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INTRODUÇÃO
Essa grade reflete o encontro entre as “técnicas de poder” que estão a determinar
a conduta dos indivíduos e as “técnicas de si”, que permitem aos indivíduos efetuarem,
eles mesmos, ou com a ajuda dos outros, operações sobre os seus modos de ser. No
campo educacional essas técnicas, implicadas nas práticas curriculares, têm a função de
regular e disciplinar o indivíduo. Práticas como as lições, os conteúdos, os signos, as
situações didáticas, os processos de avaliação, os espaços possíveis, os interditos, os
dizeres admitidos, os dizeres silenciados, enfim, praticas curriculares que produzem os
sujeitos.
Entende-se que os modos de subjetivação estão mais associados aos artefatos em
seus rituais do que ao conteúdo educacional. Os modos de subjetivação estariam
associados aos artefatos pelo que eles conduzem de ritual, de formalização pelo que
suscitam de revelação de si, avaliação de si e rememoração de si. É a lição como
ferramenta pedagógica soberana no ato de subjetivação no processo de escolarização.
Não o seu conteúdo, mas sim a própria forma, a forma ritualística da lição, ritual em seu
sentido inclusive de cerimônia, etiqueta. Não interessa assim o que diz a lição, mas o
que ela realiza. Tal como defende Sontag (1987, p. 21) em relação à forma na arte,
“como a ênfase excessiva no conteúdo provoca a arrogância da interpretação, descrições
mais extensas e mais completas da forma calariam. O que é necessário é um vocabulário
– descritivo e não prescritivo – para as formas”.
Há algo mais forte na escolarização do que o ritual da lição? Ritual da lição
entendido como ritual do discurso verdadeiro, e todo discurso em sua vontade de
verdade “é pronunciado por quem de direito e segundo ritual requerido” (FOUCAULT,
1999, p. 3). Tal ritual opera tanto no que se pode dizer como no interdito.
Larossa (1999, p. 173-174) diz da lição e do ato de ensinar e aprender como num
jogo: “Lição, lectio, leitura. Uma lição é uma leitura e, ao mesmo tempo uma
convocação à leitura, uma chamada à leitura. Uma lição é a leitura e o comentário
público de um texto cuja função é abrir o texto a uma leitura comum [...]”.
A lição, portanto, como um ritual disciplinar na constituição dos sujeitos, como
dispositivo pedagógico de subjetividades multidimensionais; no ritual da lição, o jogo
do que é permitido e do que é proibido.
Essa problematização tem suscitado o florescimento de novos olhares para as
políticas curriculares, para a prática pedagógica nas escolas. No entanto, o impacto
desse debate sobre a relação educação e modos de subjetivação não tem sido suficiente
para responder aos problemas no cotidiano da escolarização da Educação Básica, em
particular da EJA. Observam-se como indivíduos que frequentaram programas de
escolarização e passaram a incorporar um jogo de linguagem no qual o agradecimento
pela oportunidade de saírem da condição de analfabetos, de cegos, de envergonhados,
de humilhados e de constrangidos passa a reger a sua forma de se apresentar
publicamente a si mesmo; tais indivíduos afirmam como se sentem honrados pela
oportunidade de participarem desses programas.
Esse jogo de linguagem é comum também nos primeiros textos que elaboram
nos momentos de receber o “diploma de alfabetização”, nas atividades de comemoração
política de finais de programas educativos, ou, ainda, quando da participação em
campanhas eleitorais. Essas narrativas de si repetitivas em diversos registros indicam
como pessoas jovens e adultas operam sobre si por meio da escolarização.
Foucault afirma que, a partir do século XVIII e até a época atual, as ciências
humanas reinseriram as técnicas de verbalização em um contexto diferente, fazendo
delas não o instrumento de renúncia do sujeito a si mesmo, mas o instrumento positivo
de constituição de um novo sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 21). Para Foucault (2000, p.
101), é preciso, pois, remontar a processos muito mais longínquos se queremos
compreender através de que mecanismos nós nos encontramos prisioneiros da nossa
própria história.
É nesse perspectiva que optamos por uma aproximação com sua análise
arqueogenealógica para buscar nas “camadas descontínuas do passado” fragmentos de
ideias, conceitos, discursos já esquecidos sobre o ritual da lição anteriormente para
entender as tramas nas quais se constituiu esse discurso através de práticas institucionais
como a escolarização nos tempos atuais.
O sistema de enunciabilidade eleito foi o domínio das coisas ditas, discursos em
sua existência múltipla, do que pode ser dito, ou do sistema que rege o aparecimento
dos enunciados, dos acontecimentos singulares – por assim entendermos o arquivo, o
arquivo em sua relação imanente com um corpus de enunciadores consagrados
(SARFATI, 2010, p. 56). Assim, o nosso corpus está constituído de textos clássicos
como Paidéia – a formação do homem grego, Didática de Comenios, O Método
Pedagógico dos Jesuitas – O Ratio Studiorum e textos sobre História da Educação.
Adentramos nos textos lendo-os como discursos verificando neles o ritual da lição,
ritual envolvido em regras, jogos de verdade, relações de saber-poder.
Vamos identificar a lição como um ritual desde a educação antiga. No entanto,
evidenciamos que o ritual da lição como uma prática discursiva da escolarização emerge
nas sociedades modernas em seus artefatos culturais (lousa, livros, cadernos) que
assegurem a esse ritual tornar-se um dispositivo importante na prática curricular. Esse
ritual analisado evidencia jogos de verdade, regras e relações de saber-poder específicos
em momentos históricos diferentes.
Apresentamos a seguir uma síntese da sistematização que a análise permitiu até
o momento por meio das seções que seguem: Rituais da lição do homem culto; Ritual
da lição do homem religioso; Ritual da lição do homem civilizado; Considerações sobre
a análise do ritual da lição na EJA.
Vale dizer que naquele período não tínhamos o livro como conhecemos hoje
“mas sim um ‘livro do mestre’, um manual pedagógico onde o instrutor encontrava
reunida uma série-modêlo de textos para mandar estudar” (MARROU, 1969, p. 242-
243).
Que o homem seja capaz de negar a si seus próprios desejos, contrariar suas
próprias inclinações, e seguir, simplesmente, o que a razão indica como o
melhor apesar do apetite pender para o outro lado...
Quem não tem domínio sobre suas próprias inclinações, quem não sabe
resistir a importunação do prazer ou da dor do momento por amor daquilo
que a razão lhe diz ser conveniente fazer, carece do verdadeiro principio de
virtude e diligência, e corre o risco de jamais ser bom para qualquer coisa.
Este temperamento, por conseguinte tão contrario à natureza em direção,
aparece, às vezes, e aquele hábito, como o verdadeiro alicerce da futura
capacidade e felicidade, deve ser elaborado no espírito, tão cedo quanto
possível, até mesmo desde o alvorecer do conhecimento ou das apreensões
nas crianças, a fim de ser confirmado, nelas, por todos os modos e cuidados
imagináveis, por aqueles que tem a supervisão de sua educação” (EBY,
1976, p. 259).
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
COSTA, Maria Betânia G. da. A Educação de Jovens e Adultos: uma análise dos
aspectos subjetivos envolvidos no processo de alfabetização. 2009. Tese (Doutorado em
Psicologia) - Pós-Graduação em Psicologia, PUC, Campinas, 2009.
______. O Sujeito e o Poder. Sociedade e Cultura, Braga 1, 13 (1), 349 370, 2000.
FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas. O “Ratio Studiorum”:
Introdução e Tradução. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1951.
OLIVEIRA, Sandra de. Aprender por toda a vida: tramas de efeito na Educação de
Jovens e Adultos. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pós-Graduação em
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SILVA, Claudio B. da. "Eu tive uma vida que foi bem mais que uma escola! Agora só
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UNICAMP, SP, 2007.