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FACULDADE ANHANGUERA

ALINE ALVES FIDELES SOARES

A DESMISTIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO


EXCLUSIVOS AOS CRIMINOSOS E SUA APLICAÇÃO AOS
AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA

Professor Coordenador: Ms. Robson Alves da


Silva
Professor Orientador: Ms. Dr. Rodrigo José
Fuziger

Jacareí

2017
2

A DESMISTIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO


EXCLUSIVOS AOS CRIMINOSOS E SUA APLICAÇÃO AOS
AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA

Aline Fideles1

Resumo
Este artigo tem por finalidade explorar o mito dos direitos humanos como garantias
exclusivas dos dos criminosos através de estudos ligados a criminologia, influência midiática
e responsabilidade estatal na disseminação da guerra ao crime e seus impactos na sociedade
atual, principalmente, aos agentes de segurança pública. Assim, busca-se minimizar os
impactos decorrentes da violência policial, bem como da violência empregada contra
policiais, aplicando-se os direitos humanos como direitos de todos.

Palavras-chave: direitos humanos; segurança pública; violência policial; controle social;


criminologia

Abstract
This article aims to explore the myth of human rights as criminals' right through studies
related to criminology, media influence and state responsibility in the spread of the war on
crime and its impacts on society today, especially to public security agents. Thus, the aim is to
minimize the impact of police violence, as well as violence against police officers, with
human rights as the rights of all.

Keywords: human rights; public security; police violence; social control; criminology

1
Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade Eniac. Estudante de Direito pela Faculdade Anhanguera de
Jacareí. Servidora pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
3

Sumário

1. Introdução .......................................................................................................................... 4

2. Fundamentos dos Direitos Humanos ............................................................................... 4

3. Criminologia aplicada aos agentes de segurança pública .............................................. 8

4. Influência midiática e comercialização dos direitos humanos ..................................... 12

5. A guerra ao crime e a responsabilidade estatal............................................................. 14

6. Análise de dados estatísticos e pesquisa aplicada.......................................................... 16

Conclusão.............................................................................................................................. 23

Referências ........................................................................................................................... 25
4

1. Introdução

O presente estudo tem como objetivo analisar a exposição dos nossos agentes de
segurança pública em uma cultura de violência, tomando como referência uma teoria ampla
dos direitos humanos associados à ideia equivocada de proteção dos criminosos, visando
minimizar os impactos decorrentes da violência policial.
Baseados nesse antagonismo, estudaremos a necessidade de aplicação dos direitos
humanos aos agentes de segurança pública, esfacelando o mito de que os direitos humanos
são destinados somente aos delinquentes, buscando seu real significado, tendo como
fundamento a dignidade da pessoa humana.
Partindo do pressuposto de que o criminoso é um ser normal que sofre influência dos
meios que se insere2, entende-se que nossos policiais estão diretamente imersos nessa cultura
de violência, expostos às influências do meio e como tal, passíveis de cometer condutas
delituosa.
Ainda, analisaremos a influência midiática na corroboração deste mito, bem como os
impactos decorrentes da guerra contra a criminalidade declarada pelo Estado.
Demais disso, o objetivo deste estudo não é afastar os direitos humanos dos menos
favorecidos e aplicar aos agentes de segurança pública, mas sim deslindar que trata-se de um
direito inerente a pessoa humana, podendo alcançar todos, finalmente concluindo o processo
de dissolução de um repertório simbólico institucionalizado dos direitos humanos como
direitos de criminosos.

2. Fundamentos dos Direitos Humanos

A origem dos direitos humanos volta-se, com frequência, à concepção teológica do


direito natural, onde o homem foi feito a imagem a semelhança de Deus, sendo sempre
direcionado a agir de acordo com o que é justo e bom, por natureza.3 Ainda, segundo o
cristianismo, que teve forte influência sobre os direitos humanos, todos são iguais perante a

2
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª edição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2014, p. 51.
3
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à
filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica: norma jurídica e aplicação do direito. 23ª edição. São
Paulo: Saraiva 2012, p. 36-41.
5

Deus e, desta forma, devemos amar uns aos outros como a si mesmos.4 Sendo todos filhos de
Deus, o cristianismo pregou igualdade entre os povos, declarando que “já não há nem judeu
nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem homem nem mulher”.5 Assim, baseados
em fundamentos bíblicos e filosóficos, escolásticos e canonistas medievais concluíram que
todas as leis que fossem contrárias ao direito natural não teriam vigência ou força jurídica,
sendo totalmente excluídas. 6
As primeiras declarações de direitos humanos surgiram com a Independência
Americana e Revolução Francesa. O primeiro registro de nascimento dos direitos humanos se
deu com o artigo I, da Declaração de Direitos da Virgínia, publicada em 16 de junho de 1776.
No ano 1789, durante o ato de abertura da Revolução Francesa, a mesma ideia foi reafirmada:
“Todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (Declaração dos
Direitos do Homem e Cidadão, 1789, art. 1º).7
Entretanto, os direitos humanos somente passaram a evoluir decisivamente após a 2ª
Guerra Mundial, como resposta ao horror propagado pelo nazismo, onde milhares de pessoas
tiveram suas vidas ceifadas. Manifestou-se, desta forma, a imprescindibilidade na idealização
de um sistema internacional que protegesse os direitos da pessoa humana sem qualquer
distinção, tendo em vista que os nazistas condicionavam a titularidade de direitos a
determinada raça.8 Entretanto, somente no ano de 1948 é que a primeira organização
internacional proclamou que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade.” (Artigo 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos,
proclamada em 10 de dezembro de 1948).9
Após elucidar brevemente os fundamentos históricos dos direitos humanos, devemos
nos aprofundar nas características desses direitos, a fim de uma aproximação conceitual mais
concreta.
Os direitos humanos têm como características sua historicidade, conforme exposto,
com maior evidência a partir do ano de 1945, com o fim da Segunda Guerra e nascimento da
Organização das Nações Unidas; a universalidade, tendo em vista que todas as pessoas são
titulares de direitos humanos; a essencialidade: sendo essenciais por natureza;
4
Atos 10,34 e Marcos 12,31
5
Epístola aos Gálatas 3,28.
6
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª edição. São Paulo: Saraiva,
2010, pp. 53-60.
7
Ibid., pp. 62-65.
8
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2006, pp. 121-122.
9
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., pp. 21-24.
6

irrenunciabilidade: são irrenunciáveis, portanto, a autorização de seu titular não justifica ou


autoriza qualquer violação; inalienabilidade: não podem ser transferidos ou cedidos, sendo
indisponíveis e inalienáveis; inexauribilidade: possibilitando sempre sua expansão;
imprescritibilidade: não se esgotam com o decorrer do tempo e vedação de retrocesso: agrega-
se mais, nunca menos.10
Inspirado no lema da Revolução Francesa, Karel Vasak apresentou em 1979 a
concepção de gerações dos direitos humanos, representando a liberdade como os direitos de
primeira geração; a igualdade como os de segunda geração; e finalmente a fraternidade,
revelando-se os direitos de terceira geração.11 As gerações de direitos humanos facilitam a
compreensão de sua historicidade.12 Segundo Paulo Bonavides citado pelo autor Valério
Mazzuoli:

Pode-se dizer que os direitos humanos da primeira geração (ou dimensão)


são os direitos de liberdade lato sensu, sendo os primeiros a constarem dos
textos normativos constitucionais, a saber, dos direitos civis e políticos, que
em grande parte correspondem, sob ponto de vista histórico, aquela fase
inaugural do constitucionalismo ocidental. São direitos que tem por titular o
indivíduo, sendo portanto oponíveis ao Estado (são direitos de resistência ou
de oposição ao Estado). Os direitos de segunda geração, nascidos a partir do
século XX, são os direitos da igualdade lato sensu, a saber, os direitos
econômicos e culturais, bem como os direitos coletivos ou de coletividades,
introduzidos no constitucionalismo do Estado social. (...) por fim, os direitos
de terceira geração são aqueles assentados no princípio da fraternidade,
como o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação
e ao patrimônio comum da humanidade. Coloca-se ainda uma quarta geração
de direitos, resultante da globalização dos direitos fundamentais, de que
podem ser exemplos o direito à democracia, o direito à informação e o
direito do pluralismo.13

Neste diapasão, podemos utilizar o conceito de Peres Luño para definir direitos
humanos como sendo “um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento

10
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 5ª edição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, pp. 807-808.
11
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos. São Paulo: Método, 2014, p. 39.
12
WEISS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, pp. 50-
51.
13
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público, cit., p. 809.
7

histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais


devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e
internacional”.14
Portanto, os direitos humanos são os direitos protegidos pela ordem internacional
contra as violações e injustiças que o Estado cometa contra as pessoas submetidas à sua
jurisdição, fundado na inviolabilidade, autonomia e dignidade da pessoa.15
Já no Brasil, somos um estado democrático relativamente jovem16, entretanto, antes da
promulgação da Constituição Federal de 1988, que marcou a transição do período ditatorial
para a democratização e respeito aos direitos humanos17, fomos fortemente marcados pela
truculência do regime ditatorial, que durou 21 anos. A nova Constituição, incorporou
diversos direitos individuais que foram violados metodicamente no período da ditadura
militar, no entanto, apesar da condecoração oficial desses direitos, sua violação continua a se
reiterar18, com base na visão deturpada de direitos humanos para humanos direitos ou não
direitos.19
Conforme Peres Luño, fundamentar direitos humanos com base em um código de ação
moral, despersonaliza esses direitos. Compreendemos assim, essencial que todas as pessoas
tenham assegurado o seu direito a ter direitos.20 Neste sentido:

Por esos derroteros teóricos se puede desembocar en la procelosa derivación


de postular unos derechos humanos «deshumanizados», por elusión de la
referencia a las vivencias contextualizadas social e históricamente en las que
21
cualquier derecho humano se concreta.

14
PERES LUÑO, António. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 1995, p.
48.
15
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos, cit., p. 19.
16
A Constituição Federal Brasileira foi promulgada em 05 de outubro de 1988, contando nesta data, com 29
anos.
17
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p. 21.
18
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. In: Tempo Social, n. 2, v. 11,
1999, pp. 129-153.
19
Neste sentido, expõe o autor: “Não se pode, portanto, definir ‘humanos direitos’. Até porque, se tal fosse
possível, teríamos de criar a categoria de ‘humanos-não-direitos’ ou ‘humanos tortos’ o que seria de mais difícil,
senão impossível, conceituação.” PAGLIONE, Eduardo Augusto. Direitos humanos para humanos direitos. In:
Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 207, fevereiro de 2010.
20
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 330.
21
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique et al. Concepto y concepción de los derechos humanos. In: DOXA, n. 4,
1987, p. 51
8

3. Criminologia aplicada aos agentes de segurança pública

Diante do nosso passado autoritário, as polícias no Brasil herdaram diversas práticas


incompatíveis com a democracia.22 Ainda somos uma sociedade marcada pela desigualdade,
onde as batalhas travadas diariamente na suposta “guerra23 ao crime” se direcionam para o
excesso e até mesmo para a prática de novos atos delituosos.24
A sociedade aplaude execuções em um país onde, teoricamente, só existe pena de
morte em crimes de guerra, tornando irrelevante a eventual existência dessa sanção, uma vez
que se aplica de forma ilícita nos confrontos entre polícia e delinquente.25 Entretanto, a
população se esquece de que “um bandido morto não é um bandido a menos, mas um crime a
mais”26
Em que pese o respaldo da polícia para o uso de força necessária27, a violência policial
ilegal reforça a cultura de ilegalidade presente no Brasil onde jovens pobres, na maioria
negros, travam guerra contra outros jovens com as mesmas características, uns rotulados pelo
militarismo repressivo enquanto outros como criminosos.28
Em contrapartida, patronos de direitos humanos protestam constantemente contra a
violência policial, muitas vezes, sem se atentar ao fato de que os policiais seguem mal
remunerados, humilhados, sofrendo baixas diárias e muitas vezes deixando suas famílias
desamparadas29, tendo em vista a nossa polícia é uma das que mais mata, mas também é uma
das que mais morre.30
Os policiais, como pessoas humanas, titulares de direitos e deveres como quaisquer

22
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Passo Fundo: Pater Editora, 1998, pp.
7-13.
23
No período de 2011 a 2015 a Guerra na Síria registrou 256.124 mortes violentas intencionais, enquanto o
Brasil, no mesmo período, registrou o número de 279.567 mortes, segundo dados divulgados pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, disponível em http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2017/01/Anuario_Site_27-01-2017-RETIFICADO.pdf , acesso em 27 de agosto de 2017.
24
PEREIRA, Íbis. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo:
Boitempo, 2015, pp. 50-54.
25
LUIGI, Ferrajoli. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Madrif: Trotta, 1995, p. 763.
26
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016,
p. 52.
27
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia, cit., pp. 7-13.
28
PEREIRA, Íbis et al. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação, cit., p. 50-
54.
29
Ibid.
30
Entre os anos de 2009 a 2015, policiais brasileiros morreram 113% mais em serviço do que os policiais
americanos, sendo que que policiais morrem três vezes mais fora do serviço do que no trabalho. Disponível em
http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Anuario_Site_27-01-2017-RETIFICADO.pdf ,
acesso em 27 de agosto de 2017.
9

cidadãos, encontram-se inseridos cotidianamente em uma linha tênue entre o legal e ilegal,
cabendo a eles identificar esses limites31, Assim, baseando-se na criminologia, tentaremos
explorar o perfil dos protagonistas dessas supostas violações e suas motivações.
Segundo conceito de Shecaira, criminologia é o estudo e interpretação da conduta
ilícita; os meios formais e informais utilizados pela sociedade para lidar com o ato delituoso,
bem como a vítima e o autor dos fatos, como sendo aquele exposto aos efeitos do ambiente
em que se encontra inserido e o controle social como o composto de instrumentos e sanções
sociais a qual o infrator da lei é submetido.32
Já no princípio do bem e mal, o delito é um dispêndio para a sociedade, o delinquente
um componente inconveniente e nocivo do sistema social. A infração penal constitui o mal e a
sociedade estabelecida o bem.33 Considera-se, assim, o mal como a supressão do bem,
constituindo o bem uma força positiva e o mal negativa.34
Assim, a partir de algumas teorias criminológicas já existentes analisaremos os agentes
de segurança pública, considerando que a criminalidade não é comportamento da minoria,
mas sim da maioria dos membros que compõe a sociedade.35
a) Teoria da associação diferencial e subcultura delinquente: Segundo Sutherland, os
crimes não podem ser associados as classes menos favorecidas ou ao perfil biológico herdado
do indivíduo, o crime é aprendido. Esse aprendizado se dá com a comunicação dos
indivíduos, geralmente mais íntimos, no qual se desenvolve a técnica para violação da norma
jurídica, sendo a violação mais favorável do que o cumprimento da lei.36
O treinamento dado aos ingressos na polícia conta com diversos relatos
consubstanciados em abusos e violações de direitos37, ademais, recebem um treinamento
ainda mais intenso na rotina cotidiana, onde são expostos a cultura de violência diariamente,
estando inseridos neste contexto reiteradas vezes. Assim, torna-se compreensível, mas não
justificável, que o policial sinta-se desorientado quanto a distinção do uso legítimo de força e
violência.

31
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. As mortes sem pena no Brasil: a difícil convergência entre Direitos
Humanos, política criminal e Segurança Pública. In: Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, v. 110, p. 211-229.
32
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., pp. 35, 45-63.
33
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do
Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 42.
34
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 14ª edição. São Paulo: Ática, 2015, p. 323.
35
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., pp. 45-63.
36
HERMAN. Nancy J. Deviance: a symbolic interactionist approach. General Hall: Lanham, 1995, pp. 64-68.
37
Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/formacao-da-pm-e-baseada-em -abusos-dizem-policiais/,
acesso em 15 de outubro de 2017.
10

Destarte, ante a ineficiência do Estado na elaboração de políticas de segurança


38 39
pública , torna-se extremamente atraente se fazer “justiça com as próprias mãos” ,
baseando-se na suposta legitimidade de força do Estado para punir aqueles que se atrevem a
infringir as leis.40
b) Teoria da anomia: Segundo pensamento de Durkheim, citado por Shecaira, a ideia
de impunidade fomenta a criminalidade e o indivíduo sente-se sem referências comunitárias
normativas, sentindo o enfraquecimento da solidariedade social, tornando-se propensos aos
comportamentos autodestruitivos (como o suicídio41) ou delituosos. Neste sentido:

Ademais, a América Latina está ficando sem polícias, o que destrói um


suporte estatal elementar da sociedade civil. A autonomização, a proibição
de sindicalização, a militarização e os maiores âmbitos de arbitrariedade
levam à destruição das instituições policiais, através da corrupção e da
anomia de seus integrantes.42

Segundo pesquisa divulgada no ano de 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança


Pública, policiais militares não expõem suas opiniões com medo de represálias de seus
superiores.43
Desta forma, o policial que deveria atuar como gestor, dotado de autonomia para
tomar decisões estratégicas a fim de intermediar conflitos na sociedade44, se vê frustrado por
não ter voz para mudar a situação fática em que encontra-se inserido.
c) Labelling Aproach: A conduta desviante é o resultado de uma reação social, são as
regras estabelecidas e o delinquente apenas se discrimina do homem comum devido a
classificação que sofre, tornando-se rotulado pela sociedade.45

38
SILVA, Alessandra Obara Soares. Inexistência ou ineficiência das políticas públicas e controle judicial.
In: Revista Eletrônica da Faculdade de Direito. ISSN 1984-1094, n. 1, 2008, pp. 01-22.
39
Segundo o filósofo John Locke, na sociedade civil cada um abre mão do seu direito de vingança delegando
esse poder ao Estado, LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução Magda Lopes e Marisa
Lobo da Costa. Vozes: Petrópolis, 1994, p. 70.
40
FUZIGER, Rodrigo. Direito penal simbólico. Juruá: Curitiba, 2015, p. 58.
41
A profissão de policial é uma das mais propensas a cometer suicídio. Disponível em
http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Resultados/noticia/2015/03/profissoes-mais-propensas-ao-
suicidio.html, acesso em 15 de outubro de 2017.
42
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2ª edição. Rio de janeiro: Revam, 2007, p. 74.
43
Disponível em http://cpja.fgv.br/sites/cpja.fgv.br/files/pesquisa_opiniao_dos_policiais_versao_sem_
diagramacao_completa.pdf, acesso em 14 de outubro de 2017.
44
SOARES, Luiz Eduardo. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São
Paulo: Boitempo, 2015, p. 32.
45
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., p. 258.
11

Neste diapasão, os policiais são rotulados como truculentos, porque têm esse
comportamento reforçado em seu treinamento, que muitas vezes é baseado em abusos e até
mesmo na rotina cotidiana.46 O Estado usa a polícia como mera ferramenta de contenção
social e a polícia assume o estereótipo imposto pelo Estado, com o intuito de vencer a guerra
contra a criminalidade, sendo de extrema importância o uso de tirania, na tentativa de
transmitir temor e impor ordem, já que de outra forma não se pode sobreviver ao “mundo
cão”47, no qual a ética da corporação se opõe à ética da cidadania.48
Outra análise de extrema relevância é a análise da vítima, uma vez que os parentes
próximos das vítimas se tornam instrumentos do sistema punitivo que, na tentativa de
dissuadir a culpa e assimilar o dolo, instigam a vingança. Conforme Zaffaroni:

As vítimas assim manipuladas passam a opinar como técnicos e como


legisladores e convocam os personagens mais sinistros e obscuros do
autoritarismo penal volkisch49 ao seu redor, diante dos quais políticos
amedrontados se rendem, num espetáculo vergonhoso para a democracia e
dignidade da representação popular.50

Consoante dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, policiais


morrem três vezes mais fora do serviço do que no trabalho. No ano de 2015, 358 policiais
foram vítimas de homicídio, sendo que 103 foram mortos em serviço e 290 fora de serviço.51
A morte de policiais fora do trabalho nos faz regressar à teoria da associação diferencial, onde
as pessoas se associam para cometer atos delituosos, supostamente mais benéficos. Assim,
fazer justiça com as próprias mãos também se torna um atrativo para a sociedade, uma vez
que o Estado torna-se responsável pelas mortes decorrentes da violência policial, e os
familiares das vítimas perdem toda credibilidade no poder estatal, originando-se assim um
círculo vicioso de violência.52

46
Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/formacao-da-pm-e-baseada-em-abusos-dizem-policiais/,
acesso em 29 de outubro de 2017.
47
Disponível em http://www.academia.org.br/artigos/mundo-cao acesso em 15 de outubro de 2017..
48
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Pater: Passo Fundo, 1998, pp. 7-13.
49
A palavra volkisch significa populista ou popularesco, e consiste em uma técnica que atrai a população através
da ratificação de preconceitos. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, cit., p. 15.
50
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, cit., p. 75.
51
PÚBLICA, ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, ano 10, 2016. 2017.
52
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. , cit., pp. 7-13.
12

4. Influência midiática e comercialização dos direitos humanos

A primeira dimensão dos direitos humanos surgiu juntamente com o sistema


capitalista de produção, assim “o homem das declarações de direitos foi feito com a mesma
argamassa que a burguesia, e pelas mesmas mãos”, tendo a liberdade e igualdade dos direitos
humanos sucumbido aos interesses do mercado capitalista e não do homem, conectando-se a
ideia de mercadoria.53 Neste sentido:

Entra-se no século XXI em fase de verdadeiro apogeu de Direitos Humanos.


A civilização dos direitos, definitivamente, ganhou. Com mais ou menos
relutância, todos a proclamam. Em nome dos direitos se faz a política,
economia, até a guerra. E o fervor é tanto que os direitos se multiplicam e
sobrepõe. As organizações internacionais competem entre si no lançamento
de novos catálogos de Direitos Humanos. (...) O expandir dos direitos do
homem no âmbito internacional é também grande, absorvendo
progressivamente os espaços ainda arredios ao sistema. Mas não podemos
deixar de ficar perturbados quando verificamos que afinal muitos dos que
ditam as regras internacionais - obviamente, para defesa dos direitos do
homem - têm as mãos sujas. E ninguém repara, a não ser quando
individualmente algum cai em desgraça. E os outros?54

As dimensões dos direitos humanos tornaram-se, um apetrecho do capitalismo e o


defeito otimizado dessas gerações, na qual o único valor é didático-metodológico, criaram
falsas ramificações, uma vez que não é possível tutelar direitos sociais sem que haja garantia
dos direitos individuais, associando parâmetros hipotéticos de exceção do sujeito ao acesso
aos direitos humanos.55
Assim, surgem os gestores atípicos da moral, que impõe os mais diversos interesses
nas pautas políticas refletindo no direito penal e levando a distorção da realidade em relação
aos problemas sociais. As condutas transformadas em crimes são vistas como uma vitória por
esses grupos e “há praticamente um consenso da sociedade (ao centro, direita ou esquerda) em
enxergar o direito penal como panaceia”, cobrando-se leis mais rígidas para proteção de

53
BIONDI, Pablo. Os direitos humanos e sociais e o capitalismo: elementos para uma crítica. 2012. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo, p. 168.
54
ASCENSÃO, José Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. In: Revista da
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 103, pp. 277-299.
55
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 216- 218.
13

direitos56, não se atentando ao fato de que os discursos de exceção no combate à


criminalidade subtraem os direitos e garantias individuais.57 Assim, em nome dos mais
diversos coletivos, inclusive os de esquerda, os direitos individuais são direcionados ao
holocausto, onde se potencializa a busca de expansão do rol das condutas puníveis, fundando-
se em discursos de direitos humanos.58
Dessarte, os direitos são propagados através de discursos vazios, onde países acatam
outros com a honrosa missão de defender os direitos humanos.59 Assim, “o homem sem
deveres, o cidadão-cliente; não dão perspectiva de saída humana a sociedade tecnocrática em
que nos encontramos”, tendo em vista que somos cada vez mais influenciados pela mídia e
pelo sistema capitalista de consumo, onde o neoliberalismo transforma tudo em espetáculo,
inclusive a ação política, substituindo as pessoas por mero consumidores. Qualquer
movimento que questione o neoliberalismo acaba por se tornar produto deste, sendo esvaziada
a cultura popular substituindo-a pela cultura das massas.60
Observa-se que não se trata de um Estado que censura e mantém o controle sob os
meios de comunicação, mas sim uma comunicação que censura e mantém controle sob o
Estado, onde seu principal produto é a repressão.61Assim, os Estados tornam-se impotentes na
missão de desenvolver reformas estruturais e a comunicação de massa divulga sua
propaganda volkisch, baseada na vingança a qualquer custo, onde guerras são declaradas de
forma unilateral com propósitos meramente econômicos “e, para culminar, o poder planetário
fabrica inimigos e emergências – com os consequentes Estados de exceção – em série e em
alta velocidade.”62 Informações são reiteradas pelos meios de comunicação manipulando a
população, fazendo com que as concepções do mercado sejam acatadas como verdades
absolutas e “de todas as ilusões a mais perigosa consiste em pensar que existe apenas uma
realidade.” 63
A mídia anula o papel da sociedade e do legislador e passa a propagar a paz, mas
concomitantemente incita a violência, lucrando com a criminalidade que se torna
protagonista.64 Assim, a insegurança social, propagada pelos meios de comunicação, clama

56
FUZIGER, Rodrigo José. As faces de Jano: o simbolismo no direito. Tese de Doutorado. Universidade de São
Paulo, p. 142.
57
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia, cit., p. 217.
58
Ibid, pp. 209-214.
59
ASCENSÃO, José Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. cit., p. 277-299.
60
COELHO, Claudio Novaes Pinto. Publicidade: é possível escapar. São Paulo: Paulus, 2003, pp. 15-29.
61
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Revan, 2007, p. 78.
62
Ibid, pp. 15-16.
63
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., p. 217.
64
FUGIZER, Rodrigo. Direito penal simbólico. Curitiba: Juruá, 2015, pp. 101-106.
14

por intervenção de ultima ratio, isto é, do direito penal65, convertendo-se na crise atual, que
nos leva a uma carência governamental de ordem nacional e internacional, onde o rótulo
propagandista caminha para o enfraquecimento governamental, prejudicando a clientela de
sempre: os pobres. Neste diapasão só existem dois caminhos: a destruição através do
capitalismo ou a justiça e dignidade da sabedoria clássica, sem mais opções.66
Enquanto a minimização política e comercialização da violência levam os direitos
humanos à destruição67, a mídia segue fomentando o ódio e antagonismo entre polícia e
ladrão, onde mais cedo ou mais tarde acabam em genocídio, sendo os direitos humanos
confundidos como benefícios que o poder público concede aos grupos marginalizados.68

5. A guerra ao crime e a responsabilidade estatal

De acordo com Li Ch’uan “as armas são instrumentos de mau agouro. A guerra é uma
questão tão séria que deve haver toda a preocupação para que homens não entrem nela sem a
devida reflexão”69, entretanto, no nosso cotidiano a palavra guerra é utilizada de forma
corriqueira pela mídia e incentivada de forma irresponsável fazendo com que os direitos
entrem em colisão com o Estado.
A atuação da polícia é fundada no conceito de guerra ao crime e as drogas, sendo
vinculado ao militarismo do policiamento ostensivo, com foco no combate e não na
prevenção de condutas delituosas. Os resultados dessa guerra se tornaram tão devastadores
que pela ONU foi recomendado o treinamento das polícias em direitos humanos, bem como
sua desmilitarização.70
O paradigma bélico imposto incita a violência e desencadeia resultados extremamente
letais, onde os policiais são colocados à frente das trincheiras para matar e morrer.71 E como

65
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Discursos de emergência e política criminal: o futuro do Direito
Penal brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 103, p. 411-436.
66
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. cit., pp. 547-548.
67
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, cit., p. 17.
68
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. cit., p. 212.
69
TZU, Sun; PIN, Sun. A arte da guerra. Tradução Pedro Manoel Soares. São Paulo: Ciranda, 2008, p. 7.
70
SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A “guerra contra o crime” e os crimes da guerra: flagrante e
busca e apreensão das periferias. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 117, pp. 287-309.
71
KARAM, Maria Lúcia. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São
Paulo: Boitempo, 2015, pp. 42-47.
15

resultado dessa estratégia revela-se uma cultura organizacional incompatível com o contexto
democrático e respeito aos direitos humanos.72
O aumento da letalidade policial e violência não é somente resultado dos desvios dos
agentes de segurança pública, mas sim da estratégia militar de guerra ao crime, somado ao
descrédito da população. Dados divulgados pelo 5ª Relatório sobre Direitos Humanos,
elaborado pela NEV-USP, indicam que quando um membro do Ministério Público dirige a
polícia aumenta-se essa letalidade, isto é, as mensagens institucionais e políticas influenciam
no comportamento da polícia.73 Esse combate ostensivo de guerra ao crime vai contra os
valores de um Estado democrático de direito, fazendo com que os que não são leais se tornem
inimigos do sistema, levando a trágica conclusão de que “a brutalidade na atuação das
instituições públicas é um traço característico do Estado brasileiro.”74. Ainda, neste sentido:

Formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados por governantes,


mídia e grande parte do conjunto da sociedade a praticar a violência,
expõem-se a práticas ilegais e a sistemáticas violações de direitos humanos,
inerentes a uma atuação fundada na guerra. A missão original das polícias de
promover a paz e a harmonia assim se perde e sua imagem se deteriora,
contaminada pela militarização explicitada na política de “guerra às drogas”.
Naturalmente, os policiais – militares ou civis – não são nem os únicos nem
os principais responsáveis pela violência produzida pelo sistema penal na
‘guerra às drogas’, mas são eles os preferencialmente alcançados por um
estigma semelhante ao que recai sobre os selecionados para cumprir o
aparentemente oposto papel do “criminoso”.75

O pacto do Estado através do contrato social firmando pela sociedade busca anular a
barbárie dos homens e seguir rumo à civilização. A resposta do Estado as violações humanas
afirmam a escolha da comunidade pela civilização, sendo a barbárie e civilização face e
contraface. Ao Estado é conferida a responsabilidade de limitar a forma de opressão, seja ela
pública ou privada76, sendo essa opressão aplicada através do “autoritarismo cool”, onde a
periculosidade do agente é presumida e até mesmo os juízes ficam de mãos atadas para aplicar
72
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. As mortes sem pena no Brasil: a difícil convergência entre Direitos
Humanos, política criminal e Segurança Pública. In: Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, v. 110, pp. 211-229.
73
Ibid, p. 211-229.
74
Ibid, p. 211-229.
75
KARAM, Maria Lúcia. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação, cit., pp.
42-47
76
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia, cit., pp. 204-206.
16

suas disposições, já que estas devem ser compatíveis com o produto vendido pelo poder
punitivo77 e exposto pela mídia, onde os crimes sensacionalistas são reproduzidos com
rapidez e encorajam a população78, que acabam por aplaudir as condutas de violência
exacerbada.
Neste diapasão, os princípios e cidadania são sacrificados em nome do Estado,
levando a uma inversão ideológica, onde se se exclui a humanidade dos humanos
criminalizados, legitimando a violência.79 Assim, também a humanidade daqueles que atuam
frente ao Estado como ferramentas de contenção social se vê comprometida, já que são
privados do caráter de pessoa humana tornando-se igualmente inimigos da sociedade. O
policial deixa de ser humano e passa a se tornar mera ferramenta de contenção social,
desumanizando a pessoa por trás da farda.
Na última Revisão Periódica Universal realizada pelos estados-membros da ONU80, o
Brasil recebeu mais de 200 recomendações, sendo cerca de 5% relacionadas à violência
policial. Pelo Reino Unido foi sugerido a introdução de treinamento em direitos humanos
obrigatório para as forças policiais e redução de 10% das mortes em ações policiais nos
próximos quatro anos e meio. O Brasil aceitou a recomendação, mas alegou que o currículo
da polícia já contém treinamento em direitos humanos e optou por não estabelecer metas de
redução das mortes em decorrência da violência policial, tornando-se evidente a sua falta de
comprometimento para a efetiva resolução do problema. No mais, pela ONU, nenhuma
recomendação foi apontada no relatório em relação a redução das mortes policiais, reforçando
a concepção abortada de gestores atípicos do direito penal, onde as vitórias consistem em criar
alternativas punitivas em face a seus interesses e da influência da mídia como principal
fomentadora da guerra imposta pelo Estado.

6. Análise de dados estatísticos e pesquisa aplicada

Passamos agora a análise dos dados estatísticos a fim de compreender a violência no


Brasil e os dados atuais.

77
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, cit., p. 80.
78
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia, cit., p. 184.
79
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia, cit., pp. 212-219.
80
Disponível em https://nacoesunidas.org/brasil-aceita-mais-de-200-recomendacoes-de-direitos-humanos-da-
onu-rejeita-quatro/, acesso em 24 de outubro de 2017.
17

Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública81, os policiais brasileiros


morrem três vezes mais fora do serviço do que no trabalho, 358 policiais foram vítimas de
homicídio em 2015, sendo que 103 em serviço e 290 fora de serviço. Entre 2009 e 2015
policiais brasileiros morreram 113% mais em serviço do que os policiais americanos.
Ainda, segundo dados oficiais no Brasil de janeiro 2011 a dezembro de 2015, 279.567
foram vítimas de mortes violentas intencionais no Brasil, enquanto na Síria, país que vive
uma guerra civil, esse número foi menor no mesmo período, totalizando 256.124 mortos.
Cerca de 3320 pessoas foram vítimas de intervenções policiais em 2015, sendo que no
período de 2009 e 2015, 17688 foram mortos pela polícia.
Cerca de 57% da população acredita que bandido bom é bandido morto, e 50% da
população afirma que a polícia militar é eficiente em garantir a segurança da população,
entretanto, é muito violenta. Alhuares, 59% da população tem medo de ser vítima de violência
da polícia militar.
A população reconhece as dificuldades enfrentadas pela polícia, sendo que 64%
acredita que os policiais são caçados pelo crime e 63% acreditam que os policiais não têm
boas condições de trabalho.
Em pesquisa quantitativa e qualitativa desenvolvida exclusivamente para este artigo,
foram coletados dados de 97 pessoas civis e militares, sendo 33 policiais civis e 64 policiais
militares lotados nas Polícias Civis e Militares do Estado de São Paulo, aplicada entre o
período de agosto de 2017 a outubro de 2017, sendo extraídos os seguintes dados:

81
PÚBLICA, ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, ano 10, 2016, v. 18, 2017. Disponível em http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2017/01/Anuario_Site_27-01-2017-RETIFICADO.pdf, acesso em 29 de setembro de 2017.
18

Profissão

34%

66%

Policial Civil Policial Militar

Faixa etária

1% 15%

84%

Acima de 60 anos 18 a 29 anos 30 a 59 anos


19

Patente
5% 3%
6%
31%
14%

41%

Soldado Cabo Sargento


Tenente Capitão Major

A profissão interfere na saúde


física/psicológica de forma negativa

32%

68%

Sim Não
20

Os equipamentos são suficientes para


desempenho da função

42%
58%

Sim Não

A vida profissional interfere na vida


pessoal

31%

69%

Sim Não
21

Contingente insuficiente para


desempenho das atividades

15%

85%

Sim Não

Tiveram seus direitos fundamentais


violados em decorrência da sua
função

14%
32%

54%

Sim Não Não sei


22

Os direitos humanos são direitos dos:


2%
8%
13%
49%

26%

2%

Infratores da lei Não sei


Todos Todos, exceto a polícia
Humanos direitos Minorias, necessitados e vítimas

Assim, concluímos que profissão de policial tem interferido de forma negativa na


saúde física/psicológicas dos indivíduos, além das interferências em suas vidas pessoais.
Cerca de 32% afirmou que já teve seus direitos fundamentais violados em decorrência da sua
função.
Ainda, confirmou-se o mito de que os agentes de segurança pública possuem uma
ideia distorcida dos direitos humanos como sendo direitos aplicados apenas aos criminosos.
Os dados coletados e acima expostos reafirmam o estudo desenvolvido por Jacqueline
Muniz, no qual Policiais Militares do Estado do Rio de Janeiro expuseram que os direitos
humanos só servem para proteção de criminosos e que tais direitos não são destinados à
polícia. Observou-se também a baixa autoestima dos policiais, ao se sentirem inferiorizados
por aparentemente terem menos direitos do que outro cidadão, somando-se ainda o regime
disciplinar militar.82

82
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública, cit., p. 65.
23

Conclusão

Com base nos estudos desenvolvidos no presente trabalho compreendemos que a


violência policial está extremante ligada a política estatal e comportamentos incentivados pela
mídia do que aos comportamentos individuais dos policiais. O antagonismo de direitos
humanos como direito de criminosos é propagado pelos meios de comunicação, fazendo com
que os agentes de segurança pública tenham uma ideia equivocada de direitos humanos, como
um direito que trará “benefícios” aos infratores da lei. Os meios de comunicação transmitem
as informações que são relevantes para manutenção e sucesso do seu protagonista principal: a
violência, inclusive utilizando-se dos direitos humanos.
É inadmissível que os direitos humanos sejam erroneamente rotulados como direitos
destinados somente a um grupo específico de pessoas. O Estado autoriza e ratifica a
disseminação de ideias contrárias a manutenção desses direitos, sendo propagando pela mídia
uma visão desfigurada.
Os policiais necessitam urgentemente ser vistos e tratados como seres humanos,
titulares de direitos e deveres como qualquer outro cidadão, suscetíveis a cometer erros, e não
raramente até mesmo condutas delituosas. No mais, também não devemos confundir amparo
dos policiais através dos direitos humanos com impunidade para aqueles que encontram na
polícia uma alternativa para aflorar sua barbárie e cometer atos ilícitos, uma vez que o intuito
deste trabalho não é legitimar ou ratificar condutas ilegais e brutais, justificadas,
frequentemente, com os chamados “autos de resistência”, mas sim compreender o porquê
dessa violência gratuita, utilizando-se de estudos criminológicos, buscando alternativas para
findar tais atitudes.
Ainda, conforme a pesquisa desenvolvida, os policias devem se sentir amparados, não
devemos se esquecer que a farda não retira sua condição de pessoa humana. Os policias, como
pessoas humanas que são, não devem ser confundidas com o Estado, onde grupos
escandalizados com a violência desaguam seu furor.
Assim como a ideia de direitos humanos como direito apenas do criminoso deve ser
desconstruída, também precisamos descontruir o estigma do policial violento, truculento,
humilhados pelos que possuem maior poder aquisitivo ou patente. Devemos substituir esse
estereótipo pelo gestor de segurança pública, educador, cidadão de direitos e deveres, aliado
da comunidade em que encontra-se inserido, sendo reconhecido e respeitado, pois estamos
falando daqueles que se sacrificam e colocam suas vidas cotidianamente em perigo, não se
importando com as consequências e nem mesmo se o motivo pela qual se sacrificam era digno
24

de tal gesto, revelando-se verdadeiros heróis da sociedade. Neste sentido manifestou-se


Campbell:

O herói é aquele que deu sua vida física em troca de alguma espécie de
realização dessa verdade. A ideia de amar seu próximo é pôr você em
sintonia com esse fato. Mas, quer ame ou não o seu próximo, quando a
realização o pega você pode arriscar a própria vida. (...) No final da Divina
Comédia, Dante se dá conta de que o amor de Deus impregna todo o
universo, até as mais fundas cavernas do inferno. É aproximadamente a
mesma imagem. O bodhisattva representa o princípio da compaixão, o
princípio curativo que torna a vida possível. A vida é dor, mas a compaixão
é que lhe dá a possibilidade de continuar. O bodhisattva é aquele que atingiu
a consciência da imortalidade, por meio da sua participação voluntária no
sofrimento do mundo. Participação voluntária no mundo é muito diferente de
apenas ter nascido nele. Este é exatamente o tema da declaração de Paulo
sobre Cristo em sua Epístola aos Filipenses, segundo o qual Jesus “não
pensou na condição divina como algo a ser conservado, mas tomou a forma
de um servo aqui na terra para morrer na cruz”. É uma participação
voluntária na fragmentação da vida.83

Ainda, observa-se a necessidade de uma reforma nas políticas de segurança,


compatibilizando as nossas polícias ao Estado Democrático de Direito. Apesar de termos uma
das polícias que mais mata não podemos fechar os olhos diante do fato de essa mesma polícia
é uma das que mais morre, e conforme dados apontados na pesquisa desenvolvida, encontra-
se no limite, sendo levadas à exaustão, já que a atividade laborativa têm desencadeado
influências negativas, sendo de extrema relevância a observância desses dados com o intuito
de promover mudanças efetivas. Tais mudanças não devem ser pautadas em um novo
confronto, ou maior punição para a conduta, mas sim a renovação da mente 84, através de
políticas públicas efetivas, visando a igualdade, desvinculando a ideia de que os direitos
humanos só pertencem aos “humanos não direitos” ou “humanos direitos”, mas sim um
direito de todos.

83
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito: com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990, pp. 109-110.
84
Romanos 12:2
25

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