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13/05/2019 Pequenos rebeldes | Mente e Cérebro | Editora Segmento

Reportagem

Pequenos rebeldes
É comum que crianças pequenas façam birra; algumas, no entanto,
são propensas a crises mais violentas. Em certos casos, o
acompanhamento profissional pode ajudar a evitar a agressividade
crônica
dezembro de 2008
Stefanie Reinberger
Isabela tem acessos de raiva no supermercado sempre que a mãe
se recusa a comprar algo que ela quer. A pequena Beatriz berra
ferozmente quando a mãe interrompe sua brincadeira para que
tome banho ou mude de roupa. Vinícius, um adorável ruivo de
pouco mais de 17 meses, morde móveis e brinquedos assim que
alguém lhe diz “não”. Nesses momentos, parece inútil conversar
com os pequenos de forma racional. Ameaças e punições
também não detêm os gritos, a agitação e as agressões. Mas as
cenas terminam de forma tão rápida como começaram e a
própria criança, em geral, se aconchega junto aos adultos em
busca de carinho. Em situações como essas é comum que os
pais se sintam impotentes para controlar as crises.

Os acessos de mau humor são comuns em crianças que têm


entre 15 e 18 meses. Na maioria dos casos, refletem apenas um
estágio de desenvolvimento em que independência e vontade
própria se chocam com imaturidade emocional e verbal.
“Acessos de fúria fazem parte do desenvolvimento da criança”,
diz o psiquiatra e terapeuta de família Manfred Cierpka, da
Universidade de Heidelberg, Alemanha.

Os pais devem se preocupar apenas quando esses ataques de


raiva ocorrem mais de cinco vezes por dia –, sendo
extremamente difícil acalmá-los. Durante esses acessos, os pequenos rebeldes podem destruir objetos ou se
mostrar agressivos com adultos e outras crianças e, até se machucar ocasionalmente, arranhando-se até a pele
sangrar ou batendo a cabeça contra a parede.

Ataques de fúria freqüentes, assim como manifestações autodestrutivas, merecem atenção profissional. Além
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de emocionalmente extenuantes para pais e filhos, podem ser indício de problemas psiquiátricos e de
comportamento, como depressão e propensão para violência. A conduta pode ter origem em fatores genéticos,
socioeconômicos ou ser conseqüência de negligência durante a gravidez, pelo fato de a mãe ter fumado, por
exemplo, ou ainda pela forma como a criança é tratada pelas pessoas que cuidam dela. Os estudos mostram que
adultos mais autoritários e menos flexíveis em suas atitudes tendem a estimular a agressividade nos filhos.
Contrariamente à idéia convencional de que violência se
aprende durante a adolescência, pesquisas recentes
mostram que comportamento agressivo, mesmo antes
dos 2 anos, pode sinalizar problemas persistentes. Por
isso, cada vez mais especialistas enfatizam a
importância de evitar expor a criança a experiências
dolorosas, principalmente durante os primeiros anos de
vida. Infligir violência física aos pequenos pode causar a
eles graves problemas psicológicos para toda a vida.

DESEJO DE INDEPENDÊNCIA
O fato é que – embora frustrantes e desagradáveis –, as
explosões de raiva de crianças pequenas geralmente são controláveis. Elas expressam emoções que emergem
de um cérebro imaturo. Os pais de Sara, de 2 anos e meio, estavam preocupados porque a filha gritava na
creche quando a professora intervinha em brigas por brinquedos. “Em casa não conseguimos acalmá-la”, diz a
mãe.

Quando os pais de Sara foram fazer uma consulta com Cierpka, no Instituto de Pesquisa Cooperativa
Psicossomática e Terapia de Família, o psiquiatra viu poucos motivos para grandes preocupações. Depois de se
entreter sem incidentes por mais de uma hora, a menina começou a brincar com a bolsa da mãe, que a arrancou
das mãos de Sara. A garota pareceu perplexa e tentou pegar novamente o objeto. A mãe se apoderou da bolsa
uma segunda vez dizendo: “O que é isto, Sara? Precisa realmente fazer isto, agora?”. Só então a criança
começou a berrar.

Este comportamento é bem característico dessa fase. “Crianças na etapa dos ataques de raiva estão dando um
salto gigantesco de desenvolvimento”, diz Cierpka. Não apenas as aptidões motoras estão aumentando
rapidamente, permitindo que atuem com independência para explorar o ambiente ao redor, mas também, por
volta dos 30 meses, começam a se perceber como indivíduos; como se, subitamente se reconhecessem em um
espelho. “Essa percepção permite que uma criança tenha desejos independentes e entenda que suas ações
provocam respostas de outros”, diz Cierpka.
O impulso de experimentação, combinado com a
consciência das reações de outras pessoas, é uma receita
freqüente para angústia, à medida que as explorações e
desejos de uma criança pequena muitas vezes incitam
“nãos” dos pais e daqueles que cuidam dela. Os adultos
geralmente não deixam, por exemplo, que seus filhos
comam biscoitos antes do jantar, peguem facas ou
brinquem com a carteira de dinheiro da mãe.

Essas proibições provocam decepção e fúria –


sentimentos negativos que são inteiramente novos para a
criança. Sara, por exemplo, sente raiva com o fato de a bolsa ter sido arrebatada e decepção porque não pode
fazer nada a respeito. “Todas essas emoções são extremamente fortes, difíceis de ser assimiladas pelos bebês”,
ressalta Cierpka. Incapazes de expressar seus sentimentos com palavras, as crianças pequenas os descarregam
com gritos irracionais e um frenesi físico, traduzido em ataques de raiva.

O conselho de Cierpka aos pais: reconheça os sentimentos de seu filho. Por exemplo, a mãe de Sara poderia ter
dito calmamente à filha: “Sei que você está com raiva por causa da bolsa, mas ela não é para brincar”. Então,
poderia distrair a filha – digamos, tirando um brinquedo da bolsa. Ou, se o pai quisesse interromper uma
brincadeira para que a família saísse, poderia se oferecer para brincar com ela depois que voltassem para casa.
Tais estratégias permitem que uma criança, como Sara, saiba que os pais estão do lado dela mesmo que ela
esteja com raiva, o que acabará possibilitando reações mais elaboradas à angústia.

AGRESSIVIDADE CRESCENTE
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Os ataques de irritação podem se tornar mais acentuados em crianças voluntariosas, que tendem a agir e pensar
com maior independência que seus pares. Durante uma consulta com Cierpka, Vinícius chorou e berrou sem
provocação, sacudiu a perna de uma mesa e a mordeu – uma atuação bem mais exagerada que a de Sara.
Em alguns casos, mais que um fenômeno passageiro, comportamentos excepcionalmente agressivos durante a
infância podem ser sinal de problemas persistentes. Uma revisão da literatura, publicada em 1995 pela
psicóloga Susan B. Campbell, da Universidade de Pittsburgh, sugere que crianças com problemas de
comportamento aos 3 ou 4 anos têm cerca de 50% de possibilidade de apresentar problemas semelhantes no
início da adolescência.

Nesses casos, agressão física é o principal motivo de preocupação. Para a maioria dos meninos – bem mais
propensos à violência que as meninas –, socos, chutes e mordidas parecem atingir o auge no jardim-de-
infância, e depois declinam entre 6 e 15 anos de idade. Em cerca de 4% dos meninos, esse comportamento
persiste e eles são mais propensos a serem violentos aos 17.

Ataques extremos de raiva podem, em alguns casos, ser um sinal de transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH). Em um estudo de 2007, os psicólogos Manfred Laucht, do Instituto Central de Saúde
Mental de Mannheim, e Gunter Esser, da Universidade de Potsdam, ambos da Alemanha, estudaram os perfis
de desenvolvimento e de comportamento, aos 2 anos, de 26 crianças do curso elementar que apresentavam
transtornos semelhantes aos do TDAH. Eles os compararam aos perfis de 241 meninos e meninas saudáveis do
primeiro grau, e constataram que os indicadores potenciais de TDAH incluíam agitação, irritabilidade e
dificuldade em entender linguagem. Portanto, crianças pequenas que têm ataques de raiva violentos podem ser
mais propensos a esses problemas de comportamento.

Genética e ambiente são fatores importantes para a formação do temperamento de cada pessoa. Em particular,
aspectos genéticos respondem por mais da metade da variação entre as crianças no tocante à freqüência com
que usam agressão física. A psicóloga Ginette Dionne e colegas da Universidade Laval, Québec, avaliaram os
níveis de agressão em 562 gêmeos aos 19 meses. Em 2003, os pesquisadores relataram que 60% dos gêmeos
idênticos estudados tinham esse traço em comum, enquanto apenas 28% dos gêmeos fraternos, que
compartilham metade do genoma, eram semelhantes nos níveis de beligerância.
Atrasos na linguagem também podem intensificar a predisposição genética para comportamento disruptivo e
agressivo. Estudos epidemiológicos mostram que entre 60% e 80% das crianças em idade pré-escolar e escolar,
cuja fala se desenvolveu lentamente, exibem tais comportamentos, em comparação com 20% na população
geral. Dionne- e colegas, que estimaram as aptidões de linguagem dos gêmeos em seu estudo, porém não
encontraram associação forte entre linguagem e agressão por volta de um ano e meio de idade. Em muitos
casos, a agressão surge antes de quaisquer problemas com a linguagem, sugerindo que um atraso na linguagem
não causa, mas aumenta a agressão: as crianças podem ficar frustradas com a incapacidade de se comunicar, ou
usar os punhos quando não conseguem produzir as palavras certas.

INFLUÊNCIA DOS PAIS


O comportamento parental, começando no útero, pode ter um efeito significativo no temperamento de uma
criança. Em um estudo publicado este ano, o psicólogo Richard Tremblay, da Universidade de Montreal,
relatou que o tabagismo pesado (10 ou mais cigarros por dia) por parte da mãe durante a gravidez estava
associado com agressão em 1.745 crianças nascidas em Québec, com idades entre 17 e 42 meses. Cientistas
acreditam que o tabagismo perturba o desenvolvimento cerebral do feto.

Os psicólogos também estão convencidos de que a conduta dos pais influencia a estabilidade emocional dos
filhos. Adultos que deixam uma criança angustiada fazer o que quiser ou que reagem de maneira autoritária
estão procurando encrenca. As reações dos pequenos às regras negligentes ou draconianas costumam ser
agitação, rebeldia e, em alguns casos mais raros, apatia.

Um estudo de 2008 com 1.508 crianças de escola elementar, realizado pela psicóloga clínica Mireille
Joussemet, da Universidade de Montreal, corrobora a ligação entre agressão e comportamento controlador por
parte das figuras parentais. Pais e mães autoritários gostam de exercer poder, dão valor à obediência e não
incentivam o filho a expressar suas próprias opiniões. O estudo encontrou os fatores de risco habituais para
comportamento agressivo (julgado, neste caso, pelos professores): ser do sexo masculino, ter temperamento
reativo e problemas familiares, como pais instáveis, em constante pé de guerra. Mas, além destes fatores
contribuintes, os pesquisadores descobriram que ter uma mãe controladora elevava ainda mais as chances de
comportamentos agressivos (TDA/H) no ensino fundamental.

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Em um estudo feito em 1996 com 69 famílias que criavam primeiros-filhos do sexo masculino, o psicólogo Jay
Belsky, da Universidade de Londres, observou que os pais com maior dificuldade em controlar o
comportamento dos filhos nas idades entre 15 e 21 meses eram os que davam ordens sem qualquer explicação.
Eles não se preocupavam em dizer, por exemplo: “Não mexa nessa faca porque ela pode machucá-lo”. Pais que
promovem diretrizes e democracia numa família têm maior probabilidade de ter filhos bem ajustados,
acreditam os psicólogos.

Os fatores socioeconômicos e familiares também devem ser considerados. No estudo sobre o fumo, de 2008,
por exemplo, os efeitos do tabagismo sobre a agressividade eram maiores se a família tivesse uma baixa renda
ou a mãe apresentasse uma história de comportamento anti-social. E o estudo de Belsky, de 1996, concluiu que
nas famílias consideradas problemáticas era maior o número de pais desajustados. Uma personalidade hostil
pode, afinal de contas, “equipar” mal uma pessoa para lidar com sentimentos de frustração.

Além disto, conflitos conjugais contribuíam negativamente. Em particular, a dificuldade parecia florescer
quando um dos pais expressava emoção negativa e, ao mesmo tempo, minava o papel parental do cônjuge –
como interromper o outro ou dar instruções conflitantes ao filho. Em geral, a qualidade conjugal, contudo, não
se revelou um fator importante nesse estudo.

No caso de Vinícius, Cierpka especula que problemas conjugais podem estar, em parte, na raiz dos seus ataques
de raiva. O pai do menino é uma presença inconstante: sai de casa sem aviso prévio por longos períodos e não
informa à esposa onde está nem o que está fazendo, o que a deixa magoada e ansiosa. Sem perceber o que faz,
a mãe transmite a própria raiva e insegurança ao filho, cujos acessos de raiva podem representar um pedido
desesperado de atenção, de que ele precisa para aliviar sua própria insegurança.
Cierpka também percebe um problema mais superficial: assim que Vinícius se irrita, a mãe o puxa até ela para
consolá-lo. Essa ação tende a reforçar a conexão entre agitação hostil e amor. Cierpka aconselha a mãe a
consolar o filho somente depois que ele tiver começado a se acalmar, recompensando-o por recuperar o
equilíbrio.

PREVENÇÃO POSSÍVEL
Já que agressividade precoce pode ser um indício de violência futura, atividades que abrandam e previnem
ações hostis em tenra idade podem ajudar a restringir o número de jovens que se tornam violentos. Embora
nenhum programa pré-escolar tenha comprovado sua eficácia nesse sentido, estudos experimentais de
prevenção sugerem o que poderia funcionar. Uma intervenção denominada “programa pré-escolar de Perry”,
que se concentrou em impulsionar o desenvolvimento afetivo e cognitivo de crianças de baixa renda, com
idades entre 3 e 4 anos nos Estados Unidos, reduziu significativamente o comportamento criminal nos homens.

Outra abordagem promissora poderia ser a exploração da ligação entre atraso na linguagem e a agressão, tendo
como alvo as crianças que exibem o déficit e trabalhar com elas para superá-lo. Isso pode ser feito por meio de
estimulação verbal intensa e também com acompanhamento psicoterápico para que tenham a chance de lidar
com a própria frustração de forma menos destrutiva. Além disso, é possível ensinar às crianças práticas sociais,
como ser prestativo, consolar os outros, partilhar e encontrar meios alternativos de reconhecer a própria raiva.
Nos casos em que atitude parental autoritária se manifestar, uma psicoterapia dirigida pode ajudar a quebrar o
ciclo de comportamento agressivo-opositivo na criança e a punição infligida pelos pais.

Pesquisas mostraram que pelo menos um gene influencia a agressão nos seres humanos. Homens que sofreram
maus-tratos quando crianças tiveram probabilidade maior de serem condenados por um crime violento antes
dos 27 anos, se possuíssem uma forma mais curta do gene para uma enzima chamada monoaminooxidase A.
No futuro, à medida que os pesquisadores tiverem mais conhecimento genético sobre comportamento
agressivo, esses achados moleculares poderão levar a medicamentos que poderão ser associados com ações
comportamentais para combater tendências violentas em jovens.(Tradução de Vera Paula de Assis)

CONCEITOS-CHAVE
- Ataques de raiva ocasionais são normais nas crianças durante os primeiros três anos de vida, à medida que
independência crescente se choca com imaturidade emocional e verbal.

- Acessos de fúria freqüentes, associados a atitudes autodestrutivas, como bater a cabeça ou arranhar-se,
revelam indícios de comportamentos mais graves, incluindo propensão
para a violência.
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- Fatores genéticos são um dos motivos que desencadeiam agressividade infantil. As outras causas estudadas
são o tabagismo durante a gravidez, atraso na linguagem, condição socioeconômica e certos estilos parentais.
Ações preventivas com programas já na pré-escola podem reduzir o número de jovens que se tornam
cronicamente violentos.

PARA CONHECER MAIS


A linguagem e o pensamento da criança. Jean Piaget. Martins Fontes, 1999.

Behavioural outcome of regulatory problems in infancy. J.-O. Larsson em Acta Pæediatrica, vol. 93, nº 11,
págs. 1421-1423, 2004.

Controlling parenting and physical aggression during elementary school. Mireille Joussemet et al. em
Child Development, vol. 79, no 2, págs. 411-425, de 2008.

Understanding development and prevention of chronic physical aggression: towards experimental


epigenetic studies. Richard E. Tremblay em Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological
Sciences, vol. 363, nº 1503, págs. 2613-2622, 2008.

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