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Paulo: Companhia das letras, 2009
Nabuco Reformista
Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo (1849-1910) nasceu em casa repleta de
política. Seu pai, José Thomaz Nabuco de Araújo, ocupou posições proeminentes no
Segundo Reinado e encaminhou o filho para a carreira. Nabuco cursou direito, a
trilha formativa da elite política imperial, e aguardou na diplomacia (em
Washington e Londres) até estrear no Parlamento, em 1879. Então se engajou no
movimento pela abolição da escravidão que se organizava na sociedade, criando,
com André Rebouças, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão e exibindo seu
carisma em comícios em favor da causa.
Ganhou notoriedade, mas não a reeleição. Então, em 1882, virou
correspondente do Jornal do Comércio em Londres. Manteve o pé na campanha
abolicionista com um “volume de propaganda’’: O Abolicionismo, pronto em 1883.
Escrito de longe, sem as coerções da tradição, o livro começa como panfleto
antiescravista e assim se fecha, conclamando apoiadores, propondo um partido
abolicionista e reformas imediatas. No estilo abrasador e nos capítulos curtos,
reverbera o panfleto da Regência, vitaminado pelos liberais radicais nos anos 1860.
A prosa seca, de poucas notas e citações, se amacia com figuras de linguagem e
remissões à mitologia greco-romana, apreciadas pela tradição imperial, por
metáforas científicas (imagens da sociedade como organismo e da escravidão como
seu sangue), ao gosto da geração 1870, e por símbolos religiosos - a escravidão
como “mancha de Caim”-, à maneira dos movimentos abolicionistas inglês e norte-
americano. Ainda brandia a guerra civil norte-americana e a rebelião escrava do
Haiti como exemplos negativos da postergação em abolir a escravatura. Uma
retórica que fala ao cérebro e ao coração.
O livro avança quatro teses. Uma delas é a da ilegalidade e da ilegitimidade
da escravidão, nem baseada no direito natural, nem na lei - ausente da
Constituição, inexistente um código negreiro.
Outra é da incompatibilidade da escravidão com a modernidade. Nabuco,
como toda a sua geração, trocou a ênfase política da historiografia imperial pelo
foco na dinâmica socioeconômica, inspirado na “política científica” européia. O
esquema evolutivo da História de Roma, de Theodor Mommsem, traçando uma linha
evolutiva no Ocidente, do feudalismo aristocrático ao capitalismo democrático,
permitiu-lhe apresentar a escravidão como instituição “fóssil”, inconciliável com a
civilização moderna.
Raciocínio que a leitura de O Brasil e as Colônias Portuguesas, de Oliveira
Martins particularizou, apondo terceira tese, a de que a metrópole transmitira sua
decadência ao legar ao Brasil trinômio vicioso: organização social baseada no
latifúndio, na monocultura e no comércio de escravos.
Dessa análise histórico-estrutural a formação brasileira sai a tese principal
de O Abolicionismo: a escravidão seria uma herança colonial, que adquiriu caráter
de “sistema social”, estruturadora de todas as instituições, costumes e práticas.
Como empresa econômica principal, entranhou-se na ocupação do território e, em
par com a monocultura, esgotou a terra e a concentrou, gerando feudos auto-
isolados. Tolheu as atividades urbanas, impedindo o desenvolvimento de um
operariado assalariado e de classes médias e condenou os homens livres pobres à
dependência dos grandes proprietários.
A escravidão tornou-se o pilar de todas as profissões e negócios, gerando
uma rede de relações de clientela, que invadiu o estado e viciou toda a sociedade
no seu usufruto.. No sistema político, impediu a formação de um corpo de cidadãos
e de uma opinião pública autônoma, já que direito de voto se assentava na
propriedade de terras e escravos.
A sequela mais duradoura seria cultural. A escravidão estruturou um modo
de vida, imiscuiu-se na composição do povo brasileiro, adentrou a família, a religião
e o trabalho, semeando em tudo os germes da decadência
Nabuco, então, desenha a escravidão como instituição total, entranhada na
formação da sociedade, do estado e da cultura brasileiros, e como fenômeno
relacional, de interdependência entre senhor e escravo, aprisionando os próprios
donos de escravos em sua lógica perversa.
Com tantos tentáculos, “a obra da escravidão” não se extinguiria por lei.
Demandaria uma “refundação”: a geração de uma sociedade nova, com a abolição
completada pela instituição da pequena propriedade e a atração de imigrantes
europeus de classe média - programa inspirado nos norte-americanos.
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Nabuco conclama a opinião pública, os políticos, o imperador, os
abolicionistas e mesmo os proprietários de escravos para uma “conciliação”
nacional, visando efetivar as reformas por vias legais. Não incita os escravos à
rebelião, como faziam ativistas mais radicais, fala em nome deles, arvorando-se um
“mandato da raça negra”.
A crítica contundente deságua em programa moderado, com promessa de
“anistia do passado”, concedendo até a indenização aos proprietários de escravos,
idéia abominada pela maior parte dos abolicionistas e que Nabuco abandonaria ao
voltar ao Brasil, em 1884.
Outra ambivalência está no uso das teorias raciais. Embora aponte o caráter
socialmente construído da desigualdade, às vezes resvala para juízos sobre a
inferioridade de negros e chineses. Nisso o livro pertence ao seu tempo. Mas
destoa dele por sua largueza de vistas, por uma argúcia rara.
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humanizam. Daí o charme do livro, que não enaltece diretamente, mas constrói
figuras a demandar enaltecimento.
Nisso tudo vai uma estilização da política. Nabuco acentuou a sobranceria
dos “estadistas”, ao passo que limou suas rudezas.
Pompa que salta ainda das reflexões sobre a política em geral. Mas a
documentação o impede de vestir o figurino do tempo e buscar leis gerais; funciona
como âncora. A obra brilha justo onde fica ao rés do que narra, dando o sentido
dos eventos para os homens que os viveram.
Um Estadista se estrutura, ao costume da época, em oito “livros”, em torno
de gabinetes parlamentares e momentos decisivos do Segundo Reinado. Começa
pela formação política de Nabuco de Araújo, que se entrelaça com a construção da
ordem política centralizada, pelos Conservadores, debelando a reação liberal da
Praieira. Segue-se a Conciliação, que consolida a ordem interna, equilibra poder
local e nacional e abole o tráfico de escravos, impulsionado o desenvolvimento.
O momento seguinte é de protagonismo de Nabuco pai, encabeçando a Liga
Progressista, que gesta agenda de reformas. Mas elas ficam travadas por novo
evento-chave, a guerra do Paraguai, “o apogeu do Império”, que reforça a unidade
nacional, ao prover inimigo comum, mas também detona grave crise política, à qual
se segue derradeiro ponto alto: o gabinete modernizador de Rio Branco e sua lei do
Ventre Livre. As reformas abrem a caixa de Pandora do Império, dando campo para
a “ideia republicana” e armando o esquadro de declínio do regime.
De fecho, vem o enaltecimento de Nabuco Araújo como advogado e jurista -
quando o filho lava a honra do pai, acusado de receber do estado pelo Código Civil,
que jamais entregou - e o balanço do Império.
O livro atribui então movimento oscilatório à história do Segundo Reinado,
com sucessão de ápices e declives. Assim ultrapassa a biografia de Nabuco de
Araújo, para narrar a política imperial. Mas seu foco se fecha no Parlamento. Pode-
se justificar a escolha pelo caráter mirrado da sociedade civil à época. Contudo,
Nabuco tampouco lhe deu relevo quando ela protagonizou movimentos regionalistas,
o republicano e mesmo o abolicionista, pessoalmente caro.
O narrador é seletivo e atribui protagonismo a um par de atores. Às vezes
em duo, às vezes um de solo, outro de coro, o Imperador e a elite política
conduzem o regime conforme uma “grande concepção política, que mesmo a
Inglaterra nos podia invejar”, produzindo um “apogeu” de civilização, a “grande era
brasileira”.
“Estadistas” vistos de meio corpo, pairando sobre a sociedade escravista
nunca narrada, e que falharam em sustar a sangria do regime. Isso Nabuco não
detalha. Como seu biografado já morrera, passa a galope pelos anos 1880 até a
“surpresa final de 15 de novembro”. Não escarafuncha os laços entre Abolição e
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República para não delatar, como em O Abolicionismo, a afinidade entre monarquia
e escravidão.
O trote se detém para exprimir juízos sobre o presente. Apelando às
conjecturas - como Nabuco de Araújo teria reagido à República? –, o filho fala pela
boca do pai. A explicação para a mudança de regime se ancora ainda na idéia de
decadência, mas restrita agora à política. Com a morte dos Estadistas, nos anos
1870, teria havido uma substituição de elites, afundando a política aristocrática
dos princípios na politicagem republicana dos interesses. Em pares antitéticos, a
República aparece como espelho invertido das qualidades imperiais: liberalismo e
positivismo; apogeu e decadência; ordem e anarquia; civilismo e militarismo;
civilização e barbárie. Um Estadista defendia a superioridade do regime deposto,
reagindo às “legendas” da historiografia republicana, como a biografia de Benjamin
Constant, por Teixeira Mendes. O livro é, assim, parte da guerra simbólica entre
monarquistas e republicanos.
E nisso resvala. Mas calçado na documentação e na própria perspicácia,
Nabuco não adere de todo ao mundo que desaba. Não quer ser lido como
monarquista ressentido. Então seu ar professoral se explica. É maneira de atestar
imparcialidade, de modo a legar ao futuro a interpretação da experiência social
passada.
Nabuco memorialista
Na República, Nabuco refletiu sobre suas escolhas, entrelaçando-as ao
destino do Império.
Em Foi Voulue. Mysterium Fidei (1892) narrou seu abandono e retorno ao
catolicismo, mas não o publicou. Em 1895, aproveitou trechos para artigos
intimistas em O Comércio de São Paulo. É que o jornal era monarquista e os
florianistas vinham empastelando publicações inimigas. Contudo, o sentido político
se denuncia no título:“Formação Monárquica”.
Em 1899, Nabuco aceitou do presidente Campos Sales um cargo diplomático
na Europa. Choveram recriminações monarquistas. Então ajuntou textos dos anos
1890 numa autobiografia, em que narra exemplarmente a formação sentimental,
intelectual e política de um aristocrata do antigo regime ao passo que se despega
do monarquismo militante. Daí o novo nome: Minha Formação (1900).
Inspirado em autobiografias recentes, Ma Vocation (1889), de Ferdinand
Fabre e Souvenirs d'enfance et de jeunesse (1884), de Ernest Renan, o texto
trafega entre o ensaio e o romance de formação. A tonalidade romântica
esmaecida, a cadência da prosa, não evoca a austeridade de Um Estadista. Exala
sim sua nostalgia: se lá o Império era orquestra de muitos naipes, agora se resume
ao solo melancólico do primeiro violino.
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A narrativa não vai em linha reta, mas destaca, como Um Estadista,
momentos decisivos. Primeiro vem a formação aristocrática do dândi; a aquisição do
gosto, do traquejo dos salões, da arte da conversão; as leituras, versos e viagens,
que ocupam a maioria dos 26 capítulos. Guiado pela “atração do mundo”, desabrocha
o cosmopolita.
Nabuco reputa suas convicções políticas, o monarquismo e o liberalismo, à
admiração juvenil pelo Velho Mundo, sobretudo pela monarquia reformada inglesa,
conhecida de perto e pelos livros de Bagehot, em contraste com a França
revolucionária e a democracia norte-americana, modelos dos republicanos
brasileiros.
Depois, em flash-back, vêm os tempos primeiros. A homenagem ao
preceptor, aristocrata bávaro, a quem tributa sua erudição. Massangana, ápice
estilístico do livro, narra primorosamente a infância no engenho de fogo de morto,
no interior de Pernambuco. Como em Um Estadista, a prosa estiliza fatos e
personagens, edulcora escolhas. A carreira política vira um “acidente”. Seu
abolicionismo é romantizado na história de um “juramento” de conversão e
tributado à formação afetiva e católica na casa-grande. As convicções políticas
aparecem então como “sentimentos”.
Até quando se ocupa da política, o memorialismo rouba a cena. Limita-se a
falar do pai, traçar perfis e ajustar contas com correligionários, respondendo às
críticas granjeadas quando pediu endosso do Papa à campanha abolicionista. Mesmo
a Abolição, Nabuco a imputa mais à ação parlamentar e da família imperial, que
assim “sacrificou” o trono, que ao movimento abolicionista de que foi líder. Seu
próprio ativismo e suas eleições momentosas são abafados como “passagem pela
política”. Completava, assim, o movimento de Um Estadista de abjurar o radicalismo
político e se filiar à tradição.
O último capítulo, escrito na Europa, e único redigido inteiramente a
propósito da edição do livro, exibe o homem se plasmando à circunstância. Nabuco
enuncia seu dilaceramento entre a “pátria” e o “mundo”, entre a profissão de fé
monárquica e o emprego republicano. Daí o recalque de suas identidades políticas
anteriores, de reformista e de monarquista, em favor de uma auto-apresentação
mais genérica, como “liberal” e como “literato”, inclusive se juntando aos
formadores da Academia Brasileira de Letras.
A atitude blasé do narrador “literário” embala ainda a tese da superioridade
da monarquia, como estilo de sociedade, forma de governo, gênero de civilização.
Ao narrar as venturas de um rebento brilhante da sociedade aristocrática
malograda, Nabuco contrasta a competência dos estadistas do Império (e dos,
como ele, impedidos de sê-lo) ao despreparo dos republicanos ascendentes. Nesse
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sentido, Minha Formação prolonga Um Estadista, lamentando a decadência e
entoando elegia à sociedade aristocrática imperial.
Nada disso é bandeira política. É ideal retido no passado - agora que a
República o puxou para si. Daí a saudade, que Massangana resume e exprime, de um
mundo morto.
Legados de Nabuco
A mesma luz atravessa os grandes livros de Nabuco, mas, como num prisma,
cada um a reverbera em cores peculiares, acompanhando os solavancos da
conjuntura. Reformista no Império, descortinou, em O Abolicionismo, os
fundamentos escravistas da formação social, vinculando a elite política à base
socioeconômica que a nutria. Monarquista no início da República, privilegiou, em Um
Estadista, a história política, autonomizando o jogo político-institucional da
sociedade escravista. Diplomata, adotou, em Minha Formação, o ângulo cultural
para recompor a formação aristocrática de que se fez exemplo. O livro do
reformista revela o que os do monarquista sonegam: o sereníssimo Império e sua
fina flor fincavam raízes no pântano da escravidão.
Os livros, contudo, suplantaram as intenções do autor. Suas teses foram
aprofundadas, desdobradas, questionadas, elevando Nabuco à categoria de
clássico. Suas abordagens, estilos e temas perduraram, alimentando três linhagens
de interpretação do Brasil. Leitores de O Abolicionismo seguiram sua análise
estrutural da dinâmica socioeconômica e do conflito entre grupos sociais, em
vizinhança com o libelo político, como se vislumbra em Caio Prado Jr.
Um Estadista deu o norte da historiografia da primeira metade do século
XX, mais atenta às instituições e à elite política que aos movimentos da sociedade
civil. Teses suas ecoam nos “homens de mil” de Oliveira Viana. Seu modelo narrativo
e até seu título se replicam, por exemplo, em Um Estadista da República, de
Afonso Arinos de Mello Franco.
De Minha Formação ficou o ensaio em flerte com a literatura, o foco na
cultura e um narcisismo narrativo, que se nota em Gilberto Freyre. Nele e numa
linhagem de escritos nordestinos reverbera a imagem da sociedade brasileira a
partir da casa-grande e a nostalgia da tradição em decadência.
Tamanha influência talvez se deva ao ostracismo de que nasceram os livros -
em terra estrangeira (O Abolicionismo e Minha Formação) e no passado (Um
Estadista) -, logrando o distanciamento que apurou seu olho, ora sociológico, ora
histórico, ora literário. Decerto vem também da mescla equilibrada da erudição de
cosmopolita, nutrindo estilisticamente o texto, com a matéria local, que o adensa e
complexifica. Em contraponto, rendem menos seus livros muito embebidos de cor
local, o ódio ao florianismo, em Balmaceda e A Intervenção Estrangeira, ou
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destacados dela, como no enredo estrangeiro de L´Option, e na pretensão
universalizante de Pensamentos Soltos
Minha Formação tenta nos convencer de que os rendimentos analíticos e
estilísticos de Nabuco se devem a um afastamento da política. Mas sua biografia,
eivada dela, sugere que seu talento de historiador e de ensaísta cozinhou
justamente nessas brasas.
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