire simple
quand on peut faire compliqué?” (Revel, 1989:xxiv). “Complicar”, no final dos anos 1980,
significava rejeitar as grandes narrativas de teoria da modernização e suas correlatas
historiográficas: os efeitos homogeneizadores dos primeiros estados modernos, a supressão da
cultura popular e a ascensão das transações impessoais. Também significava combater as
questões mais duras de todas as sciences humaines: questões de evidência e demonstração,

208
questões de como se atingem as generalizações. A variação de escala era uma ferramenta para
buscar respostas novas e desconcertantes.
Quando se fala em escrever a história do globo durante os milênios, é difícil chegar a
novas respostas. A academia e o público em geral nos pressionam a produzir novas
interpretações sobre a história humana – e mesmo a ultrapassarmos a história humana quando
estudamos o passado. Os micro-historiadores italianos desfizeram várias de nossas certezas,
mas nos deixaram sem jeito para explicar a mudança no tempo de uma forma sistemática. Um
mindset antropológico os empurrou para pesquisar a vida em comunidades demograficamente
diminutas e os fez mais versados em análises sincrônicas do que em análises diacrônicas, ao
passo que atualmente o interesse, conforme mencionado, se dá tanto nas variações temporais
como nas escalas espaciais. Eu, portanto, compartilho a autocrítica solidária de um micro-
historiador italiano que recentemente declarou ser “a relação entre micro e macro [...] o
verdadeiro calcanhar de aquiles da microstoria” (Allegra, 2011). Nas suas versões mais
inspiradas, a micro-história advoga a combinação das escalas micro e macro, em vez de
favorecer a microescala como um artigo de fé. Ao se manter fiel a esse ideal, as conexões
globais apareceram aqui e lá. Levi (1992:96), por exemplo, negou o privilégio da pequena
escala para entender as comunidades pré-industriais, oferecendo um exemplo esclarecedor:
“Mesmo a mais diminuta das ações, de digamos, alguém indo comprar um filão de pão, na
verdade encobre o sistema muito mais amplo do mercado mundial de grãos”. Nem ele nem
outros micro-historiadores, entretanto, nos forneceram um relato completo de como capturar
essa inter-relação entre o local e o global.
Tendo procurado, eu mesma, explorar empírica e analiticamente a riqueza dessa relação
em um estudo de comércio de longa distância no período pré-industrial, posso parecer defensiva
(Trivellato, 2009). Mas permaneço convencida de que reconhecer o calcanhar de aquiles da
micro-história não significa negar o potencial de variações de escalas de análise e, portanto,
negar o chamado à micro-história em nosso tempo de uma história profunda e maior (big). No
mínimo, Revel manteve seu chamado vivo para toda essa miríade de leitores que se debruçaram
em seu ensaio sobre a micro-história.
Nós escutamos mais do que um eco de seus ensinamentos em contribuições bastante
influentes. Sanjay Subrahmanyam uma vez descartou aqueles que “deram apoio entusiasmado
ao fato de que a ‘micro-história’ pode capturar o macrocosmo” (Subrahmanyam, 2005).
Entretanto, mais recentemente, ele lançou um olhar mais generoso para a questão. Em Three
ways to be alien, ele se mostra mais impaciente em relação à desesperança sobre encontros
interculturais do passado transmitidos por vários trabalhos de micro-história global do que

209
sobre o valor heurístico de biografias e micro-análises per se (Subrahmanyam, 2011). Sem
querer forçá-lo dentro de um enquadramento ao qual ele não pertence, podemos lembrar as
exortações de Ginzburg para seguirmos “as pistas” e, portanto, considerar os laços pessoais e
acadêmicos de Subrahmanyam com Revel e a EHESS, e de Ginzburg com a UCLA. Mais ainda
do que Revel e os micro-historiadores italianos, Subrahmanyam passou sua carreira
questionando generalizações bem assentadas sobre a escrita da história mundial e as relações
entre Europa e Ásia durante a era que levou ao colonialismo moderno. A exemplo dos micro-
historiadores italianos, ele frequentemente confrontou o desafio de desenvolver argumentos
com base em documentos que se aproximam da noção de “o excepcional normal” de Grendi.
Suas “histórias conectadas” podem ser interpretadas como um possível encontro da micro-
história e da história global. Não é coincidência que seu credo seja congruente com o de Revel,
que diz que “generalizações são [...] importantes demais para serem deixadas nas mãos de
generalistas especializados” (Subrahmanyam, 1997:742).
Em sua longa carreira, a micro-história atravessou tantas ou mais fronteiras do que
trapaceiros (tricksters) e viajantes (travelers) que são o objeto de sua encarnação mais recente.
A exemplo do que mostra uma análise em múltiplas escalas de suas peregrinações, o destino da
micro-história na Itália, França e nos EUA nos lembra que, no século XX, o mundo acadêmico
– a despeito de seus privilégios e universidades globais – não é plano. Mesmo na era da internet
e de viagens acessíveis, ideais precisam de brokers transculturais a fim de atravessarem
tradições nacionais e institucionais muito assentadas. São necessárias visões, habilidades e
dedicação de acadêmicos individuais para criar sinergia pessoal e institucional através de
fronteiras linguísticas, hábitos pedagógicos e disciplinares, e culturas nacionais arraigadas.
Revel tem sido, para a micro-história, o broker transcultural mais valioso e comprometido. Sem
nenhuma nostalgia originalista, ele permaneceu consistentemente leal ao ímpeto daqueles
micro-historiadores italianos que nos anos de 1980 se lançaram a buscar uma história social
capaz de recuperar experiências passadas, ao mesmo tempo que também refletiam sobre os
filtros normativos e evidenciários que atravancavam os esforços da tarefa. Nesse processo, ele
expôs as raízes do movimento em direção da análise micro-histórica, trouxe alívio para as
implicações desse movimento e remanejou as ferramentas para produzir novos efeitos
(Passeron e Revel, 2005). Se aqueles que leem francês e inglês, espalhados por todos os
continentes, podem debater o que implicam as diferenças entre microstoria, microhistoire e
microhistory (para não dizer como opera o impacto que seus respectivos méritos e limitações
no cenário transiente da academia) é muito devido às intervenções estimulantes que Revel
continua a oferecer.

210
Referências

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213
9 Existe futuro para a micro-história italiana na era da história global?

Francesca Trivellato

No fim dos anos de 1970 e durante os anos de 1980, particularmente depois do lançamento do
livro O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg (1976), e de A herança imaterial, de Giovanni
Levi (1985), a micro-história italiana abalou as bases dos paradigmas e das práticas da
historiografia estabelecidas até então. A partir daquele momento, como Anthony Grafton
(2006:62) coloca, “micro-historiadores cativaram leitores, conquistaram lugar de destaque nas
bibliografias e foram traduzidos em muitas línguas – além de terem irritado e deliciado os
colegas historiadores”. Assim, pergunta-se: as questões que motivaram o desenvolvimento da
micro-história italiana são ainda relevantes ou elas perderam seu ímpeto? Como o significado
da micro-história mudou ao longo dos últimos trinta anos? E como essa abordagem pode
contribuir nos dias atuais, quando a “globalização” e o “global” são as palavras-chave
dominantes nas humanidades e nas ciências sociais – palavras-chave que raramente são
associadas com a ideia de micro?
No presente texto, gostaria de avançar dois argumentos. O primeiro deles é que o
potencial de abordagem micro-histórica pela história global continua subexplorado. Desde os
anos 1980, o encontro entre a micro-história italiana e a história global foi prioritariamente
confinado à forma narrativa. A série de estudos sobre indivíduos, cujas vidas ultrapassaram
fronteiras linguísticas, políticas e religiosas, gozaram de um sucesso considerável tanto entre
pesquisadores como junto ao público em geral. Esses estudos insistiram na ideia de que uma
escala micro ou uma abordagem biográfica pode ilustrar melhor o imbricamento de tradições
culturais produzidas pelo contato e embates entre diferentes sociedades que seguiram a
expansão geográfica europeia do século XVI. Esses estudos também refletem um maior
conforto que historiadores e os leitores em geral (talvez de forma ainda mais pronunciada nos
países anglófonos) sentem com a narrativa, em vez da análise dura das ciências sociais.
Entretanto, ainda que atraentes, muitos desses estudos não cumprem as ambições
metodológicas originais dos micro-historiadores italianos. Revisitando algumas dessas
ambições, proponho outras formas de combinar a micro-história com a história global.
Existe uma segunda questão que me proponho a levantar. Nas suas reflexões
historiográficas e nos estudos empíricos, os micro-historiadores italianos frequentemente se


Título original: Is there a future for Italian microhistory in the age of global history? (Trivellato, 2011).

214
depararam com o seguinte desafio: como conceber a relação analítica entre as escalas micro e
macro? Não obstante, eles nunca esboçaram uma teoria que fosse uniforme e coerente. A
persistente fricção entre a análise micro e a macro levantou questões acerca do grau de
generalização que pode ser extraído de estudos de caso e, no final, também levantou
questionamentos sobre o status científico da história como disciplina.1 Entretanto, essa
discussão vai muito além do escopo do presente texto. Eu simplesmente sugiro que as reflexões
dos micro-historiadores italianos sobre a relação entre as escalas micro e macro podem instigar
uma saudável dose de autorreflexão crítica nas ponderações sobre a história global. Não
importam os limites impostos pelos historiadores globais para colocar em xeque as primeiras
narrativas eurocêntricas e teleológicas. Eles, inúmeras vezes, reproduzem generalizações muito
próximas a essas mesmas narrativas que criticam, especialmente quando seus arrazoados
abrangem uma escala macro. A abordagem sincrônica que acompanha a combinação entre as
micro e as macroanálises contrabalançam essa tendência. No melhor dos casos, a micro-história
pode também fomentar comparações frescas e ilustrativas.

I.

Mesmo aqueles que não foram seduzidos pelo movimento reconhecem que estamos diante de
uma “virada global” no que tange à prática da escrita histórica – particularmente, ainda que não
exclusivamente, no âmbito da história europeia. O adjetivo “global” está em todos os lugares:
em livros e títulos de artigos, em anúncios para vagas de professor, nas academias e nas
chamadas de trabalho, no florescimento institucional e disciplinar das “humanidades globais”.
O que significa história global e mesmo a possibilidade de uma história global ser escrita é uma
questão aberta a debate. Numa interpretação convencional, (Crossley, 2008) história global é o
rejuvenescimento de tentativas heroicas passadas de se escrever uma história universal, como
ela foi concebida através dos séculos e em múltiplas civilizações por autores tão diversos como
Heródoto, Abu al-Hasan Ali ibn al-Husayn al-Mas’udi (895-957), Rashid al-Din (1247-1318)
e Arnold Joseph Toynbee (1889-1975).2 Mas nem todos os trabalhos mais recentes encerrados
nessa rubrica aspiram a escrever uma história universal, não importa o quão ecumênica ela seja.
Como testemunham vários artigos publicados no The Journal of Global History, por exemplo,

1
O ensaio de Ginzburg “Clues: roots of an evidential paradigma” (1989b) levanta essas questões e estabelece suas
relações com a microescala. Ver também Ginzburg (1986a:177-180; 1989a:112-115). Para um apanhado
simpático, porém franco, sobre o esforço dos micro-historiadores italianos para reconciliar as micro e
macroescalas, ver Allegra (2009; 2011).
2
Ver também O’Brien (2006).

215
o rótulo se aplica frequentemente a estudos cujo escopo é regional e não global ou que focam
em fenômenos selecionados, abrangendo vasta área através de fronteiras políticas, religiosas e
linguísticas. Estudiosos utilizam uma terminologia alternativa e não é sempre claro o que
exatamente eles querem dizer com ela. Quão diferente – se houver alguma diferença – é a
história global da história mundial? Houve uma mundialização (Gruzinski, 2004) antes da série
de experiências as quais denotamos comumente pelo termo “globalização”? Podemos falar em
fenômeno “transnacional” antes do surgimento do Estado-nação? A lista de questões pode se
multiplicar. Por isso, eu prefiro não enveredar por todas elas neste texto, não porque não as
considere importantes, mas porque isso me distrairia dos objetivos principais deste ensaio.
A despeito da heterogeneidade de designações e metodologias, as contribuições que se
autointitulam como sendo de história global, na maior parte das vezes adotam uma análise de
escala macro. Elas examinam catástrofes demográficas, grandes migrações forçadas ou
voluntárias, desastres ecológicos, invasões militares e progressos tecnológicos. Elas oferecem
comparações estruturais entre continentes, impérios e oceanos e também enfatizam rupturas e
transformações no longo prazo. Donald Yerxa assim opta pelo

deselegante termo macro-história para descrever esse crescente corpus de literatura, que
inclui alguns tipos de história mundial, história global, análise de sistema-mundial,
macrossociologia, análise comparativa civilizacional, geopolítica, ‘Big History’ e
investigações de história-mundial (world-historial) de larga escala a partir de perspectivas
variadas [Yerxa, 2009:1].

Uma definição eclética desse tipo parece apropriada. Mas devemos atentar para o
corolário de Yerxa quando ela afirma que “macro-história é, simplesmente, a escala da História
mais relevante quando inquirimos como as questões atuais que se abrem para a humanidade
passaram a vigorar” (Yerxa. 2009:5). Enquanto existe uma vantagem produtiva em se aceitar o
termo macro-história para se referir a uma multiplicidade de abordagens e subcampos atuais, a
conclusão de Yerxa traz uma aparente (se, quiçá, não intencional) crença na primazia
autoevidente da macro-história nos debates acadêmicos atuais – uma crença que necessita ser
escrutinada com mais minúcia. Será que os temas globais criaram uma nova ortodoxia? Será
que a análise em escala macro é sempre a melhor maneira de abordar esses temas? Pode a escala
micro ser uma alternativa mais adequada ou, pelo menos, um complemento útil, para isso? Ou,
colocado simplesmente, existe futuro para a micro-história em face da virada global? E, se
existir, como ele vai ser?

216
II.

Para começo de conversa, precisamos, ainda que brevemente, considerar os objetivos que os
micro-historiadores italianos estabeleceram para si, assim como o real impacto de seu trabalho.
Segundo afirmação geral, micro-historiadores italianos nunca se reuniram numa escola
unificada de pensamento.3 No entanto, originalmente eles eram um grupo relativamente
pequeno de acadêmicos em contato próximo uns com os outros, cujos membros mais
proeminentes eram Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Carlo Poni. A revista
acadêmica Quaderni Storici (particularmente entre 1976 e 1990) e a série de livros Microstorie
(publicado por Giulio Einaudi entre 1981 e 1991) foram os principais suportes para a publicação
de seus estudos.4 Sublinhando o caráter italiano desse círculo, Grendi notou a existência de um
“estilo” comum marcado por uma forte consciência teórica e pela rejeição do idealismo na
filosofia, dualismo ideológico na política, assim como pela rejeição da pompa retórica e das
grandes sínteses na escrita histórica (Grendi, 1994:539). Apesar de suas inclinações
divergentes, os micro-historiadores italianos também permaneceram unidos ao se colocarem à
parte dos praticantes de história local, da narrativa histórica, da francesa histoire de la vie
privée, e da alemã Alltagsgeschichte. Os dois últimos campos, em particular, trabalharam para
injetar novas perspectivas na ascendente maré da história social, incluindo o estudo sobre
mulheres, emoções e atos de resistência. Os micro-historiadores italianos compartilhavam com
franceses e alemães a convicção de que a revelação de fenômenos obscurecidos pelo
conhecimento recebido invalidaria a teleologia das grandes narrativas. Mas eles se esforçaram
menos para recuperar a vida cotidiana das pessoas comuns do que para empregar análises de
escala micro, de forma a testar a validade de paradigmas exploratórios de escala macro. Seus
alvos principais eram o marxismo vulgar e historiadores sociais de tendências de esquerda, a
longue durée braudeliana e a abordagem inerente à história quantitativa, da qual a escola dos
Annales derivou, bem como se voltavam contra a influência que o funcionalismo sociocultural,
na antropologia, e a teoria da modernização, na política e na economia, exerciam sobre a
historiografia.
Inspirados mais por modelos antropológicos do que por modelos sociológicos, os micro-
historiadores italianos foram atraídos mais por personagens idiossincráticos e fenômenos

3
As declarações de Levi (1992:91; 1995:111); Ginzburg (1993:34); Grendi (1994:540); Revel (1996a:16) negando
a existência de um cânone da micro-história são confirmadas pela pluralidade de temas e abordagens exploradas
por esses mesmos pesquisadores e por aqueles inspirados por eles.
4
Sob a coordenação de Ginzburg e Levi, 23 títulos foram publicados na série Microstorie, incluindo tanto as obras
originais de pesquisadores italianos como as traduções de pesquisas de historiadores estrangeiros, como Natalie
Zemon Davis e E. P. Thompson.

217
(phenomena) do que pelas pessoas comuns e por padrões consistentes. Num aforismo
frequentemente citado que permanece tão cativante como enigmático, Grendi falou da
necessidade de se focar no “excepcional normal”, isto é, nos documentos fora do ordinário que
– caso sujeitados a uma leitura microanalítica apropriada – poderiam, não obstante, iluminar
tendências mais amplas.5 A ênfase aqui, assim como na noção de sinais de Ginzburg (1986),
ou “pistas” (clues), em inglês, é no encontro com as fontes primárias que, à primeira vista,
contêm detalhes que são incongruentes com as narrativas padronizadas. A partir de um
documento aparentemente excepcional, um historiador pode extrapolar indicadores típicos e
relevantes, não apenas histórias excepcionais. Assim, o excêntrico moleiro friuliano do século
XVI, Domenico Scandella, melhor conhecido por seu apelido Menocchio, se transformou no
veículo por meio do qual Ginzburg (1976) repudiou a separação rígida entre cultura de elite e
cultura popular, pois acreditava-se que a separação teria se intensificado tanto pela invenção da
imprensa quanto pelo surgimento da contrarreforma. Com a biografia de um exorcista dúbio,
Levi (1985) mostrou que os preços da terra no Piemonte do século XVII não foram controlados
nem pela lista rígida de preços, estabelecida pelas corporações ou pelas autoridades soberanas,
nem foram governados pela oferta e procura, como se definia tradicionalmente; no lugar, os
preços respondiam a uma complexa lógica local, na qual oferta e procura eram combinadas
pelos efeitos das relações de parentesco (kinship), pela estratificação social, pelo crédito e
caridade, assim como pela posição geográfica das glebas de terra (que afetavam a economia de
escala). Somente um estudo de micro-história poderia desvelar o impacto de todos esses fatores.
As implicações desse estudo, Levi sustentou, transcendiam o local e deveriam nos motivar a
revisitar noções vulgarizadas sobre como o mercado de terras na Europa funcionava no início
do período moderno.
Na sua versão mais inspirada, a micro-história aplicou a análise de escala reduzida para
todos os objetos de pesquisa (tanto para um vilarejo como para uma cidade, por exemplo), mas
também combinou as escalas micro e macro, em vez de tão somente favorecer a microescala
como um artigo de fé (Levi, 1992:95-97; 107; Revel, 1995:496; Revel, 1996a:19-20).6 Tendo

5
Para Grendi (1977:512), “il documento eccezionale può risultare eccezionalmente ‘normale,’ appunto perché
rilevante” (um documento excepcional pode resultar ser excepcionalmente “normal”, precisamente por causa de
sua relevância). Ao editar alguns dos ensaios de Grendi (2004:14-28), Osvaldo Raggio e Angelo Torre se referem
àquele ensaio essa passagem aparece como “il testo fondativi della microstoria” (“o texto fundador da micro-
história”, em tradução livre).
6
Maurizio Gribaudi (1996) assevera que as escalas micro e macro não são inerentemente incompatíveis, mas que
historiadores e cientistas sociais que favorecem as microperspectivas insinuam que os sistemas social e
institucional estão abertos a manipulações individuais e estão em constante transformação. Já aqueles que se
inclinam para a macro perspectiva adotam uma imagem mais evolutiva, em que as forças que transcendem o
indivíduo são as responsáveis pela mudança histórica.

218
em vista esse ideal, o que hoje chamaríamos de conexões globais estão sugeridas em alguns
pontos dessas reflexões. Levi (1992:96) percebeu que “mesmo a simples ação de, digamos,
alguém indo comprar pão, na verdade, concentra o sistema muito mais amplo, que concerne
todo o mercado mundial de grãos”. Nem ele nem outros micro-historiadores, entretanto,
conseguiram nos legar um arrazoado completo de como recapturar essa inter-relação entre o
local e o global. Alguns de seus seguidores tentaram resolver esse conundrum lançando mão de
recursos narrativos – como a maioria dos historiadores faz. Vou retornar a esse ponto mais
abaixo. Mas, primeiro, temos de reconhecer quais os pontos que afastam a micro-história da
macro-história.

III.

Com o risco de ser abertamente esquemática, posso identificar uma lista breve de características
que marcam a distância entre os dois tipos de análise. Para começar, a micro-história se sustenta
num uso intensivo de fontes primárias (especialmente registros judiciais, autobiografias e
documentos cartoriais), enquanto a macro-história privilegia fontes secundárias (idealmente,
mas nem sempre, escritas em múltiplas linguagens). Em segundo lugar, a macro-história tende
a se estender por muitos séculos, quando não por milênios, e frequentemente adota um ritmo
acelerado. Por sua vez, a micro-história prefere uma abordagem sincrônica, por escolha e
necessidade; está mais interessada (e é mais adequada) em desvelar a interconexão entre
fenômenos múltiplos que identificam processos causais de mudança no fio do tempo. Em
terceiro lugar, os protagonistas da micro-história italiana são, na maioria das vezes, homens
brancos europeus, ainda que frequentemente oriundos de estratos rurais e pobres, enquanto a
macro-história procura colocar a Europa numa perspectiva comparada.7 Finalmente, a macro-
história tende à simplificação em prol da generalização. A análise do sistema-mundial (world-
system) de Immanuel Wallerstein (1974-1989) é talvez o mais conhecido entre os modelos
globais de macroanálise, desenvolvido na junção entre história e sociologia. Micro-
historiadores adotaram um tom diferente: “Por que fazer as coisas simples, se podemos torná-
las complexas?” (Revel, 1989:xxiv). Ou, citando Levi (1992:109):

A micro-história tenta não sacrificar o conhecimento de elementos singulares em troca da


generalização e, de fato, ela acentua eventos e vidas singulares. Mas, ao mesmo tempo, ela

7
Wolf (1982) é um dos primeiros e dos mais importantes exemplos de história global influenciada por um viés
não eurocêntrico.

219
tenta não rejeitar todas as formas de abstração, uma vez que fatos mínimos e casos
singulares podem servir para revelar fenômenos gerais.

Recentemente, Levi (2011:175, tradução livre)8argumentou que

historiadores não deveriam generalizar suas respostas; a definição real de história é a de ser
uma disciplina que generaliza suas questões, isto é, uma disciplina que coloca questões que
possuem um significado geral e, mesmo assim, reconhece a possibilidade de existirem
infinitas respostas, dependendo do contexto local.

Tendo por base essa lista abreviada, teríamos dificuldades para encontrar algum ponto de
convergência entre a macro e a micro-história. Entretanto, vou aventar agora algumas razões
do porquê de os micro-historiadores italianos terem se debruçado sobre temas globais. Em
seguida, vou demonstrar em que ponto a micro-história e a história global se encontraram.
Finalmente, vou sugerir alguns pontos adicionais de intersecção que podem ser proficuamente
explorados.

IV.

Críticas da “civilização ocidental (“WestCiv”, num jargão que pode ser tanto amigável como
repulsivo) animam até mesmo o mais tradicional entre os historiadores do mundo moderno
(modern world historians), embora poucos sejam imunes a tais objeções. Em seu formidável
Um estudo da história, Toynbee (1935-1961) critica a primazia do Estado-nação e da alta
política entre os historiadores acadêmicos, assim como critica os nexos causais, abertos ou
absconsos, postulados entre a dominação econômica e cultural do Ocidente sobre o resto do
mundo. Ele se contrapõe com firmeza àqueles que tomam “Civilização (no singular e escrita
com cê maiúsculo) [...] identificada como uma única sociedade em particular”. Nos anos de
1930, ele concluiu que “a tese que diz que a presente unidade mundial sob uma base ocidental
é a consumação de um processo único e contínuo que dá conta de toda a história humana está
fundada numa distorção violenta de fatos históricos e aponta para uma limitação drástica do
campo de visão do historiador” (Toynbee, 1935-1961:151, v. I). Ainda assim, Toynbee
acreditava obviamente na existência de algo como “Civilização ocidental” e identifica aqueles,

8
Levi (2011:174) vincula explicitamente essa busca por complexidade nos modelos históricos explanatórios
(historic explanatories models) ao clima político do final dos anos de 1970 e começo dos anos de 1980;
particularmente à busca por meios de entender as relações de classe e as intersecções entre o material e o simbólico,
a fim de se poder romper com o materialismo marxista em estado bruto. Ver também a nota 12 (Levi, 2011).

220
como Brunelleschi e Maquiavel, que personificaram as grandes conquistas dessa civilização.
Uma ambivalência análoga a essa resiste no mais bem-sucedido e influente dos sucessores de
Toynbee: de acordo com o livro de William McNeill (1963), The rise of the West, o mundo
tinha uma multiplicidade de centros até 1500; a partir de então, o Ocidente conquistou sua
primazia. Uma versão atualizada do livro, coescrita por McNeill e seu filho, o historiador do
meio ambiente John R. McNeill (McNeill e McNeill, 2003), procura deslocar esse esquema, ao
adotar a anti-hierárquica metáfora da teia (web). Mas, mesmo assim, a cronologia e as linhas
causais propostas para a ascensão do Ocidente são consistentes com narrativas mais antigas,
que sugerem, por exemplo, uma ligação próxima entre “a matriz comercial da vida nas cidades”
e o “dinamismo inusual” e a “inovação incessante” da alta cultura da Europa medieval, não
alcançadas por “sociedades mais bem governadas da Eurásia” (McNeill e McNeill, 2003:146-
147). Nunca invocado explicitamente, o modelo de desafio e resposta de Toynbee também paira
sobre a história e ecoa no posfácio do próprio W. H. McNeill (assinado em separado do posfácio
de seu filho), que apresenta o aquecimento global como o próximo desafio, e roga à “resiliência
humana” em face de “catástrofes – grandes e pequenas” (McNeill e McNeill, 2003:326).
Em The human web, uma breve e notável história mundial, o historiador se esforça para
dar conta de uma das mais duras tarefas encaradas pela história global nos dias de hoje: como
incorporar a perspectiva de sociedades não ocidentais, incluindo os reemergentes superpoderes
asiáticos, ao mesmo tempo que continua a escrever numa tradição ocidental que marcou tão
profundamente Toynbee. Em outras palavras, historiadores globais confrontam questões sobre
relativismo e eurocentrismo. Por contraste, micro-historiadores italianos estiveram largamente
indiferentes diante de tais questões. Para eles, o termo “relativismo” evocava um diferente
conjunto de preocupações. Eles desejavam responder a algumas tendências das humanidades
que, diante do nascimento da virada linguística (linguistic turn), eram percebidas como
indicadores de perda de confiança no empirismo e na busca por objetividade, sem recair num
positivismo ingênuo e conservador. Ginzburg (1993:32) chama essa empreitada de “a distinta
qualidade da micro-história italiana”. Eles também batalharam contra o legado persistente
daquilo a que se referiam como “etnocentrismo” (e não eurocentrismo). Suas críticas do
etnocentrismo germinaram do encontro entre história e antropologia e procuraram dispensar as
presunções implicitamente universalistas do comportamento humano. Naquele tempo, era um
chamado para fora da história mundial. Em 1979, Ginzburg e Poni afirmaram que “a morte da

221
ilusão etnocêntrica (que, paradoxalmente, coincide com a unificação do mercado global) tornou
impossível a ideia de uma história universal”.9
Circulando entre os mais influentes estudos empíricos dos micro-historiadores italianos,
essa crítica foi dirigida contra o entendimento majoritário de como as sociedades pré-industriais
funcionavam, em vez de denunciar as perspectivas orientalistas e eurocêntricas. Esses estudos
focaram quase invariavelmente nas comunidades rurais, tais como as dos friulanos do Piemonte
do século XVII. A escolha atraiu a simpatia que os pós-marxistas nutriam pelas massas
proletárias das sociedades pré-industriais.10 Também respondeu à necessidade de identificar
localidades que fossem suficientemente pequenas para permitir pesquisas sistemáticas em
fontes arquivísticas.11 No seu A herança imaterial, Levi rotula como “etnocêntrica” a
representação dos camponeses europeus no Antigo Regime por historiadores e cientistas sociais
que estão obnubilados pelo universalismo presumido da teoria da modernização e do livre
mercado (Levi, 1985:51, 58; 1988:36-37, 44).
O uso do termo etnocentrismo por Ginzburg evoluiu ao longo do tempo, tanto de forma
independente como em comunhão com a virada global (global turn). Seus primeiros estudos
sobre camponeses friulanos tomavam o etnocentrismo como a presunção distorcida de uma
separação rígida entre cultura escrita e oral; alta e baixa (Ginzburg, 1966; 1976). Então estendeu
sua abordagem antropológica e histórica para o estudo da bruxaria para além das fronteiras da
Europa (Ginzburg, 1989c). Mais recentemente, ele escreveu um ensaio sobre o que é (segundo
meu conhecimento) a única tentativa consciente de um autoidentificado micro-historiador
italiano aventar questões sobre como a globalização afetou as humanidades.12 A partir de uma
leitura atenta sobre o projeto colonizador delineado por um calvinista suíço que passou grande
parte da vida negociando através do oceano Índico no início do século XVIII, Ginzburg
(2005:682) pretende mostrar que, sob a luz das teorias de Marx e de Weber sobre o capitalismo,
essa história “tem a chance de derrubar algumas das barreiras que separam a micro-história da
teoria”. A despeito de suas conclusões no artigo citado serem mais evocativas do que

9
Ginzburg e Poni (1991:4; 1979). Mais tarde, Ginzburg (1993:21) lembraria que “a rejeição do etnocentrismo e
da teleologia que [...] caracterizou a historiografia herdada do século XIX” esteve entre as características que a
micro-história italiana compartilhou com o revisionismo de François Furet, ainda que, fundamentalmente, por
diferentes motivos.
10
Levi (1990:211-212, 217-218; 2011:172-174) tem sido mais vocal do que outros historiadores em conectar a
gênesis intelectual da micro-história ao seu ativismo político, o que ele desenvolveu junto ao campo da esquerda,
mas, mais próximo dos movimentos locais e independentistas do que dos dois partidos de massa da esquerda
italiana, surgidos no pós-guerra: o Partido Comunista (PCI) e o Partido Socialista (PSI).
11
Uma segunda geração de micro-historiadores se aventurou com mais frequência no panorama urbano. Ver
Gribaudi (1987) e Cerutti (1990).
12
Sobre “etnocentrismo” como um substitutivo aproximado de eurocentrismo, ver também Ginzburg (1999:77;
2000:97-98).

222
sistemáticas, seu objetivo é – mais uma vez – contestar paradigmas estabelecidos, dessa vez por
seu valor explanatório e pelas transformações que ocorreram em escala global.

V.

A maioria dos trabalhos de micro-história escritos fora da Itália não costuma vocalizar
abertamente reivindicações metodológicas tão ousadas. Seu caráter distintivo repousa em outro
lugar: eles são escritos num estilo narrativo.13 Ainda que cônscios das consequências que cada
escolha metodológica opera no processo de recontar o passado, impactando a própria disciplina
histórica, bem como o público leitor, os micro-historiadores italianos (não importa o quão
elegante seja sua prosa) não estão preocupados com a narrativa em si.14 De fato, eles
pretenderam transformar o passado num território não familiar; um território que pudesse
adquirir novos significados uma vez que fenômenos bem conhecidos fossem colocados sob um
microscópio. Por contraste, a narrativa histórica, de maneira geral, zela por sua habilidade de
trazer o passado para mais perto e permite aos leitores se sentirem parte dos mundos que foram
perdidos. Anthony Molho(1978) já ressaltou esse aspecto, o qual ele descreve como uma
divergência transatlântica na prática da análise micro-histórica. Numa resenha ácida, ele tomou
o livro de Gene Brucker (1986), Giovanni e Lusanna – um autointitulado trabalho de micro-
história – como um exemplo dos diferentes significados que o termo adquiriu nos dois lados do
oceano: “uma narrativa elegante”, na costa Norte-Americana; e uma “análise teórica rica e
complexa”, no continente europeu (Brucker, 1986:99).15
Colocada nesses termos categóricos, essa oposição oblitera as contribuições de vários
historiadores anglófonos que trabalharam de perto com esse gap transatlântico. Em primeiro
lugar, Natalie Zemon Davis. A coleção de ensaios Society and culture in early modern France,
de 1975, não invocou a micro-história como uma metáfora ou um método, mas antecipou
brilhantemente algumas de suas características, incluindo o recurso a modelos antropológicos
e o uso da análise de microescala como uma ferramenta para colocar à prova generalizações
rígidas (Davis, 1975). O retorno de Martin Guerre, de Davis (1982), logo se tornou um clássico,
porque, além de ser uma leitura cativante, o livro levanta debates acadêmicos alentados sobre

13
Obviamente, qualquer texto, científico ou humanístico, é uma narrativa e, como tal, contém um enredo (plot) e
trabalha com aparatos teóricos de forma a persuadir o leitor. Por “estilo narrativo” quero dizer, simplesmente, um
modo de escrever que é intencionalmente acessível, ostensivamente transparente e, pelo menos, levemente
prazeroso. Eu propositalmente me abstenho de apresentar, aqui, os vários e complexos debates epistemológicos
sobre narrativa e história que estiveram muito em voga nos anos de 1970 e 1980.
14
Conforme Ginzburg e Prosperi (1975); Ginzburg (1993:23-24); Levi (1992:106). Sobre história, micro-história
e romance histórico, ver Rothschild (2011:281-282, 454-455).
15
Ver também Kuehn (1989).

223
gênero, identidade e a própria noção de narração (story-telling). No entanto, enquanto
assegurava a tradução do livro para o italiano, à guisa de chamariz para a publicação de micro-
historiadores italianos, Ginzburg (1984) enfatizou mais as diferenças do que as semelhanças
entre ele e Davis no que toca à compreensão de ambos dos parâmetros da micro-história. Ela
enxergava sua tarefa como a “produção de possibilidades históricas, e não, necessariamente, a
produção de provas”; é preciso haver espaço para “os ‘talvez’, os ‘pode ter sido’, dos quais os
historiadores lançam mão quando a evidência é inadequada ou incompreensível” (Davis,
1982:viii).16 Mas os interlocutores imediatos de Davis (como os interlocutores do seu livro
publicado em 1987)17 não foram, em sua maioria, os micro-historiadores italianos, mas sim
seus antigos colegas da Universidade da Califórnia (Berkeley), como Stephen Greenblatt e
outros que estavam então procurando novos nichos para imbricar historiadores culturais e
críticos literários.18 No início dos anos 1990, Edward Muir, um especialista em Itália moderna,
fez mais do que qualquer outro acadêmico estadunidense ao traduzir (literal e conceitualmente)
as lições da micro-história italiana e ao reconciliá-las, não apenas com as abordagens
convencionais da história social e cultural, mas também com insights do pós-estruturalismo –
duas frentes que ele atacou com um estudo sobre as vendetas na terra natal de Menocchio, o
Friuli do século XVI (Muir, 1993).19 Somente um pequeno número de acadêmicos anglófonos
experimentaram a fundo o tipo de micro-história realizada por Ginzburg, notadamente Florike
Egmond e Peter Mason (1997), e foram ainda mais raros aqueles que emprestaram a versão
científico-social (social scientific) de Levi.
Por essa razão, a divergência transatlântica detectada por Molho (1987) na
conceitualização da micro-história não é apenas um pormenor. Tanto as razões estruturais como
contingentes pesam para essa divergência. Suas raízes profundas repousam sobre uma tradição
Whig20 que investe aos historiadores a missão de rememorar (memorialize) as lutas e os triunfos
humanos numa maneira linear para que o conhecimento se torne cumulativo. Mais ainda, o
estilo narrativo foi motivo de orgulho entre os historiadores anglófonos em contraposição tanto
à prosa densa dos acadêmicos franceses como à prosa pseudocientífica das ciências sociais
duras. Assim, mesmo tendo evitado “algum senso de inevitabilidade ou progresso necessário”,
Bernard Bailyn (1994:16) clamou lutar pela “inteligibilidade” e contra a “linguagem das

16
Davis (1995:1-4) permaneceu fiel a seu credo até os dias atuais. Em outro trabalho, construí um diálogo ficcional
entre ela própria e uma mulher, objeto de seu estudo.
17
Cf. Davis (1987).
18
Ver, por exemplo, o engajamento com a história de Martin Guerre em Greenblatt (1990:131-145).
19
Ver também a nota 54 em Muir (1993).
20
Expressão de origem popular que se tornou termo corrente para designar o Partido Liberal no Reino Unido,
corrente política que que contribuiu para a formação do atual Partido Liberal Democrata (N. do T.).

224
ciências comportamentais” (Bailyn, 1994:37). Finalmente, a travessia transatlântica da micro-
história italiana ocorreu durante o pico da “nova história cultural” em meados dos anos 1980 e
no início da década de 1990, que, sem dúvida, contribuiu para uma apropriação seletiva
(particularmente, senão exclusivamente, entre os historiadores que não liam em italiano).21
Assim, no mundo anglófono, a micro-história se tornou, primeiro de tudo, um instrumento para
iluminar figuras marginais que animavam a curiosidade geral e mobilizavam a empatia de
leitores; algumas vezes servia para liberar pesquisadores de padrões de evidência considerados
muito restritivos; e sempre servia para tornar a escrita acadêmica acessível a um público mais
amplo. O livro celebrado de Laurel Thatcher Ulrich (1990), A midwife’s tale, não se apresenta
como sendo de micro-história, mas compartilha algumas de suas características, o que o ajudou
a conquistar o prêmio Pulitzer de história em 1991.22

VI.

Os assim chamados leitores não especialistas exercem suas exigências tanto sobre historiadores
globais como sobre os micro-historiadores – talvez ainda mais nos Estados Unidos, onde
acadêmicos gozam de um status social menos proeminente do que na Europa continental e se
viram sob ataque devido à sua alegada hiperespecialização e insularidade. Escrever sobre a vida
humana através dos tempos, em qualquer lugar do mundo, numa narrativa compreensível, não
é mais o efeito de uma fábula Whig do progresso moral através da história, mas se tornou uma
resposta às críticas que retratam especialistas arvorados numa torre de marfim, entregando-se a
jargões obscuros e investigando minúcias que não têm nenhuma relevância para a
“humanidade” como um todo. Que essa estratégia possa ser bastante efetiva foi sugerido pelo
vencedor do prêmio Pulitzer de 1998 para livros de não ficção, Jared Diamond (1997). Para

21
Esses volumes de traduções inglesas de ensaios originalmente publicados nos Quaderni Storici (Muir e Ruggiero
1990; 1991; 1994) são ao mesmo tempo a melhor evidência e os melhores meios que permitem essa apropriação
seletiva. Ausentes desses volumes estão as contribuições seminais de Levi, Poni e outros proeminentes micro-
historiadores italianos que escreveram sobre temas econômicos e sociais. Por outro lado, trabalhos de estudiosos
cuja associação com a micro-história era tangencial foram incluídos. Microhistory and the lost people of Europe
reúne cinco “exemplos do que poderia ser chamado de micro-história cultural” e somente “três exemplos do que
poderia ser chamado de micro-história social” (Muir e Ruggiero, 1991:xi; xv). Em contraste, a ala da micro-história
socioeconômica migrou para a França, como testemunham os trabalhos de Cerutti (1990), Gribaudi (1987) e
Loriga (1991), assim como a coleção editada por Revel (1996b). Grendi (1994:541) está entre aqueles que insistem
numa divisão entre a ala socioeconômica e a ala cultural na micro-história italiana. Em contraste, Cerutti (2004) e
Ginzburg (2005:682) negam a existência de tal divisão e apontam para bases teóricas comuns concernentes ao
cerne do grupo de micro-historiadores italianos, independentemente dos seus respectivos interesses temáticos.
Vários números de Quaderni Storici nos anos de 1990 também tentaram mostrar novos pontos de intersecção entre
as abordagens das histórias social e cultural derivadas da micro-história, incluindo o estudo de práticas legais.
Apesar disso, essa visão interna não foi refletida na recepção da micro-história italiana no exterior.
22
Lepore (2001) examina a relação entre biografia, micro-história e pesquisa acadêmica entre os historiadores dos
Estados Unidos.

225
aqueles historiadores que seriam tachados de indiferentes (aloof), um estilo narrativo torna-se
um meio para que sejam recebidos para além do seu círculo acadêmico. Essa tendência teve um
papel importante no encontro da micro-história com a história global. Para um praticante
instruído nessas duas vertentes, “pode e deve existir uma versão Olímpica da história mundial,
e existe sempre uma dimensão individual e humana” (Colley, 2007:300). Nas palavras de um
historiador que trabalha com a Ásia oriental, a micro-história é um caminho para reviver os
“dramas humanos que tornam a história viva” e, assim, reequilibrar o campo da história
mundial, que “tendeu para o viés científico-social da história” (Andrade, 2011:574). Um
acadêmico que estuda a escravidão atlântica distingue a história da escravidão, como objeto de
uma investida da história macroestrutural, da história dos escravos, como objeto da micro-
história, que é, “história mundial a partir da perspectiva do indivíduo” (Zeuske, 2006:9,
tradução livre).23
Num artigo recente, Tonio Andrade (2011:574) convida a “adotar abordagens micro-
históricas e biográficas para ajudar a povoar outros modelos e teorias com pessoas reais, a
escrever o que pode ser chamado de micro-história global”. Ele encontra esse ideal em algumas
“histórias de vidas individuais e contextos globais” (Andrade, 2011:574), por exemplo, no livro
de Jonathan Spence (1988), The question of Hu, em Trickster travels, de Nathalie Zemon Davis,
(2006) e em The ordeal of Elizabeth Marsh, de Linda Colley (2007). Para Andrade (2011:574),
“o foco humano torna esses livros divertidos de serem lidos, excitantes até, e eles alcançaram
uma larga audiência”. Andrade ressalta os aspectos individual e global mais do que aspectos
ligados à micro-história. Não coincidentemente, nenhum acadêmico italiano figura em sua lista
de exemplos.
Andrade aponta para dois fenômenos interligados: a transformação da micro-história
numa história narrativa e a apropriação de temas globais, na maioria das vezes lidos através de
uma lente biográfica, pela narrativa micro-histórica. Eu já comentei sobre o primeiro caso;
agora vou me ater ao segundo. O foco biográfico faz parte da proposta original da micro-história
e de sua contribuição empírica.24 Na recente virada global, essa perspectiva foi articulada para
um fim específico. A vida de um indivíduo singular é reconstruída (algumas vezes graças à
sobrevivência aleatória de documentos pessoais, outras vezes juntando evidências esparsas de
coleções dispersas) com o intento de dar conta da tarefa mais elusiva da história global:
compreender as múltiplas e imbricadas conexões através de culturas e grupos a partir da

23
Ver também Ogborn (2008) e Finn (2010).
24
Para mais reflexões sobre a relação entre biografia, historiografia da Europa moderna e micro-história, ver
Loriga (2010:259-263).

226
perspectiva de atores neles envolvidos, em vez de focalizar o ponto de vista das instituições que
criaram as estruturas que contribuíram para o florescimento dessas interações e que geraram a
maior parte dos registros documentais que sedimentaram a memória dessas mesmas interações.
De forma menos frequente, a biografia (falando em metáforas) de uma cidade (Vidal, 2005), de
uma commodity (Stein, 2008), ou de um ano específico (Wills Jr, 2001) também serve a esse
propósito.25
As questões centrais lançadas por essas histórias de vidas individuais na arena global são
significativamente diferentes daquelas que animavam os historiadores italianos. Não estão
presentes a crítica das teorias da modernização, funcionalismo, e modelos esquemáticos que
separam a cultura da elite da cultura popular. Também não está presente, na maior parte dos
trabalhos, um engajamento explícito com “problemas de prova e demonstração”. (Levi,
1992:105). Permanece uma questão nova, mais literal (ainda que não menos importante) sobre
o etnocentrismo. O inimigo comum é agora a tese do “choque de civilizações”, que renega a
violência colonial e a dominação, por um lado, e, por outro lado, o alto grau de interdependência
entre colonizadores e colonizados, assim como as várias ocasiões de empréstimo e troca que
aconteciam fora das dinâmicas predeterminadas de poder. O tema mais recorrente está centrado
nos canais de comunicação e de negociação que ultrapassaram as barreiras linguísticas e
culturais, as quais a tese do choque de civilização assume serem impermeáveis.
Os protagonistas para essas micro-histórias globais (como podemos chamá-los) são
indivíduos que incorporam deslocamentos geográficos e culturais. Não por acaso, eles
frequentemente vêm de grupos minoritários que são compelidos a se manter em movimento e
desempenhar um papel de intérpretes linguísticos e culturais; por isso, existe a recorrência a
protagonistas judeus. Micro-historiadores italianos insistiram que migrações permanentes e
temporárias foram menos frequentes na Europa pré-industrial do que se acreditava. Micro-
historiadores globais estão absolutamente de acordo com essa ideia, mas estão afeitos a
demonstrar que as distâncias geográficas e culturais percorridas por homens, mulheres e
crianças se estendiam para muito além das fronteiras da Europa. Eles mostram que a expansão
militar e comercial da Europa tornou o viver em culturas variadas, e longe de “casa”, uma
experiência recorrente para pessoas comuns, apesar da fragilidade da tecnologia de transporte.
Além disso, a travessia do oceano não era exclusividade dos heróis da civilização ocidental.
Colley (2007) e Leonard Blussé (2002) deliberadamente escolheram mulheres como seus

25
Dos três exemplos citados no texto, Vidal (2005) é o único que faz referências explícitas aos micro-historiadores
italianos. Para uma análise crítica da apropriação problemática por Vidal do trabalho de Ginzburg, ver a resenha
de Giuseppe Marcocci (2005:180).

227
objetos de pesquisas para demonstrar que as mulheres também viajavam a lazer por terras
estrangeiras e tinham acesso a instituições jurídicas coloniais. Robert Harms (2002) e Randy
Sparks (2004) concluem, a partir de documentos, que se enquadram no “excepcional normal”,
apanágio da micro-história, com o fito de humanizar a história trágica dos escravizados
africanos no Atlântico moderno – “para transformar [...] estatísticas em pessoas”, como Sparks
(2004:5) coloca a questão.
Quase invariavelmente, as fontes primárias sobreviventes utilizadas nas micro-histórias
globais são menos eloquentes do que se desejaria. Raramente as ações e os paradeiros dos
protagonistas são registrados com detalhes e de maneira transparente; sem falar de sua
compreensão sobre os encontros com culturas diferentes, os quais frequentemente envolvem
uma mistura de coerção e agência, e uma ampla dose de wishful thinking e ruído de
comunicação. Muitas micro-histórias globais, portanto, levantam considerações sobre as fontes
– sobre o que elas revelam, o que elas escondem, o que elas distorcem. Mas parece haver uma
correlação inversamente proporcional entre o desejo do historiador de dar relevo a essas
considerações, a ponto de se tornarem questões metodológicas prementes, e sua preferência
pelo estilo narrativo. E, evitando problemas metodológicos, as propensões ideológicas dos
autores tendem a manipular a escolha das evidências e colorir a narrativa, especialmente onde
está prevista a possibilidade de encontros entre atores históricos pertencentes a diferentes
“civilizações”.
Num exemplo anterior e mais sofisticado desse tipo, Jonathan Spence descreve o
tormento de um chinês convertido ao catolicismo que viajou para Paris nos anos 1720 apenas
para ser acusado de ser doente mental pelos mesmos jesuítas que haviam se interessado pela
sua cultura e língua durante sua longa jornada até a França (Spence, 1988). Discretamente,
porém com firmeza, Spence desvela o critério eurocentrista dos jesuítas segundo o qual Hu foi
julgado, fazendo-nos sentir a dor que Hu deve ter experimento como resultado de um aumento
gradativo de desentendimentos. Outros apanhados biográficos sobre encontros transculturais
também estão plenos de idealização. A man of three worls segue um judeu marroquino, Samuel
Pallache, que construiu uma carreira com sua habilidade acrobática de urdir as linhas que
separaram judaísmo, islamismo, catolicismo e protestantismo através do Mediterrâneo e da
Europa, com um sentimento claro das estruturas externas que afetaram suas lealdades maleáveis
e que não tinham a pretensão de segurar a chave e o acesso para sua alma (García-Arenal e
Wiegers, 1999). Lucette Valensi (2008) assinala as pontes culturais construídas por Mardochée
Naggiar, judeu tunisiano, que serviu os orientalistas franceses na virada do século XIX, antes
de ser virtualmente esquecido pelos estudiosos. Ela reconhece que a extensão de sua

228
familiaridade acadêmica e pessoal com o mundo desaparecido de Naggiar guiou-a através de
suas fontes fragmentárias, ao mesmo tempo que resiste a toda a tentação de romantizar o
passado.
O último tour de force de Davis representa uma tendência oposta: com base em parcas
evidências, ela reúne um apanhado eloquente do encontro cultural mutualmente benéfico que
pode emergir mesmo numa época de encarniçadas hostilidades religiosas e em face de
consideráveis diferenciais de poder (Davis, 2006). Leo Africanus, nascido al-Hasan ibn
Muhammad al Wazzan, em Granada, antes da reconquista, foi o mais famoso cativo muçulmano
detido na Corte Papal no século XVI, onde ele foi batizado de Johannes Leo de Medicis.
Segundo a leitura de Davis sobre os escritos de Leo Africanus, munida que ela estava de
abundantes evidências circunstanciais, antes de decidir deixar a Tunísia após o saque de Roma,
Leo pôde apreciar vários aspectos da cultura humanística católica que lhe fornecia subsídios
instrumentais para suas habilidades linguísticas. O otimismo de Davis deriva grandemente da
confiança em sua habilidade de reconstruir uma história plausível mesmo diante de
consideráveis lacunas documentais. Com o objetivo de manter transparente sua estratégia
interpretativa aos leitores, Davis é pródiga no “uso do condicional — ‘teria’, ‘poderia’,
‘provavelmente haveria’ — e os especulativos ‘talvez’, ‘quem sabe’”. Ela espera, com isso,
construir “uma história de vida plausível com os materiais do tempo” (Davis, 2006:13).
Ecoando o aforismo de Grendi, Davis (2006:11) escolheu Leo por ser “um caso extremo
que pode revelar padrões disponíveis para mais experiências cotidianas e de escrita”. E a
exemplo de um trabalho clássico de micro-história, Trickster travels levanta uma grande
questão que transcende a própria vida de Leo: “Será que as águas do Mediterrâneo não apenas
dividiam o Norte do Sul, os crentes dos infiéis, mas também os vinculavam através de
estratégias similares de dissimulação, performance, tradução e a busca para uma ilustração
(enlightment) pacífica?” (Davis, 2006:13, grifo no original). Mas o modo pelo qual Davis
endereça sua atraente e complexa questão é bastante discrepante do procedimento seguido pelos
micro-historiadores clássicos. Ela faz uso dos textos contemporâneos e dos estudos modernos
com o fito de preencher as muitas lacunas da biografia nebulosa de Leo, em vez de focar na
vida dele, com o objetivo de lançar novos olhares nos padrões da relação entre muçulmanos,
judeus e cristãos no Mediterrâneo do século XVI. Aqui Davis parece se engajar no que
Dominick LaCapra chama de “leitura redentora”, uma prática que “frequentemente leva ao
reprocessamento projetivo do passado”, o que resulta em que “o significado redimido é
tipicamente aquilo que se deseja no presente, e que as figuras do passado tendem a se
transformar em veículos ou vocalizadores para valores contemporâneos” (LaCapra, 1995:819).

229
VII.

Micro-historiadores italianos buscaram introduzir o panorama macro nas suas microanálises


seguindo dois caminhos principais: via a coleta sistemática de dados, de sorte que as ações e
crenças individuais pudessem ser colocadas em relação às ações e crenças de parentes, vizinhos,
conhecidos e superiores (o que acontece no estudo de Levi sobre Giovanni Battista Chiesa); ou
via um distanciamento progressivo de um texto singular de forma a identificar ecos e filiações
por meio de uma plêiade de textos selecionados que seriam relacionados a tradições culturais
diversas (esse é o método de que, mais frequentemente, Ginzburg lança mão). Ambas as
técnicas podem ser aplicadas eficientemente na escrita da micro-história numa escala global,
isto é, quando o macro também envolve um espaço geográfico translocal.
Isso foi o que tentei fazer no meu estudo de um quisto de mercadores judeus na cidade
portuária de Livorno, na Toscana, e em relação à sua extensa rede comercial durante a primeira
metade do século XVIII (Trivellato, 2009). Nesse estudo, busquei fazer mais do que apenas
restaurar a agência de um grupo oprimido ou jogar luz a obscuras rotas comerciais. O que eu
fiz foi me engajar nos debates atuais das humanidades e das ciências sociais sobre o valor
analítico do termo ubíquo “cosmopolitismo” e do papel da cultura e das instituições na ascensão
do capitalismo comercial europeu. Permitam-me recapitular brevemente alguns dos insights
que eu tomei por empréstimo e adaptei dos micro-historiadores italianos, ainda que não tenha
limitado minha pesquisa a uma localidade e a um único indivíduo.
Comunidades comerciais que transportam bens, armas e ideias através de mares e
continentes são objetos preciosos para a história global. Ao mesmo tempo, a maioria dos
pesquisadores das diásporas mercantis pré-modernas assumem que essas entidades coletivas,
sempre vulneráveis a outsiders, floresceram devido à solidariedade interna de seus membros,
os quais compartilhavam laços familiares, costumes religiosos e outros traços culturais.
Raramente, senão nunca, esses estudiosos inquirem sobre a base e a extensão dessa
solidariedade. Ao fazer isso, ainda que implicitamente e sem intenção, eles retratam as
diásporas mercantis como sendo incapazes de operar em mercados competitivos, uma vez que
as consideram movimentos fechados, secretos, com o apoio seletivo de instituições políticas e
legais, cuja assistência frequentemente parece ser uma faca de dois gumes. As diásporas
mercantis frequentemente seguem o padrão indicado por Philip Curtin (1984), o primeiro
pesquisador contemporâneo a estudá-las. Elas frequentemente oscilaram entre dois polos: de
um lado, retêm uma aura de arcaísmo; de outro lado, incorporam a árdua função de vincular
regiões apartadas. A investigação exaustiva das relações de network levada a cabo por Levi no

230
seu estudo sobre o Piemonte sugere alguns caminhos para ultrapassarmos esse aparente
paradoxo. Os sefarditas de Livorno, por exemplo, não estenderam sua confiança incondicional
para outros sefarditas e, certamente, também deixaram de fora outros judeus (na verdade, eles
podiam ser enganados por judeus). Em vez disso, construíram networks dentro de networks,
parafraseando o dito bem colocado de Israel (2002). Essas networks compreendiam numerosos
parentes e correligionários, mas também alguns católicos e alguns hindus de Goa, a capital da
Índia portuguesa.
A composição e o modus operandi dessas networks, entretanto, forçam-nos a nuançar a
insistência dos micro-historiadores italianos na agência individual. Essa insistência era em parte
uma reação contra a corte de modelos interpretativos que circulavam nos anos 1970 e 1980,
variando de versões-padrão mostrando as sociedades do Antigo Regime como sendo estáticas
e estratificadas às noções foucaultianas da microfísica do poder. Assim, nas palavras de Levi
(1992:94), para a micro-história “toda a ação social é tida como o resultado de uma constante
negociação individual, manipulação, escolhas e decisões em face de uma realidade normativa,
a qual, ainda que pervasiva, oferece várias possibilidades para interpretações pessoais e
liberdades (freedoms)”.
Mesmo nas mais tolerantes das cidades portuárias do início da Europa moderna, as
normas legais e os códigos sociais restringiam a vida dos judeus. Para compreender o
comportamento econômico dos mercadores sefarditas, temos de sopesar agência e estrutura, e
ter em conta o grau de liberdade e as amarras normativas que governavam a relação entre judeus
e gentios, onde quer que essa relação operasse.26 Para esse fim, lanço mão da noção de
“cosmopolitismo comunitário”, de sorte a explicar a coexistência da inclusão e da exclusão que
caracterizaram as interações sociais, econômicas e culturais entre os grupos religiosos em
Livorno e em outras cidades europeias. Essa noção nos ajuda a explicar por que os mercadores
sefarditas continuaram a formar parcerias gerais com parentes próximos, mas raramente se
colocavam disponíveis à alternativa de selar potenciais parcerias com outros grupos, apesar de
essa opção permitir-lhes expandir o número de parceiros, além de lhes aumentar o capital. As
barreiras socioculturais, e não as barreiras legais, explicam o porquê de as elites católicas da
Toscana terem investido em parcerias geridas por mercadores católicos, mas apenas raramente,
e somente no último quarto do século XVIII, em parcerias geridas por judeus. Contrariamente

26
A micro-história parece ter contribuído para um afastamento do estruturalismo, no seio do qual reside a tradição
dos Annales. Ver o editorial do exemplar intitulado “Histoire et sciences sociales: un tournant critique” (Annales,
44.6, 1989, p. 1319-1320). Por outro lado, Loriga (2011:75) também ressalta a acentuada insistência do livre
arbítrio entre vários micro-historiadores italianos.

231
ao tipo ideal de “pária”, cunhado por Max Weber, os sefarditas não defendiam uma
racionalidade econômica mais primitiva, mas exploravam os sistemas legais e sociais que
estavam disponíveis para eles. Como resultado de um escrutínio intensivo de fontes locais, essa
conclusão carrega alguma validade para estudos comparativos de desenvolvimento econômico.
Os grandes esquemas que prevalecem na história global tendem a classificar sociedades
passadas como sendo ou “coletivistas” ou “individualistas”. No entanto, essa divisão parece ser
inadequada para decifrar as estratégias dos sefarditas de Livorno, que fizeram uso tanto da ação
social, como dos valores culturais.
Funcionando mais como cientistas sociais do como que historiadores narradores
(narrative historians), os micro-historiadores italianos foram levados pelo desejo de oferecer
uma nova conceitualização da conexão entre ação social e crenças culturais. Eles propuseram
uma relação entre bases materiais e representações simbólicas, mas insatisfeitos com a imagem
de sistemas culturais coerentes apresentada pelo marxismo, pelo funcionalismo e pela
antropologia interpretativa, asseveraram, no lugar, “as ambiguidades do mundo simbólico, a
pluralidade de interpretações possíveis acerca desse mundo e o esforço que se impõe, como o
mesmo peso, tanto sobre os recursos simbólicos, como sobre os recursos materiais” (Levi,
1992:95). Nenhuma teoria abrangente emergiu desse postulado, mas não se pode negar sua
relevância para o desenvolvimento atual e futuro da história global. Ele reduz a propensão de
projetar vastos sentidos culturais sobre comportamentos econômicos parcamente descritos ou
ressuscitar paradigmas obsoletos sobre a evolução sequencial de formações culturais. Minha
análise de fontes comerciais, tais como correspondências de negócio e manuais de mercadores,
demonstra que muito antes da emancipação legal mercadores judeus envolvidos no comércio
internacional fizeram parte de uma cultura comercial da Europa não confessional, cultura essa
que os europeus também exportaram para além das fronteiras europeias, por meio de incentivos
econômicos e de violência. Ainda assim, essa cultura comercial não confessional esteve longe
de ser sinônimo de uma curiosidade genuína e de uma cultura aberta (open minded). Por outro
lado, ela compreendia apenas uma pequena parte da experiência sociocultural dos judeus.
Seguramente as relações de mercado reduziram o preconceito, mas não significaram a queda
de todas as barreiras. Nas primeiras sociedades corporativas modernas, o status legal e as
distinções sociais jamais deixaram de contar.
Apenas focar na comunidade judaica e em suas relações com o Estado e a sociedade não
judaica que a circundavam – uma abordagem comum na história dos judeus – não me permitiria
alcançar essas conclusões que acabo de discutir. Por meio da micro-história, pude compreender
a importância de refletir sobre um conceito que historiadores frequentemente tomam como

232
autoevidente, qual seja, o conceito de “contexto”, e a reconstrução, tal qual possível, das formas
através das quais os atores históricos se relacionavam com ele. (Levi, 1992:106-108; Revel,
1995:500-501; Revel, 1996a:25-26). Revel vai além ao afirmar que “não existe hiato, quanto
mais uma oposição, entre história local e história global” (Revel, 1996a:26, tradução livre).
Assim, tentei mostrar empiricamente como a vida e as estratégias econômicas dos sefarditas de
Livorno tinham, ao mesmo tempo, uma dimensão global e local. Tentei mostrar também por
que o local e o global não podem ser concebidos por meio de uma série de círculos concêntricos
ordenados hierarquicamente, expandindo-se do menor para o maior. Na minha história (story),
as alianças familiares, a diáspora dos sefarditas, o Mediterrâneo, o oceano Atlântico e o oceano
Índico, outras comunidades mercantis e a economia política dos estados, todos esses elementos
se intersectam um com o outro simultaneamente. Nenhum deles oferece um contexto
explicativo a priori. Atores refizeram aspectos de cada entidade ao mesmo tempo que se
adaptavam a estruturas impostas externamente. Assim, não importa para qual direção rume a
história global, pode-se dizer que o problema da definição de “contexto” e qual o significado
que ele tinha para os atores do passado persistem.
The inner life of empires, o livro recente de Emma Rothschild (2011), abre caminho para
uma maneira alternativa e complementar de pensar como integrar a micro-história com a
história global. Se comparado com o exercício que eu propus e sumarizei acima, o livro também
providencia uma solução para a disjunção – notada por alguns – entre os dois ramos da micro-
história italiana: um focado nos fenômenos sociais, políticos e econômicos; o outro concernente
a processos culturais e intelectuais.27 Como faz a maioria dos trabalhos de micro-história com
um penchant para um alcance global, The inner life of empires privilegia encontros culturais
cruzados, mas não unicamente. A possibilidade instigante daquilo que Rothshild chama de “um
novo tipo de micro-história” é a de “conectar a micro e a macro-histórias pela história das
próprias conexões dos indivíduos” (Rothschild, 2011:7). Como focaliza a vida de 11 irmãos
nascidos no coração da Escócia entre 1723 e 1739, Rothschild levanta inevitavelmente um
conjunto florescente de conexões. As conexões que se dão entre os irmãos e as irmãs Johnson
e seus escravos bengaleses de pele escura acusados de infanticídio ocupam espaço considerável,
mas não desviam a atenção dada às conexões dos Johnson com escoceses ilustres do naipe de
David Hume e Adam Smith, e seus amigos, esposas e associados. Se Rothschild nos lembra
que a dificuldade de unir a história das ideias com a história vista de baixo (history from below)

27
Conforme é admitido, The inner life of empires (Rothschild, 2011) deve ser lido, em primeiro lugar, como o
desenvolvimento do livro de Rothschild (2001) Economic sentiments, o qual foca as reflexões morais dos teóricos
do laissez faire do século XVIII.

233
era “um dilema do século XVIII” (Rothschild, 2011:268), ela também consegue nos persuadir
de que “a nova micro-história que conecta vidas” (Rothschild, 2011:279) pode ser uma
ferramenta melhor para analisar as mudanças evanescentes, porém revolucionárias, que
ocorreram nas arenas públicas e privadas. Não apenas eram as Índias ocidentais e orientais mais
entranhadas nas mentes dos bretões do século XVIII do que são nas dos pesquisadores
modernos, como a trajetória de indivíduos desconhecidos afetavam e refletiam a emergência de
novas ideias e instituições sobre comércio, governo e a condição humana. Para Rothschild,
“uma ampla (large) micro-história” é necessária para mostrar como as vidas dos Johnson
“atravessaram ou transgrediram as distinções entre as diferentes facetas da vida, da política
econômica e doméstica do século XVIII” e, portanto, existe a necessidade de se “transgredirem
[...] as distinções entre os diferentes tipos de história” (Rothschild, 2011:269) – a história do
comércio, dos impérios, da economia política, do Iluminismo, da escravidão, dos sentimentos
morais e íntimos.
A inspiração para esse “novo tipo de micro-história” vem do “Manifesto da micro-
história” de 1979, de Poni e Ginzburg (Rothschild, 2011:269), cuja inspiração para seguir
nomes pessoais por entre múltiplos registros como se seguisse o fio de Ariane, rende, nos dias
atuais, frutos ainda mais tenros graças à digitalização de coleções de bibliotecas e de arquivos
e à proliferação de websites (alguns mais confiáveis que outros), devotados a genealogias
familiares. “As novas tecnologias oferecem a possiblidade de um novo caminho para conectar
as micro-histórias de indivíduos e famílias com as cenas mais amplas das quais elas fazem
parte” (Rothschild, 2011:278). Rothschild, no entanto, sublinha (e não esconde) as lacunas de
seus registros. Essas novas tecnologias não resolvem questões sobre a representatividade dos
objetos dos estudos de micro-história. De fato, nos períodos de excesso de informação (tanto
no século XVIII como no século XXI), nós nos tornamos ainda mais conscientes de como os
registros históricos que sobreviveram são incompletos e parciais. Mas, como Rothschild aponta
– a exemplo de Revel –, “o aumento da quantidade de informações pode [...] tornar possível
uma mudança na quantidade de informações ou na resolução e na amplitude das micro-
histórias” (Rothschild, 2011:278), facilitando, portanto, a maneira pela qual podemos integrar
a micro e a macro-história.

VIII.

Micro-historiadores italianos vêm sendo comparados a caçadores de trufas em contraste com


aqueles historiadores que, como paraquedistas, inspecionam áreas vastas. Mesmo não

234
interpretando essa imagem como depreciativa para os micro-historiadores, podemos admitir
que a micro-história não é apropriada para estudar a mudança no fio do tempo. Ela desencava
detalhes que são suficientemente significativos para desestruturar as fundações das grandes
narrativas existentes, mas, ao mesmo tempo, tem dificuldade de substituí-las por novas
narrativas. Os micro-historiadores funcionam mais como antropólogos do que como
sociólogos, uma vez que desvelam conexões ocultas entre aspectos do sistema social e cultural
que seriam invisíveis para um macroanalista. E como antropólogos, eles tendem a adotar uma
abordagem sincrônica em vez de uma abordagem diacrônica (Sewell Jr., 2005). Ouso
argumentar que a abordagem sincrônica pode prover um contrapeso importante ao ritmo
acelerado com o qual macro-historiadores procedem a seus relatos de um evento para outro, de
um século para outro, de uma civilização para outra. A abordagem micro-histórica pode não
apenas contribuir para esmiuçar essa passagem, mas também enriquecer a análise,
especialmente em relação a como as comparações são realizadas.
Ginzburg (2005:682) cita Marcel Mauss (1966) para expressar sua convicção de que
micro-historiadores podem realizar comparações convincentes: “Um caso singular analisado
em profundidade será suficiente para providenciar a base para comparações extensivas”.
Poucos estudos empíricos escritos por micro-historiadores italianos assumem expectativas tão
amplas, mas o potencial heurístico para comparações está lá. Para retornar ao meu exemplo
precedente, quando expostas à luz de grandes esquemas de mudança estrutural no tempo, as
diásporas mercantis são frequentemente confinadas a uma fase transitória das economias pré-
capitalistas. Mas se submetida à microanálise, cada uma dessas diásporas exibe suas
especificidades em termos de uma composição interna e uma interação com os outsiders. Em
vez de proclamar a singularidade (uniqueness) de cada diáspora, essas especificidades podem
fomentar comparações mais acuradas e, como consequência, auxiliar em nossa compreensão
do capitalismo comercial em geral. Assim, enquanto a literatura histórica e a sociológica
tendem a parear mercadores judeus e armênios dos séculos XVII e XVIII como as epítomes das
diásporas mercantis, os estudos de micro-história revelam diferenças importantes entre os dois
grupos, as quais, por sua vez, dão conta de diferenças consideráveis em suas respectivas
organizações comerciais.28 Em abandonando a ideia de uma prototípica “diáspora mercantil”,
ganha-se uma base mais alentada para outras comparações no tempo e no espaço, num momento
em que as ciências sociais duras dominam o campo da macroanálise comparativa.

28
Cf. Trivellato (2009; 2011); Aslanian (2011).

235
Historiadores frequentemente expressam suas frustrações com as simplificações sobre as
quais cientistas sociais comparativos constroem unidades de análises ou fazem regressões
estatísticas, ainda que poucos se aventurem pelo campo da história comparativa. A comparação
de Kenneth Pomeranz a respeito do desenvolvimento econômico da Europa/Inglaterra e
Ásia/China no século XVIII pode ser criticada por suas confusas unidades de comparação e
pelos dados imprecisos de que dispunha, mas o impacto duradouro de seu estudo se deve à sua
tentativa brilhante de integrar as dimensões micro e macro na comparação que estabeleceu
(Pomeranz, 2000). Ao proporem uma interpretação divergente, Jean-Laurent Rosenthal e R.
Bin Wong também conduziram uma análise econômica comparativa de múltiplas escalas,
concluindo que “diferenças na escala política” (Rosenthal e Wong, 2011:x) foram decisivas
para o destino da China e da Europa. Talvez não seja coincidência que esses dois estudos, os
quais constantemente integram, ao mesmo tempo, micro e macroperspectiva, estejam entre os
estudos que buscam com mais empenho reconciliar a paixão dos historiadores por
complexidade e o impulso dos economistas por simplificação e previsibilidade (Lamoreaux,
2006).

IX.

A micro-história italiana se espelhou na “grande história” (big history), não porque ansiava
abarcar 13 bilhões de anos de história humana na Terra, mas porque desejava dizer algo grande
sobre a história.29 No mínimo, tinha o objetivo de levantar grandes questões sobre como os
sistemas cultural e social emergem e evoluem, assim como questionar os métodos adotados por
humanistas e cientistas sociais para interpretá-los. O grau de sucesso que a micro-história
alcançou está aberto, obviamente, a debate, mas as aspirações dos precursores italianos foram
bem além de apenas contar uma boa história (story). Essas aspirações foram o produto de um
tempo e de um espaço específicos. A arena histórica e historiográfica atual é naturalmente
diferente; de fato, é muito diferente. Espero ter mostrado como algumas dessas questões
aventadas pelos micro-historiadores italianos podem, apesar de tudo, fomentar insights
construtivos para os praticantes da história global. Mesmo observadores simpáticos à causa
duvidaram dessa possibilidade. Como parte integrante de sua crítica mordaz dos diferentes tipos

29
A empreitada conhecida como “big history” traça a história da humanidade desde as origens do universo (datada
de 13 bilhões de anos a partir do Big Bang – uma recapitulação bem-vinda em tempos de criacionismo ressurgente)
até o presente, mas é ultimamente projetada também para o futuro. Ou seja, contribui menos para as maneiras pelas
quais entendemos o passado, nos lembrando sobretudo de que as sociedades humanas só podem se desenvolver
em relação à natureza em um momento em que os recursos naturais estão sendo esgotados a uma velocidade sem
precedentes. Ver: Christian (2004); Brown (2007); Spier (2010).

236
de eurocentrismo que afetaram a maioria dos acadêmicos ocidentais vinculados à história do
mundo (world history),30 Sanjay Subrahmanyam parece descartar aqueles que “apoiaram com
entusiasmo o ponto de vista de que a ‘micro-história’ pode capturar o macrocosmo”
(Subrahmanyam, 2005:29). Mas uma leitura de suas aulas proferidas na Menahem Stern de
Jerusalém, recentemente publicada, sugere que seu ceticismo pode ter sido direcionado
sobretudo à expectativa (hopefulness) sobre os encontros interculturais do passado, objetos de
vários trabalhos de micro-história global mencionados neste texto, e menos ao valor heurístico
das biografias e das macroanálises de textos e fenômenos pertencentes a mais de um lugar e a
mais de uma tradição intelectual. Ele diz ser “menos otimista do que [Nathalie Zemon] Davis”
e afirma que no início do período moderno “as culturas frequentemente se encontravam em
situação de ‘conflito contido’” (Subrahmanyam, 2011:138). Sem enquadrar Subrahmanyam
numa caixa a que ele não pertence, nós não podemos deixar de notar que seus estudos parecem
compartilhar uma premissa de fundo com os micro-historiadores italianos. Em suas próprias
palavras: “generalizações [...] são muito importantes para serem deixadas para generalistas
especializados” (Subrahmanyam 1997:742). Além do que, as histórias conectadas que
Subrahmanyam defende, embora sem uma discussão explícita sobre a microescala, mostram
uma predileção para convergências sincrônicas e comparações de evoluções de longa duração
no tempo (Subrahmanyam 1997:742).
Por vezes, a crescente influência da virada histórica (historical turn) nas ciências sociais
quantitativas parece estreitar, em vez de expandir, o diálogo entre as disciplinas, levando os
historiadores a jogar um papel de meros narradores do passado e delegando a interpretação do
passado (e, particularmente, dos fenômenos de larga escala) aos cientistas sociais. Historiadores
frequentemente assumem esse papel consciente e voluntariamente, quando não de forma
desafiadora. Em 1979, Lawrence Stone detectou uma “retomada da narrativa” entre os
historiadores e atribuiu-a à crescente “desilusão com o determinismo monocausal, econômico
e demográfico, e com as quantificações” (Stone, 1979:13), representado, então, pela escola dos
Annales na França e pela cliometria (cliometrics) na América do Norte. Essa desilusão, por sua
vez, animou “um desejo [entre vários historiadores] de tornar seus achados acessíveis, uma vez
mais, para um público leigo, porém cultivado, que ansiasse aprender aquilo que as novas e
inovadoras questões, dados e métodos tinham revelado, numa prosa livre de jargões” (Stone,
1979:15). Nos anos 1970, os micro-historiadores italianos não estavam menos desiludidos com
o determinismo econômico e demográfico, mas reagiram de forma bastante diversa dos

30
Incluindo aqueles que aderiram ao credo dos estudos pós-coloniais, que diz que a escrita científica da história é
uma invenção do pós-Iluminismo europeu.

237
historiadores descritos por Stone. Hoje, passado mais de um quarto de século desses debates,
nós ainda podemos ouvir seus ecos. Historiadores globais aumentaram em número e em
sofisticação, mas explicações culturalistas e materialistas sobre a ascensão do Ocidente estão
longe de estarem extintas. De fato, as macroanálises frequentemente levam a generalizações
que, um dia, foram associadas àquele mesmo eurocentrismo global que a história se propôs a
desconstruir. Nesse panorama acadêmico, a micro-história não oferece nem a panaceia nem
uma teoria unificadora, mas pode prover uma ferramenta (ou, pelo menos, uma mãozinha) a
fim de equilibrar abstração e detalhe; a fim de parar para refletir diante de inconsistências
aparentes e detectar paralelismos que uma ênfase apressada nos eixos estruturais descartaria
injustamente, a fim de pensar criativamente fora da caixa das “civilizações” sobre os modos
pelos quais as formas culturais evoluem em relação às estruturas políticas e econômicas. Se
para mais nada além, faz parte da agenda futura dos micro-historiadores uma consideração
cuidadosa de como justapor as unidades de análise da micro e da macro-história e de como
conduzir comparações no espaço e no tempo. Com uma dose considerável de hubris,31 os micro-
historiadores italianos se recusaram a conceder essas questões metodológicas tão atraentes às
ciências sociais duras. Podemos retomar seus escritos não para encontrar um denominador
comum entre os relatos pessimistas e otimistas sobre a habilidade das pessoas em conviver bem
umas com as outras, mas a fim de renovar e encorajar esforços originais para colocar num
mesmo cadinho a análise científico-social e narrativa, dessa vez num palco global.

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244
10 Processos criminais e micro-história: direito, grupos populares e a Justiça
Criminal em Minas Gerais – Brasil (1854-1941)

Deivy Ferreira Carneiro

I.

Na noite de 17 de novembro de 1881, por volta das 21 horas, Fortunato Lopes da Silva apareceu
na casa de negócios José do Couto Martins, situada na rua Halfeld, centro da cidade, para
cobrar-lhe a quantia de um conto de réis, a qual havia lhe emprestado alguns meses antes. Os
dois começaram a conversar no interior da loja e, minutos depois, desprovido da quantia
cobrada, José pediu a Fortunato que lhe perdoasse o valor total da dívida. Irado com o pedido
e não satisfeito com as explicações oferecidas, Fortunato rompeu em palavras insultuosas,
chamando José de “velhaco, bandido, ordinário, ladrão e atrevido”, palavras essas que,
segundo vítima, eram “ofensivas à sua dignidade e honradez”.1 Indignado com as ofensas
recebidas, o negociante procurou o delegado de polícia e, com a denúncia escrita com a ajuda
de seu advogado, abriu um processo criminal de calúnia contra Fortunato, com base nos artigos
236, 237 e 238 do Código Criminal de 1830. Julgado à revelia, o réu foi condenado a dois meses
de prisão e multa. De acordo com José, Fortunato não tinha o direito de ofendê-lo. Se
acreditasse que os termos da discussão eram injustos, deveria discutir a questão na Jstiça, e não
o injuriar.
Tomado por si mesmo, esse episódio pode ser visto como tendo pouca significância ou
como sendo nada mais que curiosidades linguísticas. Todavia, esse exemplo fornece elementos
para algumas reflexões importantes. Como demonstrou Peter Moogk (1979:526), os insultos
podem ser tomados como a definição inversa das características essenciais aos homens e
mulheres respeitáveis ou como os elementos explicitadores dos tabus de determinada
sociedade. Os insultos verbais também podem ser vistos como definições negativas das virtudes
que revelam os conflitos internos de uma sociedade (Castan, 1974:42).
Dessa maneira, meu objetivo neste texto é discutir algumas conclusões de uma pesquisa
realizada ao longo de quatro anos (Carneiro, 2019), na qual examinei a relação mantida entre a


Agradeço a Angelo Torre, a Simona Cerutti e a Érico Saad Campos pela interlocução.
1
Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCJF). Processos de Calúnia e Injúria, cx. 55, série 20,
18/11/1881, p. 2.

245
população subalterna e a Justiça Criminal de Juiz de Fora, cidade do interior de Minas Gerais,
quarto maior estado do Brasil.
Situada na Zona da Mata, Juiz de Fora concentrou em seus domínios, a partir da segunda
metade do século XIX, uma dinâmica economia cafeicultora sustentada pela grande
propriedade escravista, estando seu desenvolvimento relacionado diretamente com o bem-estar
da produção das rubiáceas (Pires, 1993:passim). Com os excedentes econômicos gerados pelo
café, desenvolveram-se na região melhorias de caráter estrutural – telefone (1883), telégrafo
(1884), água encanada e sistema de esgoto (1885), iluminação elétrica pública (1889) e setor
bancário organizado (década de 1880) – que possibilitaram uma rápida urbanização e
industrialização da cidade. Todavia, a modernização do espaço urbano foi assim acompanhada
por um total descaso das elites política e econômica em relação à condição dos trabalhadores e
dos mais pobres. A modernidade para uns significou o aumento das dificuldades para outros. É
inevitável termos em mente a existência de várias “cidades” dentro de uma cidade.
Na perspectiva adotada em meu trabalho, uma microanálise escrita a partir dos registros
e processos criminais,2 busquei realizar uma leitura a contrapelo das fontes e seguir de perto os
argumentos e conclusões estabelecidos por Simona Cerutti (2003; 2008) em duas de suas
pesquisas. Segundo ela, os comportamentos registrados nas fontes não poderiam ser
interpretados como expressões da estrutura social. Essas ações não eram reveladoras de
determinações objetivas, mas exprimiam, pelo contrário, reinvindicações, intenções e
proposições. Essas diferentes ações eram reivindicações ativas de direitos e de demandas por
legitimação desses direitos. Por meio dos atos notariais de registros de possíveis crimes,
observamos, na verdade, uma certificação de um status social de fato, ou pelo menos, sua
indicação. Assim, mais que registros de um crime tipificado no Código Penal, analisamos
reivindicações, por parte do ofendido, de que sua honra e seu status social fosse respeitado e,
dessa maneira, legitimado de acordo com as regras aceitáveis de justiça. Esse fato, como
veremos neste texto, cria outro contexto de análise: um contexto êmico.
Influenciado por essas reflexões, observei a possibilidade real de os indivíduos
contornarem a lei e o sistema; de manipularem os ditames legais e. assim, operarem nos
interstícios dos vários sistemas normativos e recorrerem a um determinado sistema ao invés de
outro, de acordo com sua conveniência (Ago, 2004:46).

2
Os processos criminais produzidos pelo Judiciário da cidade em questão encontram-se alocados no Arquivo
Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCJF), formando o Fundo “Benjamim Colucci”. Dos processos desse
fundo, analisamos principalmente aqueles relativos a crimes contra a segurança da honra – calúnia e injúria –
existindo 190 processos para o período de 1854-1890 e 104 para o período de 1890-1941.

246
É preciso ressaltar, na perspectiva que adotamos, que o direito constitui uma gramática
contextual amplamente partilhada pelos homens e mulheres das mais variadas sociedades
(Cerutti, 2008:157). E esse parâmetro é fundamental para pensarmos a questão jurídica e
criminal na perspectiva da micro-história. Não somente os trabalhos de Cerutti, mas muitos
outros,3 nos revelaram que devemos explorar o sistema normativo formalizado em sua
utilização contextual, em sua utilização “local”.4
Por fim, a análise dos processos criminais me permitiu reconstruir os modos pelos quais
os homens e mulheres praticavam e exprimiam sua realidade: percebi assim como pequenos
fatos aparentemente irrelevantes podem estar cheios de significados históricos complexos
(Levi, 2017:180).

II.

A maneira mais comum de insultar alguém é xingando-o. Dessa forma, os epítetos usados
variavam em sua riqueza e diversidade, mas concentravam-se em dois temas principais –
aqueles que seguramente teriam efeito máximo nas condições do contexto em questão: o
primeiro era referente a conflitos em negociações e em casos de suspeita de atividades ilegais,
principalmente entre homens, denotando um total de 72% dos casos pesquisados. O segundo
tema era o sexual, referente a 19% dos processos analisados, empregando temas que insinuavam
promiscuidade sexual, prostituição e passividade masculina com relação às atitudes da mulher.5
Devido ao espaço restrito do texto, abordarei apenas o primeiro dos dois temas (Carneiro,
2018:33-66).
Em novembro de 1917, o mercador de gado Armando de Abreu se encontrou com
Raphael Magaldi Sobrinho no “Café Dia e Noite”, na rua Marechal Deodoro, no centro de Juiz
de Fora. Naquele momento, Armando cobrou de Raphael a quantia de 15$000 réis que faltava
de um pacote de dinheiro por ele recebido referente à compra de gado.6 Raphael, não gostando
da cobrança feita em público, ofendeu Armando de “ladrão, filho da puta”, na frente de muitas
pessoas que estavam no dito café. Horas antes, Raphael havia dado a Armando um pacote em
que dizia haver 500$000 réis. Confiando na palavra daquele, Armando foi para o banco e, ao

3
Entre os artigos que influenciaram a perspectiva adotada neste texto ver, por exemplo: Cavazza (1982); Loriga
(1983); Grendi (1987); Ferrante (1983); Cavallo e Cerutti (1980); Cerutti (1995).
4
Para mais detalhes de como essas questões foram aplicadas, ver Carneiro (2019)
5
Entre os epítetos encontrados que fazem referência à promiscuidade sexual e à passividade masculina, temos:
puta, safada, corno, cadela, puta velha, puta que o pariu, cabra, vaca, prostituta, égua, vadia, filho de uma cadela,
puta safada de rua e meretriz.
6
Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCJF). Processos de Calúnia e Injúria, cx. 169, série 29,
17/12/1917, passim.

247
contar o dinheiro, na ausência de Raphael, viu que faltava a quantia acima citada. Rapidamente
Armando voltou ao café e, cobrando a parte que faltava, foi ofendido por Raphael que afirmou
ter pago toda a quantia e que fora o próprio Armando quem retirara a reclamada quantia do saco
em sua ausência. Como os testemunhos foram contraditórios, já que uns afirmaram ter ouvido
as ofensas e outros afirmaram ter Raphael pago a dívida assim que cobrada, este foi absolvido
no processo criminal de calúnia e injúria aberto por Armando.
Por mais que a rede comercial em Juiz de Fora tivesse padrões consideráveis (Carneiro,
2019, cap. 1), os ditames das transações, principalmente no pequeno varejo, não traziam muita
segurança para os envolvidos, revelando que o crédito face a face, que subsistiu durante o
período em análise, existiu como um verdadeiro problema, do ponto de vista jurídico e social.
Palavras como crédito e risco são facilmente associadas ao comércio e inseridas na vida
cotidiana das pessoas engajadas nessa atividade. Além desses dois, temos o conceito de honra.
Esse é geralmente utilizado, principalmente pela antropologia dedicada à sociedade
mediterrânica, para definir questões de identidade e de reputação sexual.7 Mas, nesse caso, a
honra no comércio funcionaria mais como um antídoto ao risco, auxiliando na diminuição do
amadorismo e na diminuição da aventura das negociações, moldando a dinâmica e a identidade
dos comerciantes e de parte da população de Juiz de Fora.
O grande problema na questão do crédito é o risco, que se torna maior com a ausência de
instituições financeiras que certifiquem o retorno da aplicação garantindo mais segurança aos
negócios com base no crédito (Smail, 2005:439). As fontes sugerem que os atores envolvidos
no comércio entendiam os riscos de seus negócios e compreendiam suas obrigações em termos
da linguagem da honra. Assim, a questão do crédito e do seu risco inerente perpassava a questão
da linguagem da honra para que se operasse uma minimização do risco desse tipo de operação,
visto que era um mecanismo essencial que facilitava as trocas de mercadorias.
Observei, principalmente no registro das testemunhas dos processos de calúnia e injuria,
que os acordos eram, em sua maioria, acertados verbalmente, sendo a palavra dos envolvidos a
maior garantia. Para se conseguir crédito, era fundamental a construção de uma rede de
confiança mútua, ou seja, a honra e o valor da palavra firmada dos envolvidos era o principal
elemento de certificação de suas práticas comerciais em uma cidade cujo primeiro banco foi
fundado apenas em 1889, mesmo ano da fundação do primeiro cartório de notas. Assim, os
clientes, por meio do fiado (termo popular para indicar a compra a prazo pautada na confiança),
ganhavam prazo para pagar suas dívidas, e os pequenos comerciantes locais tentavam

7
A esse respeito, ver Pitt-Rivers (s.d., passim).

248
minimizar as chances de calotes. Contudo, essa relação de confiança era testada em cada
transação, devido ao simples fato de as bases dessas relações serem frágeis. Em outras palavras,
um dos meios encontrado de minimizar o risco inerente ao crédito era lidar com indivíduos que
poderiam ser considerados dignos de confiança. Fundamentava-se então uma rede de crédito
baseada na reputação dos indivíduos. Nesse sentido, não foi sem propósito que os epítetos
proferidos com maior frequência nos processos também se referissem a essas questões:
“ladrão”, por exemplo, o termo mais comum, aparece 139 vezes.
Se examinarmos mais de perto o relacionamento dos participantes dos crimes de injúrias
verbais, com a precisão permitida pelas fontes, surgem alguns padrões. A grande maioria das
ofensas foi trocada entre pessoas que se conheciam, frequentemente entre vizinhos, colegas de
trabalho (mais de 45% dos casos); entre indivíduos que mantinham algum tipo de
relacionamento comercial ou que possuíam dívidas entre si (cerca de 35% dos casos). Quase
sempre pertenciam ao mesmo nível social, e somente em três casos havia posição de
dependência entre as partes.
Uma coerência semelhante aparece com relação aos locais nos quais as ofensas foram
proferidas. Segundo o relato de vítimas e testemunhas, em mais de 95% dos casos, os epítetos
foram usados em exteriores: na rua, em frente à casa de algum dos envolvidos, na porta de
botequins e padarias, em via pública e na vizinhança. O público era composto principalmente
por vizinhos, colegas de trabalho, família e amigos. A publicidade dos insultos era
constantemente enfatizada nas queixas: “e sem o menor motivo, em alta voz, rompeu em
injúrias contra o queixoso, dando-lhe o epíteto de ladrão, palavra a que se referiu duas ou três
vezes, e que tudo foi ouvido por pessoas que passavam por ali”.8 Além disso, em algumas vezes
eram repetidos em voz alta, com o claro intuito de informar à comunidade acerca do ocorrido,
como fica claro nos trechos acima citados.
Os dados examinados mostram que as relações sociais mais relevantes encontradas nos
processos se davam entre vizinhos e colegas de trabalho, envolvendo principalmente negócios.
O próprio fato de a maioria das pequenas negociações ocorrerem entre vizinhos nos revela um
dos mecanismos mais usados para minimizar os riscos no fornecimento de crédito: fornecê-lo
para pessoas muito conhecidas, com as quais se manteria relações quase diárias, aumentando
assim as possibilidades de a palavra dada ser cumprida. E, obviamente, se assim não o fosse, a
perda da reputação seria mais relevante, pois se daria no seio da comunidade da qual a vítima
fazia parte, podendo, nesses casos específicos, trazer algumas perdas materiais, como a perda

8
AHCJF. Processos de Calúnia e Injúria, cx. 52, série 20, 30/11/1876.

249
do crédito nos estabelecimentos da redondeza e a desconfiança dos vizinhos em estabelecer
com ele relações mais profundas.
A documentação analisada não revela ter havido maiores estigmatizações práticas e
materiais, mas fica claro que a pessoa perderia muitos aliados e amigos9 na dura arte de
sobreviver. Esses mesmos documentos nos mostram uma face interessante da Justiça Criminal
local: para além de uma instituição repressora, ela foi acionada pela população para estabelecer
recursos facilitadores para as ações dos indivíduos. A Justiça era acionada assim, nesses casos,
para a manutenção ou reestabelecimento da honra pessoal como valor fundamental para lidar
com as incertezas de uma vida de pobreza, cujo crédito dependia do bom nome do pagador. A
Justiça era buscada pelas vítimas também para produzir uma certificação do status social
daquele que era ofendido publicamente de forma injusta e que poderia perder respeito perante
seus pares e as possibilidades de compra a prazo no comércio varejista da cidade. Em suma, os
sujeitos buscavam um julgamento oficial para certificar, tornar público um direito próprio, seja
legal ou mesmo legítimo (Cerutti, 2003).
Foi necessário haver uma complicada teia cercando todos os envolvidos com o comércio
numa mesma estrutura que expunha todos à mesma forma de risco. Os valores colocados em
jogo tinham de se tornar progressivamente compartilhados, públicos, servindo como guias nas
escolhas dos outros. Acreditamos que aquilo que Angelo Torre (2020:81) descreve como
práticas fundamentava o significado das ações e gerava um precedente, criando legitimidade
para essas ações, definindo o status daqueles que as desempenhavam. Além disso, as práticas
legitimavam as instituições que as registravam. A transcrição das práticas sociais que permeia
documentação histórica aqui analisada, além de sancionar os fins práticos de quem é descrito,
se descreve no ato de dizer ou fazer alguma coisa, expressa os fins práticos de quem, registrando
tais atos, valida-os e afirma a própria prerrogativa sobre estes.
E em nossa pesquisa, observamos que foi a construção de relacionamentos comerciais
baseados na reputação, mediados pela linguagem da honra, o meio encontrado para que esse
tipo de prática se institucionalizasse. Os processos analisados mostram claramente que o
comerciante frisava sua própria intenção honrada para com os outros e sua expectativa de que
os outros deveriam agir da mesma forma com ele, o que revela a importância das concepções
culturais sobre o uso coletivo do crédito. E procurar a justiça quando essa forma de interação

9
Estudos recentes têm demonstrado que a noção de confiança enquanto sentimento de segurança ou crença no
comportamento do outro é essencial para a articulação entre a experiência subjetiva e a organização social. Assim,
a confiança torna-se fundamental para a vida em sociedade porque estabelece cooperação em situações de
incerteza. Tal confiança pode ser abalada em momentos de questionamento da reputação social de uma das partes.
Para mais informações, ver Rezende (2002).

250
interdependente era quebrada pelo descumprimento dos acordos, seguido de ofensas, devem ser
vistas como ações, cujo o objetivo é obter o reconhecimento de sua validade em virtude de uma
sua particular relação com os dispositivos de legitimação existentes no contexto ou situação em
questão, assumindo um estatuto superior e passando a ser reconhecidas como práticas.
Pode parecer que todo esse discurso fosse mera convenção. Todavia, a leitura das ações
em termos de legitimação e de certificação nos permitiu observar como são criadas as regras
por meio das próprias ações e como os atos devem ser vistos como inseparáveis das mensagens
que são “dadas para compreender” aos espectadores. Em suma, nas controvérsias, as ações dos
litigantes são reciprocamente interpretadas como jogadas que, se reconhecidas como legítimas,
modificariam as prerrogativas de quem os realizou (Torre, 202:79).

III.

Realizado o exame de algumas práticas populares, observei que a existência de um “remédio”


legal – o processo criminal – para mediar esse tipo de conflito colocava alguma pressão sobre
a vítima para fazer uso desse mecanismo. Assim, tão logo a abertura do processo foi
compreendida como uma consequência possível de um conflito envolvendo calúnias e/ou
injúrias, essa percepção influenciou cada vez mais a abertura de novos processos, evidenciando
assim a possibilidade de um uso pragmático bem como certificatório da instituição penal. Na
medida em que mais processos eram abertos, estes reforçavam essa própria percepção, que
novamente atuava numa procura maior pela Justiça. Essa afirmação se torna evidente quando
analisamos os números de casos em cada região da cidade. A pressão sobre o autor para abrir
um processo dependia, em parte, da frequência dos casos na comunidade na qual ele vivia.
Analisando os locais em que ocorreram os conflitos, percebi que a incidência de alguns casos
numa dada localidade fazia com que, na década seguinte, a abertura de processos aumentasse
nessa região.
Na década de 1850, por exemplo, a maior parte das querelas ocorreu nas ruas centrais da
cidade, no bairro de São Mateus e nos distritos de Chapéu d’Uvas, Simão Pereira e Rio Preto.
Na década seguinte, surgiram novos casos em outros locais, contudo, as ruas do centro urbano
e os distritos citados foram responsáveis por 62,3% dos processos abertos. Esse padrão segue
por todo período: os casos surgidos numa localidade aumentam consideravelmente na década
seguinte. Durante o período estudado, as querelas ocorridas nas ruas centrais da cidade, em São
Mateus e nos distritos de Chapéu d’Uvas, Simão Pereira e Rio Preto foram as que mais
originaram aberturas de processos no município. Essa frequência explica, em parte, a

251
quantidade de casos num lugar e a inexistência em outros, ou seja, as práticas da comunidade
gerando elementos para resolução de conflitos e para aprimoramento das possibilidades de
previsibilidade cotidiana, assim aumentando a segurança das relações de trabalho, de
vizinhança, de lazer etc.10
Além da existência de um remédio legal, uma questão importante e que pode revelar a
real possibilidade de acesso da população à Justiça nos casos de crimes contra a honra é o custo
total de um processo de calúnia ou injúria. Além das altas despesas com o juiz, com os
advogados, com o escrivão e com o oficial de justiça, outros elementos se somavam até que o
custo final fosse fixado. Estes eram então formados pelos gastos associados ao juramento do
queixoso, ao despacho da pronúncia, alterações no processo, certidões; aos possíveis termos de
desistência e à conclusão. Além desses, havia os custos com a autuação, com o auto de
qualificação, com o depoimento das testemunhas, com o interrogatório e com os selos. Tudo
isto somado gerava o custo final de um processo de calúnia e injúria.
Contudo, a maior parte dos gastos era feita com a contratação de um advogado. Em todos
os processos analisados, o valor pago aos advogados ficava em torno de 50 a 60% do valor total
de um processo. Outro fator que definia o custo com o advogado era se este era um advogado
renomado ou se era um simples rábula, sem formação acadêmica. Um advogado como
Benjamim Colucci, um dos mais famosos na cidade durante o período republicano, poderia
receber até quatro vezes mais que um advogado sem formação em curso de direito. E é claro
que a contratação de um bom advogado, seja do ponto de vista técnico ou social, era um dos
artifícios adotados pelas partes para saírem vitoriosas dos processos.
A partir dos documentos disponíveis, encontramos pouquíssimas informações sobre a
formação dos advogados locais. A grande maioria era provisionada. Entre aqueles em relação
aos quais conseguimos informações, somente 24 eram bacharéis em direito formados em sua
maioria no Curso de Direito da Escola Paulista de São Francisco. Só para se ter uma ideia do
perfil dos advogados locais que aparecem nos processos criminais de calúnia e injúria, dos seis
sobre os quais consegui informações para a década de 1850, todos eram membros da elite local,
sendo vereadores e também cafeicultores. Além disso, um deles acabou sendo agraciado com
o título de visconde de Itatiaia. Já na década de 1860, quase todos foram vereadores ou
suplentes; um deles foi conselheiro do Império e presidente do Banco Territorial Mercantil de
Minas Gerais (João Pedro Ribeiro Mendes). Nos anos 1870, aparecem os primeiros bacharéis
de formação. Metade deles atuaram como vereadores e possuíam fazendas de café. Um deles

10
Cf. Levi (2000).

252
foi o barão de São Marcelino (Marcelino de Assis Tostes), que entre outras coisas foi presidente
da província do Espírito Santo. Dos advogados que atuaram na década de 1880, 75 % foram
vereadores e cafeicultores, e um deles foi deputado provincial (Francisco de Paula Ferreira
Costa).
Foi na década de 1890 que atuaram advogados que passaram a fazer parte da elite
nacional. Entre eles podemos destacar o republicano histórico, Fernando Lobo, que foi
deputado, senador da República e ministro de Estado na década de 1910. Além dele também
foi deputado outro republicano histórico, Constantino Paleta. E, por último, o presidente do
estado de Minas Gerais entre os anos de 1926-30, Antônio Carlos Ribeiro Andrade. Na década
de 1900, os advogados mantiveram o mesmo perfil – membros da elite local, já que todos para
os quais conseguimos informações foram vereadores ou suplentes. Já da década de 1910 em
diante, os advogados passaram a ser mais profissionais – bacharéis, visto que todos os que
tiveram dados analisados até a década de 1940 eram formados em faculdades de direito.
Percebe-se também nesse período um afastamento desses advogados de posições de mando
político, já que apenas seis foram eleitos como vereadores e cinco como deputados estaduais.
Mesmo podendo escolher legalmente qualquer pessoa para representá-los, como
mostramos acima, as vítimas de ofensas verbais optaram por pagar altos honorários a pessoas
que, em alguns casos, não tinham formação em direito, mas que possuíam respeito e
legitimidade social em Juiz de Fora. Pagar muito dinheiro para certos advogados era um meio
de legitimação e tais ações podem ser vistas como mensagens. Enquanto membros de uma elite
política, econômica e letrada, advogados e juízes possuíam autoridade cultural na cidade, ou
seja, possuíam autoridade para colocar suas definições particulares da realidade e seus juízos
de valor como válidos e verdadeiros.
Dito de outro modo, no curso da elaboração de tais processos criminais esses profissionais
do direito se utilizavam de ideias e valores vigentes na sociedade, atribuindo significado às
“histórias” que eram julgadas nos tribunais. Como suas versões eram aceitas como versões
verídicas da realidade, ou seja, como certificavam certos tipos de comportamentos e valores,
estes passaram a ser reificados publicamente e passaram a estabelecer “verdades” sobre o
mundo social. Nesse sentido, o direito foi, em Juiz de Fora, um agente formador dessa sociedade
e também um veículo utilizado para ordenar as relações sociais, sobretudo na esfera comunitária
e nos pequenos negócios (Cerutti, 2003).
Outra pergunta é fundamental para compreendermos os fatos que estamos analisando:
qual era então o custo total de um processo de calúnia ou injúria? Ele variava em torno de
diversos elementos. Por exemplo: um processo em que não havia advogados, já que a vítima e

253
o réu poderiam ser legalmente seus próprios representantes, o custo era mais baixo, assim como
um processo em que havia desistência ou anulação. Já contratar advogados renomados, inquirir
muitas testemunhas e apelar em segunda instância ao juiz de direito da comarca questionando
o resultado do juiz municipal, encarecia em muito o custo final. O preço final oscilava
bruscamente de um processo para outro. Assim, amparados na série documental observada,
acionar a justiça custava entre dois e três meses de salários de um trabalhador manual, fosse ele
um alfaiate, um sapateiro, um ferreiro, um carpinteiro, um marceneiro ou pedreiro. No caso dos
custos mais altos registrados em uma década, esse valor poderia chegar até quatro salários.
Portanto, quais seriam as explicações da motivação que levava pessoas pobres, em sua
imensa maioria, a procurar a Justiça durante todo esse período, mesmo com a possibilidade de
ter de arcar com altos custos, bem acima de suas condições materiais? A intenção principal do
autor na abertura do processo era conseguir uma vitória pública sobre o réu e sua humilhação,
no intuito de restaurar sua reputação social. A Justiça era então vislumbrada pela população
como uma instância de mediação das relações sociais. Na medida em que arbitrava as disputas,
adquiria legitimidade para reafirmar sua noção de ordem e seus pressupostos hierárquicos,
principalmente para os indivíduos destituídos de laços e redes de reciprocidade poderosas o
suficiente para resolverem suas querelas longe dos tentáculos do Estado.
Devemos nos lembrar de que o fato de ser processado já implicaria transtornos e custos
para o réu capazes de refrear e “disciplinar” possíveis ações futuras, sendo assim afirmada a
contenção de condutas indesejáveis e, indiretamente, uma apologia à ordem, reconduzindo a
vida comunitária a um ritmo desejável. Tal situação agradava tanto o autor do processo, pelas
razões já citadas, quanto à Justiça, que afirmava o poder público do Estado por meio da
manutenção das relações sociais e da afirmação da necessidade da ordem social. Isso ficou mais
claro quando analisei o tempo das penas aplicadas aos réus, que ao meu ver, devido à rapidez
em julgá-los, servia como um aspecto disciplinador dos ofensores da honra alheia.

Tabela 1
TEMPO DAS PENAS APLICADAS NOS CRIMES DE CALÚNIA E INJÚRIA (1854-1941)

Tempo das penas Número de casos %


Até um mês de prisão 58 32,95%
De três a seis meses 93 52,84%
De seis meses a um ano 25 14,2%
Fonte: AHCJF. Fundo Benjamim Colucci. Processos criminais de Calúnia e
Injúria, séries 20 e 29, 1854-1941.

254
É importante destacar que a busca de restauração da honra na Justiça refletia um aumento
das expectativas de ordem frente às querelas postas, fato que acabava sendo benéfico tanto para
a população quanto para a Justiça. A população local que fazia uso do direito nas situações
analisadas acabava atuando como criadora de certas práticas, principalmente aquelas
relacionadas aos negócios, às boas práticas de vizinhança, de trabalho e de lazer.
É importante ressaltar que a maioria dos envolvidos fazia parte da população subalterna
– trabalhadores manuais, pequenos e médios negociantes, lavradores, lavadeiras, donas de casa
etc. – que entraram em conflito principalmente com pessoas de nível hierárquico semelhante,
sobretudo nas ofensas de gênero e de negócios. A exceção encontrada foram os casos
envolvendo senhorios e inquilinos, em que os primeiros podem ser considerados de “classe
média” e os segundos, de grupos populares. Compreendi também que os conflitos verbais
raramente surgiam entre desconhecidos, aparecendo especialmente entre pessoas envolvidas
em relações cotidianas, como vizinhos, colegas de trabalho e indivíduos em negociação,
revelando indiretamente os motivos dos conflitos.

IV.

Em uma pesquisa recente, o historiador Ivan Vellasco buscou, para o caso de Minas Gerais,
correlacionar os dados relativos à ampliação dos poderes de Estado com os dados fornecidos
pelas estatísticas criminais, revelando a forma pela qual esses processos estabelecem
complementaridade. Ele observou que quase 70% dos conflitos nessa região advinham de
crimes resultantes de disputas entre conhecidos e familiares, envolvendo bebida, ciúmes e
traições. Nessa pesquisa a Justiça se apresentou, portanto, como uma instância de mediação dos
conflitos que surgiam permanentemente entre os que partilhavam um “acordo básico” sobre as
normas, conformando um espaço para “o homem pobre e respeitável tornar públicos seus
conflitos”. Vellasco notou uma constante crescente na ação do Sistema de Justiça no controle
da violência interpessoal, concentrando sua ação ao longo do tempo na contenção dessa
violência em níveis não letais. À medida que a Justiça ganhou capacidade em processar e, em
alguma medida, vigiar e punir as condutas agressivas, ela exerceu maior controle sobre as
condutas, dissuadindo os agressores e conseguindo conter seus efeitos mais drásticos, como o
homicídio (Vellasco, 2018).
Em Juiz de Fora, o principal centro econômico de Minas Gerais até a década de 1930,
principalmente entre as décadas de 1850 e de 1890, observamos empiricamente o
funcionamento dessa faceta mediadora da Justiça. O poder judiciário mostrou-se, em muitos

255
casos, acessível exatamente aos que necessitavam de proteção e mediação do Estado. Sua
função ia, portanto, além de uma mera engrenagem a serviço dos poderosos.
Como mostra a tabela 2, a baixa condenação a partir da década de 1890 levou as vítimas
a deixarem de procurar a Justiça quando seu aspecto legitimador e certificador deixou de ser
alcançado. Como no Brasil o crime contra a honra era, e ainda é, considerado privado, ou seja,
não era o Estado que iniciava esse tipo de processo, os envolvidos não eram obrigados ou
coagidos pela Justiça de forma direta; eles negociavam com ela. Essas práticas então se
constituíam na maneira pelas quais alguns grupos populares reorganizaram os espaços
delimitados pelo Estado. Essas práticas desembocam na politização do cotidiano, como
buscamos demonstrar até aqui.

Tabela 2
RESULTADO DOS PROCESSOS POR DÉCADA

Resultado dos processos de calúnia/injúria


Década Total
Condenado Absolvido Arquivado Desistência Anulado
2 0 2 2 2 8
1850
25% 0% 25% 25% 25% 100%
21 9 7 10 4 51
1860
41,2% 17,6% 13,7% 19,6% 7,8% 100%
31 23 5 11 5 75
1870
41,4% 30,7% 6,6% 14,7% 6,6% 100%
13 9 20 6 5 53
1880
24,5% 17% 37,7% 11,3% 9,4% 100%
1 10 19 9 3 42
1890
2,4% 23,8% 45,2% 21,4% 7,1% 100%
1 1 3 6 1 12
1900
8,3% 8,3% 25% 50% 8,4% 100%
5 5 6 3 1 20
1910
25% 25% 30% 15% 5% 100%
1 3 8 6 2 20
1920
5% 15% 40% 30% 10% 100%
0 3 3 3 2 11
1930
0% 27,2% 27,2% 27,2% 18,1% 100%
0 0 1 1 0 2
1940
0% 0% 50% 50% 0% 100%
75 63 74 57 25 294
Total
100% 100% 100% 100% 100% 100%
Fonte: AHCJF. Processos de Calúnia e Injúria, séries 20 e 29, 1854/1941.

Assim, os dados da tabela revelam que o número de condenações foi relevante durante as
décadas de 1860, 1870 e 1880. Esse aumento dos casos de insultos verbais ocorre em um
período de crescimento populacional (em parte resultante do fluxo de imigrantes europeus e de
migrantes recebidos na cidade durante todo o período em análise) urbano e industrial de Juiz

256
de Fora, ocorrido principalmente até os anos de 1890. Contudo, a partir da década de 1900, com
a consolidação desse processo, a cidade atinge um tamanho mediano; novos bairros são criados
e os bairros mais antigos passam a ser cada vez mais habitados por novos moradores, gerando
um fluxo constante na vizinhança. Com esse novo quadro, as relações entre os vizinhos se
tornam possivelmente mais impessoais devido à constante inserção de novos moradores nas
comunidades, ficando difícil a manutenção de regras comunitárias mais coesas, o que fez com
que a regulamentação comunitária da honra e da reputação entrasse em declínio.
Em suma: é importante ressaltar que a boa reputação e a honra pessoal foram ferramentas
necessárias e fundamentais para aqueles que queriam manter uma forte rede de relacionamentos
em seus bairros e vizinhanças. E à medida que o número da população local aumentava devido
aos fluxos migratórios e devido à constante mudança de vizinhança, as relações sociais se
tornavam mais impessoais, de modo que a necessidade de defender a reputação tendeu a
diminuir, bem como a necessidade de defendê-la no tribunal como resultado de ofensas e
insultos.
Por fim, observamos um processo de desestruturação das instituições judiciais com o
advento da República (1889). A federalização da Justiça acabou transformando-a em um
instrumento da política dos governadores dos estados, que passaram a ter controle sobre
nomeações e as atrelaram aos intentos de controle eleitoral. O clientelismo, base das relações
do governo com os municípios, e o autoritarismo, que caracterizaram o período geraram uma
instrumentalização da Justiça e sua subordinação a interesses dominantes locais. Observa-se já
na primeira década da República o início da incapacidade crescente do Estado em prover justiça
e segurança, gerando em Minas Gerais um aumento exponencial da conflitualidade e do recurso
à violência pelos cidadãos (Vellasco, 2018). A desilusão, a indiferença e a descrença nas
instituições daí decorrentes talvez possam explicar a perda de legitimidade e a capacidade de
gerar lealdade por parte da população. A ordem republicana e sua Justiça deixaram de seduzir.
E talvez, a partir de então, o controle da população tenha progressivamente se limitado tão
somente à sua face punitiva.

V.

A redução da escala de análise ao examinar a ação da população e do aparato jurídico em uma


pequena cidade do interior de Minas Gerais nos mostrou que isso não significou um controle
social eficaz e um enquadramento dos comportamentos populares em moldes estritos, mas
transpareceu que estavam presentes as bases que viabilizaram um acordo implícito sobre

257
reivindicações. Observamos o direito não apenas como algo que supostamente refletiria a
realidade, mas também, e sobretudo, como algo que constrói e reconstrói essa realidade
constantemente através de categorias. Percebemos o direito e a Justiça Criminal não como um
sistema normativo exterior, mas como um instrumento de classificação social que serviu às
pessoas em sua competição cotidiana e que instituiu práticas e visões de mundo, muito além de
um sistema punitivo. Da mesma forma que impõem regras, estabelecem recursos facilitadores
para as ações dos indivíduos, já que definem as possibilidades de interação e negociação entre
os mesmos, ajudando a diminuir as incertezas do viver. Evidentemente que a Justiça Criminal
local não funcionou dessa maneira para todos os tipos de crimes ou delitos.
Os crimes contra a honra nos fornecem uma oportunidade ímpar de análise na medida em
que nos mostram a relação entre população e Justiça sem a faceta coercitiva do direito, já que
era a vítima ou algum representante legal que decidia se procurava ou não a Justiça para ter sua
honra reestabelecida frente à comunidade. A documentação analisada diz respeito,
evidentemente, a pessoas e situações específicas, mas que pela sua eficácia, pelo menos ao
longo de certo período, serviu como certificadora do status social e da honra do querelante, seja
legitimando a honra pública dos indivíduos em situações de negociação, seja restaurando o
status de indivíduos que processavam seus senhorios que aumentavam legalmente os preços
dos aluguéis em um período de grande inflação, ato esse, entretanto, que não possuía
legitimidade entre os locatários subalternos. Nesse sentido, o direito deve ser visto aqui como
algo estruturante de práticas e valores sociais.

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259
11 Pensando o problema das conexões, do equilíbrio e da complexidade a partir
da perspectiva da micro-história

Maíra Ines Vendrame

No presente capítulo, busca-se mostrar de que maneira a metodologia da micro-história italiana


auxiliou no desenvolvimento dos estudos ligados aos movimentos migratórios, bem como de
que modo pode ainda contribuir para uma renovação no campo historiográfico das migrações
históricas e contemporâneas. Uma perspectiva centrada nas experiências particulares de
deslocamento e no papel dos sujeitos nas transferências representa uma possibilidade
metodológica bastante interessante para levantar novas questões para pensar o tema da
mobilidade transoceânica. A utilização de uma perspectiva de análise que privilegiava a escala
local como ponto de partida aparece como uma escolha que tem propiciado avanços no
entendimento dos processos migratórios, sejam eles os de curta ou de longa distância.

Sobre a micro-história

A partir da década de 1970, começou a se desenvolver na Itália uma metodologia que se tornou
conhecida como microstoria. Essa passaria a ter crescente aceitação entre os pesquisadores que,
por meio de uma abordagem microanalítica, buscavam compreender as práticas sociais e
culturais das sociedades camponesas. Tal perspectiva de análise surgiu enquanto reação à
crescente insatisfação por parte de alguns pesquisadores frente às análises estruturais e
funcionalistas. O desejo de romper com os modelos explicativos demandava novos métodos
para abordar amplos fenômenos históricos.
Assim, por meio da Revista Quaderni Storici,1 teve início uma abertura significativa para
a interdisciplinaridade nos estudos históricos. No referido periódico, foi aberto um espaço para
serem publicados estudos que propiciaram uma renovação historiográfica, fazendo parte da
série definida como Microstorie. Esta se apresentava mediante um renovado interesse pela
história social em diálogo com a etno-história, a economia e a antropologia. Os métodos e
problemas trazidos de outras ciências sociais ajudavam a ampliar as discussões sobre o tema da


O presente texto é uma versão modificada do artigo originalmente publicado sob o título Micro-história e história
da imigração (Vendrame, 2018b).
1
Sobre o nascimento da revista Quaderni Storici e as discussões em torno dela na década de 70 do século XX na
Itália, ver Lima (2006)

260
família, comunidade e universo camponês, tendo como preferência o micro, o local e o
individual como pontos de partida. Assim, reunidos em torno da revista Quarderni Storici,
historiadores como Edoardo Grendi, Giovanni Levi, Carlo Ginzburg e Carlo Poni passaram a
divulgar suas pesquisas.2 Em artigo publicado no mencionado periódico, Grendi realizou o que
seria o primeiro debate sobre o método microanalítico social, o que viria a ser conhecido
posteriormente como a micro-história italiana: os diferentes aspectos que a metodologia
permitia acessar e problematizar, a atenção para o documento excepcional como registro
revelador de práticas recorrentes e lógicas presentes numa determinada realidade social
(Grendi, 1977); uma atenção para a análise das relações interpessoais e vínculos que ligavam
indivíduos e grupos, que davam um sentido próprio para as relações entre sujeitos e famílias
numa comunidade e espaço geográfico, formando estruturas de dependência, onde aspectos
sociais, econômicos e políticos deviam ser levados em conta para entender os sentidos dos
comportamentos e as dinâmicas relacionais.
Com relação aos principais expoentes da micro-história italiana, referidos acima,
variavam entre uma abordagem mais voltada para questões da história social e econômica, e
outra, direcionada mais para o campo da história cultural. O que mais os aproximava era a
comum insatisfação frente aos grandes modelos explicativos de análises. Tudo isso somado ao
interesse pela reconstituição das experiências individuais e familiares dos camponeses e pessoas
comuns, método esse considerado necessário para apreender as compreensões, explicações,
racionalidades e comportamentos próprios de um grupo e de uma época (Lima, 2006;
Marquiegui, 2016). Edoardo Grendi (1977; 1981) e Giovanni Levi (1985; 2000), interessados
na proposição de uma nova história social preocupada com as percepções e articulações
específicas da população do campo na Itália do Antigo Regime, passaram a ressaltar a
importância de analisar as redes sociais e vínculos interpessoais. O interesse de ambos voltou-
se, portanto, para a compreensão das formas agregativas, dinâmicas relacionais e lógicas que
orientavam os comportamentos individuais e coletivos, bem como para o funcionamento de
certas estruturas socais.
Sendo assim, umas das principais contribuições dos referidos historiadores foi perceber
o papel ativo das populações que habitavam no campo frente às pressões do Estado absolutista
e do sistema econômico, analisando as estratégias e recursos acionados pelas famílias nas
comunidades. A relação entre essas duas esferas – família e comunidade – e a sociedade mais
ampla eram apontadas como fundamentais para o entendimento das mudanças ocorridas no

2
A revista Quaderni Storici, desde o início dos anos 1980, foi o espaço de debates entre os historiadores italianos
fundadores da micro-história. Sobre esse assunto, consultar Lima (2006).

261
universo rural do período pré-industrial. Edorado Grendi (1981; 1993; 1996) deu ênfase à esfera
local em seus diferentes aspectos e abordagens etnográficas, destacando-se como um grande
empirista, uma vez que considerava a história estritamente ancorada na linguagem da fonte
primária.3
Nesse sentido, também conferindo importância a abordagens reduzidas, mas não restritas
a temas locais, o historiador Carlo Ginzburg passou a utilizar em suas pesquisas o método
indiciário e onomástico. Os indícios e sinais pouco frequentes na documentação, bem como a
atenção aos documentos excepcionais, passaram a ser destacados como vestígios de problemas
de pesquisas mais amplos. Assim, trabalhando com fontes inquisitoriais dos séculos XVI e
XVII, Carlo Ginzburg (1988) analisou aspectos da cultura agrária daqueles que caíam nas
malhas da Inquisição, interesse esse considerado marginal no ambiente acadêmico das décadas
de 50 e 60 do século XX. Ao buscar entender o sentido da palavra benandanti4, localizada nas
fontes primárias, o referido autor adentrou no universo das crenças e cultos próprios de uma
cultura camponesa. Orientando-se pela perspectiva do paradigma indiciário,5 os detalhes e os
indícios encontrados na documentação foram percebidos como sinais que poderiam ser
reveladores de práticas sociais e culturais da população rural que eram de longa data e
completamente desconhecidas pela cultura erudita da Igreja Católica. Desse modo, os pequenos
vestígios do universo agrário estudado foram tomados como aspectos reveladores ou como a
chave de leitura para analisar determinados comportamentos.
Já no livro intitulado O queijo e os vermes, Carlo Ginzburg (1987), utilizando-se do
“método onomástico”,6 analisou a trajetória de Domenico Scandela, conhecido como
Menochio. Este, um moleiro que viveu na região do Friuli no século XVI, foi preso pela Santa
Inquisição por possuir ideias “extravagantes” a respeito do surgimento do universo e que iam
contra os dogmas da Igreja Católica. Por meio das explicações conferidas pelo personagem

3
Uma das principais características dos trabalhos de Edoardo Grendi era a associação entre a pesquisa história
empírica e a discussão teórica. Aproximando-se dos debates realizados no campo da antropologia econômica, seus
estudos sobre história do trabalhismo e vida associativa das classes subalternas nas cidades foram sendo
influenciados pela perspectiva “a partir de baixo”. A aproximação com outros pesquisadores – Giovanni Levi e
Carlo Poni – se deu pelo interesse em analisar as comunidades e o mundo pré-industrial à luz de problemas
conectados: relações entre centro e periferia no contexto de constituição do Estado moderno, significados e formas
de organização social, demográfica e econômica, protagonismo local e comunidades (Lima, 2006).
4
O termo benandanti era a denominação para aqueles indivíduos que haviam nascido envoltos pela película
amniótica, motivo pelo qual deviam ter poderes sobrenaturais, cabendo a eles a tarefa de proteger os povoados e
as plantações. Essa crença era muito difundida nos séculos XVI e XVII entre as populações camponesas da região
do Friul, nordeste da península itálica. Através do processo movido pela Santa Inquisição, os benandanti foram
considerados feiticeiros, conforme constatou Carlo Ginzburg (1988) no livro Os andarilhos do bem.
5
Sobre o método ou paradigma indiciário defendido e utilizado por Carlo Ginzburg, ver Ginzburg (1987; 2007;
2011).
6
O método onomástico é um procedimento de pesquisa que se inspirava na demografia histórica, estando ligada à
documentação serial que poderia ser paroquial ou notarial (Ginzburg, 1989b).

262
estudado, Ginzburg procurou compreender aspectos como a circularidade entre a baixa e a alta
culturas no contexto da contrarreforma e da difusão da imprensa. Os aspectos metodológicos
presentes utilizados nas pesquisas descritas acima influenciaram o desenvolvimento de estudos
em diversas áreas temáticas, sendo os mesmos ainda válidos enquanto caminhos que ajudam
acessar contextos e problemas que não são identificados por meio de análises sob outras
perspectivas.
As contribuições dos pais fundadores da micro-história italiana7 influenciaram a produção
historiográfica na Europa e, em seguida, os estudos históricos na América Latina. Em relação
ao Brasil, tal influência pode ser percebida até o presente momento, uma vez que as
contribuições da referida corrente historiográfica continuam a inspirar pesquisas nos mais
diversos campos temáticos da história. As sugestões teóricas e metodológicas de três dos
principais expoentes da microanálise, Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi,
seguem inspirando muitas pesquisas desenvolvidas nos principais centros acadêmicos do país.
Em relação às ideias de Levi, esse defende a utilização da micro-história enquanto método que
permite acessar complexidade e heterogeneidade dos diferentes processos e realidades. Nesse
sentido, destaca também a opção por pensar a história social conectada a diferentes aspectos,
sejam eles econômicos, políticos ou culturais, independentemente do tema da pesquisa. Para
tanto, muitos ainda utilizam o livro A herança imaterial (Levi, 2000) para desenvolverem seus
trabalhos.
Giovanni Levi escolhe seguir a trajetória de um “tosco” padre de aldeia como objeto da
narrativa e também como justificativa para a reconstituição do ambiente social e cultural de um
villagio piemontese comum do século XVII. Foram, portanto, “as estratégias cotidianas de um
fragmento do mundo camponês” que propuseram temas e problemas gerais, pois uma visão
mais ampla e de fora não os tornaria visíveis. Foi o cotidiano e as reações de pessoas comuns
que Giovanni Levi (2000:43-47) procurou mostrar em sua pesquisa, aliás, um universo social
que não pode ser visto como imóvel, defensivo e incapaz de se articular e desenvolver
iniciativas autônomas frente às transformações gerais de um período. A trajetória do exorcista
analisada na obra A herança imaterial reflete a totalidade dos elementos que caracterizam uma
época, que era aquela do processo de centralização do Estado absolutista. Levi analisou a
relação entre comportamento individual e os aspectos que compõem o horizonte social,

7
Os considerados pais fundadores da micro-história italiana são: Edoardo Grendi, Giovanni Levi, Carlo Ginzburg
e Carlo Poni. Sobre a trajetória historiográfica dos mencionados historiadores, seus debates em torno da Revista
Quaderni Storici e suas contribuições teóricas e metodológicas para a micro-história italiana, Henrique Espada
Lima realiza investigação minuciosa e rica em informações. Sobre a questão, ver Lima (2006).

263
buscando, por meio disso, reconstruir os vínculos, estratégias, expectativas e lógicas que
orientavam as mais diversas ações, como aquela existente no mercado da terra. Tudo isso
indicou para um aspecto bastante importante, que é a percepção de um universo camponês
bastante dinâmico, marcado por movimentações e racionalidades específicas, que buscava
estabelecer seus próprios equilíbrios frente a mudanças e instabilidades que representavam
ameaças e inseguranças locais.
A ideia de que as comunidades camponesas do Antigo Regime não eram um mundo
imóvel e harmônico, marcado pela ausência de mobilidades e conflitos, é algo apresentado nas
pesquisas de Giovanni Levi. Isso porque solidariedades, tensões e acordos eram questões que
atravessavam as relações no interior dos povoados rurais que eram marcados por constantes
divisões, desarmonias e busca por segurança por parte da população. Nesse sentido, a
“homogeneidade cultural” se apresentava em momentos de conflitos e contradições, sendo
acompanhada pela formação contínua de equilíbrios e harmonias relacionais, essas sujeitas
constantemente a “novas rupturas”. As ideias analisadas no livro A herança imaterial se
tornaram válidas para elaborar questionamentos para compreender o funcionamento de
dinâmicas e racionalidades existentes em outras sociedades rurais localizadas em tempos e
espaços diferentes.
O tema da família e da economia camponesa, das relações sociais e das migrações
circulares e temporárias para os centros urbanos no período dos séculos XVIII e XIX é algo
abordado por Giovanni Levi em diversos estudos.8 Nesses, irá chamar atenção para a
importância de analisar as mobilidades por meio de um olhar atento às características das
famílias envolvidas nas migrações de alguns de seus membros e na relação que os que partiam
mantinham com o lugar de origem. Para além das questões econômicas, o autor aponta para a
necessidade de olhar para as migrações como um movimento complexo, devendo-se atentar
para as escolhas no sentido de uma posição social na comunidade de origem, garantir segurança
e um equilíbrio entre o número de trabalhadores e consumidores dentro da unidade familiar.
Nesse sentido, as análises problematizaram a relação entre quem emigrava e a família, a idade
no ciclo reprodutivo e o que obrigava os indivíduos a emigrar. Pensar os movimentos
migratórios como diretamente relacionados aos ciclos de vida das famílias e as necessidades
em relação à subsistência e à reprodução de acordo com a quantidade de membros eram
aspectos fundamentais na estruturação da unidade familiar camponesa (Levi, 1985; 2019b). Os
estudos sobre as mobilidades – especialmente as temporárias e circulares – na península itálica,

8
Entre os artigos e livros que abordam tais questões, ver Levi (1985; 1989; 1990; 1992; 2000; 2019a; 2019b).

264
portanto, indicavam para estratégias demográficas, hereditárias e escolhas individuais bastantes
precisas de sobrevivência e reprodução das famílias camponesas.9 Essas novas perspectivas
permitiram que a sociedade tradicional do Antigo Regime não fosse mais percebida como
fechada e totalmente opostas às realidades camponesas da Itália industrial. As migrações foram
identificadas enquanto estratégias de defesa de um sistema reprodutivo e de possibilidade de
mobilidade social, sendo fundamentais na vida da população que resida no campo.
Por meio das ideias apresentadas até aqui, pode-se, então, perceber que a micro-história,
enquanto metodologia de análise que se baseia na redução da escala de observação,
revolucionou a forma de pensar o mundo camponês, suas práticas e racionalidades. Por meio
das práticas historiográficas referidas anteriormente, destaca-se que a perspectiva micro, o
estudo de perto e na sua totalidade de eventos, experiências e trajetórias, individuais ou
familiares, propiciaram pensar a agência dos sujeitos sobre fenômenos mais amplos, por
exemplo, as estratégias familiares através das migrações, bem como as diferentes reações e
impactos das mudanças estruturais na vida dos camponeses.

Cadeias e redes migratórias

Os estudos sobre o movimento migratório europeu para a América meridional, com especial
atenção para a Argentina, tiveram grande desenvolvimento a partir da década de 80 do século
XX. A utilização do conceito de “cadeias migratórias” serviu para que entendêssemos como os
camponeses se inteiravam das oportunidades existentes na América, em questões como
transporte, empregos e outros auxílios. As cadeias migratórias eram relações que os italianos
possuíam com aqueles que já estavam instalados nos locais de destino na América. Nesse
sentido, as redes e contatos que uniam os dois lados do Atlântico auxiliavam a organizar as
partidas e a escolher os destinos, determinando, nas terras distantes, um padrão de acomodação
e ocupação dos recém-chegados.
Cadeia migratória foi um conceito inicialmente utilizado para entender o movimento de
imigrantes para a América do Norte. Essa definição, entendida como bastante ampla, incluía
aqueles que articulavam as transferências baseados nas informações passadas por amigos e
parentes que já estavam nos Estados Unidos (Macdonald e Macdonald, 1964; Devoto, 1988).10

9
Ver Levi (1989:101).
10
O primeiro estudo a detalhar o funcionamento das cadeias migratórias e a difundir sua utilização entre
pesquisadores que pensavam as mobilidades da Europa para a Austrália e os Estados Unidos foi o de John S.
MacDonald e Leatrice MacDonald (1964), tendo desenvolvido suas pesquisas na década de 60 do século XX.
Posteriormente, outros pesquisadores que analisaram o fenômeno migratório para a América trabalharam com o

265
Esses historiadores estudavam essas dinâmicas de deslocamento como resposta à crise das
explicações macroestruturais sociais e econômicas.
Com a aproximação de abordagens antropológicas, os novos estudos sobre a imigração
passaram a se preocupar em entender os deslocamentos de grupos de indivíduos e suas
dinâmicas, aproximando-se das pesquisas que tomam o micro como ponto de partida das
análises. Acompanhar famílias e agregados de indivíduos aparentados ou não que saíam de uma
determinada aldeia para se estabelecer num mesmo local de destino passou a ser uma das
perspectivas interessantes para pensar de outra maneira as migrações de curta e longa distâncias,
como as transoceânicas. O uso do conceito de cadeias migratórias possibilitou pensar os
imigrantes como sujeitos ativos, capazes de formular estratégias de sobrevivência e adaptação
visando concretizar projetos individuais e familiares em contextos de mudanças políticas e
econômicas. Logo, os locais de partida e os de destino passaram a ser alvos de estudos daqueles
que buscavam entender fenômenos de grandes proporções como o das migrações (Devoto,
1988; 1994).
Nesse sentido, por meio de análises mais localizadas, as migrações transoceânicas, que
caracterizaram a Itália nas últimas décadas do século XIX, passaram a ser interpretadas dentro
de uma “cultura da mobilidade” muito presente no território da península itálica desde o Antigo
Regime, propiciando, desse modo, o questionamento do modelo estrutural de atração e
expulsão, o push-pull.11As explicações que conferiam força apenas aos fatores econômicos de
expulsão da população camponesa frente ao avanço do capitalismo no campo passaram,
portanto, a sofrer críticas à medida que outros fatores, esses mais ligados às lógicas e estratégias
de reprodução das famílias, começaram a ganhar destaque. Olhar para as características das
unidades familiares no momento das migrações foi fundamental para entender que as
mobilidades, aquelas que antecederam a grande emigração, faziam parte de estratégias e
escolhas fundamentais para a reprodução de um modelo de vida camponesa. Muitas vezes,
emigrar temporariamente se apresentava como a única possibilidade para exercer um
determinado tipo de trabalho.
Assim, os camponeses passaram a ser percebidos como sujeitos ativos em relação ao
fenômeno migratório de curta e longa distâncias, agindo no sentido de fazer valer seus objetivos
e estabelecendo “precisas estratégias migratórias” dentro de uma ideia de autonomia e

conceito de cadeia migratória e suas diferentes abordagens: Devoto (1988); Baily (1988); Gandolfo (1988);
Ramella (1991; 1995); Corti (1990).
11
Sobre a utilização do conceito de cadeias e a mudança de perspectiva que suplantou os modelos explicativos do
push/pull nos estudos migratórios para as Américas do Norte e do Sul, ver: Devoto (1988); Baily (1988); Ramella
(1995; 2001); Sturino (1988); Marquiegui (2016).

266
reprodução de características culturais próprias (Ramella, 2003). Assentadas em redes
relacionais, os sujeitos e famílias que tencionavam emigrar agiam no sentido de garantir uma
transferência segura ao buscar o máximo de informações sobre as possibilidades que poderiam
encontrar nos locais de destino. Como ressalta Franco Ramella ao estudar as transferências de
italianos para a América do Norte no início do século XX, as relações interpessoais,
solidificadas em vínculos parentais e rede de sociabilidades, uniram pessoas de uma mesma
comunidade, levando-os a tomar a decisão de partir e se instalar num mesmo lugar no país de
recepção. Porém, de acordo com o mesmo autor, o papel das redes, cumplicidades, obrigações
existentes entre as pessoas não fez com que as notícias sobre as possibilidades no além-mar se
difundissem como “epidemia” e levassem todos a dispor das mesmas vantagens ao partir. A
difusão das informações funcionava de forma desigual, respeitando os vínculos, proximidades,
regras e obrigações esperadas entre aqueles que se conheciam (Ramella, 1995).
Na busca pela compreensão das dinâmicas migratórias, a utilização de novas fontes e
técnicas permitiu aprofundar o entendimento do funcionamento das cadeias e redes, tentando
apreender suas racionalidades de funcionamento. Listas de desembarque, registros paroquiais
e cartoriais e a documentação das associações de mútuo socorro começaram a ser utilizados em
análises quantitativas e qualitativas que buscavam apreender os mecanismos de inserção social
nos espaços de acomodação no sul da América.12 Nesse sentido, o conceito de cadeia foi
considerado uma das mais frutíferas técnicas para lançar luz sobre a dinâmica dos movimentos
migratórios, sendo seguido pela compreensão de outros mecanismos, como o das redes
interpessoais. Ambas as ideias possibilitaram a ligação entre os lugares de origem com os de
destino, conectando os dois lados do Atlântico, aspecto esse muito importante para perceber a
participação individual e coletiva nos deslocamentos, as expectativas familiares e comunitárias
e os aspectos sociais e culturais transplantados da pátria mãe para os novos locais de instalação.
Além disso, também foram indispensáveis para pensar, especialmente no caso da imigração
italiana para o Novo Mundo, as formas de inserção e construção do patrimônio material e
imaterial na sociedade de adoção (Sturino, 1988; Corti, 1990).
As cadeias migratórias ocorriam pela ativação de relações sociais primárias que
garantiam a transferência de pessoas de um mesmo local de origem para outro de destino,
centrando-se na conexão entre duas comunidades. Porém as redes e os vínculos que
alimentavam os fluxos migratórios necessariamente não ficavam restritos apenas aos limites

12
Sobre a utilização de novas fontes nos estudos que analisavam mobilidade espacial, redes e inserção social dos
imigrantes europeus na Argentina nas últimas décadas do século XIX e início do XX, ver: Berg e Otero (1995);
Marquiegui (2016); Da Orden (1995).

267
territoriais de uma determinada aldeia; eles podiam ser amplos, envolvendo comunidades
limítrofes ou mais distantes. As tramas de contato por meio das quais os deslocamentos eram
organizados podiam transcender os espaços geográficos, uma vez que os laços parentais e de
amizade entre as pessoas funcionavam como os principais constituidores dos canais de
conexões entre diferentes locais (Vendrame, 2016a).
Nesse sentido, a coesão entre as famílias extensas foi um aspecto facilitador da emigração,
funcionando graças à difusão das informações através dos canais interpessoais. A existência
efetiva de um espaço social construído por uma rede, que conectava as comunas, permitiu a
diversificação da cadeia migratória, conforme observou Franc Sturino (1988) ao analisar os
deslocamentos na zona de Rende, na Itália.
A preocupação com a questão da escala reduzida nos estudos migratórios significou uma
importante renovação, o que, somando-se aos conceitos de cadeia e de redes, possibilitou
entender serem múltiplas as motivações dos deslocamentos. Já há algumas décadas, essa tem
sido a metodologia adotada por pesquisadores que estudam os deslocamentos. No entanto,
apesar disso, acredita-se que verticalizar ainda mais a análise, buscando acompanhar as
escolhas, expectativas e estratégias individuais ou de grupos desde a pátria de origem até os
locais de instalação, se apresenta como uma opção metodológica que pode trazer novos
problemas para pensar as migrações, as conexões entre os dois lados do Atlântico, as percepções
dos atores sociais e os diferentes mecanismos acionados na constituição das novas vidas no
além-mar. Um exemplo de estudo nesse sentido, que busca conectar o mundo de partida com o
de chegada dos imigrantes por meio do acompanhamento de trajetórias indivíduos e grupos,
problematizando os projetos, expectativas, ações, sucessos e fracassos, pode ser analisado no
livro O poder na Aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre camponeses
italianos (Brasil-Itália) (Vendrame, 2016a). Nesse sentido, apesar da utilização dos conceitos
de redes e cadeias migratórias não ser uma novidade em alguns trabalhos que pensam as
dinâmicas de deslocamento dos imigrantes europeus para a América e a inserção social,
defende-se que a questão das conexões, interdependências e até das rupturas entre os lugares
de saída e os de chegada é algo que merece ser aprofundado. Para isso, destaca-se a utilização
da análise de percursos individuais e de grupo como opção metodológica, o que possibilita
novas perguntas e percepções em relação às diferentes fases do fenômeno migratório e vida
social, cultural e econômica das comunidades fundadas pelos camponeses europeus no
território americano.
A análise das cadeias como um movimento entre um lugar de origem e outro de destino,
segundo alguns autores, deve considerar as múltiplas dinâmicas e locais envolvidos nesse

268
processo amplo e complexo (Zucchi apud Devoto, 1988:106). Enquanto uma estratégia de
mobilidade, que se soma a outras identificadas nas pesquisas sobre os deslocamentos
transatlânticos, o estudo das cadeias migratórias só foi possível, segundo Fernando Devoto
(1988:109), graças à inclusão de novas fontes, como os registros dos sócios das sociedades de
mútuo socorro.
Pensando as implicações que comportam o uso da noção de cadeias e redes para a
compreensão das correntes migratórias para o território argentino, destacam-se os trabalhos de
Samuel Baily e de Romolo Gandolfo (Devoto, 1988). Poor meio de análises de grupos
específicos, o primeiro realizou um estudo articulado do funcionamento das redes sociais
informais na conexão entre a sociedade de origem e a receptora. Foram identificados diferentes
tipos de cadeias: essas podiam passar pela constituição de mecanismos de assistência
interpessoal e espontânea de comunicação e auxílio ou, ainda, pela ajuda de intermediários
externos às redes migratórias. Para o estudo das redes sociais e estratégias de deslocamento,
além das listas de passageiros, de distribuição dos lotes de terras, registros de naturalização,
fontes eclesiásticas e outras, os documentos pessoais – como diários e cartas trocadas entre os
sujeitos que se encontravam nos dois lados do Atlântico –, se apresentam como fontes
privilegiadas.13
As pesquisas de Fernando Devoto (1988; 1994), Samuel Baily (1988) e Romolo Gandolfo
(1988) auxiliaram no entendimento e refinamento da concepção de cadeia migratória para o
caso da Argentina. Todos eles compreenderam os diferentes tipos de cadeias migratórias e de
ligação entre os locais de origem e de chegada, percebendo que os imigrantes queriam tirar
vantagens no campo material tentando formar uma “elite” na sociedade receptora. As famílias
que imigraram por meio das cadeias mantinham os apoios, esses iniciados ainda na pátria de
origem, bem como buscavam reforçar os vínculos de identificação e coesão interna de grupo,
constituindo, por meio dessas dinâmicas, certas hierarquias sociais (Gandolfo, 1988).
Como visto, com a revisão da explicação do push-pull, que durante muito tempo dominou
os estudos migratórios, passou-se para abordagens que valorizavam os contatos interpessoais e
recursos relacionais, servindo para obter informações seguras junto àqueles que já se
encontravam no além-mar e garantir uma transferência segura, além de vantagens como terra e
trabalho nos locais de instalação. Se o uso de novos conceitos e métodos provocou a renovação

13
Sobre a utilização das cartas para a compreensão da imigração italiana para a América nas últimas décadas do
século XIX e início do XX, ver: Franzina (1994); Baily (1988); Ramella, (1988); Gibelli (1989); Ciafardo (1991);
Croci (2010); Vendrame (2016; 2017a).

269
dos estudos sobre os movimentos migratórios, tanto para os Estados Unidos como para a
América do Sul,14 no Brasil, porém, essa discussão tardou para acontecer.
Apenas recentemente, por meio do uso da metodologia ligada à micro-história, percebe-
se o surgimento de pesquisas voltadas para o entendimento das estratégias familiares de
deslocamento e o papel das redes sociais na imigração italiana para o território brasileiro. Seguir
as escolhas das famílias e grupos de emigrantes desde a aldeia de origem, buscando entender
as motivações que os levaram a emigrar, tem-se mostrado uma das perspectivas mais fecundas
(Carvalho, 2009; Pereira, 2008; Vendrame, 2016a; Scott e Bassanezi, 2020). O emprego do
conceito de cadeia e rede como instrumento de análise útil para o desenvolvimento das
pesquisas no campo da imigração italiana, seguindo tardiamente o que já há muitas décadas
ocorreu na Argentina, começou a dar os primeiros passos no Brasil pelo uso intensivo de fontes
documentais de origens diversas, como cartas, diários, memórias, listas de distribuição dos lotes
de terra e registros paroquiais.

Micro-história e história da imigração

Nesta parte do artigo, discutirei mais especificamente de que modo a metodologia da micro-
história pode continuar contribuindo para o avanço dos estudos ligados à imigração europeia
para o Brasil do final do século XIX e início do XX. Em 2014, foi realizado o primeiro
Seminário Internacional de Micro-história, estando o mesmo já na sua quarta edição. Das três
edições já realizadas, todas contaram com a participação de Giovanni Levi. Além disso, como
produto dos eventos, foi lançado um e-book (Vendrame et. al., 2015) e um livro (Vendrame,
Karsburg e Moreira, 2016) com artigos de pesquisadores que participaram de cada seminário e
outros convidados para compor as obras. Em todos os materiais, conseguimos publicar textos
de Levi. Assim, partirei das ideias do referido autor presentes em dois dos artigos publicados:
o primeiro, intitulado “Micro-história e história da imigração” (Vendrame, 2018b), e o segundo,
“30 anos depois: repensando a micro-história” (Levi, 2016).15 Também destacarei as

14
A utilização dos conceitos de cadeias e redes migratórias nos estudos voltados para a imigração europeia na
Argentina foram discutidas nos capítulos que constituem a coletânea intitulada Inmigracón y redes sociales en la
Argentina moderna (Bjerg e Otero, 1995).
15
Tanto o mencionado artigo quanto o intitulado “História total versus global history: a historiografia antes e
depois da queda do Muro de Berlim”, ambos de autoria de Giovanni Levi, fazem parte do livro Ensaios de micro-
historia, trajetória e imigração (Vendrame, Karsburg e Moreira, 2016). Nos dois artigos, Levi ressalta que a
redução de escala é um dos pontos que caracteriza a microstoria, devendo extrair dos problemas sociais analisados
perguntas gerais de pesquisa. Entende que a história é uma “ciência das perguntas gerais e das respostas locais por
meio de uma observação intensa de um problema, um lugar, um acontecimento, uma instituição”, devendo ela
estabelecer diálogo com antropologia, economia, psicologia. Por tudo isso, defende as aproximações entre o
projeto da microstoria e o da global history, em que a preocupação com os problemas de pesquisas deve permitir

270
perspectivas metodológicas e contribuições presentes no livro O poder na aldeia: redes sociais,
honra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália) (Vendrame,
2016a).
Pensando na questão dos deslocamentos, tomando as sugestões do referido autor,
entende-se ser imprescindível o estudo dos locais de partida dos camponeses europeus no
período da “grande emigração” (1875-1914). Mais do que isso, surge também como importante
a necessidade de estudar o mundo relacional dos dois lugares – o de origem e o de chegada –,
buscando perceber em que momento do ciclo de vida das famílias ocorria a emigração, quem,
como e em quais condições os sujeitos se utilizavam da estratégia da mobilidade para garantir
a reprodução e sobrevivência do grupo. A escolha por seguir a trajetória de um indivíduo ou
grupo surge, portanto, como opção que permite “olhar por dentro” os movimentos migratórios,
buscando perceber as características específicas das famílias no momento em que tomam a
decisão de emigrar, enquanto um projeto familiar, parental e comunitário. Também possibilita
acompanhar as articulações, estratégias e dinâmicas sociais que orientavam os deslocamentos
desde a aldeia de origem até os lugares de instalação. Mais do que apontar para lógicas e práticas
sociais presentes no campo, a análise das diferentes trajetórias e escolhas específicas não deve
ter como objetivo apenas a busca pela identificação de comportamentos frequentes ou
representativos. Destaca-se que o importante é conseguir propor, por meio das diferentes
experiências e percepções, questionamentos para repensar contextos mais amplos, como aquele
do impacto das mudanças estruturais econômicas, agrárias, sociais, demográficas e políticas
vividas na Itália das últimas décadas do oitocentos. Mesmo sendo simples camponeses,
acompanhar a vida de “sujeitos anônimos” que irão tomar o caminho da emigração pode ser
uma boa escolha para perceber a totalidade das dinâmicas e tensões que atravessam um
determinado contexto histórico.16 Tomar a pluralidade das experiências como caminho para
analisar os limites dos possíveis, percebendo o papel ativo dos sujeitos nas projetos, escolhas
bem-sucedidas e nos fracassos é algo necessário para pensar a complexidade dos fenômenos e
contextos migratórios.17
Como destacado anteriormente, o método da microanálise social permitiu perceber a
agência dos camponeses que, por meio das redes relacionais, buscaram garantir o sucesso das
próprias escolhas. Também estabeleceram estratégias migratórias precisas que garantissem

estabelecer comparações que não se restrinjam ao local. Levi, Giovanni. História total versus global history: a
historiografia antes e depois da queda do Muro de Berlin (Vendrame, 2016:82).
16
Ver Vendrame (2017b).
17
Vendrame (2016).

271
autonomia, complementação de projetos familiares, liberdade e a reprodução de modos de viver
no além-mar. Independentemente de partirem sozinhos, acompanhados da família ou na
companhia de um agregado de conhecidos, a existência de redes interpessoais, constituídas por
“laços de sangue” e simbólicos, propiciou a formação de uma ponte entre o local de partida e o
de destino, garantindo, desse modo, a constituição de novas comunidades no além-mar que
guardavam características daquelas de origem. Os vínculos existentes entre as famílias e
indivíduos, solidificados em alianças parentais e de sociabilidades, foram fundamentais na
tomada de decisão sobre a partida e lugares de transferência. As proximidades físicas ou
simbólicas foram acionadas como recursos relacionais válidos para garantir vantagens diversas,
reconhecer as obrigações e compromissos para com aqueles que faziam parte do grupo de
interação. Nesse sentido, a circulação de informações que chegavam do além-mar por
intermédio de cartas emitidas por pessoas conhecidas que já haviam partido não se difundiam
de maneira uniforme entre as pessoas de uma determinada aldeia. A difusão das notícias e
auxílios era, portanto, regulada pelas proximidades relacionais, valores, normas e uma agenda
de compromissos morais que era esperado entre aquelas pessoas que se conheciam.18
Retornando à questão do estudo das diferentes motivações que provocaram os
deslocamentos transatlânticos na aldeia de origem, ele é apontado como fundamental para
compreender as dinâmicas e racionalidades internas de fenômenos amplos como o das
migrações. Especialmente porque faz pensar numa questão muito importante dentro do
universo familiar camponês, que é o problema do equilíbrio.19 Geralmente, aborda-se aquilo
que “ocorreu sem pensar naquilo que não ocorreu”, analisando-se as escolhas e o contexto dos
imigrantes nas terras brasileiras e a organização das novas comunidades sem buscar entender o
que aconteceu com aqueles que não partiram, ou seja, os que permaneceram na pátria de origem.
É preciso também pensar que a partida de alguns somente é possível porque há todo um
investimento material da família. Nesse sentido, a ideia da imigração como um projeto familiar,
precisa também levar em conta aqueles que não emigraram, em quais condições permanecem
e quais os impactos afetivos, relacionais e matérias. É importante também pensar que o desejo
de retorno era algo que acompanhava aqueles que tomavam o caminho da América do Sul para
se fixar em diferentes realidades. Logo, isso poderia ocorrer frente o fracasso de algumas
iniciativas, insatisfações, mudanças de planos ou até mesmo frente à obtenção de um pecúlio
necessário para conseguir melhorar a vida no lugar de origem. A ruptura de projetos familiares

18
Sobre a utilização das cartas que circularam entre os dois lados do Atlântico no período da grande “emigração
italiana” para o Brasil, ver: Franzina (1994); Vendrame (2017a; 2018a).
19
Levi (2015).

272
ou individuais pensados antes das transferências, bem como o surgimento de conflitos ou desejo
de romper os laços com aqueles que tinham permanecido na terra de origem é algo que marca
a história das migrações europeias para a América.20
Reconstruir o mundo relacional das duas pontas, comunidade de origem e de destino,
procurando unir as partes de um mesmo processo e buscando entender as conexões existentes,
explicará muito mais sobre a emigração, as motivações, as expectativas e os atores desse
fenômeno. Tanto os deslocamentos de curta distância como os de longa distância – aqui, no
caso, os transatlânticos – não podem ser entendidos sem levar em conta a questão da estrutura
familiar, algo já mencionado. Através do estudo das características internas dos grupos
familiares, é possível entender as escolhas e estratégias de mobilidade espacial, pois são campos
que estão intimamente relacionados.
A imigração acontecia quando da presença de um equilíbrio entre a demanda de consumo
e a quantidade de trabalhadores, já que a família poderia investir na viagem de alguém sem
prejudicar a organização e sobrevivência do grupo. Essa questão permite entender as escolhas
no arranjo dos deslocamentos em etapas, até a união de todo um agregado familiar em terras
distantes. De acordo com Giovanni Levi,21 as famílias camponesas apoiavam as migrações
individuais quando a relação entre consumo e trabalho era favorável, pois, nesse momento,
podiam suportar o aumento de consumidores sem chegar a um ponto crítico, ou seja, sem que
representassem graves desequilíbrios entre força de trabalho, demandas alimentares e outras
despesas ligadas à reprodução do grupo.
Com a utilização da metodologia da micro-história nos estudos migratórios, começou-se
a dar importância ao mundo de partida dos emigrantes e à estrutura familiar das unidades
camponesas de produção. Reforçando o que já foi destacado, a redução da escala de observação
passou a evidenciar racionalidades e estratégias familiares, propiciando, assim, lançar
questionamentos sobre as motivações, diferenças internas e complexidades de fenômenos
amplos como o das migrações. Entende-se que análises localizadas de um lugar, somadas
àquelas que acompanham o percurso de um indivíduo ou grupo de um lado para o outro do
Atlântico, buscando entender por uma perspectiva conectada esses lugares de origem e os de

20
A pesquisa em fontes criminais, como os processos-crime de bigamia, tem apontado para a ruptura dos
compromissos morais e conflitos com quem havia ficado na terra de origem. Mais do que se pensa, mesmo
separados por um oceano, a busca por informações e o surgimento de tensões entre aqueles que se encontravam
afastados foi algo que também se fez presente em diferentes contextos migratórios. Sobre esse asunto, ver Bjerg
(2019).
21
Levi, Giovanni, Op. Cit., 2015:250-251.

273
partida, são muito válidas para trazer novas problemáticas para pensar os mais diferentes
contextos migratórios e de inserção social constituídos pelos imigrantes.
Nesse sentido, a utilização de uma análise micro e localizada não significa dizer que é o
“pequeno” que importam na pesquisa. Pelo contrário, é apenas uma opção metodológica que
leva em conta a utilização do microscópio para fazer uma leitura aproximada e atenta das
situações e experiências. A escala micro é o laboratório de onde surgem os questionamentos
sobre distintos aspectos que não seria possível realizar se por meio de outro ângulo de
observação. Definindo a micro-história como uma metodologia, antes de um assunto, Giovanni
Levi (2016:23) afirma que ela necessariamente não está ligada à construção de um tipo de
história, que é a “dos excluídos, dos pequenos, dos que estão nas margens ou além delas”. Antes
disso, o método se propõe a reconstruir momentos, analisar experiências individuais e situações
com olhar crítico, procurando apreender a complexidade dos contextos nos quais os indivíduos
agem. Longe de “celebrar a singularidade”, a grande questão é a relação entre o particular, o
subjetivo e o geral, especialmente o que pode ser alcançado por meio da conexão entre essas
esferas. Um dos grandes objetivos ao se utilizar a micro-história é o de reconstruir a
complexidade nas análises históricas. N ocaso dos estudos migratórios, isto seria o de pensar as
diferentes motivações que impulsionaram os camponeses a abandonar a pátria de origem para
se fixar na América e recuperar o peso e a cor das escolhas individuais e familiares dentro de
um universo de possibilidades variadas.
Da mesma forma que as situações estudadas não devem ser vistas de forma isolada, não
são as diferentes respostas que devem ser generalizadas, mas, sim, as perguntas que cada
circunstância sugere. Para Giovanni Levi,22 o local não é o ponto de chegada, mas o de partida,
reforçando que o “nosso papel é o de colocar em evidência as diferenças” e o de comparar
situações para encontrar as oposições, dissemelhanças e a heterogeneidade, não eliminando ou
escondendo a realidade divergente, conflitante e complexa. Logo, “a micro-história parte
considerando as incongruências do real e a parcialidade do conhecimento”, procurando, por
meio do método, ampliar o conhecimento sobre os contextos, bem como alertar para as
simplificações e parcialidades dos documentos (Levi, 2016:29). Por tudo o que foi exposto,
acredito que a metodologia aqui descrita tem muito a oferecer para o avanço dos estudos ligados
ao tema da imigração transatlântica e da pluralidade das dinâmicas migratórias.
Outro ponto importante, para além da questão da complexidade, é o “problema do
equilíbrio”, conforme foi ressaltado. Nesse sentido, é necessário analisar a questão do equilíbrio

22
Levi, Giovanni (2015:250-251).

274
na história da imigração, olhando para o deslocamento como uma estratégia familiar para
garantir a reprodução do grupo. Entender em que momento do ciclo de vida familiar ocorrem
as migrações, quem parte e quem fica, o que torna possível a partida e como se mantêm os
contatos entre os que migram e os que não migram se torna importante para pensar a
problemática do equilíbrio. Tomar o caminho da imigração era uma maneira de não apenas
melhorar as oportunidades individuais, mas garantir auxílio e vantagens para quem não se
deslocava.
As condições e os modos como partiram os indivíduos – se sozinhos, na companhia dos
familiares ou conhecidos – está intensamente ligada à estrutura familiar, à relação entre
consumo e trabalho e à articulação da uma rede relacional ativa antes, durante e depois dos
deslocamentos. Portanto, a questão do equilíbrio deve ser pensada como fator importante ao
analisar as escolhas concernentes à imigração transoceânica, utilizada também para lançar
questionamentos a fim de alargar nosso olhar para aquilo que nem sempre aparece com
evidência na documentação. As fontes documentais indicam para “situações de decisão e
ação”,23 ocupando apenas uma pequena parte do cotidiano, já que não demostram os momentos
de indecisões, incertezas, esperanças e outros sentimentos que atravessam uma vida ou a
experiência de um grupo de indivíduos. Por conta disso, é preciso que o historiador lance
questionamentos sobre os silêncios e aspectos que não aparecem com tanta visibilidade nos
documentos, buscando, assim, os significados mais profundos e entendimentos sobre as
escolhas e comportamentos.
Nesse sentido, conforme destaca Giovanni Levi,24 “os documentos são por definição
mentirosos” e “socialmente determinados”, pois “os ricos produzem mais documentos que os
pobres, os homens mais que as mulheres, os brancos mais que os indígenas”. Pelo fato de os
documentos apresentarem fragmentos distorcidos do passado, dados parciais e mentirosos, uma
das tarefas do historiador seria a de buscar garantir certo equilíbrio nas análises históricas,
procurando trazer aqueles sujeitos e situações que não surgem com tanta frequência ou que
aparecem como marginais nas fontes. Para além de apenas estudar os que deixaram mais
documentos, nosso papel enquanto historiadores é o de criar equilíbrio, colocando todos como
participantes [dentro] da história; por conta disso, devemos ser inimigos dos documentos,
apesar de serem esses necessários para a realização do nosso trabalho.

23
Levi (2015:249).
24
Levi (2015:249).

275
Levando em conta toda essa discussão e pensando particularmente a história da imigração
europeia para o Brasil, é importante que além de olhar para as mulheres, que chegavam em
condições diferentes, com uma profissão, sozinhas ou acompanhadas da família, faz-se
necessário também olhar aquelas experiências não bem-sucedidas, que acabaram sendo
invisibilizadas por não conseguirem se adaptar à nova vida, por terem fracassado em suas
escolhas ou adquirido alguma doença durante o percurso migratório. Nos locais de chegada, os
imigrantes doentes acabavam se tornando um peso para as famílias, tornando-se, portanto,
também invisíveis, bem como os classificados como loucos e loucas que eram excluídos
definitivamente ou temporariamente da vivência familiar e comunitária. Tanto para pensar os
diferentes tipos de mobilidades femininas, os fracassos, as tensões e as rupturas de projetos
familiares, os processos-crime aparecem como fontes que possibilitam analisar tais
problemáticas, como também outros temas pouco ou nada trabalhados em relação aos
imigrantes e contextos migratórios. O uso das fontes criminais somadas a outras tipologias de
documentos, como material que permite pesar experiências específicas diversas – como as redes
relacionais quando da ocorrência de impasses e controle social – ainda pode ser desenvolvido
em novas pesquisas.25

***

Um dos objetivos do presente artigo foi o de mostrar de que maneira a perspectiva micro, que
se opunha às visões estruturalistas, ajudou a repensar o desenvolvimento dos estudos ligados
aos movimentos migratórios italianos. A análise de experiências particulares – individuais e
coletivas –, a utilização dos conceitos de cadeia e redes para o entendimento dos deslocamentos
para a América ofereceram novos entendimentos que colocaram em outros parâmetros os
modelos explicativos que entendiam as migrações como consequências de movimentos
macroestruturais. Com a utilização do método da redução da escala de observação, foi possível
perceber os diferentes aspectos (familiares, sociais, demográficos, econômicos e políticos) que
motivaram as escolhas pelo caminho da emigração, num contexto de avanço do capitalismo no
campo, modificação das relações de trabalho, desestruturação dos modos de vida tradicionais e
organização local das instituições. Isso tudo transformou os camponeses em agentes ativos, que
assumiram um papel central nos deslocamentos transatlânticos.
Como apontei no presente trabalho, já há algum tempo que as sugestões teóricas e
metodológicas da micro-história vêm influenciando o desenvolvimento das pesquisas no campo

25
Vendrame, Karsburg e Moreira, (2016).

276
das migrações. Apesar disso, muito ainda poderá contribuir para a contínua renovação da
história das mobilidades. Entre os assuntos que ainda merecem atenção, destaca-se a
necessidade de pensar as conexões entre o mundo de saída dos camponeses e aquele de chegada.
Entender os contextos familiares e locais, bem como a maneira como estavam sentindo e
reagindo às mudanças estruturais mais amplas, é algo fundamental para compreender os mais
diferentes aspectos ligados à vida, às estratégias e à organização das comunidades imigrantes
no Brasil (Vendrame, 2016a). Considera-se importante a inclusão desses dois pontos nas
análises das racionalidades, comportamentos e dinâmicas sociais das famílias camponesas.
Especialmente, porque permitem ampliar o conhecimento sobre as motivações, perspectivas,
anseios e trajetórias dos sujeitos que participaram de alguma forma dos deslocamentos, seja
partindo para a América ou ficando na aldeia de origem para que outros pudessem partir. Os
que ficaram, pouco ou nada aparecem na história da e/imigração.
Ao cruzarmos as opiniões singulares, discordantes ou não, e as escolhas diferentes sobre
um mesmo processo, é possível apreender de forma complexa fenômenos e contextos. Seguir
trajetórias individuais ou de grupos, desde a aldeia de origem até o lugar de fixação, através de
uma perspectiva micro e conectada é uma maneira que permite problematizar as diferenças
internas do grupo imigrante, suas ideologias conflitantes, tensões, aproximações e alianças. É
necessário entender a totalidade dos contextos que afetaram os camponeses antes de partirem
para a América para entender as escolhas e posicionamentos que irão ter nas comunidades
fundadas, por exemplo, no sul do Brasil. Nesses espaços, o discurso da pobreza e da força dos
imigrantes, bem como da coesão e harmonia vivida nos núcleos coloniais, escondem uma
realidade intricada de interesses e expectativas, bem como de tensões, divisões e constante
conflitos.26 São esses cenários perpassados por opiniões discordantes, por oposições e
comportamentos conflitantes, mas também marcados por apoios, uniões e solidariedades, que
se busca apreender quando o assunto é estudar a imigração e as comunidades fundadas pelos
camponeses italianos no Brasil meridional.

Referências

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26
Partindo de experiências específicas de imigrantes italianos como fio condutor na pesquisa, no livro O poder na
aldeia, buscou-se reconstruir a realidade complexa, permeada por comportamentos e ideias diferentes vividas nos
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281
Autores

Deivy Ferreira Carneiro

Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre (2004) e


doutor (2008) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutor pela Université Paris 1
– Panthéon/Sorbonne (2013-2014). Pesquisador visitante no LaDéHis da École de Hautes
Études em Sciences Sociales (2019). É autor de: História, violência e criminalidade: reflexões
temáticas e narrativas regionais (Uberlândia, 2015); Uma justiça que seduz? Ofensas verbais
e conflitos comunitários em Minas Gerais (1854-1941) (São Paulo, 2019); ¿Una Justicia que
seduce? Processos penales, delitos verbales, conflitos comunitários em Brasil (1854-1941)
(Santiago, 2021), além de vários artigos e capítulos de livros. Concentra suas pesquisas em
história da violência, história da criminalidade e microstoria italiana.

Francesca Trivellato

Professora do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. É também historiadora da Europa


no início do período moderno. Seus interesses estão centrados na organização e na cultura do
mercado no mundo pré-industrial. Também construiu uma plataforma digital para análise e
visualização da mais longa e homogênea série de contratos de negócio da Europa pré-industrial,
contendo cerca de 5.000 documentos. É autora, entre outros de: The promise and peril of credit:
what a forgotten legend about jews and finance tells us about the making of European
commercial society (Princeton, 2019); The familiarity of strangers: the sephardic diaspora,
Livorno, and cross-cultural trade in the early modern period (New Haven, 2009); Corail contre
diamants: de la Méditerranée à l'océan Indien au XVIIIe siècle (Paris, 2016).

Maíra Inês Vendrame

Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Curso de História da Universidade


do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Possui graduação em história licenciatura plena pelo Centro
Universitário Franciscano (2004). Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2007). Doutora em história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), com estágio de doutorado na Università degli Studi di Genova (2013). Realizou estágio
pós-doutoral como bolsista PNPD/Capes no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Maria (2013-2015). Vencedora da quarta edição do prêmio Vanni

282
Blengino (Itália, 2015 – premiação internacional AREIA) com o texto: “Ofensas, reparações e
controle comunitário: a justiça dos imigrantes italianos nos núcleos coloniais do sul do Brasil”.
Em 2015, recebeu o prêmio ANPUH-RS de teses, que resultou na publicação pela Coleção
Anpuhrs do livro intitulado O poder na aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça
entre camponeses italianos (Brasil-Itália, 2016). Esse livro foi recentemente traduzido para o
inglês: Power in the village: social networks, honor and justice among immigrant families from
Italy to Brazil (Londres, 2020). Desenvolve pesquisa nos seguintes temas: redes sociais e
estratégias migratórias, trajetória, família, honra, práticas de justiça, criminalidade, mulheres,
universo camponês, organização comunitária, religiosidade e cultura popular.

Maurizio Gribaudi

Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Foi membro da comissão
diretiva da revista Quaderni Storici (2008-2011) e também diretor do Laboratoire de
Démographie et Histoire Sociale EHESS (www.ehess.fr/LaDéHiS/). Seu principal projeto de
pesquisa está ligado à análise das redes sociais e práticas culturais do mundo operário,
destacando-se a obra Mondo operaio e mito operaio: Spazi e percorsi sociali a Torino nel primo
Novecento, Torino, 1987. Possui artigos traduzidos para vários idiomas, tendo sido traduzido
para o português “Escala, pertinência, configuração”, publicado no livro Jogos de escalas, de
Jacques Revel (1998).

Sabina Loriga

Professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Membro do Group
d’Études sur les Historiographies Modernes (GEHM). Concentra suas pesquisas nos seguintes
temas: história e biografia; usos públicos do passado e a construção dos tempos históricos. Entre
seus trabalhos, destacam-se: O pequeno X: da biografia à história (São Paulo, 2013);
L’expérience historiographique (co-dir. com Antoine Lilti, Jean-Frédéric Schaub e Silvia
Sebastiani). Enquête (Paris, 2016); Soldats: un laboratoire disciplinaire: l’armée piémontaise
au XVIIIe siècle (Paris, 1991).

Sandra Cavallo

Professora, desde 1996, da Royal Holloway – University of London e diretora do Centre for the
Study of the Body and Material Culture. Suas pesquisas se concentram na história cultural e

283
social da Itália no início do período moderno, analisando, em particular, as questões de gênero
e família; medicina e o corpo, e a cultura material doméstica. Entre seus livros, destacam-se:
Charity and power in early modern Italy. benefactors and their motives in Turin 1541-1789
(Cambridge, 1995); Artisans of the body in early modern Italy: identities, families,
masculinities (Manchester, 2007); Healthy living in late renaissance Italy (Oxford, 2014. Foi
também maître des conference na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) em
2001.

Simona Cerutti

Professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Membro da comissão
diretiva da revista Quaderni Storici (2008-2011) e também diretora do Laboratoire de
Démographie et Histoire Sociale EHESS (www.ehess.fr/LaDéHiS/). Seu principal projeto de
pesquisa está ligado à análise da história das hierarquias e das classificações sociais em cidades
europeias do Antigo Regime, bem como à análise dos procedimentos nos tribunais e
reinvindicações de justiça nas sociedades do período moderno. Autora de livros e artigos,
destacando-se as obras: Etrangers. Etude d’une condition d’incertitude dans une société
d’Ancien Régime, Bayard (Paris 2012); Giustizia sommaria. Pratiche e ideali di giustizia in
una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo) (Milão, 2003), La ville et les métiers.
naissance d'un langage corporatif (Turin, XVIIe-XVIIIe siècle) (Paris 1990).

284

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