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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

CENTRO DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOSÉ


CURSO DE DIREITO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA


DESCRIMINALIZAÇÃO DO ART. 28 DA LEI 11.343/06

Monografia apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de
bacharel em Direito, na Universidade do
Vale do Itajaí, sob a orientação de
conteúdo e orientação metodológica da
Professora MSc. Eunice Anisete de
Souza Trajano.

ACADÊMICA: CAROLINA CAMINHA DA NÓBREGA

São José (SC), junho de 2007


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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI


CENTRO DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOSÉ
CURSO DE DIREITO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO


ART. 28 DA LEI 11.343/06

CAROLINA CAMINHA DA NÓBREGA

A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau


de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI.

São José, junho de 2007.

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________
Profª. MSc. Eunice Anisete de Souza Trajano – Orientadora

______________________________________________________________
Prof. – Membro 1

______________________________________________________________
Prof. Membro 2
3

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Marco e Anamaria, especialmente a minha


mãe, por não medirem esforços para que eu pudesse obter
essa conquista em minha vida. Pelo incentivo e por
acreditarem na concretização deste sonho. Por serem meus
alicerces, pessoas que eu admiro muito. Por estarem
incondicionalmente do meu lado, principalmente nos
momentos difíceis, amo muito vocês.

Aos meus avós maternos, Hamilton e Edy, em especial ao


meu avô (in memorian), que sempre contribuiu com todo amor
e compreensão durante toda a minha vida. Amor e saudade
eterna.
4

AGRADECIMENTOS

A DEUS por proporcionar-me a conclusão de mais uma etapa


da vida que se consuma neste trabalho.

A minha orientadora Eunice Trajano que iluminou os meus


caminhos nos momentos de dificuldades, me orientando e
transmitindo seus conhecimentos.

Aos docentes do Curso de Direito que contribuíram com todos


os seus conhecimentos para o meu aperfeiçoamento
intelectual.

Ao Giuliano pelo carinho, atenção e ajuda oferecida, me


auxiliando nas dúvidas ao longo da pesquisa.

Aos meus amigos e pessoas que, além do apoio e amizade


demonstradas, contribuíram de alguma forma para a
conclusão deste curso.

A eles, a minha eterna gratidão e lembrança.


5

LISTA DE ABREVIATURAS

§ Parágrafo
art. Artigo
CP Código Penal de 1940
CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
JEC Juizado Especial Criminal
STF Supremo Tribunal Federal
LIPC Lei de Introdução ao Código Penal
6

SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS .....................................................................................5

SUMÁRIO ..................................................................................................................6

RESUMO ...................................................................................................................8

INTRODUÇÃO...........................................................................................................9

1 HISTÓRICO DAS LEIS DE TÓXICOS..................................................................13

1.1 DEFINIÇÃO DA PALAVRA DROGA...................................................................13


1.1.1 CONCEITO .........................................................................................................13
1.2 A PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS.........................................................15
1.3 SÉCULO XX: CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS ..............................................18
1.4 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO ANTIDROGAS NO BRASIL ..............................22
1.5 EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL ...........................27
1.6 DIREITO COMPARADO.....................................................................................28

2 O USUÁRIO DE DROGAS FRENTE AS LEIS 6.368/76 E 10.409/02..................33

2.1 O ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76...........................................................................33


2.2 USUÁRIO/DEPENDENTE: EFEITO NEFASTO À SAÚDE PÚBLICA OU À
SAÚDE DO PRÓPRIO CONSUMIDOR....................................................................34
2.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76 ......................36
2.3.1 A CRIMINALIZAÇÃO .............................................................................................36
2.3.2 A PENALIZAÇÃO .................................................................................................38
2.4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA ....................................................................40
2.4.1 CONCEITO E SEUS FUNDAMENTOS .......................................................................41
2.4.2 O BEM JURÍDICO ................................................................................................45
2.4.3 NATUREZA JURÍDICA ...........................................................................................47
2.4.4 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O PRINCÍPIO DA LESIVIDADE/OFENSIVIDADE ........49
2.4.5 A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
PARA CONSIDERAR ATÍPICO O CONSUMO DE ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGA .....................51
2.5 ALTERAÇÕES DA LEI 10.409/02.............................................................................54

3 AS MODIFICAÇÕES LEGAIS RELATIVAS À FIGURA DO USUÁRIO NA NOVA


LEI 11.343/06...........................................................................................................57

3.1 ELABORAÇÃO DA LEI 11343/06 .......................................................................57


3.2 O CONSUMO ANTE O ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06 .......................................60
3.3 O CONSUMO E AS PENAS ALTERNATIVAS....................................................64
3.3.1 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE ...............................................67
3.4 O CONSUMO FRENTE À LEI 9.099/95 ..............................................................68
7

3.5 PROCESSOS DE DESCRIMINALIZAÇÃO ........................................................70


3.6 O POSICIONAMENTO DA DOUTRINA ACERCA DO CARÁTER DAS
MODIFICAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.343/2006, NO TOCANTE AO USO
DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES..................................................................73
3.7 A DECISÃO DO STF TRATANDO DO ENFOQUE DADO À CONDUTA DO
USUÁRIO PELA NOVA LEI DE DROGAS................................................................75

CONCLUSÃO ..........................................................................................................77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................81
8

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo realizar um comparativo entre as


legislações brasileiras de drogas, analisando o tratamento e as sanções atribuídas
à figura do usuário, e focalizando o estudo, na polêmica acerca da
discriminalização do artigo 28, da Lei 11.343/06, referente ao crime de consumo
de substâncias entorpecentes. Demonstra-se que teoria adotada pelo sistema
penal brasileiro, que tinha por objetivo preservar a dignidade humana e possibilitar
seus objetivos finais, sejam elas, a prevenção e ressocialização do indivíduo, não
tem conseguido cumprir suas metas, quanto aos seus objetivos declarados, não
sendo capaz de acabar ou sequer reduzir o consumo e o tráfico destas
substâncias. A repressão penal atual agrava a violência que assola a sociedade
brasileira, aumenta a estigmatização e acentua a exclusão das camadas mais
baixas e marginalizadas da população. Constatado os malefícios que a prisão
causa ao usuário, surgiu a proposta de descriminalização por meio do princípio da
insignificância, excluindo-se o ilícito penal, se a conduta for de irrelevante
repercussão social e não atingir o bem jurídico tutelado pela norma penal. Foi
crescente o posicionamento dos tribunais na aplicabilidade do princípio da
insignificância. Diante do insucesso do modelo adotado na Lei 6.368/76, que
fundava-se na idéia de que o cárcere seria a única e verdadeira punição, foi
elaborada a Lei 10.409/02, sendo vedado o capítulo que tratava dos crimes e das
penas, ante os equívocos no seu texto. Em agosto de 2006, foi promulgada a Lei
11.343/06, onde, surgiu grande polêmica acerca da ocorrência ou não da
descriminalização do artigo 28, eis que este não pune o usuário de drogas com
penas privativas de liberdade. Após muitas discussões, em recente decisão, o
STF pacificou tal polêmica, determinando a não ocorrência da descriminalização,
mas a mera despenalização da conduta do usuário, com a quebra da tradição de
imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva.

PALAVRAS-CHAVE: Drogas; Saúde pública; Princípio da insignificância;


Descriminalização; Despenalização.
9

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, constata-se que houve diversos


conflitos entre pessoas, comunidades, países ou até mesmo entre civilizações.
Trata-se de conflitos de interesses, impostos por um pequeno grupo de pessoas
que tentam legitimar o seu anseio para gerir regras sociais, obrigando a sociedade
a cumpri-las, sem que esta tenha o direito de questionar se a regra imposta é de
todo correta.
Os indivíduos detentores do poder fazem valer sua vontade e exercer a sua
autoridade sobre a população utilizando-se de determinados instrumentos. No
passar dos séculos, dentre os instrumentos utilizados pode-se destacar a religião, o
racismo, a guerra e, um dos mais recentes, o sistema penal.
O sistema penal é utilizado pelas classes detentoras do poder como
instrumento de dominação, como forma de sobrepujar as camadas mais baixas e
marginalizadas de uma sociedade, por meio da criminalização de condutas
praticadas por estas e da seleção discriminatória de indivíduos originários destas
camadas.
Por meio de um discurso no qual se afirma que é preciso proteger os
cidadãos do mal que dissemina a violência, legitima-se a intervenção no domínio de
liberdade da população.
Para isso, é premissa retirar do convívio social os indivíduos perigosos,
aqueles que cometem as condutas lesivas aos bens selecionados pelas elites,
como aqueles que devem ser protegidos para ser possível o convívio social.
Em decorrência, a maior parte das pessoas acredita que o sistema penal
presta um serviço essencial à sociedade, já que, sem ele, o indivíduo “mau” traria a
desgraça e o caos, e o mal tomaria conta da sociedade, impossibilitando o convívio
harmônico entre as pessoas de bem.
No entanto, a realidade não tem se mostrado dessa forma, uma vez que
não é mencionado nesse discurso o fato de os indivíduos maus nada mais serem
do que aqueles pertencentes às camadas mais baixas e marginalizadas da
população, e que estes são estigmatizadas pelo sistema penal por meio dos
processos de criminalização e seleção. Assim, os indivíduos selecionados pelo
sistema são rotulados como criminosos, ou seja, como pessoas perigosas, e, por
10

isso, devem ser encarcerados e excluídos ainda mais do convívio social. Outra
grave conseqüência é a criação de estereótipos por parte do sistema, no qual
pessoas com certas características podem ser vistas como ameaça à ordem e às
pessoas de bem, mesmo antes de serem rotuladas como criminosas. Esses
estereótipos têm contribuição fundamental no processo de seleção e criminalização,
já que o sistema seleciona pessoas com as características que considera inerentes
a um sujeito perigoso ou criminoso.
Assim, este estudo, entre outras coisas, demonstra a relação do que foi
acima exposto com a política de guerra às drogas promovida pelos Estados Unidos,
país que se proclama como o grande defensor da liberdade e da democracia
mundial, garantidor do bem estar de todos os povos e combatente dos inimigos que
porventura venham a ameaçar a ordem estabelecida.
Sobretudo, a guerra contra as drogas funciona como uma estratégia de
dominação sobre as nações periféricas, sendo estas obrigadas a deixar que
aqueles intervenham na sua soberania em nome de uma guerra contra o que
consideram um dos grandes inimigos da sociedade.
Por sua vez, o Brasil não é deixado à margem dessa política de dominação
e também é obrigado a reprimir fortemente o consumo e o comércio de drogas. Por
via de uma legislação que prega cada vez mais o desrespeito aos direitos humanos
e às garantias consagradas na Constituição Federal, da forte repressão policial e
até militar, declara-se guerra contra os traficantes, provocando um surto de
violência e terror nas cidades.
Assim, o que se pretende no presente trabalho é expor a história das
drogas, bem como a sua evolução normativa, ao longo dos anos até os dias atuais,
e comprovar que a repressão às drogas, por meio da criminalização e conseqüente
penalização, somente acaba por gerar mais violência e mostra-se ineficaz para
atender aos declarados objetivos do sistema jurídico criminal: a erradicação ou
diminuição do consumo e comércio de drogas.
Por estes motivos, tem-se como objetivo mais importante demonstrar as
novas sanções alternativas aplicadas ao usuário de drogas, advindas da Lei
11.343/06, sendo, estas, soluções mais condizentes com um Estado de Direito
Democrático, de respeito aos direitos humanos.
11

Serão utilizados argumentos do minimalismo, movimento que prega a


máxima redução do sistema penal, para defender a nova lei de drogas, que propõe
soluções alternativas à criminalização para se tentar dirimir os problemas causados
pelo uso abusivo de drogas, como forma de acabar com os efeitos da condenação
penal.
O método de pesquisa empregado no desenvolvimento deste trabalho foi o
dedutivo. Será utilizada a técnica de documentação indireta de fontes primárias,
utilizando pesquisa documental em jurisprudências como também será utilizada a
documentação de fontes secundárias, com pesquisa bibliográfica em doutrinas,
artigos e na legislação constitucional e infraconstitucional.
No decorrer do primeiro capítulo, será analisada a definição da palavra
droga, a história das drogas, passando pela sua pré-criminalização e sua evolução
no decorrer do século XX, bem como o histórico da legislação anti-drogas no Brasil
e os efeitos causados pela criminalização e repressão às drogas no país. Faz-se,
também, breve comentário sobre a legislação de drogas na Europa, concentrando-
se o estudo no usuário.
O segundo capítulo será conduzido à análise da Lei 6.368/76, referente à
figura do usuário de drogas, o bem jurídico tutelado no artigo 16 e a criminalização
e penalização do crime de consumo. Igualmente, a aplicação do princípio da
insignificância no artigo 16, analisando-se o seu conceito, seus fundamentos, a sua
natureza jurídico-penal, a sua relação com o princípio da ofensividade/lesividade e a
sua aplicabilidade pelos tribunais brasileiros para considerar atípico o consumo de
ínfima quantidade de drogas. Serão abordadas ainda as alterações da Lei
10.409/02.
No terceiro e derradeiro capítulo, será analisada a novíssima Lei de Drogas,
promulgada em agosto de 2006, que propõe soluções para tentar minimizar os
problemas que a criminalização das drogas traz ao usuário, como forma de dirimir
os efeitos da estigmatização que a condenação penal proporciona ao condenado,
focalizando-se no artigo 28 (substituto do artigo 16, da Lei 6.368/76), gerando
controvérsias sobre a ocorrência ou não da descriminalização judicial deste artigo;
analisar-se-á as penas alternativas, especificamente as de prestação de serviço à
comunidade, os processos de descriminalização, incluindo-se a despenalização e,
12

por fim, o posicionamento acerca da descriminalização de doutrinadores e a recente


posição do Supremo Tribunal Federal.
Assim, tem-se a pretensão de esclarecer a grande discussão gerada em
decorrência das novas alternativas de penas aplicadas ao usuário nesta nova lei,
tema muito debatido na sociedade brasileira e que acabou tomando um grande
espaço na mídia.
Ao final são apresentadas sucintas considerações acerca de cada capítulo
tratado, com a finalidade de demonstrar se os objetivos do estudo foram ou não
alcançados, deixando clara a polêmica suscitada pela Lei 11.343/06.
13

1 HISTÓRICO DAS LEIS DE TÓXICOS

1.1 DEFINIÇÃO DA PALAVRA DROGA

1.1.1 Conceito

A palavra “droga” apresenta dificuldades na sua conceituação devido a


generalidade da sua definição.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a palavra droga como “toda
substância que, introduzida num organismo vivo, pode modificar uma ou várias de
suas funções”. (KARAM, 1993, p. 26)
Diante desta definição, percebe-se a amplitude do seu conceito, que pode
abranger diversos tipos de substâncias e efeitos sobre o organismo humano. Assim,
compreende tanto substâncias lícitas quanto ilícitas, na forma de folha seca, pedra,
pó, como também de forma líquida e gasosa, como os chás, remédios produzidos
para a cura de enfermidades, álcool, estimulantes, maconha etc.
No Brasil, além de se utilizar a palavra droga como sinônimo de
medicamentos, é, também, bastante utilizada para indicar as substâncias que o
ordenamento jurídico brasileiro considera como ilícitas.
Rosa Del Olmo, na sua obra, refere a dificuldade da conceituação da
palavra droga:
Trata-se, pois, de uma palavra sem definição, imprecisa e de uma
excessiva generalização, porque em sua caracterização não se
conseguiu diferenciar os fatos das opiniões nem dos sentimentos.
Criam-se diversos discursos contraditórios que contribuem para
distorcer e ocultar a realidade social da ‘droga’, mas que se
apresentam como modelos explicativos universais. (OLMO, 1990, p.
22)

A seguir, a autora prossegue:


Algo sim parece estar claro: a palavra droga não pode ser definida
corretamente porque é utilizada de maneira genérica para incluir
toda uma série de substâncias muito distintas entre si, inclusive em
sua ‘capacidade de alterar as condições psíquicas e/ou físicas’, que
têm em comum exclusivamente o fato de haverem sido proibidas.
Por outro lado, a confusão aumenta quando se compara uma série
de substâncias permitidas, com igual capacidade de alterar essas
condições psíquicas e/ou físicas, mas que não se incluem na
definição de droga por razões alheias à sua capacidade de alterar
14

essas condições, como por exemplo o caso do álcool. (OLMO, 1990,


p. 22/23)

Olmo completa seu pensamento dizendo que o importante, por conseguinte,


não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua
capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas muito mais o
discurso que se constrói em torno dela. Daí o fato de se falar da droga, e não das
drogas. E continua:
Ao agrupá-las em uma única categoria, pode-se confundir e separar
em proibidas ou permitidas quando conveniente. Isto permite
também incluir no mesmo discurso não apenas as características
das substâncias, mas também as do ator – consumidor ou traficante
-, indivíduo que se converterá, no discurso, na expressão concreta e
tangível do terror. Algumas vezes será vítima e outras, o algoz. Tudo
depende de quem fale. Para o médico, será ‘o doente’, ao qual
deve-se ministrar em tratamento para reabilitá-lo; o juiz verá nele o
‘perverso’ que se deve castigar como dejeto. Mas sempre será útil
para a manifestação do discurso que se permita a estabelecer a
polaridade entre o bem e o mal – entre Caim e Abel – que o sistema
social necessita para criar consenso em torno dos valores e normas
que são funcionais para a sua conservação. Por sua vez,
desenvolvem-se novas formas de controle social, que ocultam
outros problemas muito mais profundos e preocupantes. (OLMO,
1990, p. 22/23)

Diante disto, verifica-se que o conceito da palavra droga é bastante


genérico e que se pode coligar diversas substâncias, distintas entre si, e que
causam diferentes efeitos nos seres humanos, numa mesma categoria.
As drogas são classificadas em dois tipos, as drogas lícitas, as que
comercializadas livremente, e as drogas ilícitas, cuja comercialização é proibida por
lei. Dentre as principais drogas lícitas podemos citar o fumo e

as bebidas alcoólicas, e, dentre as drogas ilícitas, a maconha e a cocaína.

(KARAM, 1993, p. 26/27)


Rosa Del Olmo segue discorrendo acerca do critério para que as drogas
sejam classificadas como lícitas ou ilícitas, ou seja, o critério de criminalização de
determinadas drogas:
[...] a ilicitude ou licitude de uma substância está condicionada à
conveniência de quem detém o poder e os meios de criminalizá-la.
Determinam, por meio das leis, o que é bom e o que é ruim para
todos, suprimindo, assim, a liberdade de cada indivíduo fazer de sua
saúde o que melhor lhe aprouver. Por esta razão, a criminalização
depende dos ‘interesses que estão em jogo, em outras palavras, a
15

proibição ou permissão do uso de uma droga está condicionada por


fatores, principalmente, econômicos e políticos. (OLMO, 1990, p.
22/23)

De outro vértice, a juíza Maria Lúcia Karam fala sobre o desenvolvimento


que o conceito de drogas teve a partir da definição estabelecida pela OMS:
[...] definições um pouco mais precisas, sendo comumente aceito o
conceito de droga como toda substância que, atuando sobre o
sistema nervoso central, provoque alterações das funções motoras,
do raciocínio, do comportamento, da persecução ou do estado de
ânimo do indivíduo, podendo produzir, através de seu uso
continuado, um estado de dependência física ou psíquica.
[...] pode-se entender por dependência psíquica o impulso
psicológico que leva ao uso contínuo da substância, para provocar
prazer ou evitar o mal-estar provocado por sua falta, caracterizando-
se a dependência física pelo estado fisiológico, manifestado por
sintomas dolorosos, conhecidos como síndrome de abstinência,
decorrente da interrupção da ingestão regular da substância em
questão, também devendo se destacar o fenômeno da tolerância,
entendido como o estado de adaptação orgânica, caracterizado pela
necessidade de utilização de doses cada vez maiores de uma
droga, para manutenção do efeito inicial. (KARAN, 1993, p. 26)

Diante deste conceito, percebe-se que a partir da acepção genérica de


droga estabelecida pela OMS, desenvolveram-se diversas outras definições, um
pouco mais precisas, havendo uma pequena restrição na abrangência da palavra
droga. Entretanto, a palavra ainda abriga uma diversa quantidade de substâncias,
tanto lícitas quanto ilícitas. (KARAM, 1993, p. 26)
Não obstante, constata-se que, com esse novo conceito, há uma relação
entre a palavra droga e a dependência física e/ou psíquica. O usuário passa a ser
tratado como dependente de droga, quer dizer, como pessoa doente.
Conclui-se, assim, que a dependência provocada pela droga no corpo
humano não é fator que define a licitude ou ilicitude de uma substância,
constatando-se que determinada droga é classificada como permitida ou proibida
dependendo de um poder de definição e seleção.
As drogas quando referidas neste trabalho, serão as que a lei classifica
como proibidas, ou seja, ilícitas, tais como maconha, cocaína, crack, heroína, LSD,
ecstasy, entre outros.

1.2 A PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS


16

Registros históricos mostram que a droga sempre esteve presente na


história da humanidade. As plantas classificadas como psicoativas, tais como a
papoula - da qual é extraído o ópio - a coca e a maconha eram utilizadas pelas
civilizações antigas em cerimônias religiosas, práticas medicinais, culturais, bélicas
e sociais. (PASSOS, 2002, p. 34)
Estudos arqueológicos concluíram que determinadas pinturas da época da
Idade da Pedra teriam sido criadas sob efeito de transes provocados pelo consumo
de plantas psicoativas. (PASSOS, 2002, p. 34)
Segundo Passos, apontamentos históricos demonstram que o ópio já era
utilizado pelo homem em 5.000 a.c., na Mesopotâmia, com finalidade terapêutica.
Do ópio é extraída a morfina, palavra que vem do deus da mitologia grega Morfeu, o
deus dos sonhos, muito utilizada, como analgésico e hipnótico, na Guerra Civil
Americana, na Guerra do Vietnã e na Segunda Guerra Mundial.
Por vezes, o emprego do ópio tinha fins estratégicos, servindo ora para
enfraquecer o inimigo, ora como revigorante de energia para os soldados.
(PASSOS, 2002, p.34)
Mais tarde, por meio de uma pequena modificação química na fórmula da
morfina, esta passou a ser convertida em heroína. (PASSOS, 2002, p.35)
Da mesma forma, a mastigação da folha de coca in natura já é hábito dos
povos andinos há 2.000 anos. O seu emprego tinha finalidade terapêutica, ritual e
mística. Os camponeses usam-na, ainda, para suportar a altitude, o frio, a fome e
as adversidades do trabalho. (PASSOS, 2002, p. 35)
Por sua vez, os efeitos da planta psicoativa do gênero cannabis, em
especial a cannabis sativa, da qual se produz o haxixe e a maconha, e a cannabis
indica são conhecidos há milhares de anos por diversas civilizações. (PASSOS,
2002, p. 35)
Na Idade Média fatos demonstram que os efeitos das drogas sobre o
sistema nervoso central eram bem conhecidos. Tanto é que eram explorados por
feiticeiros, mágicos e exploradores da fé pública. (YAMADA, 1999, P.10)
Até então, as drogas não tinham valor econômico. Somente com o advento
do capitalismo, nos primórdios da Idade Moderna (século XV), as drogas passaram
a ser objeto de lucro, sendo considerada lícita sua comercialização como qualquer
outra mercadoria. (KARAM, 1993, p. 33)
17

No Brasil, desde a chegada dos portugueses em 1500, encontram-se


relatos sobre a utilização da maconha. Constam nas anotações de viajantes os
efeitos da maconha como intensificador de emoções pré-existentes. No período
anterior à abolição da escravatura, os senhores proprietários dos escravos sabiam
que estes utilizavam a maconha, no entanto, o uso era consentido, uma vez que
percebiam que seus efeitos contribuíam para inibir as rebeliões. No decorrer da
história, com a consolidação de duas classes sociais distintas, a aristocracia e outra
formada por escravos e pessoas menos favorecidas, há registros da utilização da
maconha por ambas as classes sociais até o início do século XX. (YAMADA, 1999,
P.10)
Na América Espanhola do século XVI, os espanhóis incentivavam o uso de
coca, pois consideravam um lucrativo negócio para muitos mercadores. Naquela
época, a Igreja Católica cobrava seu dízimo sobre suas plantações. (KARAM, 1993,
p. 33/34)
No século 17, caso semelhante acontecia com o ópio produzido na Índia
Britânica, o que motivou uma guerra. A companhia inglesa British East Índia
Company produzia ópio na Índia e o vendia em grande quantidade para a China.
Até que, em 1800, o Imperador Ch'ung Ch'en proibiu o consumo da droga, que se
alastrava pelo território chinês como uma verdadeira epidemia. Todavia o
contrabando prosseguiu e, em 1831, a venda de ópio em Cantão atingiu o
equivalente a 11 milhões de dólares, enquanto o comércio oficial deste porto chinês
não passou dos sete milhões de dólares. A insistência do governo chinês em
reprimir o uso e a venda da droga levou o país a um conflito com a Inglaterra,
conhecido como a Guerra do Ópio. Esta guerra começou em 1839, durou quase
três anos e terminou com a vitória dos ingleses, que obrigaram a China a liberar a
importação da droga e a pagar indenização pelo ópio confiscado e destruído em
todos esses anos, além de ceder Hong Kong aos vitoriosos. Como conseqüência,
metade da população adulta masculina da China era viciada em ópio no ano de
1900. (KARAM, 1993, p. 35)
18

1.3 SÉCULO XX: CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS

Nos primeiros anos do século XX iniciou-se o processo de criminalização


das drogas. A primeira droga a ser proibida foi o ópio. Em 1906 os Estados Unidos
promoveram a Conferência de Xangai, cujo tema era o ópio, a qual originou a
Convenção sobre o Ópio de Haia, em 1912, que resultou na proibição ao consumo
da referida droga. (PASSOS, 2002, p. 36)
Na verdade, os Estados Unidos instigaram a proibição ao uso do ópio com
segundas intenções. Havia, na época, interesse dos Estados Unidos em expulsar
os chineses, residentes naquele país, pois concorriam com os próprios americanos
no mercado de trabalho. Como aqueles imigrantes eram consumidores contumazes
do ópio, valeram-se do incentivo à proibição como estratégia para expulsarem os
chineses do país. (OLMO, 1990, p. 26)
Até a década de 1950, a droga não era vista como problema social, nem
seu consumo era considerado elevado. Os consumidores eram basicamente grupos
marginais da sociedade, ligados à perversão moral. (OLMO, 1990, p. 29)
A partir de então, com a expansão do capitalismo, as drogas que tinham
seu comércio praticamente restrito aos países da periferia, começaram a ser
comercializadas em maiores proporções dentro dos países centrais. Nesses países,
com o intuito de reprimir o processo de consumo, que registrou crescente aumento
na década de 60, as drogas passaram a ser consideradas ilícitas. (KARAM, 1993,
p. 36)
Na década de 60, com o surgimento do movimento hippie - que pregava
uma "ideologia libertatória”, com novas formas de pensar, sentir e perceber a
realidade, em protesto ao sistema social e cultural convencional do Ocidente - o
consumo de drogas, em especial da maconha, deixou de ser exclusivo dos grupos
marginalizados da sociedade, como os negros, mexicanos e delinqüentes, e passou
a ser também da juventude branca de classe média e alta. (OLMO, 1990, p. 36)
O aumento considerável no consumo de droga levou à consolidação do
discurso médico-sanitário, consolidado na Convenção Única sobre Estupefacientes
pelas Nações Unidas, em 1961, e ratificado, em 1962, pela Corte Suprema de
Justiça dos Estados Unidos, de que a droga estaria relacionada com a
dependência. O discurso fazia distinção entre o consumidor dependente e o
19

traficante. Considerava que o primeiro, pessoa de boa índole, filho de boa família,
qualificado como “doente”, era corrompido pelo segundo, o estereótipo do mal. As
drogas passaram a ser vistas como inimigo interno e o assunto matéria de
segurança pública. A opinião pública passou a exigir ação por parte do governo com
o intuito de reprimir o uso de drogas. (OLMO, 1990, p. 33/36)
Dessa forma, com as medidas de repressão e a criminalização do uso da
maconha, a partir da década de 70, o consumo de uma outra droga aumenta em
proporções consideráveis e torna-se o novo inimigo interno: a heroína. No entanto,
o seu consumo é extremamente solitário, individualista. Assim, os governantes
norte-americanos perceberam que os movimentos contestatórios dos jovens
consumidores de maconha, cujo consumo é coletivizado, foram esvaziando
gradativamente e a ordem, outrora ameaçada, foi sendo restabelecida. Os Estados
Unidos usaram como estratégia eleger um novo inimigo na guerra contra as drogas
para combaterem: o tráfico proveniente de países considerados oponentes aos
interesses político-econômicos norte-americanos. (OLMO, 1990, p. 44)
No ano de 1973, foi criada a agência americana Drug Enforcement
Administration (DEA), incumbida de vigiar, fiscalizar e reprimir as drogas. Tornou-se
o mais expressivo órgão internacional de combate às drogas. (PASSOS, 2002, p.
38)
Somente no início dos anos 70 o discurso americano de combate às drogas
chegou na América Latina. No entanto, difundiu-se uma série de informações
confusas que não levavam em conta a diferença entre as drogas, nem tampouco
entre os grupos sociais. A maconha era a droga mais consumida na América Latina,
porém as informações que eram divulgadas equivaliam à publicidade difundida
pelos meios de comunicação norte-americanos sobre a heroína. (OLMO, 1990, p.
44)
Outrossim, o tratamento dado aos portadores de drogas era diferenciado:
aos habitantes de favela eram aplicadas duras penas de prisão por traficância,
mesmo que somente portassem um cigarro de maconha. Já os filhos da classe
média e alta eram enquadrados como “doentes” e encaminhados a clínicas
particulares, mesmo que portadores de grandes quantidades da droga. Aos
primeiros correspondia o estereótipo criminoso, já aos segundos, o estereótipo da
dependência. (OLMO, 1990, p. 45/46)
20

Em meados dos anos 70, a heroína foi suplantada por uma nova droga no
cenário mundial: a cocaína. Produzida nos países andinos, em especial na
Colômbia, que, com o tempo, torna-se a principal produtora e fornecedora da
América Latina. A informação difundida acerca da cocaína era bem diferente das
outras drogas: seu uso era associado a personalidades em evidência que a
utilizavam de modo recreativo, sem risco de causar dependência. (OLMO, 1990, p.
48)
Na década de 80, na gestão de Ronald Reagan, os Estados Unidos
internacionalizam a política de combate às drogas. O objetivo era impedir que as
drogas entrassem naquele país, em especial a cocaína produzida nos países da
América Latina. Usaram de várias estratégias para erradicar as culturas de coca e
cannabis nos países periféricos, tais como tratados de extradição que possibilitaram
que os traficantes latino-americanos fossem julgados nos Estados Unidos;
aplicação de herbicidas nas plantações; intervenções militares (na Bolívia e mais
tarde na Colombia); a invasão do Panamá com o intuito de seqüestrar o General
Noriega, que, de antigo colaborador da CIA, passou a inimigo dos Estados Unidos
devido ao seu envolvimento com o tráfico de drogas. (KARAM, 1993, p. 41/43)
Aduz a criminóloga venezuelana Rosa Del Olmo (1990, p. 55/69) que a
estratégia de combate acirrado às drogas adotada pelos Estados Unidos deu-se por
fatores sociais, econômicos e políticos. Em 1980, os Estados Unidos verificaram
que estava ocorrendo grande escoamento de capital para contas bancárias fora do
país, por conta do tráfico de drogas, com o intuito de ser lavado e reintroduzido nos
Estados Unidos. Além do mais, apuraram que o negócio de drogas gerava
anualmente 100 bilhões de dólares, sendo estimada a sonegação, em tributos, em
bilhões de dólares por ano. Somado a essa questão, os Estados Unidos almejavam
solucionar um outro problema de economia doméstica: os colombianos
correspondiam ao maior percentual dos imigrantes ilegais residentes naquele país.
Criaram então, um novo estereótipo neste processo de erradicação das drogas: o
do criminoso latino-americano, mais especificamente o do criminoso colombiano.
O discurso médico vai sendo substituído pelo discurso político-jurídico
transnacional: não são mais discutidas as razões do consumo de drogas e o usuário
passa a ser visto como um consumidor de substâncias ilícitas. O argumento passa
a ser de que a solução é combater a entrada das drogas e, conforme as leis de
21

mercado da oferta e da procura, se a oferta é refreada, os preços praticados para


aquisição da droga se elevariam a tal ponto que inviabilizariam a demanda. (OLMO,
1900, p. 69)
Em 1988 realizou-se a Convenção contra o Trafico Ilícito e Estupefacientes,
na qual os Estados Unidos culpam os países periféricos, em especial os da América
Latina, pelo problema das drogas instalado no país e impõem a estes que ratifiquem
a convenção. A Organização das Nações Unidas (ONU) elege a cocaína como a
principal droga a ser combatida. (PASSOS, 2002, p. 44/45)
Com a globalização da economia, na década de 1990, o tráfico de drogas
atingiu dimensões mundiais. Surgem novas drogas no mercado, sintetizadas em
laboratórios a preços mais acessíveis. As organizações de tráfico de drogas
aprimoraram-se, assim como cresceu a corrupção entre as autoridades policiais e
judiciárias. (OLMO, 1990, p. 69/70)
Por fim, Rosa Del Olmo (1990, p. 70/71) expressa comentário sobre essa
situação:
A insistência no aspecto moral e criminal do fenômeno das drogas
impediu a compreensão da natureza dinâmica do tráfico de drogas
e, sobretudo, de suas dimensões como empresa transnacional
dedicada à produção de bens e serviços ilegais. Reduz-se o
fenômeno a uma questão delinqüencial-policial que considera o
tráfico como uma categoria homogênea, o que oculta a
complexidade da indústria das drogas ilícitas, assim como a
diversidade dos autores que dela participam. Em sua verdadeira
dimensão, é um problema econômico, social e político
transnacionalizado, que desequilibra o Estado e a sociedade. E isso,
apesar de existirem vários estudos que conseguiram sistematizar as
principais características do tráfico e que demonstram não se tratar
de uma forma ordinária de criminalidade, nem uma atividade
parasitária e de pilhagem, mas de um processo produtivo, por mais
ilícito que seja (Uprimny, 2000), que o economista canadense Tom
Naylor qualificou de criminalidade econômica empresarial (Naylor,
1999). Em outras palavras, do ponto de vista estrutural, estamos
diante de uma atividade produtiva mercantil de caráter internacional,
e à margem da legalidade, desenvolvida por indivíduos e
organizações interessados antes de mais nada na obtenção do
lucro, como em qualquer empresa contemporânea.
22

1.4 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO ANTIDROGAS NO BRASIL

Foi com as Ordenações Filipinas1 que se tem registro dos primeiros indícios
de acusação sobre o uso, porte e venda de determinadas substâncias no Brasil. A
primeira referência que proibia a comercialização de drogas no país se encontra no
Título 89, Livro V: “Que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro
material venenoso”. Logo mais, foi promulgado o Código Penal Brasileiro de 1830,
conhecido como Código Imperial, que não fez qualquer referência a tal respeito,
sendo que em 1890, o Código Penal Republicado tipificou as condutas de “expor à
venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as
formalidades previstas nos regulamentos sanitários”. (CARVALHO, 1996, p. 19)
Entretanto, mesmo com a promulgação de tal dispositivo, não foi suficiente
para se conter a onda de toxicomania que tomou conta do país após 1914, sendo
que São Paulo foi comparado a Paris, um século antes, por formar um clube de
toxicômanos. (GRECO FILHO, 1996, p. 39)
Com a Consolidação das Leis Penais de 1932, houve uma maior
regulamentação sobre o uso e a comercialização de drogas no Brasil. No início do
século XX, o uso contínuo e desenfreado de tóxicos atingiu o seu auge no Brasil e
no mundo, principalmente pelos intelectuais da época, que passaram a consumir,
em quantidade significativa, ópio e haxixe. (CARVALHO, 1996, p. 20)
Diante deste quadro, nos anos subseqüentes surgiram diversas normas
legais tratando do tema:
Em abril de 1936, a publicação do Decreto 780, modificado pelo
Decreto 2.953 de agosto de 1938, é considerada o primeiro ‘grande
impulso’ na luta contra a toxicomania no Brasil.
Todavia, o primeiro momento legislativo, no que tange ao ingresso
do país em modelo internacional de controle de estupefacientes, dá-
se com a edição do Decreto-lei 891 de novembro de 1936. Este
Decreto-lei é elaborado de acordo com as disposições da
Convenção de Genebra de 1936 e traz normas relativas a produção,
tráfico e consumo, juntamente com relação de substâncias
consideradas tóxicas e que, logicamente, deveriam ser proibidas
nos países que ratificassem a orientação da Convenção.
(CARVALHO, 1996, p. 20)

1
Compilação jurídica que constituiu a base do Direito Português, vigendo em nosso país por mais de dois
séculos, quanto à parte criminal. Encerrou sua vigência com o advento do Código Criminal do Império, em
1830. Foi o ordenamento jurídico penal que mais tempo vigorou no Brasil. (ZAFFARONI, 2006, p. 176)
23

Em 1942, entra em vigor o novo Código Penal que vem disciplinar a matéria
relativa a tóxicos em seu artigo 281:
Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer,
ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em
depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a
consumo substância entorpecente, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos
de réis. (Redação dada pelo Código Penal de 1942)

A partir da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, que foi


promulgada no Brasil em 1964, que a lista de entorpecentes trazida pelo Decreto-lei
891 foi completada e adotada pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e
Farmácia – SNFMF. (YAMADA, 1999, p. 31)
Tal diploma legal foi de suma importância no combate ao uso de
substâncias que causam dependência física e/ou psíquica ao indivíduo, sendo
elencadas, ainda, substâncias que se equiparam aos entorpecentes no que diz
respeito à dependência, não somente com o intuito de fiscalizar e controlar, como
também para os fins penais. (GRECO FILHO, 1996, p. 40)
Embora o artigo 281 do Código Penal ainda tivesse vigência sobre a
criminalização do uso e venda de entorpecentes, o STF começou a entender que tal
dispositivo não se estendia ao usuário, aplicando-se somente ao traficante.
(CARVALHO, 1996, p. 25) Em aresto relatado pelo eminente Ministro Antônio
Neder, o STF bem situou a incriminação do uso no contexto da nossa legislação:
Antes de ser editado o Decreto-lei n. 385/68, que deu nova redação
ao art. 281 do Código Penal, o STF tinha como firme o entendimento
de que tal norma não punia o uso de entorpecente, mas, isto sim, o
seu comércio ou a facilitação de seu uso. Só depois da vigência
daquele decreto-lei é que a Corte passou a entender punível o uso
da droga que entorpece. (RT 62/613).

Desta forma, a falta de sanção para o usuário, pela jurisprudência, gerou a


descriminalização do uso (tema que será abordado no 3° capítulo), fato de extrema
importância ao cenário jurídico nacional, no que diz respeito à moderação e
impedimento ao uso de drogas.
Assim, diante de tal inércia, foi publicado o Decreto-lei 385/68, para
disciplinar o comércio, posse ou facilitação de entorpecentes ou substâncias que
determinem dependência física ou psíquica, passando a penalizar, da mesma
24

forma, o usuário e o traficante. (CARVALHO, 1996, p. 25) Rezava o artigo 281,


alterado pelo referido Decreto-lei:
Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda,
fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar,
trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a
consumo substância entorpecente, ou que determine dependência
física ou psíquica, sem autorização ou de desacôrdo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de 10 a 50 vêzes o
maior salário-mínimo vigente no país. (Redação dada pelo Decreto-
Lei nº 385, de 1968)
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente:
[...]
III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica.
(Incluído pelo Decreto-Lei nº 385, de 1968)

Esta nova legislação ia totalmente contra o posicionamento jurídico


internacional, rompendo o sistema que preservava a diferenciação entre usuário e
traficante, tendo como resultado a sua inaplicabilidade pelos Tribunais de Justiça,
que, em vez de aplicar uma pena mais leve aos usuários, absolviam-lhes.
(CARVALHO, 1996, p. 25/26.)
O Decreto-lei 385/68 trouxe também outra aberração, utilizando-se das leis
penais em branco2, determinando que o laudo toxicológico fosse o instrumento que
definia a lesividade da droga, não necessitando, portanto, que a mesma estivesse
elencada no rol das substâncias proibidas previstas pela lei. (CARVALHO, 1996, p.
26/27)
Logo após, houve a edição da Lei 5.726/71, que reformulou e deu nova
redação ao artigo 281 do Código Penal, modificando, também, o seu rito
processual. A nova lei continuou considerando o usuário de drogas como um
dependente e o traficante de substâncias entorpecentes como um delinqüente. No
que diz respeito à sanção aplicada a estes, a referida lei aumentou em um ano a
pena aplicada anteriormente. (CARVALHO, 1996, p. 27/28) Vejamos o artigo in
verbis:
Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à venda ou
oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de
qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que

2
Chamam-se “leis penais em branco” as que estabelecem uma pena para uma conduta que se encontra
individualizada em outra lei – formal ou material -. (ZAFFARONI, 2006, p. 386)
25

determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em


desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100
(cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:
[...]
III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica; (Redação dada pela Lei
nº 5.726, de 1971)

A Lei 6.368/76 veio substituir a Lei 5.726/71, e mesmo com o advento da


Lei 10.409/02, manteve vigente por muitos anos os dispositivos referentes aos
crimes em matéria de drogas e suas respectivas penas. Tal Lei, ao ser elaborada,
seguiu as regras internacionais, legitimando o discurso jurídico-político, no qual o
traficante passa a ser o inimigo da sociedade. Relatou Salo de Carvalho acerca
deste assunto:
No que concerne ao plano político-criminal, mantém-se o discurso
médico-jurídico, com a diferenciação básica entre dependente e
criminoso e a manutenção dos estereótipos consumidor-doente e
traficante-delinqüente, instaurando-se, gradualmente, o discurso
jurídico-político (plano da segurança) onde surgirá a figura do
inimigo, igualmente encarnada do traficante. Percebe-se, neste
ponto, o porquê da excessiva exacerbação da pena ao traficante em
relação aos estatutos pretéritos. (CARVALHO, 1996, p. 29)

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária expede freqüentemente portarias


contendo listas com as substâncias proibidas, uma vez que a Lei 6.368/76, em seus
artigos 12 e 16, tratam sobre a matéria de drogas, não especificando as substâncias
ilícitas. (PASSOS, 2002, p. 54)
Em 1988, no mesmo ano da realização da Convenção contra o Tráfico
Ilícito e Estupefacientes, foi promulgada a Constituição da República do Brasil, que
previu em seu artigo 5°, inciso XLIII:
[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça
ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos,
por eles respondendo os mandantes, os executores e os que,
podendo evitá-los, se omitirem.

Mais à frente, nos artigos 200, inciso VII, 227, parágrafo 3° e 243, parágrafo
único, a CRFB/1988 prevê:
Art. 200 Ao sistema único de saúde compete, além de outras
atribuições, nos termos da lei:
26

[...]
VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e
radioativos;
[...]
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
[...]
§ 3° O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
[...]
VII – programas de prevenção e atendimento especializado à
criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas
afins.
[...]
Art. 243 As glebas de qualquer região do País onde forem
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão
imediatamente expropriadas e especificadamente destinadas ao
assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico
apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições
e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e
no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle,
prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

O artigo 5°, inciso LXIII, da Constituição foi ratificado pela Lei dos Crimes
Hediondos, criada em 1990, incorporando o tráfico ilícito de entorpecentes ao rol
dos crimes hediondos, ao dispor no seu art. 2º, que “os crimes hediondos, a prática
da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são
insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto;”, proibindo, assim, a concessão de
indulto ou liberdade provisória para os praticantes destes crimes.
Nos últimos tempos, foi criada a Lei 10.409/02, que dispõe sobre a
prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao
uso e ao tráfico ilícito de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, adotando o
modelo norte-americano, de que o usuário é visto como doente, devendo ser
tratado. (MARONNA e MENDES, 2002, p. 08)
Ocorreu, porém, que a nova lei que foi criada para substituir a Lei 6.368/76,
já foi editada com inúmeros artigos vetados, inclusive todo o Capítulo III, referente à
27

parte que tratava dos crimes e das penas. Assim, a antiga lei de tóxicos continuou
vigente nesta parte omissa.
Até então, a legislação brasileira que trata sobre a matéria de drogas seguiu
as normas internacionais, para criminalizar e combater a produção e a
comercialização de substâncias ilícitas. Entretanto, recentemente, a jurisprudência,
amparada pela Lei, tem sido mais branda na aplicação da pena imposta ao usuário
de drogas, tendo em vista que o mesmo é considerado como dependente, devendo
ser submetido a um tratamento, e não a uma pena. De outro lado, o traficante tem
sua pena cada vez mais severa.
Seguindo este caminho, em agosto de 2006, foi promulgada a Lei
11.343/06, que será analisada no Capítulo III deste trabalho.

1.5 EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

O sistema penal brasileiro, assim como ocorre nos Estados Unidos da


América, tenta combater as drogas que chegam ou são produzidas nos países da
América Latina, onde as crianças e adolescentes pobres são perseguidos pelos
órgãos competentes de repressão por venderem drogas aos consumidores de
classes médias ou altas.
Vera Malaguti Batista (2003, p. 31) disserta acerca da alta lucratividade da
comercialização de drogas, pelo fato de não existir qualquer regulamentação por
parte do governo, não haver controle de preços, de haver a possibilidade de se ter a
exploração exclusiva do produto em determinada região e, principalmente, não
haver o pagamento de qualquer tributo sobre o produto vendido. Assim, a
criminalização mantém os menos favorecidos numa situação inferior no mercado de
trabalho, fazendo com que os mesmos fiquem satisfeitos com subempregos. Por
estes motivos, os indivíduos de classes sociais baixas, ficam seduzidos com a
comercialização de drogas e o ganho de dinheiro de forma relativamente fácil e
bastante lucrativa, mostrando-se esta a única possibilidade de uma melhoria de
vida, já que o mercado de trabalho não poderia proporcionar um progresso
financeiro e social.
Alessandro Baratta, no prefácio do livro de Vera Malaguti Batista (2003, p.
15/16), analisa como o sistema penal brasileiro age sobre as classes
28

desfavorecidas da população, especificadamente quanto ao jovem vendedor de


entorpecente:
[...] o sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para
disciplinar despossuídos, para constrangê-los e aceitar a ‘moral do
trabalho’ que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão de
trabalho e na distribuição de riquezas socialmente produzida. Por
isso, o sistema criminal se direciona constantemente às camadas
mais frágeis e vulneráveis da população: para mantê-las – o mais
dócil possível – nos guetos da marginalidade social ou para
contribuir para a sua destruição física. Assim fazendo, o sistema
sinaliza uma advertência para todos os que estão nos confins da
exclusão social.

E continua:
[...] o sistema de justiça criminal continua a funcionar como um
direito penal do tipo de autor; e que o estereótipo do criminoso – que
guia a ação da polícia, dos promotores, dos juízes e domina a
opinião pública e os meios de informação de massa – corresponde
às características dos grupos sociais entre os quais o sistema
seleciona e recruta seus clientes reais entre todos os potenciais, isto
é, entre os vários infratores distribuídos por todas as camadas da
população. Isto, segundo as autoras, significaria dizer que o
problema que move a ação do sistema não é propriamente a
realização do delito descrito pelas leis ou a defesa dos bens
jurídicos, mas o controle ou a destruição dos grupos mais pobres da
população, aqueles percebidos e definidos como ‘classes
perigosas’”.

Verifica-se que o que ocorre, na realidade, é que o tráfico traz diversos


problemas à sociedade em decorrência da criminalização da própria atividade. A
mídia nacional mostra a imagem do traficante como sendo um indivíduo de extrema
periculosidade e que comete diversos crimes das formas mais bárbaras possíveis,
e, por estas e outras razões, o mesmo precisa constantemente proteger-se da
perseguição policial e de outros traficantes, vivendo de forma permanente no meio
de uma guerra.

1.6 DIREITO COMPARADO

Com amparo ao artigo, “As drogas em destaque” (OEDT, 2002), na União


Européia (UE) a legislação em matéria de droga procura sempre atingir um
equilíbrio entre as sanções e o tratamento.
29

As três convenções das Nações Unidas (ONU) sobre droga limitam o


consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas exclusivamente a fins
médicos e científicos. Embora o consumo ilícito de droga não seja considerado um
crime, a Convenção de 1988, como o intuito de combate ao tráfico de droga
internacional, tipifica como uma infração penal à posse para consumo pessoal.
(OEDT, 2002)
Ao elaborar a sua legislação nacional, os Estados-Membros da UE
interpretaram e aplicaram com liberdade a matéria das políticas mais adequadas,
ao seu entendimento, tendo em conta as suas próprias características, cultura e
prioridades, mas mantendo uma atitude proibitiva. Conseqüentemente, as
abordagens adotadas na UE em matéria de consumo pessoal ilícito de droga, de
posse e de aquisição são variáveis. (OEDT, 2002)
Sobre o situação atual na matéria de drogas na Europa, Mike Trace,
presidente do conselho de administração do OEDT, afirma:
Embora as detenções relacionadas com a droga estejam a
aumentar, e os recursos policiais estejam concentrados na ação
contra os consumidores de cannabis, os sistemas judiciais da
maioria dos países procuram freqüentemente formas de deixar em
liberdade os infratores, aplicar sanções “leves” e só em última
instância recorrer a sanções penais. Uma política eficaz de
procedimento judicial contra a droga deverá ser mais consistente e,
portanto, mais credível. (OEDT, 2002)

O relatório anual da OEDT de 2006, sobre a evolução do fenômeno da


droga na Europa, traz as novas legislações nacionais.
Duas importantes atividades na UE no domínio da redução da oferta de
droga foram caracterizadas pela entrada em vigor, em 18 de Agosto de 2005, dos
dois regulamentos comunitários relativos aos precursores adotados em 2004.
(OEDT, 2006)
O primeiro, a regulamentação do comércio de determinadas substâncias
entre a União Européia e os países terceiros e, em segundo, a regulamentação
dentro do mercado interno. (OEDT, 2006)
Alguns países alteraram significativamente as suas legislações em matéria
de droga, no período em apreço, tanto a respeito de infrações de posse e tráfico de
droga como em relação às respectivas sanções. (OEDT, 2006)
30

Na Roménia, uma nova lei e um novo código penal introduziram distinções


entre consumidores e tóxicodependentes e entre drogas de alto e de baixo risco. É
agora possível aplicar a isenção e a suspensão da pena às infrações à legislação
em matéria de droga. O tratamento dos tóxicodependentes pode realizar-se através
de um programa de assistência integrado, supervisionado por um responsável pelos
casos individuais. As penas de prisão foram agravadas no caso das infrações
relacionadas com o fornecimento de um local para o consumo de droga, a
tolerância de tal consumo nesse lugar, ou o incentivo ao consumo de droga. (OEDT,
2006)
Na Bulgária, a nova lei relativa ao controlo de estupefacientes e precursores
foi aprovada em Junho de 2004. Uma alteração suplementar eliminou a isenção de
responsabilidade criminal para os tóxicodependentes encontrados na posse de uma
única dose. (OEDT, 2006)
Na Eslováquia, o novo código penal redefine as infrações de posse de
droga para consumo próprio e para tráfico. Ao contrário da anterior infração de
posse para consumo próprio (que antes era limitada a uma única dose), a secção
171 cria duas infrações de posse para consumo próprio, dependendo do número de
doses. Também podem ser aplicadas duas novas sanções a estas infrações, quais
sejam, a prisão domiciliária sob vigilância ou a prestação de trabalho a favor da
comunidade. (OEDT, 2006)
Uma posse superior a 10 doses deve ser sancionada nos termos da secção
172, que, dependendo da existência de circunstâncias agravantes, prevê penas de
prisão que podem ir desde 4 anos à prisão perpétua. Além disso, a idade da
responsabilidade penal baixou dos 15 para os 14 anos. (OEDT, 2006)
Na Lituânia, a posse de droga com intenção de venda deixou de poder ser
punida com uma detenção de até 90 dias nas esquadras da polícia, tendo passado
a ser objeto de uma pena mínima significativamente mais severa, nomeadamente
com pena de prisão, embora a pena mínima tenha sido reduzida de 5 para 2 anos.
(OEDT, 2006)
Em Itália, algumas alterações recentes à legislação (Fevereiro de 2006)
reclassificaram a droga em dois grandes grupos, em vez de seis (todas as
substâncias sem utilização terapêutica estão agrupadas, eliminando o conceito de
drogas leves e duras); definiram o limiar entre a posse para uso pessoal e para
31

tráfico; reviram as sanções de modo a incluir a prisão domiciliária e a prestação de


trabalho a favor da comunidade; e aumentaram o acesso às sanções alternativas à
prisão. Além disso, todos os consumidores de droga têm agora o direito de escolher
livremente o tipo e a localização do tratamento que recebem, bem como a
instituição que atesta a sua situação de toxicodependência, deixando tais serviços
de serem exclusivamente prestados pelo setor público. (OEDT, 2006)
No Reino Unido, a Lei da Droga de 2005 introduziu alterações substanciais
à legislação nacional, permitindo que a polícia submeta os infratores a análises no
momento da detenção, em vez de só poderem fazê-lo no momento da acusação, e
exigindo que as pessoas cuja análise tenha tido resultados positivos, sejam
avaliadas quanto ao consumo de droga. (OEDT, 2006)
De um modo geral, há em toda a Europa uma tendência para reduzir ou
retirar as penas de prisão no caso das infrações relacionadas com o consumo
pessoal e, simultaneamente, para aumentar as sanções relacionadas com a venda
de droga. (OEDT, 2006)
A monitorização das sanções aplicadas aos infratores da legislação em
matéria de droga foi debatida ou introduzida em diversos países e, em alguns
casos, já foram tomadas medidas com base nos resultados obtidos. (OEDT, 2006)
Na Irlanda, foi aprovada a criação de uma unidade central de estatísticas
penais para monitorizar as estatísticas relativas às detenções, às ações judiciais e à
natureza das sentenças proferidas, em conformidade com a estratégia nacional de
luta contra a droga. (OEDT, 2006)
A Lei dos Estupefacientes alemã permite que o procurador público
abandone as ações penais por posse de droga sem a aprovação do tribunal, em
determinadas circunstâncias. (OEDT, 2006)
Na Roménia, as estatísticas sobre as decisões judiciais foram analisadas
para monitorizar o êxito da reintegração social dos consumidores de droga que
cometem infrações para além do consumo. Na maioria dos casos, a sanção
aplicada foi uma pena suspensa sob vigilância. A partir de 2004, constatou-se que
os tribunais aplicavam o tratamento obrigatório com menor freqüência, diminuindo
efetivamente o envolvimento dos serviços responsáveis pelo acompanhamento das
pessoas em liberdade condicional e, logo, a reabilitação social dos consumidores de
droga. (OEDT, 2006)
32

As estatísticas sobre o proferimento, ou não, de sentenças judiciais


oferecem um panorama muito mais exato da aplicação da política nacional em
matéria de droga do que os textos legislativos propriamente ditos. (OEDT, 2002)
Apesar de nem todos os Estados-Membros recolherem dados estatísticos
exaustivos sobre as decisões judiciais, ao contrário do que sucede com as
estatísticas relativas às detenções, os países começam a mostrar mais interesse na
monitorização dessa aplicação, o que está de acordo com a tendência para avaliar
os instrumentos políticos. (OEDT, 2002)
Estão atualmente previstas em toda a UE, alternativas ao processo penal,
geralmente de caráter terapêutico ou social, embora o seu impacto e qualidade
variem. A investigação demonstra que o tratamento dos consumidores de droga no
âmbito do sistema de justiça penal pode conduzir a resultados positivos, quer
terapêuticos, no caso da toxicodependência, quer educativos, no caso dos que
consomem pela primeira vez. (OEDT, 2002)
Alguns países, essas medidas são pouco utilizadas, devido a restrições
jurídicas ou a um cepticismo generalizado no que se refere à sua eficácia. Noutros
países o tratamento é a norma; num pequeno número de países, a aplicação dessa
medida é dificultada pela falta de recursos. (OEDT, 2002)
Os países onde a toxicodependência é considerada como a verdadeira
causa da criminalidade relacionada com a droga estão melhores preparados para
aplicar o tratamento em vez do processo penal, mesmo no caso de delitos mais
graves. (OEDT, 2002)
Outros são menos brandos, sendo os delitos relacionados com a droga
imediatamente passíveis de detenção. (OEDT, 2002)
33

2 O USUÁRIO DE DROGAS FRENTE AS LEIS 6.368/76 E 10.409/02

2.1 O ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76

Em decorrência do aumento alarmante no consumo de drogas nos anos 70


e da carência de proteção à saúde pública, tornou-se, para os nossos legisladores,
necessário um ordenamento jurídico capaz de reprimir, com maior intensidade, o
traficante e o usuário, visto como um dependente em potencial, bem como
disciplinar formas de tratamento e recuperação destes. (VIEIRA, 1984, p. 45)
A Lei Antitóxicos foi criada para o aparelhamento jurídico, com fins de
modificar todo o sistema administrativo e penal referente à prevenção e repressão
aos tóxicos. Nela, foram conceituados crimes e determinando suas respectivas
penas. (VIEIRA, 1984, p. 45)
No artigo 16 da Lei 6.368/76, foram incriminadas as condutas de adquirir,
guardar ou trazer consigo. In verbis:
Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio,
substância entorpecente ou que determine dependência física ou
psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal
ou regulamentar:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento
de 20 (vinte) a 100 (cem) dias-multa.

Rozimeri Aparecida Rigon (2005, p. 290) aborda os conceitos das condutas


tipificadas, alicerçadas em um acórdão do Tribunal de São Paulo:
Adquirir, quer dizer obter de forma gratuita ou onerosa; passar a ter
pose de alguma coisa mediante compra, troca, oferta, etc.; já
guardar, significa conservar, manter, vigiar com o intuito de
defender, proteger ou preservar; trazer consigo, refere-se ao porte
de substância. Veja-se: no verbo adquirir o delito é instantâneo; nas
condutas de guardar e trazer consigo, é permanente. No verbo
adquirir não importa se o adquirente não comprou a substância,
basta que o agente a tenha na sua posse para se caracterizar o
delito. (JUTACRIM 54/330)

Portanto, a consumação ocorre com a realização das condutas definidas no


tipo penal, e não com o uso da droga em si. Assim, o indivíduo que comprar a droga
pode não ser consumidor e este atuará como co-réu. Como se vê, a Lei não pune a
conduta de “usar”, uma vez que esta não está tipificada, assim, se o usuário
consumir toda a sua droga, momentos antes da prisão e, logo após, durante a
34

abordagem policial, não for verificada a conduta de guardar ou trazer consigo


substância entorpecente, o indivíduo não poderá ser enquadrado neste dispositivo
legal. (RIGON, 2005, p. 290/291)
O real motivo para de criminalizar estas condutas, é o suposto perigo social
que ela representa. O raciocínio implícito utilizado foi que ocorre perigo à saúde
pública no momento em que o usuário traz consigo a droga, antes mesmo de
consumi-la, resultando na difusão
Em suma, o que difere as condutas referentes ao tráfico e o consumo é a
finalidade do ato.

2.2 USUÁRIO/DEPENDENTE: EFEITO NEFASTO À SAÚDE PÚBLICA OU À


SAÚDE DO PRÓPRIO CONSUMIDOR

O objeto jurídico tutelado pelo artigo 16 da referida Lei é a saúde pública, ou


seja, é a caracterização do perigo social que esta conduta representa. Este é o
posicionamento dominante na doutrina e na jurisprudência. (MARQUES, 2001, p.
82)
Entretanto, mesmo diante deste entendimento, resta a dúvida se o bem
jurídico protegido por tal dispositivo é realmente a saúde pública ou a saúde do
próprio consumidor. (MARQUES, 2001, p. 82)
Nos crimes contra a saúde pública o que se tenta proteger é o interesse
geral da comunidade, já que quando se trata de infrações de perigo geral ou
comum, o número de pessoas que podem ser afetadas é indeterminado, estando
inúmeras pessoas expostas à probabilidade de dano. (MARQUES, 2001, p. 83)
Contudo, a conduta de uma pessoa que adquire, guarda ou traz consigo
substância entorpecente ou que determine dependência física e/ou psíquica pra uso
próprio, não deve ser confundida ou equiparada com aquela que afronta a saúde
pública, já que naquela não há expansibilidade do perigo, eis que é evidente que as
condutas de ter algo para si próprio e ter algo para difundir entre outras pessoas
são completamente antagônicas. Seguindo este raciocino, pode-se concluir que a
conduta incriminada no artigo 16 da Lei de Tóxicos não ofende o bem jurídico
tutelado, ou seja, a saúde pública, sendo o fato, portanto, atípico. (MARQUES,
2001, p. 83)
35

Em outra análise, uma vez que já configurado que o consumo de droga não
afeta a saúde pública, verifica-se a ocorrência de verdadeira autolesão, conduta
esta que se restringe à esfera privada e que não está ao alcance do Direito Penal.
(MARQUES, 2001, p. 83)
Na definição de autolesão trazida por Maurício Antônio Ribeiro Lopes, o
termo significa “a conduta externa que, embora vulnerando formalmente um bem
jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor”. Depreende-se daí que a
autolesão se restringe a uma conduta privada, constitucionalmente assegurada no
artigo 5°, inciso X, que garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da
honra e da imagem das pessoas. (LOPES, 2000, 533)
No mais, além das garantias constitucionais à inviolabilidade da intimidade
e da vida privada, Salo de Carvalho entende ainda que não se pode esquecer do
princípio da lesividade, princípio de grande importância e fundamental no Direito
Penal, ensinando que “somente poderá ser aplicada penalidade no momento em
que a ação infrinja bem jurídico determinado, produzindo-lhe dano – resultado
material”. (CARVALHO, 1997, p. 89)
Acerca do princípio da lesividade, Nilo Batista (2001, p. 91) consagra quatro
funções específicas, dentre elas a “proibição de criminalizar condutas que não
excedam o âmbito do próprio autor”. Esta é a que mais importa no presente
momento. Hipótese em que incide a autolesão.
Maurício Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 532), fundamentou a aplicação
desta função do princípio da lesividade em sua obra na não punição de atos
preparatórios que não tenham a sua execução iniciada, ou, também, na não
punição do conluio entre duas ou mais pessoas para o cometimento de um crime se
sua execução não estiver sido iniciada. E continua:
O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, a
conduta externa que, embora vulnerando formalmente um bem
jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor, como por exemplo
o suicídio, a automutilação e o uso de drogas. (LOPES, 2000, p.
533)

Visto isto, não se pode considerar como típica a conduta descrita no artigo
16 da Lei 6.368/76, pois, como demonstrado, o uso de substâncias entorpecentes
constituem verdadeira autolesão, autoprejuízo, com efeito nefasto à saúde de quem
a consome, O que restou configurado é que se trata de uma conduta que não
36

ultrapassa o âmbito do próprio autor, restrita à esfera privada e longe do alcance do


Direito Penal. Não obstante, comprovou-se também que a conduta de usar
substância entorpecente não tem potencialidade de afetar terceiros,
conseqüentemente, não há lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, ou seja, não
há ofensa à saúde pública.

2.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76

2.3.1 A criminalização

O artigo 16 da Lei de Tóxicos criminaliza condutas relacionadas à posse de


substâncias entorpecentes qualificadas como ilícitas para uso próprio.
A ação típica está inserta no núcleo dos três verbos adquirir, guardar ou
trazer consigo, desde que combinados com a expressão para uso próprio.
Entretanto, como visto há pouco, tais ações não podem ser objeto de criminalização
por parte do Direito Penal, uma vez que as condutas não afetam bens ou interesses
de terceiros. Desta forma, o Direito Penal não pode criminalizar condutas privadas,
definidas como aquelas que somente afetam a pessoa que as executa, ou seja, tem
que verificar se a conduta atinge de alguma forma a terceiros e a sociedade.
(KARAM, 1993. p. 121)
É importante salientar que determinadas condutas privadas são passíveis
de reprovação moral e no entanto não podem ser objeto de criminalização. Neste
sentido, Maria Lúcia Karan (1993, p. 121/122) entende:
O Direito constitui um conjunto de normas disciplinadoras de
relações sociais, sendo, portanto, de sua essência a intervenção tão
somente em condutas que, saindo da esfera individual, tenham
potencialidade para atingir terceiros. Das condutas privadas, ou
seja, aquelas que não afetam bens ou interesses de terceiros, não
se pode dizer que sejam permitidas ou proibidas juridicamente, não
cabendo dar a elas qualificação jurídica, na medida em que, por sua
própria definição, o Direito não deve alcançá-las.

Logo adiante continua:


É neste sentido que estabelecer normas proibitivas para proteção de
determinados bens jurídicos, o Direito Penal tem que,
necessariamente, ter em conta a repercussão na esfera de terceiros
das condutas que irá criminalizar, não podendo, em qualquer
hipótese, esquecer da necessária diferença entre Direito e Moral,
entre crime e pecado.
37

Este é o fundamento básico da inadmissibilidade de criminalização


da posse de drogas para uso pessoal, que, inegavelmente é uma
conduta privada.

Assim, como na autolesão, adquirir, guardar e trazer consigo drogas para o


seu uso pessoal, também configura conduta privada, possuindo, portanto, as
mesmas garantias asseguradas pela Constituição, quais sejam, a liberdade, a
intimidade e a vida privada, não podendo o Direito nelas intervir. (KARAN, 1993, p.
129)
Em sua obra, Maria Lúcia Karan (1993, p. 129) cita a afirmativa de Eugênio
Raúl Zaffaroni, de que a finalidade do Direito é de estabelecer um convívio
harmônico entre os cidadãos, permitindo a cada um a plena disposição de seus
bens jurídicos, não podendo o Direito querer proteger bens contra a expressa
vontade dos seus titulares. Absurdo, portanto, a intervenção do Direito no domínio
de privacidade de cada indivíduo.
Destarte, constatado que a posse de drogas para o uso próprio se classifica
como conduta privada, não podendo ser objeto de criminalização pelo Direito Penal,
conclui-se que as condutas descritas no artigo 16 da Lei 6.368/76 não afetam em
nada o bem jurídico tutelado pela norma, sendo ele tão somente, a saúde pública.
Salo de Carvalho (1997, p. 91) confirma tais argumentos em sua obra.
Vejamos:
Desta forma, entendemos como atípicas as condutas descritas no
art. 16 da Lei 6.368/76, bem como inconstitucional o conteúdo do
dispositivo. O uso configura apenas autolesão, sendo sua
criminalização totalmente incoerente e incompatível com a
perspectiva metodológica utilizada nos estatutos criminais nacionais.
Assim, se a posse, guarda ou aquisição de qualquer tipo ou
quantidade de substância não configuram fatos típicos, porque
ferem a lógica do Direito Penal moderno e a principiologia
constitucional, é insustentável o posicionamento assumido pela
jurisprudência, respaldado amplamente pela doutrina, que vê na
posse de pequena quantidade de estupefaciantes delito a ser
punido, tendo em vista a potencialidade de lesão à saúde pública.

Seguindo esse caminho, é inadmissível aceitar-se o entendimento de que a


posse de substância entorpecente para uso próprio possa afetar de alguma forma a
coletividade, uma vez que demonstrada a ausência de expansibilidade do perigo
pelo uso pessoal. Em conseqüência, é descabida a criminalização da posse de
38

drogas para o uso pessoal frente à proteção da saúde pública. (KARAN, 1993, p.
125/126)

2.3.2 A penalização

A criminalização das condutas tipificadas no artigo 16 da Lei de Tóxicos


surgiu através da Convenção Única de Entorpecentes, em 1961, quando ainda
acreditava-se que tais condutas estimulavam a criminalidade, sendo instituída,
então, a pena privativa de liberdade consistente em seis meses a dois anos de
detenção. Entretanto, nos últimos tempos, esta criminalização vem sendo
contraposta pela criminologia, por entender que o usuário é a própria vítima desta
prática, e mais, por não ter sido detectado o crime pelos meios formais de controle.
(RIGON, 2005, p. 301)
É cediço que o encarceramento nas prisões constitui realidade violenta,
demonstração de um sistema penal totalmente dessemelhante e opressivo,
funcionando como verdadeiro reprodutor de crimes. Há muito, o sistema prisional
tenta proporcionar à sociedade uma sensação de proteção, proteção esta
completamente ilusória, eis que a prisão somente reforça valores negativos aos
segregados. Resta configurado que quanto maior a pena e as medidas aplicadas
aos apenados, maiores são as chances de reincidência. Mais eficaz, seria o sistema
que evitasse a prisão de condenados em crimes de menor gravidade, distanciando-
os dos condenados por crimes graves. (RIGON, 2005, p. 298)
Acerca do tema, Rigon traz a afirmativa de Menna Barreto:
[...] o convívio carcerário entre os que traficam e aqueles
sucumbidos pelo vício conduzem os primeiros a toda sorte de
manobras para a manutenção do comércio ilegal de drogas. Além
disso, ocasiona uma grande revolta pelo tratamento igualitário com o
traficante e o viciado, retornará, inexoravelmente, à prisão, quiçá
não mais como simples viciado.

As penitenciárias brasileiras mostram-se verdadeiras universidades


especializadas na formação do crime, uma vez que é verificado que muitos, ao
serem segregados, são delinqüentes primários, de bons antecedentes e de boa
conduta social. Diferentemente do traficante, o usuário de drogas não possui
periculosidade, visto que não passa de vítima da ação criminosa do tráfico de
39

entorpecentes, devendo ser declarado como isento de pena. (RIGON, 2005, p.


299)
Rigon cita Valois, acerca da sua dissertação que foi encaminhada ao
Congresso Nacional sobre drogas e execução penal:
[...] a política repressiva é generalizadora, marginalizante e
estigmatiza o usuário, portanto extremamente nociva aos
imprescindíveis esforços de prevenção, ao mesmo tempo em que
estimula a imagem do uso como uma conduta rebelde e
conseqüente fascínio por parte da juventude, proporcionando,
outrossim, a isenção da sociedade para com o fenômeno da
toxicomania. A estigmatização causa o medo do usuário da droga
de uma aproximação com uma porventura existente medida
assistencial preventiva, acabando esta atingindo apenas uma
pequena parcela daqueles que se encontram já bastante
prejudicados pelo uso de entorpecentes. (RIGON, 2005, p. 299)

Há de se considerar que o usuário de substâncias entorpecentes seja tido


como enfermo, opondo-se a idéia de ser visto como criminoso, como bem tenta
rotular a Lei, não merecendo, por isso, pena privativa de liberdade, já que esta
nunca atingirá os objetivos a que se destina, a reeducação e reinserção social.
Necessita, sim, de tratamentos terapêuticos, no caso de dependentes. No mais, tal
assertiva se confirma ao analisar que as penitenciárias não têm recursos para
cuidar das causas da dependência, sendo, ainda, o usuário lançado ao convívio de
delinqüentes perigosos. (MARQUES, 2001, p. 85/86)
Marques (2001, p. 86) segue seu pensamento citando sua obra realizada
em conjunto com Cláudio Guimarães:
Embora a pena de prisão ainda represente relevante papel no
controle social, a sua aplicação, entretanto, fica estritamente
condicionada aos crimes de maior gravidade e aos criminosos
profissionais, com a única justificativa de incapacitação ou
inocuização destes, a saber: segrega-se o criminoso para que pelo
maior período de tempo possível ele não venha a causar danos no
meio social, cientes de que tal medida dificilmente possa produzir
algum benefício em relação ao mesmo.

Não obstante, Rozimeri Aparecida Rigon (2005, p. 300) mencionou o


pensamento de Carnelutti, ao referir-se aos malefícios causados ao indivíduo
quando posto em liberdade:
[...] as dificuldades ocasionadas ao libertado pelo cárcere pelas
mudanças dos hábitos, pelas relações rompidas, pelos ambientes
mudados; tudo isto não pode deixar de determinar uma crise, que
poderia também se chamar crise do renascer. [...] O encarcerado
40

saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas


não; quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a
crueldade do engano. [...], a sociedade fixa cada um de nós ao
passado.

Desta forma, confirmam-se os diversos danos que a prisão causa ao


usuário ou dependente de drogas, pois ele entra nas penitenciárias como doente e
sai delas especialista no crime. Assim, a idéia da descriminalização se depara com
a resistência dos legisladores, que procuram apresentar uma ilusória solução para
este problema social, pressionados pela opinião pública ou de certos grupos
sociais. (RIGON, 2005, p. 300/301)

2.4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Atualmente, há uma ampla preocupação no sistema penal brasileiro, com a


adequação e descriminalização de condutas que, mesmo sendo consideradas
típicas, não causam mais reprovação pela sociedade, ainda mais se comparadas
aos efeitos que seriam produzidos no caso de uma eventual condenação, tendo o
agente que cumprir pena privativa de liberdade, acarretando numa sanção
totalmente desproporcional à reprovação social.
A função ressocializadora da pena privativa de liberdade imposta pelo
sistema penal encontra-se amplamente divorciada da sua finalidade, tendo em vista
os diversos efeitos negativos que a prisão causa ao agente, impossibilitando
qualquer tentativa de um futuro reingresso social. Em decorrência disto, a pena
privativa de liberdade somente deveria ser imposta a condutas típicas de relevante
valor social ou quando não há outra pena alternativa. (PIVA, 2000, p. 61)
A partir desta idéia, surgiu a proposta de descriminalização. O sistema
penal brasileiro, para adequar-se à crescente evolução social, tem adotado, através
da doutrina e da jurisprudência, alguns princípios tendo em vista a
descriminalização sem pôr em risco a segurança jurídica do sistema. Dentre eles
está o princípio da insignificância, que atua como excludente de ilícito penal. (PIVA,
2000, p. 61)
A justificação para a utilização do princípio da insignificância como
instrumento descriminalizador no sistema penal, é, em suma, o consentimento da
41

sociedade com relação a determinadas condutas de ínfima gravidade, embora


típicas e definidas em lei. (PIVA, 2000, p. 61)
Tendo em vista as profundas e relevantes alterações nas condutas e
normas decorrentes da evolução social, disserta Paulo César Piva (2000, p. 62):
Assim sendo, o Direito Penal, que, como é cediço, regula e direciona
as condutas delitivas, perseguindo uma adequação e boa
convivência nas relações sociais humanas, também é merecedor da
evolução e, certamente, vem sendo agraciado com alternativas
eficazes para a solução da chamada boa política criminal.

E continua, acerca da aplicação de uma nova alternativa de controle social,


discorrendo sobre o princípio da insignificância:
Adotando-se este princípio, não há que se falar em ausência de
direito ou de aplicação de justiça, mas, sim, na plena aplicação de
outros meios de controle social, disponibilizados à pequenas e
irrelevantes infrações, reservando-se o Direito Penal para investir na
tutela jurisdicional em fatos e valores sociais estritamente
relevantes.

Deste modo, fica evidenciado que, quando a conduta for considerada de


irrelevante repercussão social, não se deve aplicar uma reprimenda penal, pois
acarretaria numa sanção severa e desproporcional à ação praticada, sem
mencionar os diversos efeitos negativos que a prisão traria na vida social do
indivíduo. Deve, portanto, ser adotado o princípio da insignificância como
excludente de ilícito penal, como um caminho alternativo, mais justo, que satisfaça a
devida aplicação de uma boa política criminal que rege o Processo Penal. (PIVA,
2000, p. 64)
Assim, como nos crimes de pequeno potencial ofensivo, a
descriminalização do consumo de drogas na esfera judicial começou a ser
fundamentada no princípio da insignificância, sendo defendida pelos juristas como
alternativa necessária para minimizar os terríveis efeitos que a criminalização de
determinadas substâncias trazem à sociedade. Necessária, portanto, a análise de
alguns pontos importantes relacionados ao referido princípio.

2.4.1 Conceito e seus fundamentos


42

O princípio da insignificância encontra-se previsto de forma implícita no


ordenamento jurídico brasileiro, já que não há uma definição expressa de seu
conceito. Entretanto, encontramos tal resposta na doutrina e na jurisprudência, que
preocuparam-se em formular um conceito para o referido princípio (VICO MAÑAS,
1994, p. 60).
Sobre o tema, leciona Vico Mañas:
O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como
instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção
material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar,
pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento
sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de
descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas,
não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos
protegidos pelo direito penal. (VICO MAÑAS, 1994, p. 81)

Na obra de Ivan Luiz da Silva, o autor comenta a afirmação do professor e


Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Assis Toledo, que relaciona o
princípio da insignificância à gradação qualitativa e quantitativa do injusto, prevendo
a possibilidade de exclusão do tipo penal em relação ao fato que seja considerado
insignificante. Vejamos:
[...] o insigne jurista não apresenta um conceito, em sentido estrito,
fornece apenas os elementos fundamentais para a dedução de uma
definição do princípio em tela, quais sejam: a) o caráter de
instrumento para aferição qualitativa e quantitativa do grau de
lesividade da conduta típica, b) o efeito jurídico produzido pelo
princípio, qual seja a exclusão de tipicidade da conduta
insignificante. Do entendimento apresentado podemos inferir que o
princípio da insignificância é o princípio penal que norteia a
comparação entre o desvalor consagrado no tipo penal e o desvalor
social da conduta do agente, aferindo, assim, qualitativa e
quantitativamente a lesividade desse fato para contestar-se a
presença do grau mínimo necessário à concreção do tipo penal; se
nesse cotejo axiológico verificar-se que o desvalor do ato ou do
resultado é insignificante em relação ao desvalor exigido pelo tipo
penal, então esse fato deverá ser excluído da incidência penal, já
que é desprovido de reprovabilidade jurídica. (SILVA, 2004, p.
93/94)

De outro vértice, entende Pierangelli:


[...] o bem jurídico constitui o ponto de partida e a idéia que preside
a formação do tipo, a tipicidade penal reclama uma ofensa de
alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico. Cuida-se, aqui, do
chamado princípio da insignificância, também denominado de
princípio da bagatela, uma variante da teoria da adequação social,
43

pelo qual são excluídos do âmbito do injusto os “danos de pequena


importância”. (PIERANGELLI, 1989, p. 44)

A conceituação do autor Pierangelli define o princípio da insignificância


como uma variante da teoria da adequação social. Tal teoria defende a idéia de que
não devem ser considerados típicos os comportamentos aceitos ou tolerados pela
sociedade, quer dizer, condutas que não causam reprovação social.
(PIERANGELLI, 1989, p. 44)
Maurício Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 121) segue o mesmo
entendimento de que “não são consideradas típicas aquelas condutas que se
movem por completo dentro do marco de ordem social, histórico, normal da vida
porque são socialmente adequadas”.
Já o princípio da insignificância age de forma diversa, em que não é
analisado a conduta insignificante do agente de forma isolada, mesmo ela sendo
aceita ou não pela sociedade, mas sim, se ocorreu a tal conduta insignificante
aliada à produção ou não dano insignificante ao bem jurídico tutelado pela norma
penal (VICO MAÑAS, 2000, p. 65).
No mesmo sentido entende Ivan Luiz da Silva (2005, p. 429), ao dissertar
que “o reconhecimento da conduta penalmente insignificante realiza-se com base
no critério objetivo de avaliação dos índices de desvalor da ação e do resultado da
conduta realizada, que busca aferir o grau de lesividade da conduta contra o bem
jurídico atacado”.
Assim, entende-se que se pode aplicar o princípio da insignificância quando
a conduta praticada for considerada irrelevante e não causar dano ao bem jurídico
tutelado pela norma, demonstrando-se a ausência da relevância penal na conduta,
mesmo que devidamente tipificada como crime no Código Penal. Deste modo, põe-
se em dúvida se a norma aplicada se encontra fora do seu contexto histórico e da
realidade em que foi posta a rigor.
Outro exemplo é a contravenção do jogo do bicho, prevista na Lei de
Contravenções Penais, a qual se tornou uma conduta moralmente reprovável por
alguns, sendo atualmente praticada por muitos sem ensejar qualquer repressão
penal.
A abordagem do princípio da insignificância neste trabalho procura
estabelecer uma fundamentação preliminar sobre a desconsideração da tipicidade
44

de ações que não afetem o bem jurídico tutelado pela norma penal. Em outras
palavras, quando a lesão ao bem jurídico é inexpressiva ou inexistente. A lei penal,
ao tipificar uma conduta como crime, o faz por considerá-la ofensiva ou perigosa ao
bem jurídico protegido. Assim, se tal conduta não ofender ou não se mostrar
perigosa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, deverá ser considerada atípica
e o dano, portanto, insignificante.
Ivan Luiz da Silva (2004, p. 120) explica que as normas penais, por força da
Constituição, foram construídas e se fundamentam nos princípios básicos do
Estado Democrático de Direito, tais como a liberdade, a igualdade, a solidariedade,
a dignidade da pessoa humana e o pluralismo.
Da mesma forma que no ordenamento jurídico em geral, o sistema jurídico
penal além dos princípios básicos constitucionais, também possui princípios que
não estão expressos no texto legal, estes são conhecidos como princípios jurídicos
implícitos, dentre eles, se encontra o princípio da insignificância. Entretanto, é
visivelmente localizado na Carta Magna como complemento ao interpretar-se outros
princípios penais explícitos. O princípio da insignificância, por sua vez, visa
concretizar tais princípios explícitos ao analisar de forma restritiva o tipo penal.
(SILVA, 2005, p. 428/429)
Explica melhor Ivan Luiz da Silva:
Seu reconhecimento pode ser realizado ao complementar-se o
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da
Legalidade, no sentido de alcançar-se a justificação para a aplicação
da pena criminal. Assim, a conjugação desses princípios na
determinação da justificação e proporcionalidade da sanção punitiva
revela o Princípio da Insignificância em matéria criminal, que vem a
lume para afastar do âmbito do Direito Penal as condutas
penalmente insignificantes como meio de proteger o direito de
liberdade e igualdade na Constituição Federal vigente.

A concretização normativa judicial de princípios implícitos assume especial


relevância por ter que primeiramente descobrir tal princípio no ordenamento jurídico
e, após isto, densificar e precisar a base normativa deste princípio descoberto.
Nesta assertiva, o autor Ivan Luiz da Silva cita o entendimento de Márcia Dometila
Carvalho (SILVA, 2005, P. 430):
Admissível uma controlada criação do direito pela jurisprudência,
com a finalidade de afastar as injustiças decorrentes de uma
interpretação formal, quando esta se mostrasse inábil para fazer
45

justiça na situação concreta, justiça prevista, constitucionalmente,


através de valores e princípios consagrados.
A criação jurisprudencial seria, aí, o elo entre o Direito Penal e o
Direito Constitucional. [...]

Assim, reconhecendo-se esta possibilidade, a jurisprudência


conceituou de forma objetiva o princípio da insignificância no campo da matéria
penal:
O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que
permite desconsiderar-se a tipicidade dos fatos que, por sua
inexpressividade, constituem ações de bagatela, afastadas do
campo da reprovabilidade, a ponto de não merecerem maior
significado aos tempos da norma penal, emergindo, pois a completa
falta de juízo de reprovação penal. (TACrim-SP, 1997)

Destarte, reconhecido o princípio da insignificância no Direito Penal pela


doutrina, bem como a possibilidade de aplicação de princípios implícitos em casos
concretos sem a violação de normas hierarquicamente superiores, a jurisprudência
passou a aplicá-lo de forma crescente, após a análise individual de cada caso, com
o intuito de definir o grau de lesividade ao bem jurídico atacado. (Silva, 2005, p.
431) Por fim, conclui Ivan Luiz da Silva que “a concretização judicial do Princípio da
Insignificância resgatou-lhe da ordem jurídica pressuposta e o positivou numa
norma de decisão – com normatividade concreta – autorizando, assim, sua
invocação na solução de casos concretos onde ocorra uma conduta penalmente
insignificante”.

2.4.2 O bem jurídico

Como visto, não se pode estudar o princípio da insignificância sem se falar


da lesão ao bem jurídico. Serão abordados de forma mais detalhada o conceito e as
funções do bem jurídico, para um melhor entendimento da matéria, uma vez que,
até o presente momento, entende-se o princípio da insignificância como a falta ou
ínfima lesão ao bem tutelado pelo ordenamento jurídico.
O bem jurídico é um valor elegido como relevante e fundamental para a
sociedade, necessitando, assim, de proteção do Direito. De uma forma mais
detalhada, o bem jurídico penal é um valor protegido ou tutelado pelo Direito Penal,
que criminaliza condutas que contrariem ou afetem o valor protegido pela lei penal.
46

A vida, a integridade física, a saúde pública, o patrimônio, entre outros, são


exemplos de bens jurídicos. Acerca do tema, ensina Ângelo Roberto Ilha da Silva
(2003, p. 37):
Pois bem: para buscarmos um conceito de bem jurídico, devemos
ter em conta que o homem vive em função de valores. Nossas
ações são produtos de valorações que empreendemos a respeito de
coisas, situações, fatos e também de pessoas. Na verdade, tudo
radica em torno de valores. Assim, se algum valor for de tal
relevância que mereça a tutela penal, configurará em bem jurídico-
penal.

Adiante:
Portanto, o fundamento do direito penal material, e o que o legitima,
é a tutela de valores que se expressam nos bens jurídicos. Destarte,
para nós o bem jurídico-penal pode ser definido como o bem
valorado como essencial à convivência social de certa comunidade,
em dado momento histórico, e por isso tutelado pela norma penal.

Desta forma, a finalidade do bem jurídico é instituir um sentido para as leis


penais, ou seja, definir os objetivos de se criminalizar uma ação que se for praticada
lesionará a norma penal que tutela o valor que necessita ser protegido por esta.
Acerca deste tema, ressalta Ilha da Silva (2003, p. 39):
O bem jurídico objetiva, portanto, embasar o trabalho de seleção
dos tipos penais incriminadores, que somente se justificam na
medida em que tutelem valores essenciais de uma comunidade,
afastando, dessa forma, incriminações de mero dever. O proibido
servirá a tutelar algum valor que seja significativo para a
comunidade.

Em decorrência disso, visto que o bem jurídico só admite penalizar conduta


que o lesione ou que o ponha em perigo concreto, pode-se dizer que o bem jurídico
opera como instrumento limitador da intervenção punitiva do Estado. Assim entende
Maurício Ribeiro Lopes (2000, p. 129):
A função de garantia é a que corresponde à idéia de bem jurídico
como conceito limitador da atividade punitiva do Estado, que permite
sancionar unicamente aquelas condutas que lesionem ou ponham
em perigo os bens jurídicos.

Na visão de Nilo Batista (2001, p. 96), são cinco as funções que o bem
jurídico no Direito Penal possui: axiológica, sistemático-classificatória, exegética,
dogmática e crítica.
47

A função axiológica é a indicadora das valorações que presidiram a escolha


do julgador. Na função sistemático-classificatória, o bem jurídico atua como um
critério que ordena o conjunto das infrações particulares encontradas na parte
especial do Direito Penal. Na função dogmática, para que seja considerada típica a
conduta, deve haver lesão concreta ao bem jurídico, considerando o tipo desde a
sua concepção material. Já na função exegética, o bem jurídico age como
instrumento que possibilita determinar a natureza do tipo, dando-lhe sentido e
fundamento. E por fim, na função crítica, a finalidade é definir quais bens jurídicos
são relevantes e necessitam de tutela penal. Em conseqüência, não só criminalizam
condutas típicas, mas também descriminalizam as condutas que, por algum motivo,
deixaram de ser avaliadas como lesivas ou que não produzem mais danos à
sociedade. (BATISTA, 2001, p. 96)

2.4.3 Natureza jurídica

No ordenamento jurídico brasileiro existem três correntes diversas acerca


da natureza jurídico-penal do princípio da insignificância. A primeira considera o
princípio em estudo como uma excludente de tipicidade, a segunda como uma
excludente de antijuridicidade, e a terceira e última corrente como uma excludente
de culpabilidade.
Somente serão abordadas a primeira e a segunda correntes, excludentes
de tipicidade e de antijuridicidade, uma vez que o princípio da insignificância produz,
como principal efeito, a exclusão do caráter criminoso da conduta típica realizada
pelo agente. Portanto, não há como aceitar a corrente de excludente de
culpabilidade, já que esta tem como efeito a exclusão da pena do tipo, e não do
caráter criminoso da conduta, que permanece na ação das duas outras hipóteses.
Primeiramente, a corrente que entende que o princípio da insignificância
age como excludente de tipicidade defende a tese de que as condutas que não
lesionam o bem jurídico tutelado pela norma penal são consideradas atípicas.
Carlos Vico Mañas, pioneiro acerca deste tema, sustenta que se deve impor um
conteúdo material ao tipo penal, para que determinadas condutas que não afetem
significamente o bem jurídico tutelado sejam consideradas típicas (VICO MAÑAS,
1994, p. 58).
48

Na concepção material de tipicidade, tem que haver, necessariamente,


lesão concreta ao bem jurídico tutelado pela norma para que seja caracterizado o
tipo penal, caso contrário, não sendo comprovada tal lesão, a conduta será atípica.
(VICO MAÑAS, 1994, p.58)
Assim, entende-se que será aplicado o princípio da insignificância nos
casos em que a conduta típica não causa lesão alguma ou lesão de forma
significativa ao bem tutelado. (VICO MAÑAS, 1994, p. 59)
De outro lado, a corrente que entende que o princípio da insignificância age
como excludente de antijuridicidade defende a tese de que somente serão
consideradas insignificantes as lesões a bens jurídicos tutelados cuja a
antijuridicidade seja devidamente verificada.
Júlio Fabbrini Mirabete (2000, p. 173) entende que será considerada
antijurídica a conduta praticada que contrarie as normas do ordenamento jurídico
vigente:
O fato típico, até prova em contrário, é um fato que, ajustando-se ao
tipo penal, é antijurídico. Existem, entretanto, na lei penal ou no
ordenamento jurídico em geral, causas que excluem a
antijuridicidade do fato típico. Por esta razão, diz-se que a tipicidade
é o indício da antijuridicidade, que será excluída se houver uma
causa que elimine sua ilicitude. “Matar alguém” voluntariamente é
fato típico, mas não será antijurídico, por exemplo, se o autor do fato
agiu em legítima defesa. Nessa hipótese não haverá crime. A
antijuridicidade, como elemento na análise conceitual do crime,
assume, portanto, o significado de “ausência de causas excludentes
de ilicitude”. A antijuridicidade é um juízo de desvalor que recai
sobre a conduta típica, no sentido de que assim o considera o
ordenamento jurídico.

Na concepção material de antijuridicidade, haverá a conduta considerada


típica e a lesão ao bem jurídico protegido. Entretanto, o ordenamento jurídico
brasileiro justifica tal conduta praticada, excluindo a ilicitude do ato diante do
princípio da insignificância pelo fato ou ato não atingir de forma concreta o bem
jurídico tutelado.
Verificou-se, com o estudo, que o princípio da insignificância pode agir tanto
como excludente de tipicidade, na qual, por meio da concepção material de
tipicidade, a conduta passa a ser caracterizada como atípica; quanto excludente de
antijuridicidade, na qual, embora a conduta seja caracterizada como típica, não é
antijurídica, visto que o ordenamento jurídico justifica a conduta realizada pelo
49

agente, por meio do princípio da insignificância, que atua como causa de excludente
de antijuridicidade.

2.4.4 O princípio da insignificância e o princípio da lesividade/ofensividade

O princípio da lesividade ou da ofensividade entende que apenas as


condutas que lesionarem o bem jurídico protegido é que devem ser punidas
penalmente, isto é, a conduta somente será incriminada se ocorrer um resultado
material. Segundo Salo de Carvalho (1996, p. 89), o princípio da ofensividade
“dispõe que somente poderá ser aplicada pena no momento em que a ação infrinja
bem jurídico determinado, produzindo-lhe dano – resultado material”.
Ao ver de Nilo Batista (2001, p. 91), o princípio da ofensividade possui
quatro funções específicas:
a) proibição de incriminações de atitudes internas;
b) proibição de criminalizar condutas que não excedam o âmbito do
próprio autor;
c) proibição de incriminações de simples estados ou condições
existenciais;
d) proibição de criminalização de condutas desviadas que não
afetem qualquer bem jurídico específico.

A primeira função citada, a proibição de incriminações de atitudes internas,


compreende as idéias, desejos, sentimentos, convicções e aspirações das pessoas,
prescreve que não podem ser punidas penalmente, mesmo se cogitada a prática de
delitos. (BATISTA, 2001, p. 92)
A segunda função é a proibição de se criminalizar condutas que não
excedam o âmbito do próprio autor, como por exemplo os atos preparatórios para o
cometimento de um crime, onde ainda não tenha sido iniciada a sua execução, ou,
também, a autolesão, como visto anteriormente. Estes atos não poderão ser
punidos. (BATISTA, 2001, p. 92)
Na terceira função é proibida a incriminação de simples estados ou
condições existenciais Diz respeito à autonomia moral da pessoa, que não poderá
ser julgada pelo que “é”, e sim pelo que faz, ou seja, pelos seus atos, uma vez que
o Direito é um ordenamento regulador de condutas. (BATISTA, 2001, p. 93)
Entretanto, o artigo 59, caput, do Código Penal, possibilita ao julgador a
aplicação da pena sob a análise de critérios relacionados ao caráter do indivíduo,
50

não se restringindo somente ao fato praticado. Percebe-se que o nosso Estatuto


Repressivo vincula a culpabilidade ao caráter do agente ou à sua periculosidade, e
não à capacidade de autodeterminação, seguindo as teorias positivistas etiológicas.
(CARVALHO, 1996, p. 68) Veja-se:
O juiz, atendendo a culpabilidade, aos antecedentes, à conduta
social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e
conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação
e prevenção do crime:

Acerca da mencionada análise do caráter do agente e dos aspectos da sua


vida para a aplicação da reprimenda penal, leciona Vera Regina Pereira de
Andrade:

Doravante, a observação do delinqüente deve remontar não só às


circunstâncias, mas às causas do seu crime; procurá-lo na história
de sua vida, sob o triplo ponto de vista da organização, da posição
social e da educação, para conhecer e constatar as inclinações
perigosas da primeira, as predisposições nocivas da segunda e os
maus antecedentes da terceira. Esse inquérito biográfico, antes de
converter-se em condição do sistema penitenciário, é parte
essencial da instrução judiciária, para a aplicação da pena. Deve,
portanto, acompanhar o detento do tribunal à prisão, mas
igualmente completar, controlar e retificar seus elementos no
decorrer do cumprimento da pena. (2003, p. 250/251)

A quarta função, que proíbe a incriminação de condutas desviadas que não


afetem qualquer bem jurídico, refere-se a condutas desaprovadas pela sociedade,
ou, também, de condutas que somente podem ser objeto de julgamento moral.
(BATISTA, 2001, p. 94)
Esta última função é constitucionalmente assegurada. Em tese, procura-se
respeitar as diferenças uns dos outros, possibilitando aos cidadãos exercer práticas
e hábitos não comuns à maioria. Cita-se os artigos 3°, inciso IV e 5°, incisos VIII e
IX, da Constituição Federal de 1988:
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
[...]
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[...]
Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
51

[...]
VIII – ninguém será privado de direitos por motivos de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Portanto, de acordo com o princípio da lesividade ou ofensividade, somente


as condutas que afetem de forma concreta o bem jurídico tutelado pela norma
podem ser penalizadas. Caso esta conduta não lesione o bem jurídico, ocorre uma
limitação da intervenção penal, que entende que o Direito Penal só pode intervir
quando houver grave ofensa ao bem jurídico, ficando proibida a penalização destas
condutas, mesmo sendo elas formalmente típicas. (LOPES, 2000, p. 318)
Pode-se concluir que o princípio de lesividade ou ofensividade serve como
base para a aplicação do princípio da insignificância, visto que a conduta somente
será considerada atípica se o bem jurídico tutelado pela norma não sofrer qualquer
ofensa concreta. Em outras palavras, o princípio da lesividade ou da ofensividade
comprova se ocorreu ou não a lesão, demonstrando a intensidade desta, e o
princípio da insignificância, baseado na demonstração da ocorrência da lesão pelo
princípio da lesividade ou da ofensividade, defende se tal lesão deve ou não ser
criminalizada, e conseqüentemente, penalizada.

2.4.5 A aplicabilidade do princípio da insignificância pelos tribunais


brasileiros para considerar atípico o consumo de ínfima quantidade de droga

No entendimento predominante na jurisprudência, até mesmo do STF, e em


grande parte da doutrina, os crimes contra a saúde pública são crimes de perigo
abstrato e a finalidade do Estado é proteger os interesses coletivos.
Para Ângelo Roberto Ilha da Silva (2003, p. 72), os crimes classificados
como de perigo abstrato são os que oferecem perigo na própria conduta, quer dizer,
há presunção jure et de jure. Nestes crimes, não é necessário portanto a verificação
da ocorrência ou não de lesão ao bem jurídico protegido pela norma, pois a conduta
é automaticamente tipificada como crime.
No mesmo sentido Heleno Cláudio Fragoso (1988, p. 200) afirma que “a
maioria dos códigos modernos situa estes crimes entre os ofensivos a interesse
52

coletivo, ou seja, dirigidos diretamente contra o corpo social tendo em vista o perigo
que acarretam para indeterminado número de pessoas”. Assim, pacificou-se o
entendimento, não importando se realmente ocorreu lesão ao bem jurídico tutelado,
uma vez que a quantidade da droga apreendida e o grau de lesividade da ação não
altera a presunção absoluta de perigo para o bem jurídico saúde pública, bastando
a realização da conduta tipificada.
Entretanto, diante dos avanços na Teoria do Delito, o tipo penal passou a
ter elementos subjetivos, anteriormente encontrados na culpabilidade. O tipo penal
é posto como o núcleo da Dogmática Penal, concretizando-se o princípio da
legalidade, no qual restou claramente definido que não há crime sem tipo legal, pois
somente por meio deste é que são definidos os crimes formalmente. (CARVALHO,
1996, p. 50/51)
Como já exposto, a função da criminalização de uma conduta é a proteção
do bem jurídico, sendo, este último, elemento limitador do tipo penal que permite
criminalizar somente as condutas que o lesionem. Por meio do princípio da
intervenção mínima e o falido sistema penal, o Direito Penal deveria ser utilizado
somente nos crimes de maior gravidade e quando já tiverem sido esgotadas outras
formas de resolução de conflitos. Tornou-se inoportuno, portanto, dirigir-se ao
sistema penal como forma primária, uma vez que ele se mostra inoperante e
desgastante aos cidadãos. (CARVALHO, 1996, p. 56/57)
Desta forma, não basta a simples adequação da conduta praticada ao tipo
legal do crime, é necessário que ocorra uma lesão concreta ao bem jurídico, sob a
condição desta lesão se tornar insignificante. Assim, o Direito Penal é obrigado a
ocupar-se somente dos crimes que possuem maior gravidade, aqueles que
lesionem de forma efetiva o bem jurídico protegido pela norma. (CARVALHO, 1996,
p. 57) É crescente este posicionamento nos Tribunais:
Tratando-se de crime contra a saúde pública, a objetividade jurídica
concentra-se na própria saúde pública. O delito só se tipifica e o fato
só se torna punível quando existe dano efetivo ou concreto perigo
de dano a saúde pública. (HC 25.832 – TJRS 89/28)

Seguindo este raciocínio, diversos tribunais vêm adotando tal


posicionamento, julgando atípicas as condutas de consumo e porte de drogas
quando a quantidade da substância entorpecente apreendida em poder do indivíduo
é muito pequena.
53

Com o fundamento no princípio da insignificância, está sendo possível


absolver o indivíduo quando a quantidade de droga apreendida em seu poder não é
capaz de produzir dano ao bem jurídico tutelado, neste caso, a saúde pública.
Colhe-se algumas decisões, de diferentes Tribunais, inclusive do Superior Tribunal
de Justiça, que passaram a julgar neste sentido:
RESP PENAL - ENTORPECENTE - QUANTIDADE ÍNFIMA - O
crime, além da conduta, reclama resultado, ou seja, repercussão do
bem juridicamente tutelado, que, por sua vez, sofre dano, ou perigo.
Sem esse evento, o comportamento é penalmente irrelevante. No
caso dos entorpecentes, a conduta é criminalizada porque repercute
na saúde (usuário), ou interesse público (tráfico). Em sendo ínfima a
quantidade encontrada (maconha) é, por si só, insuficiente para
afetar o objeto jurídico. (TJSC - RESP nº 164.861/SP - Rel. Min. Luiz
Vicente Cernicchiaro - j. 03.12.98 - DJU 17.02.99)
[...]
PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 16 DA LEI Nº
6368/76. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
Quando ínfima a quantidade da droga apreendida (2,0g), e estava o
réu caminhando sozinho com as baganas no bolso, resta presumido
que o fato não tem repercussão na seara penal. No caso não
ocorreu efetiva lesão à bem jurídico tutelado, enquadrando-se o fato
no princípio da insignificância. NEGARAM PROVIMENTO À
APELAÇÃO MINISTERIAL E DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO
DA DEFESA. (TJRS - Recurso Crime Nº 71001142934, Turma
Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Alberto Delgado
Neto, Julgado em 16/04/2007)
[...]
PENAL. ENTORPECENTES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
- Sendo ínfima a pequena quantidade de droga encontrada em
poder do réu, o fato não tem repercussão na seara penal, à mingua
de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a
hipótese no princípio da insignificância.
- Recurso especial conhecido. (Resp 286.178, Rel. Min. Vicente
Leal, j. 13.02.2001.)
[...]
Penal. Apreensão de 0,25 de cocaína. Irrelevância penal – A
apreensão de quantidade ínfima de droga – 0,25 g -, sem qualquer
prova de tráfico, não tem repercussão penal, à mingua de lesão ao
bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema no campo da
insignificância. (HC – 7977/RJ – Relator Min. Fernando Gonçalves –
DJU 14.06.99, p. 227)

Em suma, disserta Luiz Flávio Gomes (2001, p. 453) que


tanto a doutrina quanto a jurisprudência acolhem o princípio da insignificância como
“instrumento auxiliar de interpretação restritiva dos tipos penais”. E continua
afirmando que sua conseqüência é de “excluir do âmbito da tipicidade as condutas
que não afetam de modo significativo o bem jurídico, que de todo modo não
54

estariam compreendidas na ‘finalidade’ da norma ou em seu ‘sentido material’”. Não


basta, pois, para uma condenação, a mera realização da conduta, é preciso que
dentro de uma perspectiva material, a interpretação de acordo com o bem jurídico
protegido, bem como, levar em conta o princípio da fragmentalidade (somente serão
punidos os ataques significativos ao bem jurídico).

2.5 Alterações da Lei 10.409/02

A Lei 6.368, de 21 de outubro 1976, concretizou o estereótipo


do usuário e do traficante, determinou condições para tratamento e recuperação a
que o usuário/dependente ficaria sujeito, independente dele ter cometido ou não o
delito, articulando, de forma implícita, que a dependência deveria ser considerada
perigo social. Neste sistema proibicionista, havia uma maior preocupação em punir-
se a posse de drogas à proporcional tratamento adequado e eficaz ao
usuário/dependente. (CARVALHO, 1997, p. 37)
Após vinte e seis anos de vigência da lei acompanhou-se a
modificação da visão proibicionista. Para muitos penalistas, ela estava ultrapassada
pelas modificações que a sociedade brasileira sofreu ao longo dos anos e não
servia mais como instrumento de controle penal eficaz e adequado, uma vez que se
encontrava totalmente divorciada da finalidade a que se propunha, qual seja a
prevenção, tratamento e repressão aos usuários e traficantes de substância
entorpecente. (BITTENCOURT, 1993, pág. 202)
Diante da falência do sistema prisional, principalmente no caso
de crimes relacionados a tóxicos, resultava imprescindível transformar a cultura
dominante, baseada na opinião de que o cárcere seria a verdadeira punição.
(BITTENCOURT, 1993, pág. 202)
Assim, foi elaborada e aprovada a Lei 10.409, de 11 de janeiro
de 2002, pautada na prevenção, tratamento, fiscalização, controle e repressão à
produção, ao uso e ao tráfico ilícito de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que
causem dependência física ou psíquica. Estas substâncias que são relacionadas
pelo Ministério da Saúde, com o intuito de substituir a anterior. A lei 10.409/02
preconizava a distinção do tratamento dispensado anteriormente ao usuário-vítima,
55

mais benigno ao portador de substância tóxica para uso próprio. (HABIB, Revista
Jurídica Consulex, nº 139, p. 13)
A partir da entrada em vigor do novo diploma legal, percebe-se
que houve grande inquietação por parte dos doutrinadores, estudiosos e
aplicadores do Direito, haja vista o grande número de equívocos legais presentes
na nova lei, que não poderiam ser mantidos por afrontarem, alguns deles, a própria
Constituição. (GUIMARÃES, 2004, p. 20)
Esta lei, idealizada para disciplinar toda a questão referente às
drogas em nosso país, tanto nos aspectos jurídicos quanto administrativos, acabou
sendo parcialmente vetada pelo Presidente da República, que aprovou o Projeto de
Lei n° 1.873, de 1991 (n° 105/96 no Senado Federal), fundamentado na sua
inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O veto alcançou cerca
de 30% do texto integral. Em linhas gerais, eis as razões dos vetos:
A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como o
veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das
Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto
substituir plenamente a Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976, que
"dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e
uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem
dependência física ou psíquica, e dá outras providências”. Além
disso, o espírito do projeto é compatível com a Lei no 6.368/76, que,
embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da
jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador,
ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da
criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado
entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia,
repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a
Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a
elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados
os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o
legislador sensivelmente expressou. Assim, o projeto soma-se à
ordem legal já vigente. Apenas são derrogadas as normas que
tratam de matéria especificadamente veiculada nos artigos,
parágrafos e incisos sancionados.
(Mensagem de Veto 25)

A lei é extremamente confusa e dá azo a enormes confusões


interpretativas. Das boas novidades, algumas foram vetadas, como pode ser
conferido adiante. É de uma atecnia absoluta, sem falar que desatendeu
manifestamente a Lei Complementar nº. 95/98 (alterada pela Lei Complementar nº.
107/2001), que dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das
leis. Como bem acentuou João José Leal, "ao contrário de trazer consigo a solução
56

para as questões jurídico-penais e processuais relativas à matéria, acabou se


constituindo num grande problema de hermenêutica jurídica”. (Boletim do IBCCRIM,
nº 118, setembro/2002).
Em resumo, dentre os diversos dispositivos da lei que foram
vetados, encontra-se o capítulo que tratava do consumo de drogas, permanecendo
vigente, quanto a essa parte da matéria, a Lei nº 6368/76. Em conseqüência, o
crime de uso continuou recebendo tratamento penal rígido, por meio da imposição
de pena privativa de liberdade ao usuário de drogas.
Com a promulgação da Lei n.º 10.409/02, desestimulou-se um
corajoso avanço no caminho da diminuição dos prejuízos causados pelas drogas.
Perdeu-se a oportunidade, ainda, de consolidar a idéia de que qualquer legislação
sobre o tema deve ter como ponto de partida o combate à estigmatização do
usuário, renunciando à utilização do direito penal como solução de problemas para
os quais ele não encontrou solução. (Boletim IBCCRIM, nº 111, fevereiro/2002)
57

3 AS MODIFICAÇÕES LEGAIS RELATIVAS À FIGURA DO USUÁRIO NA NOVA


LEI 11.343/06

3.1 ELABORAÇÃO DA LEI 11343/06

O Brasil, com a Nova Lei de Drogas, n. 11.343, promulgada em 23 de


agosto de 2006, adotou uma nova política criminal no tratamento do usuário de
substâncias entorpecentes, adequando-se às novas tendências provenientes do
direito alienígena.
Luiz Flávio Gomes destaca que, na atualidade, em termos mundiais, quatro
são as tendências político-criminais em relação às drogas:
A primeira segue o Modelo norte-americano, que defende a abstinência e a
tolerância zero. As drogas são tratadas como problema policial e particularmente
militar. A política criminal norte-americana, para resolver o problema das drogas,
adota o encarceramento em massa dos envolvidos, tanto usuários quando
traficantes. ‘”Diga não às drogas” é um programa populista, de eficácia
questionável, mas bastante revelador da política norte-americana. (GOMES et al.,
2006, p. 100)
Outra tendência destacada pelo autor é o Modelo liberal radical
(liberalização total), que enfatiza o caráter classista do sistema penal,
potencializado no caso do consumo de drogas. Segundo ele, tal corrente, pautada
pelos clássicos pensamentos de Stuart Mill, vem defendendo a necessidade de
liberação total da droga, sobretudo frente ao usuário; salienta que a questão da
droga potencializa o caráter seletivo do direito penal, realçando que somente pobres
vão para a cadeia. (GOMES et al., 2006, p. 101)
A tendência que vem ganhando força em toda a Europa é o Modelo de
redução de danos. Luiz Flávio Gomes explica que na Europa adota-se uma
estratégia, em oposição à política norte-americana, totalmente divorciada com o
modelo que prega a abstinência e a tolerância zero. Desta forma, esse modelo
confia que “a ‘redução de danos’ causados aos usuários e a terceiros (entrega de
seringas, demarcação de locais adequados para o consumo, controle do consumo,
assistência médica, etc.) seria o correto enfoque para o problema”. E segue,
discorrendo que “esse mesmo modelo, por outro lado, propugna pela
descriminalização gradual das drogas assim como por uma política de controle
58

(‘regulamentação’) e educacional; droga é problema sobretudo de saúde pública”.


(GOMES et al., 2006, p. 102)
O quarto e último modelo é o da chamada justiça terapêutica, que propugna
pela disseminação do tratamento como a forma adequada para cuidar do usuário ou
do usuário/dependente. Centrando sua atenção nessa reação, entende que o uso
de drogas deve ser encarado como problema de saúde pública, cabendo a
imposição coercitiva de tratamento ao usuário. (GOMES et al., 2006, p. 103)
A crítica desferida contra tal modelo é centrada na não diferenciação entre o
usuário e o dependente, impondo-se tratamento a ambos, podendo tornar suas
conseqüência mais perniciosas do que a completa omissão estatal.
Elisangela Melo Reghelin, tratando das diversas políticas adotas no
combate às drogas, destaca:
Dentro desse panorama internacional destacam-se os Estados
Unidos, ocupando a liderança das posições mais repressivas, e, por
outro lado, a Holanda, contrapondo a tendência ‘universal’,
adotando desde o inicio da década de 70 uma política tolerante em
relação a drogas como a maconha. É bom lembrar que, nesse
mesmo período, os EUA, ainda no governo Nixon, declaram ‘guerra
as drogas’, nome pelo qual se convencionou chamar, desde então, a
política norte-americana de combate. Contraditoriamente às
pretensões dessa prática, a amplitude do consumo de drogas licitas
e ilícitas e dos problemas a ele associados naquele país ainda são
os maiores do mundo. (REGHELIN, 2007, p. 59)

A moderna Criminologia tem buscado, frente às danosas e estigmatizantes


conseqüências do processo de encarceramento, em especial em relação ao usuário
de droga, novos rumos para o enfrentamento de condutas ilícitas, objetivando a
redução de danos e afinando-se com os discursos minimalistas.
Neste sentido, Zaffaroni e Pierangeli observam que:
[...] ante a constatação de que em toda a sociedade existe o
fenômeno dual ‘hegemonia-marginalização’, e que o sistema penal
tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se buscar uma
aplicação das soluções punitivas da maneira mais limitada possível.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 80)

Zaffaroni e Pierangeli (1999, p. 81) asseveram ainda, voltando suas


atenções ao caso específico dos países latino-americanos, que o princípio da
intervenção mínima tem mais razões ainda para ser consagrado:
[...] não somente pelas razões que se apresentam válidas nos
países centrais, mas também em face de nossa característica de
59

países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de


violação do direito ao desenvolvimento.

Assim, o princípio da intervenção mínima, que visa evitar o processo de


encarceramento, vem ganhando força junto ao pensamento criminológico brasileiro
e mundial, sendo que melhor se harmoniza com ele, tratando de políticas criminais
de combate às drogas, o modelo Europeu de redução de danos, que vem sendo
contemplado pela doutrina brasileira e que foi inspirador da Lei n. 11.343/2006, a
nova Lei de Drogas.
Neste sentido, tem-se entendido que:
O Direito Penal não deve invadir as áreas da moral, da ideologia ou
do bem-estar social, o que corresponderia a ultrapassar seus
próprios limites, sem prejuízo de seu papel fundamental de defender
os valores e interesses indispensáveis à ordem social” (SMANIO,
1998, p. 26)

Tal visão tem focado o usuário de drogas como merecedor de auxílio por
parte do estado, não de repressão jurídico-penal.
São Centralizadas as opiniões em torno do grau de ofensividade da conduta
do usuário. A orientação vem sendo a de que o uso de drogas volta seu potencial
danoso principalmente, senão exclusivamente, para o próprio usuário. Segundo
Isaac Sabbá Guimarães:
Deverá haver um apelo para a noção de adequação da norma
jurídico-penal à ordem social vigente. Assim, se a Constituição
reconhecer o pluralismo da sociedade brasileira (preâmbulo da CR),
deverá viger um regime de maior tolerância e respeito pela
autodeterminação de cada individuo, inclusive em relação às suas
opções de vida (desde que não afetem a harmonia e os valores da
sociedade), mesmo que sejam autodestrutivas. Sob o principio da
proporcionalidade, deverá, ainda, a lei penal mostrar-se necessária
para a solução de certos conflitos ou problemas sociais. Quer isto
dizer que, havendo um convencimento prévio de que os fenômenos
do uso e da dependência são verdadeiros problemas de saúde,
deixará a lei penal de ser necessária. Além do mais, correlacionado
com o princípio da dignidade da pessoa humana, poderíamos referir
que a lei penal cria estigmas indeléveis na pessoa de um doente (o
tóxico dependente), já que ele passa a ser tratado como um
autêntico criminoso. (GUIMARÃES, p. 17)

Neste esteio é que a nova Lei procura auxiliar o usuário, visando dar
esclarecimento sobre um problema que é antes de saúde pública do que
propriamente criminal.
60

3.2 O CONSUMO ANTE O ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06

A Lei 11.343/2006, que substituiu as disposições legais que anteriormente


tratavam do combate ao tráfico e uso de drogas, regulou a situação do usuário em
seu artigo 28, assim dispondo:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo.
§ 1° Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo
pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação
de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica.
§ 2° Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente.
§ 3° As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo
serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4° Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III
do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10
(dez) meses.
§ 5° A prestação de serviços à comunidade será cumprida em
programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais,
hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem
fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do
consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6° Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que
se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se
recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7° O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição
do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde,
preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Cinco, agora, são as condutas sancionadas: adquirir, guardar, ter em


depósito, transportar e trazer consigo. Adquirir significa comprar, obter a posse da
droga; guardar exprime a conduta de ocultar, ter sob guarda, sem que terceiros
saibam dessa posse; ter em depósito alcança a conduta de manter a droga sob
controle, sob imediato alcance e disponibilidade; transportar expressa a idéia de
61

deslocamento, de um local para outro; trazer consigo é a mesma coisa que portar a
droga, tendo disponibilidade de acesso, de uso. (GOMES et al., 2000, p. 119-120)
O novo tipo penal afeto às condutas que antecedem ao uso, parti do núcleo
do art. 16 da Lei 6.368/76, acrescentando as condutas de quem tiver em deposito e
transportar drogas para uso seu. São ações coincidentes com as de tráfico, não
prevendo o legislador regras objetivas que diferenciem o usuário do traficante.
(GUIMARÃES, 2006, p. 32)
Distinguir o crime de trafico ilícito de entorpecente do simples porte para o
uso nunca foi tarefa fácil e continuará a ser árdua atribuição do magistrado.
Guilherme de Souza Nucci afirma ser:
[...] fundamental que se verifique, para a correta tipificação da
conduta, os elementos pertinentes à natureza da droga, sua
quantidade, avaliando local, condições gerais, circunstancias
envolvendo a ação e a prisão, bem como a conduta e os
antecedentes do agente. (NUCCI, 2006, p. 759).

Luiz Flávio Gomes, visando objetivar minimamente os critérios de distinção


entre as duas figuras típicas, afirma que:
[...] são relevantes: o objeto material do delito (natureza e
quantidade da droga), o desvalor da ação (local e condições em que
ela se desenvolveu) assim como o próprio agente do fato (suas
circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e antecedentes).
(GOMES et al., 2006, p. 132)

Ou seja, fica claro que a configuração de crime de uso ou de tráfico


dependerá do caso concreto. Utilizando-se da proporcionalidade e do bom senso o
julgador deverá sopesar as circunstâncias do fato, optando sempre, em caso de
dúvida, por enquadrar a conduta no tipo penal mais brando do artigo 28.
Isaac Sabbá Guimarães destaca que “o agente que consumiu
completamente a droga e que não deixou vestígios da ação física, não pode ser
conduzido à condenação por falta de configuração do delito”. (GUIMARÃES, 2006,
p. 31). Afinal, sem a apreensão da substância (sem o objeto material do delito), não
é possível a constatação de sua idoneidade tóxica. Não se comprova, portanto, a
materialidade da infração.
Elemento normativo do tipo que merece destaque é a expressão sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pois
constitui fator vinculado à ilicitude, inserido no tipo incriminador torna-se elemento
62

deste e, uma vez que não seja preenchido, transforma o fato em atípico. A
constatação dessa determinação legal ou regulamentar deve ser feita pelo juiz
(NUCCI, 2006, p. 756).
Outro ponto inovador trazido pela Lei 11.343/2006 foi em relação ao plantio
de semente ou planta voltada para a preparação de substância entorpecente
visando o consumo pessoal. Antes do advento da Nova Lei de Drogas não havia
previsão legal para este tipo de conduta, somente era previsto o plantio para fins de
traficância. Ao se deparar com tais situações, três opções eram postas diante do
julgador. A primeira era equiparar o fato ao uso; a segunda era enquadrar no tipo de
tráfico; a terceira e ultima era entender pela atipicidade do fato. (CAPEZ, 2006, p.
70)
Fernando Capez entendia que “o plantio para uso próprio não estava
previsto em lugar nenhum, nem como figura equiparada ao art. 12, nem como figura
analógica ao art. 16: tratava-se de fato atípico”. (CAPEZ, 2006, p. 71)
A partir da Lei 11.343.2006 não há mais que se falar em crime de tráfico
diante do caso sob comento, semear (espalhar sementes para que germinem);
cultivar (propiciar condições para o desenvolvimento da planta); colher (recolher o
que a planta produz) são as condutas equiparadas à do usuário descritas no caput
do artigo 28. (NUCCI, 2006, p. 758-759).
O bem jurídico aqui contemplado é a saúde pública, exigindo-se para a
caracterização da infração, além do dolo, uma finalidade (intenção) especial do
agente, que seja a droga destinada “para consumo pessoal”. Esse é o dolo
específico (como diz a doutrina italiana) ou elemento subjetivo do injusto (como diz
a doutrina alemã) que o tipo requer. (GOMES et al., 2006, p. 120)
Não foi prevista a forma culposa do crime em comento (que é atípica,
portanto). Da mesma forma a tentativa não pode ser punida. Assevera Luiz Flávio
Gomes que “do ponto de vista fático é possível. Por exemplo: tentar adquirir droga
para consumo pessoal. Mas para essa conduta nenhuma sanção foi contemplada
pela nova Lei”. (GOMES et al., p. 122)
Guilherme de Souza Nucci observa que o tipo sob exame se trata de norma
penal em branco, ou seja, o tipo penal depende de um complemento a lhe dar
sentido e condições para aplicação.
63

O termo drogas não constitui elementos normativos do tipo, sujeito a uma


interpretação valorativa do juiz (NUCCI, 2006, p. 755). Tal complemento é dado
pela lista de drogas expedida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária), que é vinculada ao Ministério da Saúde.
Porém, pode-se afirmar que a principal modificação promovida pela
Lei 11.343/2006 foi a consolidação de um política criminal que vem
sendo defendida pela moderna criminologia em relação ao usuário,
a adoção da política de redução de danos, excluindo a possibilidade
de cominação de pena de privação de liberdade ao sujeito que
comete o fato típico.

Parece que, temendo a reação social à eventual descriminalização da


conduta do consumidor, o legislador preferiu eliminar a pena privativa de liberdade,
optando por outras formas de sanções extremamente brandas. (NUCCI, 2006, p.
756)
Tal modificação no tratamento despendido ao usuário passa por uma
mudança paradigmática em relação à posição do sujeito frente ao direito penal.
Deixa o usuário de ser visto como objeto do processo de ressocialização (hoje
desacreditado), e passa a ser tratado como sujeito de direitos, resguardando-se sua
esfera de liberdade, de autodeterminação, dentro da qual a ingerência estatal nada
mais é que violação de garantia fundamental. (NUCCI, 2006, p. 756)
Dentro dessa nova perspectiva, que observa a temática das drogas menos
como questão criminal e mais como questão de saúde pública, que o legislador
pátrio, abandonando as penas de privação de liberdade, sancionou a conduta
daquele que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar”, com as penas alternativas de advertência
sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida de
comparecimento a programa ou curso educativo. O estudo destas sanções será
aprofundado no item seguinte. (NUCCI, 2006, p. 757)
Em relação à Lei Penal no tempo, Guilherme de Souza Nucci observa que:
[...] o crime de consumo de drogas para uso pessoal (atual art. 28)
tem perfil evidentemente favorável, em comparação com o delito
anteriormente previsto no art. 16 da Lei 6.368/76. Não há mais pena
privativa de liberdade nesse contexto. Portanto, entrando em vigor a
nova lei, todos os condenados com base no art. 16, que sejam
eventualmente presos, devem ser imediatamente libertados,
64

substituindo-se a pena privativa de liberdade pelas novas punições


previstas no art. 28ª da Lei 11.343/2006. (NUCCI, 2006, p. 757).

Por fim, cabe ressaltar que a tentativa de adoção da justiça terapêutica,


que constava no Projeto que culminou com a promulgação da Lei 10.409/2002, o
qual previa como pena a submissão a tratamento, foi completamente abandonada
pela Lei 11.343.2006. O que fez o novo diploma foi somente, no § 7° do artigo 28,
determinar que o poder público disponibilize ao usuário, gratuitamente, tratamento
especializado, sem qualquer espécie de imposição. (GOMES et al., 2006, p. 138)
Assim afirma Luiz Flávio Gomes:
De acordo com o diploma legal em questão cabe ao juiz determinar
ao Poder Público (ou seja: ao setor do Poder Público que cuida da
administração da saúde pública) que coloque a disposição do
infrator o referido tratamento. Verifica-se que o tratamento deve ser
oferecido (não imposto) ao infrator. É da essência de todo
tratamento a adesão do sujeito. (GOMES et al., 2006, p. 138)

3.3 O CONSUMO E AS PENAS ALTERNATIVAS

Antes mesmo do advento da Lei 11.343/2006 já vinha se desenhando uma


nova tendência de enfrentamento dos chamados crimes de menor potencial
ofensivo, dentre os quais se inseria a figura típica do usuário de substâncias
entorpecentes. Inseria-se, pois, segundo Guilherme de Souza Nucci, ora deve ser
considerado de “ínfimo potencial ofensivo” o crime previsto no art. 28 da Lei, tendo
em vista que, “mesmo não sendo possível a transação, ainda que reincidente o
agente, com maus antecedentes ou péssima conduta social, jamais será aplicada
pena privativa de liberdade”.(NUCCI, 2006, p. 755).
A moderna política criminal vinha orientando o operador do direito no
sentido de, sempre que diante de um crime de menor potencial ofensivo, evitar a
pena restritiva de liberdade, como é o caso do crime de uso.
O art. 44 do CP, com a redação dada pela Lei 9.714, de 25 de outubro de
1998, reflete bem esta política criminal, deixando implícita a orientação de que não
se aplicará pena restritiva de liberdade aos crimes de menor potencial ofensivo,
ficando tal punição reservada para os crimes punidos com mais de 4 anos,
cometidos mediante uso de violência ou de grave ameaças, quando o réu for
65

reincidente em crime doloso ou quando as circunstancias pessoais indicarem sua


necessidade. (GUIMARÃES, 2006, p. 36-37)
O Código Penal, reservando a pena privativa de liberdade para os casos
mencionados, elenca, em seu artigo 43, uma série de penas alternativas que seriam
aplicadas em substituição àquelas nos demais casos. São elas: prestação
pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou a
entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.
(GUIMARÃES, 2006, p. 36-37)
Neste contexto, Fernando Capez afirma que, para o crime de uso, vinha
sendo aplicada, via de regra, o sursis e a substituição por pena restritiva de direitos,
se presentes às condições gerais do Código Penal. (CAPEZ, 2006, p. 67/68)
Acerca do assunto se manifestou Luiz Flávio Gomes da seguinte forma:
Ao usuário não se comina pena de prisão. Pretende-se que nem
sequer ele passe pela polícia. O infrator da Lei será enviado
diretamente aos juizados Criminais, salvo onde inexistem tais
juizados de plantão (art. 48, §2°). Não há que se falar, de outro lado,
em inquérito policial, sim em termo circunstanciado. Não é possível
a prisão em flagrante (art. 48, §2°): o agente surpreendido é
capturado, mas não se lavra auto de prisão em flagrante (no seu
lugar, elabora-se o termo circunstanciado). A competência para a
aplicação de todas as medidas alternativas é dos Juizados
Criminais. Na audiência preliminar é possível a transação penal,
aplicando-se as penas alternativas do art. 28. Não aceita (pelo
agente) a transação penal, segue-se o rito sumaríssimo da Lei
9.099/95. Mas, no final, de modo algum será imposta pena de
prisão, sim, somente as medidas alternativas do art. 28. (GOMES et
al., 2006, p. 7)

Isso significa uma nova despenalização a partir do próprio diploma. Em


hipótese alguma será imposta pena restritiva de liberdade ao autor de crime de uso,
cabendo somente a aplicação de medidas alternativas, dentre as quais, a
“advertência”, novidade nessa seara, a prestação de serviços à comunidade e a
medida de comparecimento a programa ou curso educativo. As medidas poderão
ser aplicadas isoladas ou conjuntamente, mas em caso de descumprimento, caberá
admoestação verbal e/ou multa, nunca a pena de prisão. (REGHELIN, 2007, p. 69-
70)
Desta forma, observa Júlio Victor dos Santos Moura, a pena restritiva de
direitos é selecionada pelo legislador como resposta penal cabível a pratica do
delito capitulado no art. 28 da Lei n° 11.343/06, o que fez com que as penas
66

alternativas passassem, ao lado das penas privativas de liberdade e de multa, a


integrar o rol das sanções penais que podem ser aplicadas diretamente pelo
Magistrado (Moura, 2006, p. 99).
Não se trata mais de definir a pena restritiva de liberdade e promover a sua
substituição por pena alternativa, mas sim se comina diretamente a media
alternativa, que passou a ser pena principal.
A partir de então somente três sanções podem ser impostas àquele que é
surpreendido ao “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em descordo com determinação
legal ou regulamentar”, são elas: advertência sobre os efeitos das drogas,
prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo.
Da redação inicial do Projeto ao texto final da nova Lei de Drogas, algumas
alterações foram efetuadas no tocante às penas a serem aplicadas.
Observa Isaac Sabbá Guimarães que “Incluiu-se, no entanto, a pena de
‘advertência sobre os efeitos da drogas’, e excluíram-se as medidas de ‘proibição
de freqüência a determinados lugares’ e de ‘submissão a tratamento’“
(GUIMARÃES, 2006, p. 16). Tais modificações são resultado do descrédito da
justiça restaurativa. Entendeu o legislador que nenhum tratamento que careça da
voluntária adesão do paciente surtirá algum efeito positivo se imposto.
Ressalte-se que, nem mesmo ao ofertar a transação penal (art. 76 da Lei
9.099/95), poderá o Ministério Público propor a cominação de pena alternativa
diferente das elencadas no artigo 28 da Lei 11.343/2006. Neste sentido, ensina
Rômulo de Andrade Moreira que “a proposta terá como objetivo uma das medidas
educativas (como define a própria lei) prevista no art. 28”. (MOREIRA, 2006, p. 76).
Guimarães conceitua a pena de advertência da seguinte forma:
A advertência consiste em explicar ao infrator os efeitos provocados
pelo uso de drogas e, ao que nos parece, aqueles mais diretamente
relacionados à saúde. Em termos simples, diríamos que,
transacionada ou aplicada em sentença, a advertência requererá um
ato personalíssimo entre Juiz e reeducando, em o qual o magistrado
lhe dirá sobre os malefícios do uso de drogas, tudo, segundo nos
parece mais lógico, consignado em termo para o especial efeito.
(GUIMARÃES, 2006, p. 42)
67

Trata-se, portanto, de ato solene, não se configurando em repreensão de


cunho moralista ou religioso. É sanção legal, de razão jurídica, na qual deverão ser
abordados os efeitos nocivos do uso de drogas. (GUIMARÃES, 2006, p. 42)

3.3.1 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE

A prestação de serviços à comunidade, nos termos do artigo 46 do Código


Penal, se caracteriza por ser a atribuição de tarefas gratuitas ao apenado, não
gerando qualquer relação de emprego para com a instituição em que for cumprida.
As atividades deverão levar em conta as aptidões do sujeito, sendo cumpridas em
horário que não prejudique o desempenho de suas atividades regulares e
preferencialmente, conforme o § 5°, artigo 28, da Lei 11.343/2006, em instituição
que trabalhe no combate ao uso de drogas ou no tratamento de dependente
químico. (GUIMARÃES, 2006, p. 43).
Zaffaroni e Pierangeli (1999, p.810).destacam:
[...] que a pena, pela sua natureza, possui um certo aspecto
estigmatizante, que é quase impossível de se evitar, mas que o
sistema penal deve procurar reduzir ao mínimo possível. Se se
instrumentalizar a prestação de serviços à comunidade de forma
infamante, o resultado será um aumento de efeito estigmatizante,
que já existe em qualquer tipo de pena.

Por último temos a pena de comparecimento à programa ou curso


educativo, que não guarda correspondência com qualquer das penas restritivas de
direito previstas no Código Penal. Caberá ao juiz precisar em que curso deverá o
apenado comparecer, indicando em que local e com que freqüência. Lembre-se que
deverá ser cumprida em horário que não prejudique o desempenho das demais
atividade do sujeito. (GUIMARÃES, 2006, p. 43)
As penas previstas nos inciso II e III, artigo 28, da nova Lei de Drogas terá
duração máxima de 5 (cinco) meses (§ 3° do artigo 28). Em caso de reincidência,
poderão ser aplicadas pelo prazo de até 10 (dez) meses (§ 4° do artigo 28).
Luiz Flávio Gomes, ao comentar os citados parágrafos, observa a
necessidade de que a reincidência seja específica. Segundo ele:
[...] o usuário (que tem posse da droga para consumo pessoal)
quando surpreendido pela primeira vez (mesmo que condenado
antes por outros crimes: roubo, furto etc.) cumprirá no máximo cinco
68

meses de pena. Sendo reincidente específico nessa infração, sua


sanção poderá chegar a 10 meses. (GOMES et al., 2006, p. 134)

Há que se observar, ainda, que, na opinião de Guilherme de Souza Nucci,


pode o magistrado optar, com fundamento nos elementos do art. 59 do Código
Penal Brasileiro, pela aplicação cumulativa das penas previstas nos incisos do
Artigo 28. Ainda, estabelecida a pena de comparecimento a programa ou curso
educativo, pode-se até, durante seu cumprimento, constatada sua ineficácia,
substituí-la por prestação de serviços à comunidade, ou esta pode ser transformada
naquela. (NUCCI, 2006, p. 754)
Para garantir o cumprimento das medidas fixadas, o juiz irá admoestar o
agente (adverti-lo) e, sucessivamente, caso a advertência não funcione, irá impor a
pena de multa, que será cominada conforme o disposto no art. 29 da Lei
11.343/2006. Ressalte-se que a admoestação verbal e a multa serão aplicadas
sucessivamente, nunca cumulativamente, ou seja, primeiro a admoestação verbal
(advertência), e caso não surta o efeito esperado, aí sim a multa. (OLDONI, 2006, p.
114)

3.4 O CONSUMO FRENTE À LEI 9.099/95

A tendência descarcerizadora ganhou maior propulsão com o advento da


Lei 9.099, em 26 de setembro de 1995. O procedimento sumaríssimo nela previsto
era aplicado aos crimes considerados de menor potencial ofensivo, que eram “as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a
um ano, excetuadas os casos em que a lei preveja procedimento especial” (redação
original do artigo 61). O processo perante o Juizado Especial orienta-se pelos
princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade,
objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a
aplicação de pena não privativa de liberdade (artigo 62 da Lei n. 9.099/1995).
(CAPEZ, 2006, p. 67/68)
O crime de porte ou posse de droga estava previsto no art. 16 da Lei n.
6.368/1976, que cominava pena de detenção de 6 meses a 2 anos, além de ser
previsto procedimento especial para o crime em comento, nos termos dos artigos 20
e seguintes da Lei 6.368/76, aplicando-se subsidiariamente o Código de Processo
69

Penal. Não era, portanto, considerada infração de menor potencial ofensivo, pois
não preenchia os requisitos legais previstos no artigo 61 da lei 9.099/1995. À época,
Gianpaolo Poggio Smanio, em obra dedicada ao estudo dos juizados Especiais
Criminais, já se referia a tal posicionamento afirmando que:
[...] a jurisprudência já sedimentada reconheceu a impossibilidade
da transação penal para o crime de uso de entorpecente, previsto no
art. 16 da Lei n. 6.368/76, por não se tratar de crime de menor
potencial ofensivo (TJSP, ACs. N. 201.046-3/4; 206.049-3/6,
200.307-3). (SMANIO, 1998, p. 77)

Ocorre que a Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e


Criminais no âmbito da Justiça Federal, deu nova definição aos crimes de menor
potencial ofensivo, prevendo no parágrafo único do seu artigo 2° que “consideram-
se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que
a Lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.
Doutrina e Jurisprudência, entendendo impossível a coexistência de duas
definições legais para um mesmo termo, estendeu o novo conceito ao âmbito dos
Juizados Especiais Criminais da Justiça Comum. Tal entendimento foi ratificado
pelo legislador com a promulgação da Lei 11.313/2006, modificando a redação do
artigo 61 da Lei 9.099/1995, que passou a ser a seguinte:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial
ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os
crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois)
anos, cumulada ou não com multa.

Luiz Flávio Gomes observa que com a citada alteração, passou o crime de
uso a ser considerado de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima cominada
pela antiga Lei de Tóxicos era de 2 (dois) anos, bem como há agora a possibilidade
de incidência da Lei 9.099/1995 ao crimes aos quais a Lei prevê procedimento
especial, uma vez que tal limitação foi excluída. Assim escreve:
Com base na Lei 10.259/2001 (vigente desde 14.01.2001), o novo
limite nacional (e único), para as infrações de menor potencial
ofensivo passou a ser interpretado pela doutrina e jurisprudência
majoritárias como sendo de dois anos. O art. 16 da Lei de Tóxicos
tornou-se infração de menor potencial ofensivo (da competência dos
Juizados Criminais). Essa situação consolidou-se com a Lei
11.313/2006 (que alterou a redação do art. 61 da Lei 9.099/95). Já
não se aplicava, desse modo, pena de prisão para o simples
usuário”. (GOMES et al., 2006, p. 104-105)
70

Assim, com a nova definição dada pela Lei 10.259/2001, posteriormente


confirmada pela Lei 11.313/2006, que além de reduzir o quantum máximo da pena
cominada em abstrato exclui o requisito de não o autor de fato tipificado como crime
de uso passou a ser submetido ao procedimento da Lei dos Juizados Especiais,
sendo-lhe aplicados todos os benefícios ali previstos, tais como a transação penal,
na forma e segundo o que faculta o art. 76 da Lei 9.099/95 e, malograda a
transação, o Promotor de Justiça ofereceria denúncia, propondo, no entanto, a
suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/1995.
(GUIMARÃES, 2006, p. 23)
Isaac Sabbá Guimarães afirma: “A pena, diversa da restritiva de liberdade,
poderá ser restritiva de direitos ou multas, qualquer delas proposta atendo-se em
consideração as circunstancias do fato e o autor, como normalmente a doutrina
mais autorizada refere”. (GUIMARÃES, 2006, p. 23)
Porém, até então, apesar do grande avanço proporcionado pelos citados
dispositivos legais, ainda era admitida a prisão em flagrante do usuário e, ao final da
tramitação da Ação Penal, seria possível a aplicação de pena privativa de liberdade.
Avançando ainda mais no sentido de reduzir os danos causados pela intervenção
do poder punitivo estatal sobre a esfera de liberdade individual, a nova Lei de
Drogas proíbe a aplicação de qualquer espécie de restrição de liberdade àquele que
é surpreendido no porte ou posse de substância entorpecente.

3.5 PROCESSOS DE DESCRIMINALIZAÇÃO

Partindo da constatação da falência do sistema punitivo, de efeitos


deletérios sobre a personalidade do indivíduo, estigmatizador e violento, têm
ganhado força as tendências de minimização da atuação jurídico-penal.
Raul Cervini, tratando destes e de outros problemas relacionados ao
sistema penal, observa:
Como se todos esses problemas fossem poucos, também não
conseguimos resolver o dos métodos de tratamento que podem ser
aplicados para conseguir a terapia social. É muito fácil dizer que o
delinqüente deve ser tratado; mas já não o é tanto, dizer de que
forma isso deve ser feito.
Como e para que ressocializar alguém que por razões conjunturais
de desemprego, grave crise econômica, etc., comete um delito
71

contra a propriedade, enquanto tais razões de desocupação e crise


econômica continuam existindo.
Como ressocializar para o respeito à vida um delinqüente violento,
sem criticar ao mesmo tempo uma sociedade que continuamente
reproduz a violência através dos meios de comunicação e
desencadeia ou exerce uma agressão brutal (guerras, violação de
direitos humanos) contra outros grupos mais fracos ou marginais,
entre os quais provavelmente se encontra o delinqüente? (CERVINI,
1995, p. 36)

Focando no processo de prisionização, na extrema violência em que se


configura, Raúl Cervini destaca que alguns de seus efeitos são, am relação ao
sujeito aprisionado, a diminuição da adaptabilidade depois da aplicação das penas
privativas de liberdade e os efeitos adversos da estigmatização que dela resulta.
Em relação à sociedade, os principais fatores para que venha sendo
paulatinamente evitado, são a não solução dos problemas sociais através de um
enfoque estigmatizante e o custo do crime. (CERVINI, 1995, p. 49)
Dentro desta nova tendência, é importante destacar a lógica do processo de
evolução do Direito Penal, que corresponde à superação de uma realidade por
outra, partindo das novas concepção oriundas da sociedade, traduzindo-se em
medidas de descriminalização, por vezes articuladas com medidas de
neocriminalização. (SMANIO, 1998, p. 25).
Cumpre, então, tratar dos processos de desinstitucionalização, ou
desestatização, que se consubstanciam em retirar das instancias formais (forças
policiais, poder judiciário, sistema prisional) de controle a resolução de certos
conflitos (SMANIO, 1998, p. 26)
Raul Cervini destaca três conceitos importantes:
Descriminalização é sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito
do Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas. Na visão
do autor a descriminalização pode manifestar-se sobre três enfoques: O primeiro é
a “descriminalização formal” (abstenção do Estado em intervir, legalizando o fato), o
segundo é a “descriminalização substitutiva” (as penas são substituídas por
sanções de outra natureza, não há legalização da conduta, mas sua transferência
para outro campo do direito), por fim a descriminalização de fato (ocorre quando o
direito penal deixa de funcionar sem que tenha perdido formalmente sua
competência). (CERVINI, 1995, p. 72-73)
72

O segundo conceito referido é o de despenalização. Nos dizeres de Cervini:


Por despenalização entendemos o ato de diminuir a pena de um
delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato ao caráter
de ilícito penal. Segundo o Comitê do Conselho Europeu, este
conceito inclui toda a gama de possíveis formas de atenuação e
alternativas penais: prisão de fim de semana, prestação de serviços
de utilidade pública, multa reparatória, indenização à vitima,
semidetenção, sistemas de controle de condutas em liberdade,
prisão domiciliar, inabilidade, diminuição de salário e todas as
medidas reeducativas dos sistemas penais (Informe Del Comitê
Europeu sobre problemas de la criminalidad, 1980). (CERVINI,
1995, p. 75)

Por fim, refere-se ao conceito de diversificação, que consiste na suspensão


dos procedimentos criminais em casos em que o sistema de justiça penal mantém
formalmente sua competência. Pauta-se na autocomposição dos litígios por meio
dos processos de mediação e conciliação. (CERVINI, 1995, p. 76)
Aos já mencionados, Luis Flávio Gomes acrescenta o conceito de
descarcerização, que consiste em evitar o máximo possível a prisão cautelar.
(GOMES, 1995, p. 97)
Zaffaroni e Pierangeli trabalham os mesmos conceitos, acrescendo a eles
uma nota sobre a intervenção mínima:
A descriminalização é a renuncia formal (jurídica) de agir em um
conflito pela via do sistema penal.(Zaffaroni, p.357) A
descriminalização pode ser “de fato”, quando o sistema penal deixa
de agir, sem que formalmente tenha perdido competência para isso.
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.357)
A despenalização é o ato de “degradar” a pena de um delito sem
descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível aplicação das
alternativas à penas privativas de liberdade. (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 1999, p.358).
Diversificação é a possibilidade legal de que o processo penal seja
suspenso em certo momento e a solução ao conflito alcançada de
forma não punitiva. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.358)
Intervenção mínima é uma tendência político-criminal
contemporânea que postula a redução ao mínimo da solução
punitiva dos conflitos sociais, em atenção ao efeito freqüentemente
contraproducente da ingerência penal do estado. (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 1999, p.358)

Tem-se, portanto, que a descriminalização “consiste na retirada do sistema


de um valor como objeto da tutela penal, reputando esse valor como passível de
proteção por outros ramos do direito” (SMANIO, 1998, p. 26). Por sua vez,
73

despenalização “é um processo de redução das sanções penais aplicadas a


comportamentos que continuam a ser ilícitos penais”. (SMANIO, 1998, p. 26)

3.6 O POSICIONAMENTO DA DOUTRINA ACERCA DO CARÁTER DAS


MODIFICAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.343/2006, NO TOCANTE AO USO
DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES

Questão que tem gerado controvérsia entre os doutrinadores brasileiros diz


respeito ao enfoque dado pela nova Lei de Drogas à conduta do usuário. Parte da
doutrina defende que houve a descriminalização, parte entende que ocorreu a
despenalização.
Luis Flávio Gomes sustenta a tese de que houve a descriminalização da
conduta do usuário de entorpecentes, sob o argumento:
[...] “crime” é a infração penal punida com reclusão ou detenção
(quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa). Afirma
que “não há dúvida que a posse de droga para o consumo pessoal
(com a nova Lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas
para essa conduta (advertência, prestação de serviços à
comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28)
não conduzem a nenhum tipo de prisão. (GOMES et al., 2006, p.
109)

Ou seja, baseia-se na definição de crime que nos é dada pelo art. 1° da Lei
de Introdução ao Código Penal, redigido em 1941, para afirmar que houve a
descriminalização.
Continua:
[...] diante de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a posse de
droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração sui
generis. Não se trata de ‘crime’ nem de ‘contravenção penal’ porque
somente foram cominadas penas alternativas, abandonando-se a
pena de prisão. (GOMES et al., 2006, p. 110)

Assevera que tais penas pertencem ao âmbito do “Direito Judicial


Sancionador” (GOMES et al., p. 111).
Fernando Capez possui opinião divergente, afirmando que:
Entendemos, no entanto, que não houve a descriminalização da
conduta. O fato continua a ter a natureza de crime, na medida em
que a própria Lei o inseriu no capitulo relativo aos crimes e às penas
(Capitulo III); além do que as sanções só podem ser aplicadas por
juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante o
devido processo legal (no caso, o procedimento criminal do Juizado
74

Especial Criminal, conforme expressa determinação legal do art. 48,


§ 1°, da nova Lei). A LICP está ultrapassada nesse aspecto e não
pode ditar os parâmetros para a nova tipificação legal do século XXI.
(CAPEZ, 2006, p. 68)

No mesmo sentido é possível citar a opinião de Júlio Victor dos Santos


Moura, segundo o qual, na hipótese de crime do porte ou posse de drogas para uso
pessoal, aconteceu mero abrandamento do rigor penal, passando-se da cominação
de pena privativa de liberdade e pena pecuniária à, no lugar delas, penas restritivas
de direitos. Cita-se:
[...] configurando, dessa forma, verdadeira despenalização, em que
o crime – antes previsto pelo art. 16 da Lei n° 6.368/76, agora
disciplinado pelo art. 28 da Lei n° 11.343/06 – continua a fazer parte
do ordenamento jurídico brasileiro, na condição de ilícito penal,
punido somente com pena alternativa”. (MOURA, 2006, p. 100)

Elisangela Melo Reghelin entende que não houve a descriminalização da


conduta, mas mera despenalização. Segundo ela, apesar da nova lei de drogas
distar, no plano político criminal, do ideal da descriminalização, seguiu dois
importantes rumos: a exclusão da justiça terapêutica, e a adoção de uma política de
redução de danos. Menciona, com base no entendimento de Zaffaroni, que “o
usuário de drogas permanece visto segundo a perspectiva do binômio doente-
criminoso. De qualquer maneira, seja por meio de uma pena, seja mediante uma
medida de segurança, o usuário acaba submetido a uma sanção penal”.
(REGHELIN, 2007, p. 73)
Confirmando a majoritária inclinação da doutrina em entender a modificação
como mero processo de despenalização, Maria Lúcia Karam afirma:
No Brasil, a nova lei 11.343/2006 mantém a criminalização da posse
para uso pessoal de drogas qualificadas e ilícitas, apenas afastando
a imposição de pena privativa de liberdade, o que, dada a pena
máxima de detenção de 2 anos prevista na lei 6.368/76, a
indevidamente criminalizada posse para uso pessoal já se
enquadrava na definição de infração penal de menor potencial
ofensivo, sendo aplicáveis as regras contidas na Lei 9.099/95, que
prevêem a imposição antecipada e “negociada” de pena não
privativas da liberdade. (KARAM, 2007, p. 138).

Restou claro, de tudo quanto exposto, que a inovação trazida pela Lei
11.343/2006 foi bastante cometida, mais ratificando uma situação que já vinha
sendo a prática dos Juizados Especiais Criminais. A doutrina majoritária (e agora
75

também o Supremo Tribunal Federal, em sentença que será analisada a seguir) é


uníssona ao afirmar que não ocorreu a descriminalização da conduta do porte ou
posse de substância entorpecente. È significativa a crítica tecida contra a covardia
legislativa, que perdeu valiosa oportunidade de avançar ainda mais em relação ao
tratamento jurídico do usuário de drogas, podendo firmar de vez o entendimento da
quase unanimidade dos doutrinadores de que a questão é de saúde pública.
Neste sentido, Isabel Melo Reghelin lamenta que “o legislador não tenha
avançado e extirpando, definitivamente, o tipo penal em apreços, eis que carente de
dignidade penal”. (REGHELIN, 2007, p. 70)

3.7 A DECISÃO DO STF TRATANDO DO ENFOQUE DADO À CONDUTA DO


USUÁRIO PELA NOVA LEI DE DROGAS

Recentemente, em decisão proferida nos autos do recurso extraordinário n.


430.105-9, do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal se manifestou acerca da
mudança promovida pela Lei 11.343/2006 à conduta do usuário de droga.
Transcreve-se a ementa da decisão:

I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 –


nova lei de drogas): natureza jurídica de crime.
1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que
permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma
contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote
outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado
crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da
privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das
opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora
(CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII).
2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um
pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria
levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário
de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”,
só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).
3. Ao uso da expressão “reincidência”, também não se pode
emprestar um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de
princípio, somente disposição expressa em contrário na L.
11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12).
4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de
infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para
os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a
proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L.
9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição
76

segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343,


art. 30).
6. Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão,
para o tipo, das penas privativas de liberdade.
7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não
implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107).
II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo
decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa
interruptiva.
III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (STF, Recurso
Extraordinário n. 430.105-9/RJ, Primeira Turma, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, prolatada em 13.02.2007)

Em sessão presidida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, presentes os


Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e a Ministra Cármen
Lúcia, entendeu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
que não ocorreu a descriminalização da conduta do usuário de drogas, mas mera
despenalização, pacificando o posicionamento jurisprudência acerca do tema.
Divergindo da posição defendida por Luiz Flávio Gomes, os argumentos
expostos pelo Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, e amplamente encampados
pelos demais presentes, vão no sentido de negar que seja o artigo 1° da Lei de
Introdução ao Código Penal óbice a que a Lei 11.343/2006 criasse crime sem a
imposição de pena privativa de liberdade. Entende que o mencionado dispositivo
simplesmente estabelece critério que permite distinguir crime de contravenção
penal.
Aduz, ainda, que não pode supor a ausência de rigor técnico na redação da
nova Lei de Drogas, sendo que a alocação da conduta do usuário no capítulo que
trata “dos crimes e das penas” não se dá por equívoco do legislador.
Conclui, alinhando-se ao que vinha interpretando a doutrina majoritária, que
não ocorreu abolitio criminis, mas mera despenalização da conduta do usuário, no
sentido em que vem sendo interpretado o termo, ou seja, como rompimento da
tradição de imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou
substitutiva.
77

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou demonstrar a caminhada da criminalização das


drogas, e as conseqüentes disposições legais promulgadas até os dias de hoje,
focalizando a figura do usuário de substâncias entorpecentes, bem como o
tratamento e as sanções impostas a estes.
Como visto, a internacionalização do combate às drogas, liderada pelos
Estados Unidos, não tem conseguido cumprir suas metas quanto aos seus objetivos
declarados, não sendo capaz de acabar ou sequer reduzir o consumo e o tráfico
destas substâncias. Uma guerra pautada no combate denominado “narcotráfico”
somente poderia ser falha na eliminação deste, uma vez que o que se deve
combater é a demanda, sem a qual não existiria oferta.
O Brasil, influenciado pela política norte-americana aderiu à guerra contra
as drogas, promulgando normais legais de exceção e disseminando o terror pelas
cidades, utilizando-se da repressão penal contra os consumidores e traficantes.
Repressão esta que não surte efeitos no sentido de acabar com o tráfico e o
consumo, pelo contrário, somente agrava a violência que assola a sociedade
brasileira, aumenta a estigmatização e acentua a exclusão das camadas mais
baixas e marginalizadas da população. Comete-se o erro de pensar que o Direito
Penal é a solução para os problemas sociais.
Partindo da premissa de que a teoria adotada pelo Brasil tem por objetivo
aplicar penas e modos que tenham eficácia duradoura e causem menos danos ao
apenado, e que tais penas devem ser cumpridas em condições que preservem a
dignidade do homem e possibilitem seus objetivos finais, que é a prevenção e
ressocialização do indivíduo, percebe-se que o atual sistema carcerário aplicado no
Brasil em nada tem contribuído para o alcance de tais fins.
O tema estudado é extremamente complexo, tanto que é verdade que até
hoje não se conseguiu adotar uma política eficaz de combate às drogas. Muito
embora o legislador não tenha tipificado a conduta “usar” no artigo 16, tendo
descrito somente as de adquirir, guardar e trazer consigo, estas últimas são
premissas para a configuração da primeira (usar), isto é, para usar a droga é
necessário adquirir, guardar e trazer consigo.
78

O traficante sim é a causa de toda a degradação moral e social, sendo


responsável pela difusão do vício em nossa sociedade. O dependente químico, por
sua vez, não possui capacidade de entender o caráter ilícito do fato, pois o vício, a
dependência da droga, age como força a inibir o entendimento do que é certo ou
errado e neste caso não se poderia dizer que ofende um bem jurídico.
No entanto, à luz dos entendimentos citados e das mais variadas doutrinas
pesquisadas, é incompreensível a criminalização do usuário. A sanção penal
atualmente aplicada ao usuário ou dependente químico gera malefícios ainda
maiores do que a própria droga ao ser encaminhado para a prisão. Pode um mero
usuário ou dependente químico, de bons antecedentes e boa conduta social, ser
encarcerado e passar a conviver com aqueles que traficam, bem como com outros
tipos de criminosos, sendo que muitas vezes, ao ser libertado do cárcere, sai não
mais como um simples doente, mas como um criminoso de fato.
Ora, a pena só é válida se tiver como objetivo evitar a reincidência,
ressocializar o indivíduo e impor respeito à ordem jurídica. Constatados os diversos
malefícios causados ao usuário quando submetidos ao regime penitenciário, surgiu
a proposta de descriminalização a estes, utilizando-se do princípio da
insignificância. Este enunciado defende a exclusão de ilícito penal quando a
conduta for considerada de irrelevante repercussão social e quando não atingir o
bem jurídico tutelado pela norma penal. Foi crescente o posicionamento dos
tribunais na aplicabilidade do princípio da insignificância.
Há tempos que alguns doutrinadores defendem a idéia da
descriminalização, baseando-se nos fatos ocorridos ao longo dos anos, e
demonstrando que a penalização do usuário ou dependente químico produz crimes
secundários diferentes e mais graves que os das condutas proibidas, gerando
novos criminosos.
Ao longo dos vinte e seis anos de vigência da Lei 6.368/76, acompanhou-se
a modificação da visão proibicionista para uma política abolicionista, impulsionada
pela falência da pena privativa de liberdade e a ausência de reprovação social,
relativamente aos delitos relacionados com o uso de entorpecentes.
Ante um contexto social fortificado por estereótipos, rodeados de imagens e
crenças que influenciam no modo de sentir o problema, a criminalidade aumentava
de modo alarmante. Em resposta ao insucesso do modelo adotado, resultava
79

indispensável modificar a cultura predominante, alicerçada na idéia de que o


cárcere seria a única e verdadeira punição.
A Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002, foi elaborada no intuito de substituir
a anterior. A nova lei buscava uma harmonia, até então inexistente, com as
legislações internacionais, pautada na prevenção, tratamento, fiscalização, controle
e repressão à produção, ao uso e ao tráfico das drogas. Entretanto, ante as
diversas falhas e equívocos no seu texto, foi totalmente vetado o capítulo que
tratava dos crimes e das penas. Voltando-se a aplicar a lei anterior.
Diante de extrema necessidade, foi elaborada e promulgada a novíssima Lei
de Drogas, n. 11.343/06, que revogou o art. 16 da Lei 6.368/76, e tipificou conduta
similar em seu art. 28, caput e §1º, operando rebaixamento em seu status jurídico-
repressivo, caracterizando-a como autêntica contravenção penal.
Constatou-se que o legislador deu à conduta "posse de drogas para
consumo próprio” uma reprovação menor, impondo medidas mais brandas, que
foram chamadas na Lei de "medidas educativas", mesmo ainda sendo consideradas
por ele, um fato típico, antijurídico, culpável e punível. São os objetivos da Lei
11.343/06 que se mostram bem distintos: o da prevenção e o da repressão.
Diante da nova lei, surgiu grande polêmica acerca da ocorrência ou não da
descriminalização do artigo 28, eis que este não pune o usuário de drogas com
penas privativas de liberdade.
Alguns autores, como visto, defendem a idéia de ter havido a
descriminalização da posse de drogas para consumo próprio, afirmando que a
posse de droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração sui
generis, que constitui um fato ilícito, porém, não penal.
A norma contida no art. 28 da Lei n. 11.343/06 revela, subliminarmente, a
descrença do próprio legislador na sanção penal como mecanismo apto a proteger
o bem jurídico saúde pública. E, apesar de estabelecer uma categoria sui generis,
ou melhor, simbólica, de sanção penal, manteve, pretendendo um efeito meramente
simbólico, a ameaça de imposição de "penas" para as condutas desviantes,
categorizadas como crime.
O legislador optou por adotar medidas educativas. Duas delas afastam por
completo a aplicação de pena, quais sejam, a advertência sobre os efeitos das
drogas e comparecimento a programa ou curso educativo. Por isso, pode-se
80

entender como medidas despenalizadoras. Contudo, impôs ao usuário uma pena


restritiva de direitos, a prestação de serviços à comunidade. Diante da inocuidade
das medidas educativas, para a garantia de seu cumprimento, o legislador cominou
mais duas "sanções": admoestação verbal, tão inútil quanto a advertência sobre os
efeitos da droga, e multa, de caráter pecuniário, mas sem perder o cunho de sanção
penal, já que os critérios para sua aplicação demonstram isso.
Pela análise dos textos legais retromencionados, já se poderia concluir que
a Lei 11.343/06 não descriminalizou a conduta de posse de drogas para consumo
pessoal, pois que o artigo 28 comina uma pena restritiva de direitos, a prestação de
serviços à comunidade, bem como a multa.
Recente decisão do STF pacificou tal polêmica, posicionando-se no sentido
de que não ocorreu abolitio criminis, mas mera despenalização da conduta do
usuário, com a quebra da tradição de imposição de penas privativas de liberdade
como sanção principal ou substitutiva.
Ainda que se tenha o crime como fato típico e antijurídico, encontrando-se
na culpabilidade o pressuposto da pena, obrigatoriamente há de se reconhecer do
caráter penal do artigo 28 da Lei 11.343/06.
Acredita-se que tenha sido justamente na "culpabilidade" do usuário que o
legislador tenha buscado a aplicação das medidas educativas, diante do juízo de
menor reprovação penal na conduta daquele que possui drogas para consumo
próprio, do que na conduta daquele que fomenta o crime e dissemina a violência
com o tráfico.
Tão importante quanto conhecer o texto legal, é reconhecer e
identificar a política criminal motivadora da produção legislativa. Na novel legislação
antidrogas, ficaram estabelecidos os objetivos da Lei: prevenção e repressão. Por
isso, o legislador preferiu dar tratamento distinto ao usuário, aplicando-lhe sanção
mais branda do que a do traficante que, aliás, terá uma resposta penal mais severa
a partir da vigência da nova Lei.
81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria
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_____. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código


Penal de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>.
Acesso em: 15 abril 2007.
_____. Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971. Dispõe sobre medidas
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