Você está na página 1de 12

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

SOCIOLOGIA MARXISTA CONTEMPORÂNEA


PROFESSOR RUY BRAGA

LUCAS PASCHOLATTI CARAPIÁ


No USP: 7131187

A CRISE ESTRUTUAL DO CAPITAL


Das crises cíclicas de Mandel para o pensamento de István Mészáros

São Paulo
Junho de 2013
Introdução

Ao longo de nossa formação a respeito da história contemporânea e moderna é comum


tratarmos de momentos chamados crises, no caso, do sistema capitalista. Vários são os nomes dados
às diferentes crises, das quais buscamos diferentes explicações para as suas possíveis causas.
Diversos economistas atribuem às crises causas relacionadas às políticas econômicas em vigor, o
que gera intensos debates a respeito da melhor forma de gerir as economias capitalistas, sem nunca
termos uma só explicação dada como “a mais correta” ou “mais eficiente”, mesmo entre os
economistas parece não haver um consenso a respeito das mesmas. Certas escolas econômicas
atribuem como causa das crises um excesso de regulação da economia, como as liberais e
atualmente as neoliberais, outros dizem que elas são consequências de uma falta de regulação, dado
que o sistema é perfeito, mas é preciso que existam certas regras em vigor, um papel mais ativo do
Estado, como os keynesianos e neokeynesianos, que criaram mais forças depois da crise de 2008.
Por outro lado, o marxismo sempre evidenciou as contradições intrínsecas do capitalismo e
demonstrou como este sistema estaria sempre exposto a crises cíclicas e frequentes. Desde as obras
mais clássicas, Marx já argumentava que o capitalismo estaria sujeito a crises que o
desestruturariam, fazendo com que este sistema pudesse vir a ser superado por um outro mais justo,
eficiente e que congregasse os interesses das classes trabalhadores. No caso, o socialismo.
No entanto, com o passar dos anos, a classe trabalhadora sofreu inúmeras derrotas, assim
como o capitalismo passou por diversas crises. Esse não foi superado, pelo contrário, passou a
adotar novas formas, ditas inovadoras, que fizeram com que ele se “reinventasse”, se adaptasse, a
cada crise que surgisse. Inúmeros são os exemplos ao longo da história, que sem via de dúvidas
impactaram enormemente a vida da classe trabalhadora e sua forma de consumo, a exemplo do
fordismo e do estado de bem estar social, também conhecido como welfare state. Evidenciado por
Ernest Mendel, economista e político belga, que buscou compreender as crises cíclicas das quais o
sistema capitalista está exposto.
Tais fatores fizeram com que pensadores marxistas contemporâneos se debruçassem sobre as
recentes crises sob um novo ângulo. Seria esta crise meramente capitalista ou iria além deste modo
de produção capitalista tradicional? Com o intuito de responder esta questão, István Mészáros,
intelectual marxista húngaro e discípulo de György Lukács passou a abordar a crise como algo que
iria além do sistema meramente capitalista, mas uma crise estrutural do capital, fenômeno distinto
do capitalismo, que o precede, segundo Mészaros. Fato este que justificaria as diversas crises
passadas pela URSS ao longo de sua história. O que corrobora também com a crise ambiental a qual
estamos sujeitos, que vai muito além do capitalismo, atingindo as esferas da produção de capital.
Desse modo, propõe-se compreender uma visão marxista das crises as quais o capitalismo e,
indo além disso, o capital estão sujeitos. Primeiramente é mister que explicitemos as diferenças
entre ambos, com ênfase na teoria de Mészáros.

Capital x Capitalismo

De acordo com Mészáros, Marx deu o nome de “Capital” à sua obra prima, não
“Capitalsimo”, por uma razão, o capital é uma categoria histórica dinâmica cuja força social
aparece vários séculos antes da formação social do capitalismo. O capitalismo não surgiu do nada,
ele precisou de toda uma base já sustentada em outras formas de capital para que pudesse surgir em
sua forma de “Capital industrial”, como bem explicado por Marx no livro 1 do Capital. Era
interesse de Marx entender todas as formas de capital, vindas antes do capitalismo, com suas
especificidades históricas, além de estudar como ocorreram suas transições. Para Mészáros, o
capital industrial se tornaria a força dominante do metabolismo socioeconômico, fase final estudada
por Marx, definida como a fase clássica da formação capitalista.
Segundo o sociólogo Ricardo Atunes1, István Mészáros distingue capital e capitalismo,
sendo o primeiro antecedente ao capitalismo e tem vigência nas sociedades pós-capitalistas, como o
bloco soviético. O capitalismo assume apenas uma das formas possíveis de realização do capital. Já
existia capital antes da existência de capitalismo, como o capital mercantil, colonial, usurário, etc.
Denomina-se “sistema de sociometabolismo do capital” todo o complexo caracterizado pela divisão
hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital.
Mészáros afirma que se pode constatar a presença e continuidade do capital mesmo após o
capitalismo, por ele chamado de “sistemas de capital pós-capitalista”, a exemplo da URSS e demais
países do leste europeu, como já afirmado. Segundo ele, esses países foram incapazes de superar o
sistema sociometabólico do capital e a identificação conceitual entre capital e capitalismo fez com
que todas as experiências revolucionárias, que buscaram exercer essa superação, mostrassem-se
incapazes para superar o sistema de sociometabolismo do capital.
O sistema sociometabólico do capital tem seu núcleo central formado pelo tripé capital,
trabalho assalariado e Estado, três dimensões que são fundamentais e diretamente inter-
relacionadas, o que impossibilita a superação do capital sem a eliminação do conjunto dos três
elementos que compreendem esse sistema. Sendo assim, não é suficiente eliminar somente um, ou
dois, desses elementos para superar o sistema sociometabólico do capital, mas sim eliminar os três
em conjunto. Essa tese contrasta com tudo que já se escreveu sobre o bloco soviético até então.

1 A Substância da Crise. ANTUNES, Ricardo. In: A Crise Estrutural do Capital – István Mészáros.
A Crise do Capital segundo Ernest Mandel – Crises Cíclicas

Ernest Mandel buscou demonstrar que em fases onde o capitalismo passa por uma grande
prosperidade, ele estaria em uma espécie de crise eminente, graças às contradições inerentes ao
próprio sistema produtor de mercadorias. Portanto, temos que o capitalismo está sujeito a crises
periódicas, onde há uma alternância entre períodos de intensa reprodução do capital com períodos
de crise e recessão. Um exemplo clássico seria o da grande depressão de 1929, crise que seguiu uma
grande prosperidade do capitalismo após a primeira guerra mundial, especialmente nos EUA.
Para Mandel, após a segunda guerra mundial, o capitalismo entrou numa fase de
prosperidade que duraria até o fim dos anos 60, que garantiu uma expansão do capital. As políticas
econômicas baseadas nas teorias de John Maynard Keynes, além dos avanços na estrutura produtiva
(fordismo/taylorismo), contribuíram para um avanço significativo no processo de acumulação
capitalista. Denominado por Mandel como “onda longa expansiva”, esse período permitiu um alto
nível de concentração e centralização do capital. Durante três décadas o capital gozou de intensa
reprodução. Isso tudo aliado a uma expansão do investimento em pesquisa e desenvolvimento, que
garantiu a terceira revolução tecnológica, ampliando a racionalização da produção e da geração de
lucros. Ampliou-se a automação do trabalho, o que gerou os chamados “superlucros”.
Essas novas tecnologias contribuíram para a extração da mais-valia relativa, que sofreu um
salto quantitativo, especialmente na Europa e nos EUA. Caracterizada pelo estado de bem estar
social, onde o desemprego foi reduzido drasticamente e acompanhado da garantia de direitos
fundamentais aos trabalhadores. Essas medidas surgiram a partir de pesados gastos orçamentários e
reverteram-se em melhoras significativas para as classes operárias, o que fortaleceu inclusive a
organização sindical, causando a falsa sensação do capitalismo ter erradicado suas contradições
internas, tornando-se uma espécie estranha de “capitalismo mais humano”.
No entanto Mandel demonstra que as consequências foram outras, no fim dos anos 60 e no
início dos anos 70 o capitalismo entra em uma crise, trazendo à tona todas as suas conhecidas
mazelas e contradições, o que fez ressurgir os conflitos de classes. O capital buscou enfrentar
fortemente os trabalhadores, com o intuito de eliminar parte de seus direitos conquistados, o que foi
reduzido pelos então fortalecidos sindicatos. Assim, a burguesia passou por dificuldades para
superar essa situação de crise, restabelecendo seu padrão de acumulação necessário para sair da
recessão de 1973/1974. Isso tudo foi agravado pelo incremento das novas tecnologias, dado o
aumento da composição orgânica do capital.
Esse aumento elevou a tendência decrescente da taxa de lucros, já que, a atuação da
mercadoria força de trabalho foi reduzida em relação à reprodução automatizada. Segundo Mandel,
isso diminui o valor unitário das mercadorias e desvaloriza os capitais. Assim temos um aumento
significativo da produção global, mas uma redução nos valores unitários das mercadorias. Em geral,
o conjunto desses fatores aliado ao aumento da capacidade excedente aumenta a possibilidade de
estagnação.
A capacidade de produção excedente – razão entre capacidade de produção global e
realização dessa produção - só aparece quando a fase expansiva atinge o seu cume. O aumento em
instalações de novas fábricas para suprir a demanda por mais mercadorias, eleva a capacidade de
produção; entretanto, é quando a expansão termina que a capacidade ociosa, ou excedente, aparece.
É nesse ponto que podemos perceber uma das contradições inerentes ao capitalismo, o antagonismo
entre a produção de mercadorias voltadas para a capacidade de consumo da sociedade e a realização
do consumo. A capacidade de produção de valores de uso entra em contradição com a sua
realização enquanto valores de troca. É nesse contexto que a tendência de inversão de uma “onda
longa expansiva” para uma “onda longa depressiva” aumenta, e a produção capitalista caminha para
uma crise de superprodução.
Para Mandel, a crise não seria consequência de um único elemento determinante, a exemplo
da superprodução e subconsumo, mas sim de um complexo conjunto de elementos que convergem
historicamente. Os outros aspectos sobre a crise geral do modo de produção capitalista como a
queda tendencial na taxa de lucros e o aumento da composição orgânica do capital, devem ser
entendidos como desdobramentos da crise, ou seja, como agravantes do processo.
A crise de superprodução deve ser compreendida como um processo de auto-superação do
modo de produção capitalista, ou seja, como extremo da contradição capital e trabalho. O
surgimento da crise anuncia a contradição entre forças produtivas e relações de produção, uma vez
que, o capital aumenta sua incapacidade de aproveitar o desenvolvimento nas forças produtivas por
ele desenvolvidas. O capital, dessa forma, revela forças que em seguida é incapaz da controlar e
usufruir.
O que reforça a extrema capacidade do sistema capitalista de “superação” das crises e
recessões por que passou. Após os anos 80, temos o fenômeno do neoliberalismo, que empregou
uma forte derrota à classe trabalhadora, com destaque ao período Tatcher na Inglaterra e de Reagan
nos EUA, que mais tarde se deu no famoso “Consenso de Washington”, garantiram a retomada da
reprodução do capital a nível global. Em suma, o neoliberalismo pretendia, com a intenção de sair
da recessão, desregulamentar a taxa de câmbio e a securitização das dívidas públicas. Além do mais,
buscavam reestruturar a produção e adotar o sistema toyotista de organização produtiva, isso tudo
somado às medidas liberalizantes da economia, contribuindo para reprodução do capital e se
afastando cada vez mais do estado de bem estar social e do keynesianismo.

Assim sendo, como já mencionado, o capital possui meios de adaptar-se, ou seja, de


“superar” seus momentos de crise. Trata-se de um processo de superação do capital por ele mesmo,
negando suas antigas formas de se reproduzir, conservando sua natureza – busca pelo lucro –, e
desenvolvendo novas formas de garantir sua reprodução. Assim, o fim do estado de bem estar
social, e das políticas keynesianas típicas do pós segunda guerra, impulsionaram o capital a buscar
novas formas de se reproduzir, de sair da recessão, de superar as fronteiras domésticas e se
mundializar.

István Mészáros, por sua vez, acredita que a partir do final dos anos 60, entramos em uma
fase de crise estrutural do capital, que vai além das crises cíclicas do capitalismo, como
demonstrado por Mandel, assumindo-se como uma crise estrutural do sistema de capital, como
demonstrarei a seguir.

Crise Estrutural do Capital

Ricardo Antunes afirma que vários autores, dentro da esquerda, procuraram ir além das
aparências e descortinar os fundamentos estruturais e sistêmicos do derretimento e da liquefação do
sistema de capital. Ele cita dois autores, o primeiro seria Robert Kurz, que vem alertando desde o
início dos anos 90 que a crise que levou à bancarrota os países do chamado “socialismo real” (com
a URSS à frente), não sem antes de ter devastado o “Terceiro Mundo”, era expressão de uma crise
do modo de produção de mercadorias que depois migraria em direção ao coração do sistema
capitalista. Ou seja, uma crise que iria além do sistema capitalista, atingindo o sistema de capital. O
segundo seria François Chesnais, que apontou as complexas conexões existentes entre produção,
financeirização (“a forma mais fetichizada da acumulação”) e mundialização do capital, enfatizando
que a esfera financeira nutre-se da riqueza gerada pelo investimento e da exploração da força de
trabalho dotada de múltiplas qualificações e amplitude global. E é parte dessa riqueza, canalizada
para a esfera financeira, que infla o flácido capital fictício, o que muito contribuiu para a crise de
2008.
Desde o final dos anos 60, István Mészáros estuda a crise que começava a assolar o sistema
global de capital. Alertava que as rebeliões cujo auge veio a ser 1968, assim como a queda da taxa
de lucro e o início da monumental reestruturação produtiva do capital datado de 1973 já eram
ambas expressões sintomáticas da mudança substantiva que se desenhava, tanto no sistema
capitalista quanto no próprio sistema global do capital.
Mészáros dá um passo adiante na ideia de crises cíclicas e afirma que o sistema de capital
(em particular o capitalismo), depois de vivenciar a era dos ciclos, adentrava em uma nova fase,
para ele inédita e que seria marcada pela crise estrutural, marcada pelo que ele chama de
“continuum depressivo”, que faria daquela fase cíclica anterior algo do passado. Segundo ele, essa
crise seria longeva e duradoura, sistêmica e estrutural.
Essa mesma crise estrutural do capital seria uma das causas para o colapso dos sistemas
estatais de controle e regulamentação do capital experimentados ao longo do século XX, em
especial na Europa ocidental, entre eles o chamado welfare state e o keynesianismo, que foram
substituídos pelo neoliberalismo. Não obstante, essa mesa crise também foi responsável pelo
colapso do bloco soviético, que apesar de ter sido fruto de uma revolução social, cujo foco era
destruir o capital, foi por ele fagocitado.
O sociólogo Giovanni Alves afirma2 que a crise estrutural do capital que emergiu após os
anos 70 inaugurou uma nova temporalidade histórica do desenvolvimento civilizatório,
caracterizada por um conjunto de fenômenos sociais qualitativamente novos que compõem a
fenomenologia do capitalismo global com seus “trinta anos perversos”, que vai de 1980 até 2010.
Ele afirma que, nesses trinta anos, o capitalismo buscou se reestruturar após o colapso do
keynesianismo e do welfare state, nas mais diversas instâncias da vida social. O que impulsionou
um complexo de inovações organizacionais, tecnológicas e sociometabólicas nas grandes empresas
e na sociedade em geral sob a direção moral-intelectual do “espírito do toyotismo”, poderíamos
também adicionar o fenômeno do chamado “pós-fordismo”. Podemos somar a isso a derrotada da
classe trabalhadora nos anos 70, com a emergência do neoliberalismo, do pós-modernismo e do
neopositivismo na cultura, da desregulamentação financeira e da liberalização comercial, que nos
anos 90 assumiu o chamado “consenso de washington”, na onda da fukuyamização pseudo-
hegeliana e neoconservadora do mundo, que afirmava o fim da história, como bem ilustra
Mészáros3.
Segundo Giovanni, o capitalismo global tornou-se a nova etapa de desenvolvimento do
capitalismo, que busca adaptar-se às condições em que se está enquadrado, mas partiu de um
processo que durou trinta anos e nos projetou “noutra dimensão espaço-temporal hoje mais clara do
que nunca”.
Não existe uma fórmula para retratar a crise estrutural do capital. Mészáros possui teses que
ilustram essa crise, por meio de críticas devastadoras às engrenagens que caracterizam o sistema
sociometabólico.
Após debruçar-se ao longo de todo século XX e investigar o funcionamento do capital,
constata que este sistema, por não ter limites para a sua expansão, acaba por converter-se numa
processualidade incontrolável e profundamente destrutiva. O que é reforçado pela grande
preocupação demonstrada pelo regime internacional do meio ambiente e suas várias conferências a

2 A crise estrutural do capital e sua fenomenologia histórica. Giovanni Alves. In:


http://blogdaboitempo.com.br/2012/09/21/a-crise-estrutural-do-capital-e-sua-fenomenologia-historica/
3 O marxismo de Istávan Mészáros – Revista Sociologia. 22/08/2011. In:
http://boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=9788575591451&veiculo=Revista%20Sociologia.
respeito da destruição por parte do ser humano, ou melhor, por parte do sistema de capital, ao meio
ambiente. Destruição esta que já foi alertada por Marx desde O Manifesto do Partido Comunista.
Tudo isso se conforma com o que Marx chamava de mediações de segunda ordem – quando
tudo passa a ser controlado pela lógica da valorização do capital, sem que se leve em conta os
imperativos humanos-societais vitais -, a produção e o consumo supérfluos acabam gerando a
corrosão do trabalho, com sua consequente precarização e o desemprego estrutural, além de
impulsionar uma destruição da natureza em escala global já vista anteriormente. Basta pensar na
China, no leste asiático e toda gama de produtos de lá vindos, que envolvem uma precarização cada
vez maior do trabalho, tudo em nome de uma expansão cada vez maior de mais-valor.
Portanto, 1) expansionista por buscar progressivamente mais-valor, 2) destrutivo na
processualidade e descartabilidade, o sistema de capital torna-se 3) incontrolável. Como resume
Ricardo Antunes. A crise atual toma uma forma de crise endêmica, cumulativa, crônica e
permanente. O que nos indus a busca de uma alternativa viável e societal, visando construir um
novo modo de produção e de um novo modo de vida, que negue a lógica destrutiva do capital hoje
vigente.
Como já supracitado, Mészáros demonstra que a fase das crises cíclicas, explicadas por
Ernest Mandel, que conformaram o capitalismo ao longo de sua história, alternando períodos de
expansão e crise, desde os anos 60 e início dos 70, foram substituídas pelo que ele chama de
depressed continuum, ou depressão continuada, que exibe características de uma crise estrutural.
Mészáros conseguiu antecipar a chamada “administração das crises” cada vez mais
recorrentes e insuficientes, que marca a política econômica, até mesmo em conjunto, dos países
centrais. Segundo ele, isso seria fruto da disjunção radical entre produção para as necessidades
sociais e autorreprodução do capital se tornava a tônica do capitalismo contemporâneo gerando
consequências devastadoras para a humanidade.
Superada a fase de crises cíclicas entre expansão e recessão, ingressamos em uma nova fase,
marcada pela eclosão de precipitações cada vez mais frequentes e contínuas. Tratando-se de uma
crise na própria realização do valor. A tese de Mészáros, central em sua análise, é a de que há uma
decrescente produção de mercadorias inúteis, sem valor de uso, ou meramente descartáveis, que
buscam somente reproduzir o sistema de capital. Ou seja, este sistema não pode mais se
desenvolver sem recorrer à taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, como
mecanismo que lhe é intrínseco. Dado que o valor de uso está subordinado ao valor de troca.
Há uma desvalorização muito grande do valor de uso, basta caminhar por um centro
comercial popular, como a 25 de Março em São Paulo, que isso está escancarado a qualquer um.
Em suma, produtos provenientes da China, brinquedos descartáveis, que mudam a cada ano. Nas
grandes cidades turísticas europeias, como Roma, imigrantes vindos da África e da Ásia vendem
tais mercadorias, tentando atrair a atenção de turistas, como meio de sustento pessoal em locais
onde a imigração em trabalhos precários e o desemprego estão cada vez mais acentuados. Em geral,
produzem-se produtos cuja funcionalidade descartável serve como mero entretenimento
momentâneo e reprodução do capital, focada no valor de troca. Isso sem abordar a questão do
trabalho precarizado nas fábricas de brinquedos chinesas, cujas condições de trabalho são
desumanas4.
Deste modo, há um aprofundamento da disjunção entre a produção voltada para o
atendimento das necessidades humanas e aquela dominante para a autorreprodução do capital,
assim intensificam-se as consequências destrutivas já mencionadas, o que coloca em risco o próprio
futuro da raça humana. Isso tudo não deixa de estar combinado, já referido, à precarização estrutural
do trabalho e a destruição da natureza. Logo, Mészáros conclui que grande parte da produção já está
diretamente destinada ao lixo. Todas essas práticas devastadoras são justificadas se estão em
sintonia com os critérios de eficiência, racionalidade e economia capitalistas em virtude da
lucratividade comprovada da mercadoria em questão.
Ricardo Antunes, em sua introdução à obra de Mészáros, retoma a máxima de que “menos
de 5% da população (os estadunidenses) consomem 25% do total de recursos energéticos
disponíveis. O que ocorreria se os 95% restantes passassem a adotar o mesmo padrão de
consumo?”. O caso chinês e sua relação com o meio ambiente passa a ser emblemática.
Outra contradição que deve ser aqui abordada, que muito se intensificou na atual crise é a
das taxas de desemprego, que continuam se ampliando. Em especial na zona do euro e na Europa
mediterrânea, além da Irlanda. Basta consultar as atualizações constantes do Eurostat para se
impressionar com o tamanho desemprego vigente nesses países, isso quando somado às suas dívidas
públicas. Temos que o desemprego atual só reforça os níveis de degradação e de barbárie social.
O desemprego é somado à precarização estrutural da força de trabalho em escala global,
especialmente o dos imigrantes. Temos uma erosão do trabalho relativamente contratado e
regulamentado, herdeiro da era taylorista e fordista, dominante no século XX – resultado de uma
secular luta operária por direitos sociais – que está sendo substituído pelas diversas formas de
empreendedorismo, cooperativismo, trabalho voluntário, trabalho atípico, formas que oscilam entre
superexploração e a própria autoexploração do trabalho. O que torna ainda mais grave o quadro da
crise estrutural e sistêmica vigente. Em 2009 a OIT (Organização Internacional do Trabalho), com
dados bem moderados, projetou 50 milhões de desempregados. O mesmo relatório afirmou que
cerca de 1,5 bilhão de trabalhadores sofreriam forte erosão salarial e ampliação do desemprego,

4 Vide documentário produzido por consumidores suécos a respeito das condições de trabalho nas fábricas de
brinquedos chinesas. Santa's Workshop - Inside China's Slave Labour Toy Factories. In:
http://www.youtube.com/watch?v=KpCn2AGdJh4
naquele mesmo período. Isso sem contar o desemprego oculto, que foge das estatísticas. Caso
houvessem dados reais referentes à China e à Índia, esses números se multiplicariam
consideravelmente.
Com a onda de desempregos, empresários pressionam, em todas as partes do mundo, para
aumentar a flexibilização da legislação trabalhista, grande conquista da classe trabalhadora, com a
falácia de que assim preservariam os empregos. Nos EUA, Inglaterra, Espanha e Argentina, apenas
para citar alguns exemplos, essa flexibilização foi intensa e o desemprego só vem aumentando.
Mészáros trata também da crise do sistema financeiro e a crise dos créditos, que assola o
universo dos bancos. Elementos muito marcantes da crise de 2008, a imensa expansão especulativa
do aventureirismo financeiro das últimas três ou quatro décadas, é naturalmente inseparável do
aprofundamento da crise dos ramos produtivos da indústria. O que serve para agravar de maneira
considerável a crise estrutural do capital e suas consequências, como o crescimento do desemprego
e da miséria humana a ele associada. Esperar que o Estado capitalista encontro soluções felizes para
esse problema, como as operações de resgata tomadas pelo Governo Obama nos EUA, seria uma
grande ilusão. Pois, o que está fundamentalmente em causa hoje não é apenas uma crise financeira
maciça, mas o potencial de autodestruição da humanidade no atual momento do desenvolvimento
histórico, tanto militarmente como por meio da destruição em curso da natureza.
Ademais, se o neokeynesianismo do Estado todo privatizado é a reposta encontrada pelo
capital para sua crise estrutural, as respostas das forças sociais do trabalho devem ser ainda mais
radicas. Dado que, para ele, as “alternativas” neokeynesianas não passam de falácias, fadadas ao
fracasso, pois se inserem numa linha de menor resistência do capital. Qualquer tentativa de superar
esse sistema sociometabólico, que siga essa linha e que se restrinja à esfera institucional e
parlamentar, está fadada à derrota. Por outro lado, apenas uma política radical e extraparlamentar
reorientando radical a estrutura econômica poderá ser capaz de destruir o sistema de domínio social
do capital e sua lógica destrutiva.

Conclusão

É fundamental compreender o capital para além do que conhecemos como definição


clássica de capitalismo, algo que o precede, como insiste Mészáros, e sua obra tem uma grande
importância por deixar essa diferença bem clara, especialmente na crise em que nos encontramos.
Afinal, como ele afirma, Marx denominou sua obra Capital e não Capitalismo, com uma razão, a de
entender todo o processo de capital, que sustentou a origem do capitalismo e o precedeu em
diversas formas. Mesmo que Marx tenha se consagrado como um dos, se não o maior, interpreto do
capitalismo tradicional e suas contradições internas. Legado seguido pela grande maioria dos seus
seguidores, militantes de esquerda, intelectuais marxistas, como Mandel, que demonstrou como os
processos de contradições internas do capitalismo colocam-no sobre uma eminente expansão e
recessão, acarretando crises frequentes, que o estimulam a “superar” tais crises de forma que ele
possa continuar se reproduzindo. Nessas ocasiões, os mais prejudicados são sempre os
trabalhadores, que pagam o preço do capital.
Já Mészáros vai mais adiante, demonstrando como essa crise atingiu proporções ainda mais
profundas, o que ele chama depressed continuum e ilustram especialmente bem a crise estrutural do
capital após os anos 70. Entender esta crise estrutural do capital evidencia que, a despeito das
diversas reestruturações internas do capitalismo, como observadas até meados dos anos 70 e
reiteradas por Mandel, não impedem que este esteja ainda enquadrado num sistema de crise
“longeva e duradoura”, que vai muito além de suas características inerentes e deve ser explicada
pela análise da crise estrutural de regime de capital. A crise mais recente, cujo ápice se deu no ano
de 2008, mostra que o capitalismo está longe de ser um sistema estável, que sua crise é estrutural e
muito além de si mesmo, como bem analise Mészáros.
Durante a vigência do capitalismo (e também do capital), o valor de uso dos bens
socialmente necessários subordinou-se ao seu valor de troca, que passou a comandar a lógica do
sistema de produção. Assim, as funções produtivas e reprodutivas básicas foram radicalmente
separadas entre aqueles que produzem (os trabalhadores) e aqueles que controlam (os capitalistas e
seus gestores). Tendo sido o primeiro modo de produção a criar uma lógica que não leva em conta
prioritariamente as reais necessidades societais, o capital instaurou, segundo Mészáros, um sistema
voltado para sua autovalorização, que independente das reais necessidades autorreprodutivas da
humanidade.
Levando em conta que Marx estava imbuído de livrar a humanidade das condições
desumanizadoras sobre as quais as satisfações das necessidades humanas mais básicas devam ser
subordinadas ao capital e às mercadorias. Temos, como também reforçado por Mészáros, o desafio
de criar um modo de produção e vida profundamente distintos do atual. É fundamental construir um
modo de vida dotado de sentido, uma sociedade efetivamente emancipada, que recoloca, no início
do século XXI, a necessidade de construir um novo sistema sociometabólico, de um novo modo de
produção baseado na atividade autodeterminada, na ação dos indivíduos livremente associados e em
valores para além do capital. As atividades devem levar em conta o tempo disponível para produzir
valores de uso socialmente úteis e necessários – contrária à produção baseada em tempo excedente
para a produção exclusiva de valores de troca para a reprodução do capital, que tanto intensifica a
crise estrutural em que estamos, colocando em risco a própria existência humana e do meio
ambiente. Como a grande gama de produtos descartáveis produzidos diariamente, cujo único
objetivo e reproduzir o capital.
Pois, se ao contrário, o mundo produtivo retomar os níveis de crescimento anteriores,
aumentando a produção e seu modo de vida fundado na superfluidade no desperdício, teremos a
intensificação ainda maior da destruição da natureza, ampliando a lógica destrutiva de hoje
dominante. E, como afirma o economista egípcio Samir Amin, enquanto os poderes capitalistas
dominantes buscam soluções apenas para “sair da crise” e restaurar a dominação dos oligopólios, é
de se esperar que as vítimas – ou seja, as classes trabalhadoras e os povos do Sul – desenvolvam
suas lutas na perspectiva de “sair do capitalismo em crise”, a partir da abertura de uma longa
transição ao socialismo global. E isso requer um criativo entendimento do marxismo. Por isso a
importância de estudar o trabalho de Mészáros, que contribui para o aprofundamento deste debate.

Bibliografia

A Crise Estrutural do Capital. MÉSZÁROS, István. Boitempo Editorial.

O Capital. MARX, Karl. Livro 1, Volume 1. O Processo de Produção do Capital. Civilização


Brasileira.

A crise estrutural do capital e sua fenomenologia histórica. Giovanni Alves. In:


http://blogdaboitempo.com.br/2012/09/21/a-crise-estrutural-do-capital-e-sua-fenomenologia-
historica/

O marxismo de Istávan Mészáros – Revista Sociologia. 22/08/2011. In:


http://boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?
isbn=9788575591451&veiculo=Revista%20Sociologia.

MANDEL, E. A Crise do Capital; os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ed. Ensaios,
1990. (VER)

Documentário:
Santa's Workshop - Inside China's Slave Labour Toy Factories. In: http://www.youtube.com/watch?
v=KpCn2AGdJh4

Você também pode gostar