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“E RESSUSCITOU AO TERCEIRO MILÊNIO...

”:
EM DEFESA DA CLASSE COMO CATEGORIA BÁSICA DE ANÁLISE1

IRANEIDSON SANTOS COSTA*

1. INTRODUÇÃO

É relativamente recente a análise de classe na tradição do pensamento social


baiano, sobretudo no campo dos estudos sociológicos e historiográficos.
Inaugurada na década de 1950, com o pioneiro “Classes sociais e grupos de
prestígio” (1956), de Thales de Azevedo (1904-1995), e posteriormente
introduzida na esfera da pós-graduação2, desde seus primórdios esta reflexão
tem se debatido entre categorias marxistas e weberianas. Assim, além do seu
caráter pouco “clássico” (sem medo do trocadilho) entre nós, muito se tem
contestado com relação a sua validade heurística nas duas últimas décadas do
século XX e, mais ainda, deste novo século/milênio. Mesmo a continuidade do
tema num autor como Antônio Sérgio, atestada não só pela tese de doutorado
defendida em 1988 sobre regime fabril e formação de classe dos trabalhadores
petroquímicos baianos como, sobretudo, pela publicação, no final de década
seguinte, da sua obra síntese na questão, deixa-nos uma incômoda sensação
de passadismo e ilusão:

Com o tempo, foi-me ficando a idéia de que mesmo este futuro que
inventamos nos 80 já era coisa do passado. (...) [De modo que]
organizando agora aqueles escritos para publicação em livro, não
imagino outra palavra para designar a nossa vontade de então: um
sonho (Guimarães, 1998: 11-12)

Portanto, é sob o signo do desafio e da inquietação que elaboramos o presente


ensaio, com uma finalidade não apenas teórica como, sobretudo, prática, qual
seja a de propiciar subsídios para a realização de uma pesquisa em torno da
relação entre as classes exploradas e os intelectuais no âmbito dos
movimentos sociais baianos nas últimas três décadas do século passado,
compreendendo os movimentos sociais numa perspectiva de lutas de classes e
articulando as práticas sociais das distintas classes exploradas às
representações culturais e ideológicas formuladas pelos seus respectivos
intelectuais.

Como deve ter ficado evidente nos parágrafos anteriores, nos assentamos no

1Originalmente esse texto consiste na discussão teórica que serve de base para uma pesquisa
acerca das “classes exploradas, intelectuais e movimentos sociais na Bahia (1974-1998)”.
Aproveito para agradecer as precisas e generosas críticas realizadas pelos(as) colegas da
Equipe de Redação, as quais procurei contemplar nesta versão final dentro de minhas
possibilidades.
2 A título de ilustração, vale registrar os excelentes exemplos das dissertações de José

Raimundo Fontes, Manifestações operárias na Bahia: movimento grevista, 1888-1930, e


Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, A formação e a crise de hegemonia burguesa na Bahia,
1930-1964, ambas defendidas em 1982 no Mestrado em Ciências Sociais da Universidade
Federal da Bahia (UFBa), a primeira na área de concentração de História, a segunda na de
Sociologia.
campo teórico da tradição marxista. E isto não em virtude de uma obstinada e
escolástica defesa de cada afirmação ou conceito da obra de Karl Marx (1818-
1883) e Friedrich Engels (1820-1895), mas por reconhecer que a maior parte
dos conceitos aqui operados (classe, exploração, coerção/dominação, luta de
classes, projeto revolucionário, consciência de classe, ideologia,
consentimento, interesses de classe, capacidade [dos intelectuais] etc.) foram
elaborados a partir desta matriz, seja pelos próprios, seja por outros autores
pertencentes a este campo.

De maneira especial, registramos aqui o débito com os críticos marxistas da


cultura (Antônio Gramsci (1891-1937), José Carlos Mariátegui (1895-1930),
Raymond Williams (1921-1988) e Terry Eagleton), sem falar nos historiadores
ingleses, Eric Hobsbawm (1917-) e Edward Palmer Thompson (1924-1993), no
filósofo grego Nicolau (dito Nicos) Poulantzas (1936-1979) e no sociólogo
californiano Erik Olin Wright. Em outra vertente, a da contraposição crítica,
estaremos dialogando permanentemente com os marxistas analíticos (também
chamados marxistas da escolha racional), sobretudo Adam Przeworski, Gerald
Allen Cohen, John E. Roemer e Jon Elster. Assim, como norte a guiar esta
breve discussão, estabeleçamos, de modo sintético, os principais eixos da
reflexão:

1. Exploração como categoria crucial na determinação estrutural das relações


de classe;

2. Conceito de classe social amplo o bastante para dar conta de sujeitos


sociais diferenciados (operários/as e camponeses/as, negros/s e indígenas/as,
trabalhadores/as urbanos/as e rurais, empregados/as e sub/des-
empregados/as etc.) e suficientemente objetivo a ponto de ser determinado por
relações sociais materiais;

3. Estrutura de classes capaz de posicionar objetivamente os estratos


intermediários enquanto classe média.

Por outro lado, queremos deixar bem claro que, justamente por se tratar de um
desafio a um só tempo teórico e prático e, mais que isso, pela adoção de uma
perspectiva marxista de análise, boa parte das inquietações aqui formuladas
não encontrarão sua realização plena neste texto, aguardando, portanto, o
confronto demiúrgico da realidade concreta.

2. A EXPLORAÇÃO NO MEIO DO REDEMOINHO:


EM BUSCA DE UMA TEORIA DAS CLASSES

Poucos conceitos foram tão crivados de críticas e refutações que o de classes


sociais, compreendidas numa perspectiva marxista. Seja porque Marx nem
Engels jamais consolidaram uma Teoria das Classes, seja porque as
sociedades capitalistas foram tornando cada vez mais complexas as relações
sociais nelas envolvidas e, consequentemente, cada vez menos nítida a
posição dos indivíduos na estrutura produtiva e nas relações sociais de
produção (critério central para a definição da classe naquela abordagem), seja
pela própria redução demográfica (e, por que não dizê-lo, de peso político) da
classe trabalhadora, em virtude do alargamento da população excluída do
processo de reprodução capitalista (sequer “escalada”, portanto, para um
suposto exército de reserva), enfim, por uma dessas razões ou pela
combinação de várias delas, o certo é que a interpretação classista da
sociedade teve seu réquiem executado em distintos templos intelectuais
(alguns deles ditos “de esquerda”), junto com o fim do trabalho, do emprego, da
história...

Não é tão simples, nem se trata de um “fim de mundo” que possa ser deduzido
com tanta ligeireza. Ora, se é verdade que a leitura mais percuciente dos
fenômenos sociais tem demandado a incorporação de outras dimensões (de
gênero, etnia, geração ou ecológica, para ficar nas mais recorrentes) dos
sujeitos neles envolvidos, e que a caracterização pioneira baseada no
proletariado (também entendido como classe dos/as trabalhadores/as ou
operários/as) perdeu parte de sua abrangência pelos motivos acima aludidos,
as classes permanecem, ao nosso ver, como uma formação social dotada de
vitalidade explicativa a exigir, isso sim, uma formulação mais precisa e aberta a
tais enriquecimentos3.

É possível avaliar o desafio conceitual a ser enfrentado mediante uma pequena


amostra do rol de termos sucessivamente utilizados para preencher a estrutura
de classes nas sociedades capitalistas contemporâneas – dominadas,
oprimidas, subalternas, excluídas, populares, exploradas e por aí vai –, numa
miríade que é mais miragem que mirante para o/a estudioso/a sequioso/a de
um horizonte cristalino.

Após rejeitar as três primeiras acepções pela sua restrição à esfera política
(necessária mas não suficiente para a definição de uma situação de classe), e
a seguinte pelo caráter negativo e não dialético nela implicado (toda exclusão
supõe uma possível e desejada inclusão sistêmica), resta-nos abandonar
também a cada vez mais usual categoria de classes populares, a qual,
malgrado o longo percurso no pensamento social brasileiro (cf. Sader e Paoli,
1988), apresenta o inconveniente insuperável de esvaziar os conflitos entre os
diversos grupos sociais com interesses materiais não somente diferentes
como, no mais das vezes, antagônicos, unindo os desiguais e separando os
similares. Além do que a contraposição de povo (do latim populus, “conjunto de
pessoas que vivem em sociedade”) é elite (do francês élite, “o que há de
melhor numa sociedade”), e, no discurso político, invariavelmente “povo”
somos sempre nós; “elite”, nosso/a vizinho/a...

Deixando de lado o que “por aí vai”, cabe-nos agora argumentar em favor de


um conceito de classe social lastreado na categoria de “exploração”, de modo
que as classes exploradas emirjam com a objetividade e o alcance perseguidos
numa teoria das classes na história. Para tanto, há que enfocá-la a partir de
duas questões fundantes: (1) a possibilidade de determinação estrutural, por
meio de um conjunto objetivo de critérios, já que não é óbvio de que maneira e

3 Todavia, apesar de controversa e contestada por inúmeros flancos, trata-se de uma noção
reconhecida pelos próprios críticos como “o mais útil e o mais problemático dos conceitos
usados por historiadores e cientistas sociais” (cf. Beynon, 1996: 254), sobremaneira por trazer
embutida a relação entre agência e determinação estrutural.
em que bases os grupos podem ser situados na estrutura social, e (2) a
interpretação das experiências subjetivas e das percepções individuais, pois
sempre se pode alegar que estas, independentemente de sua localização,
pensam e agem de modo indeterminado. Neste item 2 nos dedicaremos à
primeira ordem de problemas, reservando o item seguinte para a discussão de
um corolário dela, qual seja a localização dos estratos médios na estrutura de
classes (a polêmica classe média).

Partamos, pois, dos clássicos a ela dedicados, não sem antes registrar um
certo espectro que ronda estas indagações, uma como que “maldição” dos
textos de Marx e Weber (1864-1920) acerca da classe: enquanto o célebre
capítulo LII de O Capital ficou quase por iniciado, o famoso “Classe,
estamento, partido”, de Weber, ainda que bastante desenvolvido, também
permaneceu inconcluso, sendo igualmente publicado postumamente, o que
significa que, nem Weber e, muito menos, Marx, puderam em vida dirimir
possíveis ambiguidades das respectivas teorizações e, mais que isso,
utilizações do conceito de classe em suas vastas obras.

Basta recordar, com o velho Thales, o lugar teórico ocupado pelo debate entre
as tais formulações para perceber as consequências deste infortúnio. Não à
toa, uma das mais longas querelas circundará o suposto economicismo da
concepção marxista, por oposição à weberiana: pois, procuraremos demonstrar
que se passa exatamente o contrário4. Mesmo admitindo uma certa
ambiguidade no tratamento conferido por Marx às classes sociais ao longo de
sua obra, na qual convivem (1) a acepção de amplos conjuntos humanos
reunidos segundo o critério objetivo de relações similares com os meios de
produção (como se argumenta no Manifesto do Partido Comunista) e (2) a
introdução do elemento subjetivo, a consciência de classe, especialmente nos
textos especificamente históricos e nas análises das políticas contemporâneas,
anotemos, com Hobsbawm (1987: 36), que “as duas acepções de “classe”
obviamente não são conflituosas. Cada uma delas tem seu lugar no
pensamento de Marx”.

Remontemos o que o próprio Marx avançou no tocante à conceituação das


classes sociais, seja nas suas obras (ditas) de juventude (isto é, das décadas
de 40 e 50 do século XIX), seja em O capital. Quanto a este último, embora
não pretendamos adentrar pelas artes da prestidigitação, vejamos o que é
possível retirar dos cinco parágrafos dedicados por Marx às classes, única
passagem de sua extensa obra dedicada intencional e exclusivamente ao
tema. Estão lá, ainda que embrionaríssimas, aquelas questões acima
pontuadas: o que constitui uma classe? e como elaborar uma classificação
objetiva da estrutura de classes de uma sociedade concreta?

4O que, de resto, é de quando em vez admitido pelos intérpretes, ainda que em ligeiras notas
de rodapé. Vejamos uma delas: “Talvez se possa mesmo afirmar que a associação explícita e
exclusiva do conceito de classe com a esfera econômica seja antes uma contribuição de Max
Weber, que definiu classes sociais – diferentemente dos “grupos de status” ou “estamentos” –
de maneira exclusivamente econômica, segundo o comportamento comum de grupos de
pessoas em relação ao mercado” (Reis, 1991: 435, nota 8).
No caso da primeira, não resta dúvida que Marx vincula a classe à propriedade
(ou não) dos meios de produção, cuja tendência histórica de separação e
concentração conduziria a uma polarização entre trabalhadores e assalariados.
Quanto à segunda pergunta, ele faz dois singelos comentários que hão de
servir de guia para nossa teorização posterior: (1) nem mesmo na sociedade
inglesa, por ele considerada o modo clássico de capitalismo, “essa divisão (...)
aparece de modo puro” (Marx, 1986: 317), ou seja, em cada sociedade
específica há que se reconstruir a estrutura de classes em questão; (2) na
sociedade como um todo (mas na cidade mais que no campo), “estágios
intermediários e de transição (...) encobrem por toda a parte as determinações
de limite, (...) numa infinita fragmentação de interesses de posicionamentos”
(idem: 317-318), redundando que, para além do esquema clássico de duas
(assalariados e capitalistas) ou três classes (inclusos os proprietários de terra),
faz-se necessário inserir outras classes, possivelmente intermediárias.

Esta teorização minimalista pode, entretanto, e sem perda de rigor, ser


enriquecida e ratificada pelas análises extensas que os pensadores alemães
realizaram de conjunturas específicas da história das nações capitalistas então
proeminentes (Inglaterra, França e Prússia, especialmente). Talvez a
elaboração mais completa seja aquela d’O Dezoito Brumário de Luís
Bonaparte, de 1852, quando Marx, ao caracterizar o campesinato francês da
época, assim define o que constitui uma classe:

Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições


econômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de
vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da
sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas na medida em que
existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em
que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade
alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa exata
medida não constituem uma classe (Marx, 1985: 397, grifos nossos)

Como se vê, ao lado das condições econômicas, Marx postula elementos


políticos e culturais como constitutivos da classe, num processo tão dinâmico
que, ao debruçar-se sobre o itinerário das lutas de classes naquele mesmo
país nos anos precedentes, afirma que as diferentes classes “tinham
necessariamente de contar as suas etapas de desenvolvimento por semanas,
como antes as haviam contado por meio de séculos” (Marx, s.d.: 156). Por fim,
mesmo no citado Manifesto, tantas vezes vituperado como o baluarte do
economicismo marx-engelsiano, a formação das classes em nada se
assemelha a um processo estático, posto que “a organização do proletariado
em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela
concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e
cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa (...)” (Marx e Engels, s.d.: 29).

Basta por ora de textos canônicos. Vejamos, pois, o que tem a nos oferecer o
outro contendor famoso, Max Weber, cuja conceituação de classe foi,
inegavelmente (e bem ao seu estilo), mais sistemática. Partindo de um conceito
circular de classe como “todo grupo de pessoas que se encontra em igual
situação de classe” (Weber, 1982: 212; 1994: 199), ele tende a concebê-la
enquanto conjunto de pessoas (ao contrário de Marx, que a via antes como
relação), concluindo que “o lugar autêntico das “classes” é no contexto da
ordem econômica, ao passo que os estamentos se colocam na ordem social”
(idem, 1982: 227), posto que “a situação de classe é, em última análise,
situação de mercado [de produtos ou de trabalho]” (idem: 214)5.

Porém, não foi apenas com o clássico weberiano que a concepção marxista de
classe teve de defrontar-se. A partir dos anos 50, com o desenvolvimento da
Teoria dos Jogos, mas, sobretudo, com a penetração do próprio Individualismo
Metodológico nas hostes marxistas “de pouca fé”, a partir da década de 1980 o
debate tornou-se cada vez mais acre. Uma obra, editada em 1965,
desempenhou um papel de destaque nesta contenda: A lógica da ação
coletiva, de Mancur Olson Jr. Nela, Olson postula a separação analítica do
interesse individual do membro de uma classe do grupo de interesse dessa
classe tomada coletivamente, defendendo que não necessariamente é do
interesse do membro de uma classe agir conforme os interesses de sua classe.

Num tão frontal ataque à concepção do materialismo histórico, era de esperar


que o rival conhecesse um pouco melhor as armas do adversário. Não é o
caso: se não estou errado, além das parcas referências extraídas do Manifesto
do Partido Comunista e do segundo volume de O Capital, todas as demais
citações do pensador alemão advêm de Lênin, Dahrendorf, Wrigth Mills e
outros autores menos conhecidos... Mas não polemizemos tanto com a
indisfarçada má vontade de Olson em ler Marx e Engels no original e,
superemos, portanto, nossa própria resistência, e, pelo bem de um debate
franco, leiamos Olson pelo próprio.

De fato, com um conhecimento tão pouco familiar da literatura marxista, não é


de estranhar que Olson equivoque-se logo na saída: o conceito de classe
social que ele reputa como sendo “de Marx”. Ou, sendo um pouco mais
compreensivo com ele do que este o fora com Marx e Engels, trata-se de uma
noção imprecisa (adjetivo que, curiosamente, Olson usa para qualificar o estilo
de Marx, cf. Olson, 1999: 123) e não aplicável a boa parte das obras
eminentemente políticas de Marx e Engels.

Destarte, para o atualmente celebrado professor da Universidade de Maryland


(EUA), na teoria marxista as classes seriam “grupos de interesse organizados,
(...) definidas em termos de relações de propriedade, (...) da posse (sic) da
propriedade produtiva (...) e, portanto, (...) de acordo com seus interesses
econômicos, para cuja promoção elas se servirão de todos os métodos
disponíveis, incluindo a violência” (idem: 118; 123). Assim se resume a
restrição olsoniana: “O ponto crucial, portanto, é que a teoria marxista das
classes sociais é incoerente na medida em que pressupõe uma busca racional
e egoísta de interesses individuais” (idem: 122)6. Aplicada à análise de classes,

5 Aliás, os melhores comentadores de Weber admitem que, na medida em que a formação dos
grupos não se restringia ao caráter econômico pressuposto nesta definição de classe, ele
utiliza o de estamento (stand), de forma a dar conta do estilo de vida, prestígio etc. (cf. Bendix,
1986: 91).
6 Mais adiante, Olson cita Joseph Schumpeter, para quem a teoria das classes de Marx seria

uma “irmã aleijada” da sua interpretação econômica da história (apud Olson, 1999: 124).
eis sua tese central:

A ação de classe não ocorrerá se os indivíduos que constituem uma


classe agirem racionalmente (...). Portanto, para um membro da
burguesia [ou da classe trabalhadora, dirá mais adiante] o mais racional a
fazer é ignorar seus interesses de classe e empregar suas energias nos
seus interesses pessoais (...) Porque, em ambos os casos, o indivíduo
acharia que obteria as vantagens da ação de classe tanto se participasse
dessa ação quanto se não participasse (idem: 120-121, grifos do Autor)

Se citamos tão longamente este autor, não é, evidentemente, por adesão, a


mínima que seja, a seus postulados. Muito mais do que a trajetória de Olson,
interessa-nos o percurso teórico que tais concepções, já sob a vestimenta a
caráter de um corpus coerente de idéias – o Individualismo Metodológico –,
trilharam rumo ao coração (ou ao fígado) do marxismo, naquilo que se
convencionou chamar de Marxismo Analítico ou Marxismo da Escolha
Racional.

Antes de mais nada, deixemos as coisas claras (se possível) como água: não
tomamos o Marxismo Analítico sequer como marxismo, e não por uma postura
sectária, de uma pretensa “pureza” de um “verdadeiro” marxismo-leninismo,
mas sim em honra de uma coerência mínima: ao fincar no indivíduo (e não nas
classes sociais) sua bases e negar a contradição como peça de toque
explicativa, não parece ser mais nem materialismo nem dialético...7 Ademais, é
o que muitos dos “analíticos”, sobremaneira o mais “claro” deles, Jon Elster,
admitem:

O critério para saber se uma pessoa pode ou não ser caracterizada como
um marxista analítico é a sua disposição de abandonar as visões
marxistas no caso de haver conflito entre as suas concepções e um
argumento empírico ou lógico (...). Não estou dizendo que nossa
abordagem é completamente desprovida de algum compromisso com
idéias marxistas, apenas que devemos ser capazes de abandonar antigas
concepções quando elas não resistem a esse teste relativo (1999: 99)8

Imersa nas fontes teóricas e epistemológicas da economia neoclássica e do


pensamento neoliberal dos britânicos (de origem austríaca) Friedrich von
Hayek (1899-1992) e Karl Popper (1902-1994), esta escola traz como
pressuposto básico que “todos os fenômenos sociais (sua estrutura e sua
mudança) são explicáveis, em princípio, apenas em termos de indivíduos: de
suas características, fins e crenças” (Elster, 1989: 164). Procurando explicitar
ainda mais seu instrumental de análise, esse autor, talvez o mais radical do
grupo de intelectuais interdisciplinares organizado em torno da Universidade de

7 Um dos mais ferinos dos seus representantes, John Roemer, ao negar a validade do método
dialético, rotula-o de “a yoga do marxismo, (...) muitas vezes usada para justificar uma forma
negligente de raciocínio teleológico” (1989: 23).
8 Não é difícil encontrar outras evidências desta estranha forma de ser marxista destes

“marxistas”. Citemos duas delas: “Estou longe de me sentir seguro de que algo restará, ao
cabo, da teoria marxista da ação de classe” (Przeworski, 1988: 14; 21); “Posições de grande
autoridade tradicional talvez tenham de ser abandonadas” (Cohen, 1990: 195).
Chicago (EUA) e que provocou um acirrado debate com um artigo publicado
em 1982, enuncia as premissas básicas da Teoria da Escolha Racional, que
serve de substrato ao Individualismo Metodológico: (1) as restrições estruturais
não determinam completamente as ações praticadas por indivíduos em uma
sociedade; (2) dentro do espectro de ações factíveis e compatíveis com
aquelas restrições, os indivíduos escolhem as que acreditam lhes trarão os
melhores resultados (idem: 182)9.

Nestes termos, não haveria por que sustentar a rubrica de marxismo a um


pensamento que parece “condenado ao weberianismo”10, muito menos
conceder-lhe tal espaço num ensaio que se pretende marxista, não fosse pela
pertinência das críticas por ele dirigidas a muitas das reflexões deste campo.
Resumamos as mais decisivas: (1) falta de um maior rigor metodológico; (2)
carência de microfundamentos e mecanismos que expliquem as lutas de
classes e, por último mas, talvez, a mais importante, (3) necessidade de um
conceito de classe centrado na exploração.

A primeira delas destina-se àqueles pesquisadores marxistas que, antes por


indisciplina metodológica e negligência intelectual do que por compromisso
filosófico e convicção teleológica da história, constróem seus raciocínios com
base em afirmações genéricas, desprovidas de evidências empíricas que as
corroborem, naquilo que Cohen chamou, na sua Teoria da história de Karl
Marx (1978), de insuficiência da prática por oposição à adequação na alta
teoria (cf. Cohen, 1990: 195).

Já a necessidade de microfundamentos não é tão pacífica assim. Antes de


qualquer coisa pela pretensão real do Individualismo Metodológico de “não
apenas acrescentar uma exposição das microcausas às macrocausas, como
substituir estas últimas por explicações de nível micro” (Levine, Sober e
Wright, 1989: 63, grifos dos Autores)11. Em segundo lugar porque as propostas
para tal encontram-se invariavelmente vinculadas àqueles métodos anti-
marxistas acima expostos (escolha racional, teoria dos jogos etc.), por
considerar inócuo o suposto “coletivismo metodológico” do marxismo. De todo
modo, acolhemos o aspecto positivo desta ponderação, no sentido da
necessidade de superar uma certa “teoria conspiratória” que sugere que tudo o
que acontece numa sociedade capitalista necessariamente corresponde às
necessidades da acumulação do capital sem que se apresente mecanismos
que expliquem tal ou qual tendência.
9 Logo, todo comportamento individual é racional no sentido instrumental do termo. Já a Teoria
dos Jogos consistiria num ramo da Teoria da Escolha Racional que enfatiza a interdependência
das decisões. Para um maior aprofundamento, ver ainda Przeworski (1988: 5, nota 1) e
Roemer (1989: 28-29). Mais recentemente, todavia, Elster começou a matizar algumas destas
posições, na medida em que a teoria da escolha racional “está baseada na premissa
substantiva de que as pessoas são instrumentais. E às vezes elas não são” (Elster, 1991: 99).
10 Tomamos aqui, de empréstimo, a indagação de Bruno Reis (1991: 430), o que não reside,

contudo, numa novidade nesta literatura (cf. Barreto, 1998: 34; Diniz, 1996: 102 e Scalon,
1998: 342). Merece destaque, porém, a análise de Lebowitz (1988: 212), que, ao responder ao
próprio título do artigo, “Is ‘Analytical Marxism’ Marxism?”, afirma que “não apenas inexiste
muito do Marx de Esquerda no Marxismo Analítico, como, em verdade, trata-se de um anti-
marxismo”.
11 Para uma exposição detalhada desta crítica, ver Cohen (1990: 191); Elster (1989: 204);

Przeworski (1988: 6-8) e Roemer (1989. 24-26).


Por fim, o desafio lançado pelos marxistas analíticos que toca mais fundo nos
anseios da nossa reflexão: uma definição mais precisa do conceito de classe
tendo a exploração como categoria crucial na determinação estrutural das
relações de classe. Não que esta categoria não tenha sido tematizada desde
os próprios fundadores do marxismo, passando pelos diversos teóricos que
lhes seguiram, até chegar aos analíticos. Como dissemos anteriormente, a
complexidade está em fazê-lo de modo amplo o bastante para incluir a
multiplicidade de sujeitos sociais do capitalismo contemporâneo sem, com
isso, perder seu caráter objetivo e de determinação estrutural. Retomando a já
transcrita passagem d’O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx
caracteriza o campesinato francês de meados do século XIX em termos
notavelmente provocativos:

Constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições


semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu
modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um
intercâmbio mútuo. (...) Seu campo de produção (...) não permite (...)
nenhuma riqueza de relações sociais. (...) A grande massa da nação
francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas,
da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de
batatas (Marx, 1985: 396-397)12

Assim, a precisão e o rigor conceituais se justificam, sob pena dos/as


explorados/as padecerem do mesmo problema dos/as camponeses/as de
Marx, constituindo-se num novo “saco de batatas”. Neste sentido, a discussão
realizada por alguns marxistas analíticos pode trazer sendas mais seguras por
onde caminhar. Dentre eles, destacamos a contribuição teórica de Roemer
reinterpretada por Erik Olin Wright, por nos parecer a mais adequada aos
propósitos aqui delineados. E não é casual: de todos os “analíticos”, este
professor de Wisconsin (EUA), discípulo de Crhistopher Hill posteriormente
influenciado pelo estruturalismo francês, nunca foi um ortodoxo da Teoria da
Escolha Racional, a ponto de assumir, em seus textos, uma certa postura
dúbia, como se fora interlocutor privilegiado daquela corrente e não exatamente
um seu membro13.

Que dizem então estes autores? Ora, após a obra do neo-ricardiano Piero
Sraffa (1898-1983), seguiu-se um intenso debate (não apenas no campo
marxista) acerca da categoria do valor-trabalho e sua conexão com o conceito
de exploração. Enquanto Cohen defende que as relações entre a teoria do

12 De todo modo, em outra obra ele articula a condição de exploração das diversas classes: “a
exploração [dos camponeses] só se distingue da exploração do proletariado industrial pela
forma. O explorador é o mesmo: o capital” (Marx, s.d.: 177, grifos do Autor).
13 Nesta discussão, devemos particularmente às reflexões de Guimarães (1998, sobretudo p.

32-41) e Santos (1998). Quanto ao conceito de exploração dos outros marxistas analíticos,
Elster (1989: 201-202) considera a Teoria da Exploração como um dos poucos elementos do
marxismo tradicional que permanece “vivo”, ainda que Cohen desautorize tal conceituação
(“exclusão dos trabalhadores das decisões cruciais sobre investimentos”) por dizer respeito
antes à subordinação que exploração, posto que “os capitalistas decidem sobre os
investimentos porque se apropriam da mais valia (...). A exploração está nessa apropriação e
não na decisão ulterior sobre o que fazer da mais valia” (Cohen, 1990: 194).
valor-trabalho e o conceito de exploração são irrelevantes, Roemer irá investir
na superação da categoria de exploração através desta teoria e na ampliação
do conceito de propriedade para construir sua Teoria Geral da exploração e
da classe (de 1982), conceituando como ativos econômicos (1) os meios de
produção, (2) as qualificações, (3) a força de trabalho e (4) os meios de
organização. Para ele, então, a exploração material resultará da distribuição
desigual de ativos produtivos, derivando as classes sociais dessa desigualdade
(cf. Guimarães, 1998). Já Wright, em Classes, de 1985, avança nesta
categorização roemeriana, ao diferenciar opressão de exploração14, num
parágrafo que merece ser citado em sua integralidade:

No caso de opressão econômica, a classe opressora tem apenas


interesse em proteger seus direitos de propriedade; no caso de
exploração ela também tem interesse na atividade produtiva e nos
esforços dos explorados (...). A exploração une, portanto, exploradores e
explorados de um modo que a opressão não faz necessariamente. É essa
combinação particular de antagonismo de interesses materiais e
interdependência que empresta um caráter distinto à exploração e que faz
da luta de classes uma força potencialmente explosiva (apud Guimarães,
1998: 37)

Com Wright, reafirma-se a existência estrutural das classes, conferindo-lhe um


estatuto objetivo, independente da consciência dos agentes. Para ele, cada
modo de produção teria um diferente mecanismo de exploração predominante,
convivendo, numa mesma formação social concreta, elementos de diferentes
modos de produção. E mesmo que seu conceito pretenda abarcar apenas a
exploração enraizada nas relações de produção (isto é, relações produtivas) e
não todas as relações sociais possíveis nas quais ocorre exploração, a questão
é que, aliado à exploração capitalista, existem formas não capitalistas de
exploração, estruturalmente subordinadas ao capitalismo, as quais fornecem as
bases materiais para formas secundárias de relações de classe (cf. Santos,
1998: 384).

Desse modo, como as estruturas de classes concretas compõem-se de


diferentes combinações das relações de classe, a sociedade capitalista
contemporânea assistiu ao desenvolvimento de múltiplas explorações, isto é,
diferentes formas de combinação de distintos mecanismos de exploração. Há
que chamar a atenção para esta noção de múltiplas explorações em virtude do
seu potencial explicativo e das consequências que traz para a Teoria das
Classes, sobretudo acerca da conceituação das classes médias (cf. item
seguinte) e outros grupos dominados (pelo gênero, etnia, geração, orientação
sexual etc.). De fato,

14 Sua formulação original de localizações contraditórias (dentro das relações) de classe (da
sua tese de doutorado, de 1986) era inconsistente do ponto de vista marxista, por basear-se
quase exclusivamente na idéia de dominação, em lugar de exploração, o que não implica
conflito de interesses dos atores como membros de classe, mas refere-se a qualquer conceito
de opressão. Com a obra de 1985 e as posteriores, Wright, reconceitua, a partir da Roemer,
classes possuindo interesses objetivos, recolocando a teoria das classes como teoria do
conflito (cf. Scalon, 1998: 340).
a discriminação sexual pode ser conceituada como uma forma truncada
de exploração feudal. Com efeito, não há posse igualitária de força de
trabalho se um gênero não tem possibilidade de usá-la livremente como
os outros agentes (apud Guimarães, 1998: 40-41)

Na base do fenômeno da exploração encontra-se o da exclusão do acesso aos


recursos produtivos segundo os diferentes modos de produção, garantido, no
capitalismo, em última instância, pelo Estado, que assegura o direito de
propriedade dos capitalistas. Desta maneira, a exploração reveste-se num
conceito intrinsecamente político, já que requer relações de dominação. Por
fim, a desigualdade de classe joga um papel decisivo na moldagem das outras
dimensões da desigualdade social, ainda que estas não possam ser reduzidas
a ela.

3. INTELECTUAIS COMO ORGANIZADORES DOS PROJETOS DE


CLASSE: SUPERANDO O EMBARAÇO DAS CLASSES MÉDIAS

Apesar de nem um pouco recente, o debate sobre as classes médias dentro do


campo marxista não tem colhido resultados nada frutíferos, a julgar pela
expressão com que alguns destes teóricos cognominaram a questão: o
embaraço da classe média. Isso se explica, em parte, pela tentativa de
compatibilizar um modelo de classes abstrato e dual (burguesia versus
proletariado) à realidade concreta da expansão contínua dos setores
intermediários nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mas não é só isso:
a própria lógica da reprodução do capital, ao superpor diversas clivagens
(proprietários/as e não proprietários/as, trabalhores/as manuais e intelectuais
etc.), termina por configurar uma classe na qual a posição na estrutura é, ela
mesma, fruto de reelaborações simbólicas dos mais variados matizes15.

A forma mais frequentemente adotada para equacionar este “embaraço” tem


sido, sobretudo entre os estudos sociológicos, a de construir tipologias a partir
de critérios como renda e ocupação, derivando daí a classe; no caso da imensa
massa destes/as assalariados/as não-operários/as, a rubrica utilizada reflete o
enfoque não-marxista desta abordagem: classe de serviço. Uma vez mais, a
tentação “weberiana” nos persegue, e dela nem sempre escapam os marxistas,
a exemplo do próprio Erik Wright, em cujo último “mapa” de classes figuravam
nada menos que doze posições...16

Trataremos nesta seção de exorcizá-la devidamente, procurando definir com


maior rigor a noção de classe média. Ora, na tese marxiana original, a posição
de classe condiciona fortemente a consciência, a cultura e a opinião política.
Daí porque a classe média (também chamada “de permeio”, pequena
burguesia, “em transição”, ou “classes médias”, no plural), bastante citada nos

15 Como ilustração deste caráter contraditório, ver um dos depoimentos contidos no debate
sobre “A luta pela transformação da sociedade”, quando se questiona “se dá pra acreditar
nesses segmentos [a classe média] (...). Não acredito, como classe, não! Aliás, eu não
acreditaria em mim mesmo como classe!” (Cadernos do CEAS, 194: 77).
16 Para uma boa recensão contrapositiva entre as tipologias de classe e os mapeamentos de

estratos nas perspectivas neoweberianas (de John H. Goldthorpe) e neomarxistas (de Wright),
ver Diniz, 1996; Santos, 1998 e Scalon, 1998.
ensaios políticos, oscila como uma “massa flutuante” entre a burguesia e o
proletariado, de personalidade dúbia, ora condenada à escravidão sob o
regime burguês (e, portanto, aliada potencial do operariado e do campesinato),
ora surgindo como “semi-burguesa” e, por conseguinte, partícipe ativa deste
mesmo sistema; mas invariavelmente marcada por apanágios pouco
lisonjeiros: lânguida e covarde, retórica e portadora de ilusões, meio-
conservadora e meio-revolucionária, enfim, “sem fé em si mesma e sem fé no
povo; sem olhos, sem orelhas, sem dentes, uma ruína completa” (Marx, s.d.a.:
51).

A reinterpretação desta classe em termos mais operativos principia, de fato,


com as contribuições de Gramsci e Poulantzas, ao reconhecerem que as
relações ideológicas e políticas são objetivas com respeito às lutas de classes.
Para refinar este modelo de localização de classe no modo de produção
capitalista, o pensador greco-francês irá distinguir propriedade econômica
(“controle econômico dos meios de produção, isto é, o poder real de afetar os
meios de produção para determinadas utilizações e dispor assim dos produtos
obtidos”) de posse (“capacidade de dinamizar os meios de produção, isto é, o
domínio do processo de trabalho”), o que permitirá incorporar na esfera da
burguesia os que detêm posse e não propriedade (cf. Poulantzas, 1978: 19). É
por este viés que envereda Wright (isto é, quando consegue se desvencilhar
dos seus mapas mirabolantes), para quem os profissionais ocupariam uma das
posições contraditórias de classe: explorados em relação ao modo de
produção, por não dispor de recursos em capital; exploradores em relação aos
leigos, na medida em que monopolizam o controle sobre um ativo.

Reposta a idéia da contradição como ingrediente por excelência da classe


média, antes um catalisador explosivo do que ela própria a pólvora de
combustão, convém uma menção especial àqueles que, dentro dela, exercem
uma das práticas mais sensíveis à reprodução do sistema: a de sistematização,
organização e reelaboração dos diversos projetos das classes. A melhor
formulação parece-nos continuar sendo a do militante sardo, que define
intelectual como “organizador da cultura” mas não o deixa boiando no espaço
do Hades e no tempo do Éon, e sim o vincula à estrutura concreta de classes,
sob a forma de “intelectuais ‘orgânicos’ que cada nova classe cria consigo e
elabora em seu desenvolvimento progressivo” (Gramsci, 1985: 4)17.

Vale notar que, mesmo um autor que rompeu com o marxismo 18, como o
sociólogo recentemente falecido Pierre Bourdieu (1930-2002), reconhece este
nexo de classe dos intelectuais, quando, ao tratar da aliança ambígua entre
estes e os operários, afirma que “os produtores culturais, dominados entre os
dominantes, oferecem aos dominados, mediante uma espécie de desvio de
capital cultural acumulado, os meios de constituírem objetivamente a sua visão

17 Não temos interesse em entrar, de momento, nas querelas dos exegetas do intelectual
italiano, cada qual garantindo “possuir” o verdadeiro Gramsci: uma rápida visão dessa disputa
de paternidade pode ser atestada através das obras de Coutinho (1981) e Dias et al (1996),
sintomaticamente intituladas, respectivamente, Gramsci e O outro Gramsci. Para uma
apreciação instigante desta multiplicidade de interpretações, ver Cunha, 2001.
18 De acordo com ele, o marxismo seria “o mais poderoso obstáculo ao progresso da teoria

adequada do mundo social, progresso para o qual, em outros tempos, ela contribuiu mais do
que qualquer outra” (Bourdieu, 1989: 161).
de mundo e a representação dos seus interesses” (1989: 153-154). Em geral,
porém, esta literatura não materialista tende a concebê-los desvinculados de
posições sociais, como “pessoas que se especializam em símbolos, [que]
produzem, distribuem e preservam formas distintas da consciência. São os
portadores imediatos da arte e das idéias” (Mills, 1976: 161-162).

Tal operação analítica decorre, ao nosso ver, de uma concepção de cultura


desaparentada das relações materiais da vida, num esforço de garantir a
existência autônoma do indivíduo livre, criador mais do que criatura. (Talvez,
quem sabe, numa reação deliberada a uma certa visão mecanicista que
entende toda e qualquer produção cultural como mero reflexo da base
econômica19.) A essa postura parece encaixar-se perfeitamente a carapuça do
culturalismo, e é contra ela (e também contra o mecanicismo vulgar) que esse
texto se erige.

Nossa concepção de cultura, portanto, deriva inicialmente de Gramsci e


Mariátegui, não somente pela fecunda reflexão desenvolvida a partir da
condição de periféricos (o Sul da Itália e o Sul da América), como,
sobremaneira, pela vivência prática enquanto intelectuais orgânicos das
classes oprimidas, o que lhes permitiu transcender em muito aos rígidos
modelos interpretativos da esquerda de então no que concernia às culturas
populares. A elaboração mais enfática deste anti-mecanicismo encontra-se
seguramente no socialismo indo-americano de Mariátegui (1982), sem falar do
novo aporte gramsciano ao estudo das religiões, em geral, e do catolicismo
popular, especificamente, numa clara indicação de que muito mais unia estes
dois intelectuais para além da descoberta de que “o amor é estrangeiro”
(Antônio com Giulia, José com Ana...)20.

Nessa perspectiva, a cultura é não apenas um modo de produção de idéias e


conceitos como, em muitos aspectos, um modo de reprodução, e os seus
operadores “especializados”, os intelectuais, imersos em atividades sociais e
reprodutivas. Neste particular, é-nos de grande valia a concepção de Raymond
Williams acerca da cultura popular enquanto “combinação muito complexa de
elementos residuais, autoproduzidos e produzidos externamente, com
importantes conflitos entre eles” (2000: 226), noção que se associa às múltiplas
explorações de que nos falava Wright anteriormente, permitindo, em
consequência, romper a cisão analítica entre o sistema social e o sistema de
significações, restaurados agora como mutuamente constitutivos (cf. Williams,
182; 215-216)21.

19 Não é de todo surpreendente, portanto, que o marxista analítico exemplar chegue ao


extremo de negar a própria existência da cultura em favor do indivíduo: “Não existe uma coisa
chamada cultura. Existem somente indivíduos, e indivíduos são moldados por outros indivíduos
(...).” (Elster, 1991: 100).
20 Apesar de terem partilhado o mesmo ambiente italiano da primeira metade da década de 20,

Gramsci e Mariátegui não foram amigos, tendo provavelmente se conhecido pessoalmente no


Congresso do Partido Socialista Italiano em Livorno, em 1921, quando, inclusive, seria fundado
o Partido Comunista Italiano (PCI).
21 Para uma interessante justaposição entre os conceitos de hegemonia em Gramsci e cultura

dominante em Williams, ver Morgan, 1998: 130.


Desta forma, cremos superar os dois desvios metodológicos acima
anatematizados, na medida em que situamos as práticas culturais dos diversos
grupos populares num esquema de classe, sem, com isso, incidir nos
reducionismos que enevoam a visão da realidade (cf. Canclini, 1988: 64). E na
medida em que as classes exploradas, submetidas a diversas ordens de
exploração, constroem seus projetos coletivos a partir de matrizes culturais
também múltiplas, pelo menos uma parte desta “operação” cabe aos
intelectuais: os elementos produzidos externamente.

Dentro desta problemática, cremos que um último desafio teórico ainda restaria
para ser enfrentado: sendo a cultura um modo de produção e reprodução
inserido na estrutura de classes, como os interesses materiais se expressam
ao nível da consciência dos diversos grupos sociais? Ou, dito de forma mais
simples: qual a conexão entre os interesses objetivos e a consciência de
classe? Como se vê, estamos aqui diante da Teoria da Ideologia marxista,
obviamente que numa formulação distinta daquela que a toma como falsa
consciência ou como reflexo das relações econômicas. Muito ao reverso disso,
na nossa concepção a ideologia assume o estatuto de idéias e crenças
(verdadeiras e falsas, pouco importa) que simbolizam condições e experiências
de vida de classes, enraizando-se, por conseguinte, nas práticas sociais que
ela ajuda a estruturar segundo uma visão de mundo que, mais do que mera
representação empírica, é relação vivenciada (cf. Eagleton, 1997).

Desta forma, talvez estaríamos iniciando a resolução do terceiro dos desafios


lançados pelos marxistas analíticos, qual seja (para quem se já esqueceu),
explicar os mecanismos pelos quais a classe trabalhadora se torna consciente
de interesses de classe, assim como as circunstâncias que inibem ou
estimulam esses mecanismos. Mas isso é já matéria de um outro ensaio.

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________________________
* Iraneidson Santos Costa é sociólogo, doutorando em História Social
(Universidade Federal da Bahia) e assessor do Centro de Estudos e Ação
Social (CEAS). Do mesmo Autor, ver “O jumento e a locomotiva” (Cadernos do
CEAS: Canudos, número especial: 173-184. Salvador, Centro de Estudos e
Ação Social, 1997). [icosta@ufba.br]

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