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eorges Canguiltíem convida a uma crítica da razão
VJTm édica, da qual esta sé rie de intervenções oferece
os prolegô menos. Dessa cr ítica, ele d á o tom - rigor e
limpidez ilustra pudicamente as condições - enquête
erudita e lucidez seletiva - e assenta os marcos, de
Hipocrates aos dias de hoje: a medicina não hipocrá
tica nem por isso é anti, não mais do que a geometria
- coleção FUNDAMENTOS DO SABE
n ão euclidiana é antieudidiana. Não obstante nada de
^
sistematicidade kantiana no estilo, que resulta, antes,
.
da fórmula cristalizada nietzchiana, melhor ainda, do Georges

*
aforismo ao qual Hipocrates recorreu. _
Se o leitor se aplicar a pô-las em série, estará em conrt¬ - -
dições de formular as boas questões, inceSsantemerite
,

renovadas, sobre a natureza médica, as relações mfédiço-


-
— Canguilhem
doente, doença-doente e as ameaças de sua dissoci ¬
ação, sobre o tratamento, as vias e os efeitos da medi¬
cina científica, a sa úde e as mentiras de seus silêncios, • FILOSOFIA
assim como sobre as armadilhas das met áforas oça
% sionadas por ela. '*
-
>
*
|
Essas intervenções foram publicadas com ufna
discri¬
ção que dificultava o acesso a elas. Sua colet â nea |
duz um efeito de modo a realçar cada um dos textos-
po Escritos
assim reunidos. Nenhuma repeti ção desnecessá ria, uipa
f úlgurâ ncia na qual se reconhece o brilho de uma obra
que continua a elucidar a atualidade médica. sobre a
Medicina
-
ISBN 85 - 218 0378 - 8

9788521 803782 FORENSE


UNIVERSITÁRIA
%LW '

FORENSE '

UNIVERSITÁRIA
m
Georges
Canguilhem
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FILOSOFIA
-
Escritos
sobre a
Medicina
Tradução:
Vera Avellar Ribeiro

Revisão Técnica:
Manoel Barros da Motta

-
Prefácioh
Armand Zaloszyc —
.
* ^

11 ,
FORENSE
UNIVERSITÁ RIA
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CX IV • xvr .
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Ia edi ção - 2005

© Copyright
As referências de primeira publicação de cada
um dos textos
figuram no infeio do volume.
!
© PUF. 1939, 4a edição. 2001 . para o texto “ As doenças”
© Sables. 1990, para o texto "A sa úde: conceito vulgar e quest ã o filos ó ”
© Editions du Seuil, junho. 2002. para todos os outros textos e para ficaa
composição do volume

Capa: Mello & Maycr


Ediui ração eletrónica: Rio Texto Sumá rio
ClP- Brasil. CaiuloguçãiMUi- fonte
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, ICJ.
Prefá cio 7
C226e Canguilhem, Georges, 1904 -
Escritos sobre a medicina / Georges Canguilhem: pretacto Armam
! Zaioszyc:

tradução Vera Avellar Ribeiro Rto de Janeiro: Po reuse
Nota sobre a procedência dos textos
-
. ( Fundamentos dn saber ) Universitá ria, 2005.
9
Tradução de: Eeritssur ta médceiuc
- -
ISBN 85 218 0378 8 - A idéia de natureza no pensamento e na prá tica médicas . . . 11
I . Medicina - Filosofia. 2 Medicina - Hist
. ória. 1. Título. 111. Série.
05 - 1292.
CDD 610.1 As doenças 23
CDU 61.001. Ml

A sa úde: conceito vulgar e questã o filosófica 35

Epossível uma pedagogia da cura ? 49


Proibida a reproduçã o lotai ou parcial, de qualquer forma
ou por qualquer meio eletrónico ou mecânico, sem permiss
ão O problema das regulações no organismo e na sociedade . . . 71
expressa do Editor ( Lei nu 9.610 , de 19.2.1998 ),

Reservados os direitos de propriedade desta edi ção pela


EDITORA KORENSE UNIVERSITÁ RIA
.
Rio í/C Janeiro: Rua do Rosá rio 100 - Centro - CEP 20041
-002
Tels./ Eax: 2509- 3148 / 2509-7395
.
São Paulo : Rua Senador Paulo Eg ídio 72 - slj. 0 - Centro
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e - mail : cditora @ forenseiiniversilaria.com.br
-
http:// vvww. forenseunivcrsitaria.com. br

Impresso no Brasil
Primai w Brazil
Prefácio
Um certo disparate sempre me pareceu ser um traço da com
posição dos livros publicados por Georges Canguilhem. Com
,
-
exceçã o de suas duas teses, uma sobre O normal e o patológico e a
outra sobre La formation du concept de ré flexe (ambas publicadas
pela PUF) , ele, sem dúvida, procedeu essencialmente por meio
de artigos publicados aqui e ali, os quais reunia em uma seleção,
de tempos em tempos, para fazer deles um volume: assim obti¬
vemos seus É tudes d’ histoire et de philosophie des sciences , ou La
connaissance de la vie , ou ainda Idéologie et rationalité darts
Vhistoire des sciences de la vie (todos atualmente editados por
Vrin) . Penso, todavia, que, mais além do que aparece fulguran¬
% —
te como um método - de trabalho, de transmissão , é uma ori¬
enta ção que nos é dada.
Quem sabe era assim que ele pretendia nos apresentar este
novo objeto de saber inventadcfpOf ele, com novos contornos,
expansões imprevistas ? Por um outro aspecto, n ão estaria neste
homem, neste ensinante de um rigor contínuo, a marca da inci¬
dência de uma lógica que valorizava a inconsistê ncia do grande
Todo ? Encontrarei facilmente um outro sinal ciisso no fato de
ele ter dirigido, em 1970, de maneira bastante inesperada , um
colóquio do CNRS sobre “ A matematização das doutrinas in¬
formes” .
1Ò / Georges Canguilhcm

“ explodida ” que aqui proponho vai nessa direção, mas ela me é


peculiar.
A. Z.
Fontes
1. “ A id éia de natureza no pensamento e na prá tica médicas ” , A idéia de natureza no pensamento
M édecine de 1' homme , revista do Centro Católico de Médicos e na prá tica médicas
Franceses, n- 43, março de 1972, p. 6 12. -
2. “ As doenças", Encyclopedic philosophic universelL , 1’ univers Podemos nos perguntar se a rela çã o entre médico e doente
philosophique , sob a direção de André Jacob, Paris , PUF, 1989 , conseguiu , algum dia , ser uma rela çã o simples de ordem instru ¬
v. 1, p. 1.2334.236. mental, capaz de ser descrita de tal maneira que a causa e o efei¬
to, o gesto terapê utico e seu resultado, estivessem ligados dire ¬
3. “ Á sa úde: conceito vulgar e quest ão filosófica ” , Cahiers du tamente uns aos outros, em um mesmo plano e no mesmo nível,
séminaire de philosophie n- 8 : La santé , edições Centre de Doeu -
sem intermediá rio estranho a esse espa ço de inteligibilidade.
-
mentation enHistoire de la Philosophic, 1998, p. 119 133 ( tra ¬ De todo modo, é certo que a invocaçã o multissecular de uma
-
ta se de uma conferência pronunciada em Estrasburgo, em
natureza curativa foi e continua sendo a referê ncia a um tal in¬
maiotde 1988, a convite do Pr. Lucien Braun) . Publicado igual- termediário, cujo papel é, talvez, o de dar conta, através da his ¬
mende sob a forma de um booklet , Pin-Balma , Sables ed., 1990,
36 piV -
tória , do fato de que o par médico doente raras vezes foi um par
harmonioso, em que cada um dos parceiros pudesse se dizer ple ¬
;#
1. “ E possível uma pedagogia da cura ? ” , Nouvelle Revue de namente satisfeito com o comportamento do outro.
-
Dsychanalyse (diretor J . B. Pontalis) , n2 17, primavera de 1978,
A abstençã o sincera e perseverante de toda prá tica de char ¬
-
j. 13 26.
latã o - oposto, em suma , da honestidade profissional - não é
). “ O problema das regulações no organismo e na sociedade” , exclusiva da ambição de propiciar ao doente, mediante inter¬
-
Valuers de 1' Alliance Israelite Universelle , n- 92, setembro outubro venções eficazes , uma melhora ou uma restituição que ele n ã o
- -
le 1955 , p. 64 73. N ã o reproduzimos a discuss ã o ( p. 73 81) . poderia obter por seus próprios meios. Essa ambi ção pode che ¬
gar a conter a idéia de que um organismo doente, diante do mé ¬
dico e para ele, é apenas um objeto passivo e dócil às manipula ¬
ções e solicita ções externas. Um médico escocês, muito cé lebre
na Itália e na Alemanha no início do século XIX, John Brown , o
'12
*
-
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V

Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina


13
inventor dos conceitos de estenia e astenia, acreditava poder
deve-se entender uma atividade, imanente ao organismo, de
resumir em duas palavras o imperativo da atividade médica : “ É
compensa ção dos deficits , de restabelecimento do equilíbrio
preciso estimular ou debilitar. Inação, nunca. N ã o confiem na
rompido, de retificação de postura na detecção do desvio. Essa
força da natureza ." Era a consequência necessá ria de uma certa atividade não é uma ciência infusa. “ A natureza encontra por si
concepçã o do corpo vivo: “ A vida é um estado forçado [...] . mesma as vias e os meios, n ão pela inteligência: ta s são o piscar
Nã o somos nada por nós mesmos e estamos inteiramente os olhos , os of ícios desempenhados pela língua e ai outras ações
subordinados às potências externas” ( Éléments de médecine , desse gênero; a natureza , sem instru ção e sem saber , faz o que
1780) . Para corpo inerte, medicina ativa. convém.”
Inversamente, a consciência dos limites do poder da medici ¬
A analogia entre a arte do m édico e a natureza curativa n ão
na acompanha toda concepçã o do corpo vivo que lhe atribui,
esclarece a natureza pela arte, mas a arte pela natureza. A arte
seja qual for a sua forma , uma capacidade espont â nea de con ¬
médica deve observar , escutar a natureza. Aqui, observar e ou ¬
serva ção de sua estrutura e de regulação de suas funções . Caso
vir é obedecer. Galeno, que atribuiu a Hipocrates os conceitos
o organismo tenha , por ele próprio, seus poderes de defesa , con¬
dos quais podemos apenas dizer que são hipocrá ticos, reto¬
fiar nele é , pelo menos provisoriamente, um imperativo hipoté ¬
mou -os por sua conta e ensinou , ele também, que a natureza é a
tico de prudência e de habilidade ao mesmo tempo. Para corpo
primeira conservadora da sa ú de, porque ela é a primeira forma ¬
dinâ mico, medicina expectante. O gênio médico seria uma pa ¬
dora do organismo. Devemos lembrar, todavia, que nenhum
ciê ncia . E necessá rio, ainda, que o doente consinta na longani ¬
texto hipocrá tico chega a descrever a natureza como infalível
midade. Bordeu o viu muito bem e disse: “ Este mé todo dc ex ¬
ou onipotente . Se a arte m é dica nasceu , foi transmitida , se ela
pecta çã o tem algo de frio ou de austero, ao qual a vivacidade
deve ser aperfeiçoada , é como medida do poder da natureza, ou
dos doentes e dos assistentes deve se acomodar pouco. Alé m
seja, avaliação de suas forças. Segundo o resultado dessa medi¬
disso, os expectadores sempre formaram um pequeno conjunto
da, o médico deve laisserfaire a natureza, ou então intervir para
entre os m édicos , sobretudo junto aos povos naturalmente vi
ws, impacientes e receosos" ( RecherchessurVhistoire delaméde
- - -
sustentá la e ajud á la , ou ainda renunciar à intervenção , uma
:ine , 1768) .
- vez que há doen ças mais fortes que a natureza. Onde a natureza
cede, a medicina deve renunciar. “ Pedir à arte o que não é da
Nem todos os doentes tratados se curam. Alguns doentes se arte e à natureza o que n ã o é da natureza é ser ignorante, e de
curam sem médico. Hipocrates , que relata essas observa ções uma ignor â ncia que resulta mais da loucura do que da falta de
em seu tratado Da arte , é també m aquele que tem a responsabi- instru ção” ( Da arte ) .
idade ou, em seu lugar, a glória legendá ria de haver introduzi - :!: si:
lo o conceito de natureza no pensamento mé dico. “ As nature
:as s ã o os médicos das doenç as" ( Epidemias , VI) . Por médico
- Quer o lamentemos, quer n ã o , o fato é que , hoje , ningu ém é
obrigado, para exercer a medicina , a ter o menor conhecimento
14 Georges Canguilhem Escritos sobro a medicina
15

de sua história. É fácil imaginar qual impressão uma doutrina ções orgâ nicas paradoxais a um hipocratismo de estrita obe ¬
médica , tal como o hipocratismo, pode produzir no espírito de diê ncia . Há erros de réplica ou de exposição. Ocorre que, a algo
quem só conhece o nome de Hipocrates pelo famoso juramen ¬ insignificante , a natureza responde com um paroxismo. Assim
to, fito final doravante esvaziado de seu sentido. Pior ainda se , é na alergia , na anafilaxia . Por vezes, dizer que o remédio natu ¬
por á&aso, projetando retroativamente no passado os princípios ral é pior do que o mal é ainda pouco , ele é o pró prio mal. Po ¬
teóricos e os preceitos técnicos do ensino médico de hoje , se ré m , se examinarmos bem as técnicas m édicas de defesa contra
pretendesse julgar Hipocrates, como se a vazante do curso da essa autodefesa desmedida , não seria possível tornar a dar um
história transparecesse a montante. Notemos, sem animosida ¬ sentido ao conceito de natureza ?
de, que até mesmo um mestre como Édouard Rist , que não ig¬
norava a histó ria , só soube tratar da medicina hipocrá tica , em No que concerne às defesas .orgâ nicas nanirais, a medicina de
sua Histoire critique de la médecine dans 1‘Antiquité, sob a forma hoje exerce uma prá tica de d ú vida provisó ria. A d ú vida n ão inci ¬
de um requisitório. Aparentemente, essa espécie de ingratidão de sobre o fato da reação, mas sobre a pertin ê ncia i ticial e sua su ¬
n ão deixa de ter fundamento. Como Fran çois Dagognet o mos ¬ ficiência definitiva. E, no entanto, essa d ú vida n ão suspende a
trou em La raison et les remedes ,1 a medicina contempor â nea, decisão de intervir; pelo contrário, ela. a precipita. É que essa d ú ¬
muito longe de vigiar ou de estimular , sistematicamente, as rea ¬ vida é fundamentada no conhecimento do papel desempenhado
pelo sistema neurovegetativo, no que se nomeou situações pato
ções de autodefesa do organismo , com frequ ê ncia se esforça em
moderá-las, e talvez mesmo em reprimi las, em deter , por
-
-
exemplo, rea ções humorais desproporcionais em rela çã o à
gênicas, independentes da natureza dos agentes patógenos. Ora,
a ação sobre o sistema vegetativo, seja qual for seu mecanismo
agressividade que as suscita. Por vezes a terapê utica colabora , indireto, a complexidade dos desvios, notadamente pela inibição
inclusive , com o próprio mal, reforça o que ela deveria enfra ¬ hierarquizada dos centros de excitação ou de frenamento, per-
quecer , multiplica o que deveria reduzir, a fim de converter em mant ce, em ú ltima análise, uma cópia , embora invertida, do pro
¬
instrumento do bem a exaltação provocada por uma afecção
espontâ nea. É o caso de algumas prá ticas imunológicas que
-
cesso orgâ nico natural. Mesmo tomando a pelo avesso, a arte
imita a natureza, no sentido em._q.Lie La Fontaine diz: “ Minha
,

contam com a intensidade do processo infeccioso para facilitar , imitação não é uma escravidão, pego apenas a idéia, os contor¬
por meio da secreção de substâ ncias proteol íticas, a ação das nos, as leis [...].” Uma terapê utica sistematicamente não hipo ¬
bacté rias. N ão nos parece , então, que a medicina contemporâ ¬ crá tica pôde ser inventada porque , por volta de 1921 , Otto Loe¬
nea lança por terra as prescrições hipocrá ticas e só reconhece a wi , confinnando observa ções acompanhadas desde 1904 por
existê ncia de uma natureza curativa das doenças por temer e, Elliot e Dale , conseguiu demonstrar que o pneumogástrico age
por conseguinte , para entravar suas iniciativas ? É que a patolo ¬ por meio da liberação de uma substâ ncia inibidora, de um trans ¬
gia contempor â nea aprendeu a reconhecer a existê ncia de rea - missor qu ímico. Por essa razão, ao identificar a histamina, Sir
Henry Dale pôde dizer que ela era um produto da “ autofamiaco
logia orgâ nica ” . Mas, tanto na farmacopéia viva quanto na far-
-
‘Paris, PUF, 1964, Cd. “ Galien".
* 16 ‘
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 17

macòpéia erudita, seus rem édios podem ser també m, segundo o


caso. a duração e a dose, venenos. Em suma , uma medicina nã o
-
Compreende se que a partir do momento em que a ciência
fisiológica permitiu ao médico poder contar com a existência de
-
hipocrá tica nã o é uma medicina anti hipocrá tica, tanto quanto
uma geometria n ã o euclidiana n ã o é uma geometria antieucli -
mecanismos protetores da estabilidade orgâ nica, os médicos
puderam cessar de invocar a Natureza como a providência da
diana . O poder curativo da natureza não é negado pelo trata' -
Vida. Mas compreende se també m por que essa interpreta ção,
-
mento que o governa integrando o; ele é situado em seu nível ou ,
mais exatamente, ele é compreendido em seus limites. O hipo-
até aquele momento, embora frequentemente contestada co¬
mo métafisica por muitos espíritos positivos , pôde, de modo in¬
cratismo constatava que as forç as da natureza s ã o limitadas , o
que ,valeu à medicina expectante ser qualificada por Asclepíades
-
cessante e junto a espíritos nã o menos vigorosos , autorizar se,
tanto em teoria quanto em prá tica , da observaçã o atenta e fiel
de meditaçã o sobre a morte. A medicina nã o hipocrá tica pode de algumas rea ções e performances do organismo em estado de
recuár suas fronteiras derivando essas forças. Atualmente, a ig ¬ doen ça . Se o organismo humano compreende dispositivos de
norâ ncia consistiria em não pedir à natureza o que nã o é da natu ¬ segurança contra os riscos em suas relações com seu meio, o que
reza. A arte médica é a dialé tica da natureza . haveria de surpreendente se esses dispositivos funcionassem, e
o que haveria de insensato se homens , doentes ou mé dicos ad ¬
mirassem seus efeitos manifestos ?
N ã o é sem propósito que o nome de Loewi tenha sido manti ¬
do no esboço histórico de uma revolu çã o em patologia , e prefe ¬ A revisão dos das teses inspirados pela confiança
temas e
prá tica - na falta de lucidez teórica - no poder curativo da na ¬
rido a tantos outros, como os de Reilly ou de Selye. Os trabalhos
de Loewi foram retomados e prolongados , em Harvard , por -
tureza exigiria a referê ncia a uma literatura médico filosófica
considerá vel , cuja melhor apresenta ção é oferecida pela obra
Cannon e sua escola . Foi Cannon quem ampliou o interesse pe ¬
las pesquisas fisiológicas sobre o sistema nervoso autónomo, de ¬ de Max Neuburger, Die Lehre von der Heilkrayt der Natur im
monstrando seu papel na regula çã o homeostá tica de funções -
Wandel der Zeií en (1926) . Sob o título Le médecin de soi même , a
biológicas fundamentais: circula çã o , respira çã o, termogênese. -
Srai Evelyne Aziza Shuster estudou, recentemente, em uma
Foi Cannon que , depois de Claude Bernard, apresentou o con ¬
junto Jas funções de regula çã o como “ uma interpreta çã o mo ¬
tese de doutorado de terce~ir ô citf
^
ô a parte dessa literatura que
concerne ao que se poderia chamar “ a prescriçã o de Tibé rio ” .
Tá cito, Suet ônio, Plínio, o Velho, e Plutarco transmitiram à
derna da vis medicatrix natural” , interpreta çã o geradora de oti ¬
posteridade o exemplo e a exorta ção do imperador Tibé rio:
mismo quanto à coopera ção entre o médico e a natureza , mas
passada a idade de 30 anos , todo homem deve poder ser seu
em um sentido de rela ção de modo que “ a própria natureza co ¬
próprio m édico. Depois dos 30 anos , quer dizer, depois que um
labore com os rem édios que ele ( o médico) prescreve". 2
n ú mero suficiente de experiências em matéria de alimentaçã o,
^ La sagesse cl n corps (trod. fr. de TI le wisdom of the hocly , 1932 ) , Paris , 1946 , p.
194 - 195. 3A ser publicada pela PUF, Col. “ Galien ” .
18'

Georges Canguilheni Escritos sobre a medicina


19
higiéne e modos de vida permitiu ao juízo indiv
para ção entre, por um lado, os efeitos das escol
idual fazer a se
has instintivas , e
- da terapê utica , utiliza çã o astuciosa do ~desarvoramento dos 14"
^
portanto naturais, de satisfa ções ótimas e , por doentes para a venda de qualquer electuá rio de Orvieto, mes ¬
outro, as conse ¬ mo que sob a forma de impresso.
quências da submissão dócil às regras de uma arte
mal funda ¬
mentada ou interessada em enganar. Quem se surpre No século XVIII , foi sob o título De medicina sine medico
enderia
com o fato de Montaigne se referir a Tibé rio para
seguir apenas seus apetites, na sa úde e na doen , -
autorizar se a
ça e para fazer
(1707 ) , ou sob De autocratia naturae ( 1696) , que Geor
-
Ernest Stahl parabenizou se pelo feliz contraste entre a propen ¬
ges
ceder “ amplamente toda conclusão médica ” a seu prazer ? s ã o à doenç a e a raridade das doenças em um organismo conde¬
Mas
quando Descartes, depois de se haver vangloriado por nado a uma corrupção rá pida por sua composição química , sob
fundar
uma medicina infalível sobre uma cicncia do corpo o efeito de uma natureza pronta a restabelecer a economia ani ¬
vivo, e t ã o
solidamente demonstrada quanto a mecâ nica , propõe a mal , gra ças à espontaneidade do movimento tônico vital. Mas
man , como regra da sa ú de, o discernimento instintivo
Bur - foi sob o título De medico sui ipsius que o rival de Stahl em Halle,
do ú til e
do nocivo próprio aos animais, a confiança no poder reconheci
do à Jflatureza de se restabelecer a partir de um estado que ela
¬ -
Frédé ric Hoffman , esmerou se em apresentar sua teoria meca
nicista do corpo vivo como o suporte racional de uma prá tica
-
"conhece bem melhor do que um fiel aos princípios hipocrá ticos. Foi ainda sob o título Medicus
médico que s ó vê o lado de
fora’Ii ,que sustenta ção dada à tese do Médico de si mesmo! De sui ipsius (1768) que Lineu expôs, mais explicitamente que mui ¬
nosso#onhecimento, a primeira obra que levou esse t ítulo foi tos outros depois de Galeno, os princípios de uma conduta da
a
-
do cirurgiã o Jean Devaux (1649 1729) , Le méclecin de soi même
- vida regulada pelo uso das seis coisas nã o naturais , instrumen ¬
ou 1' art de conserver la santé par V instinct (Leyde, 1682 ) . Diatr
de cirurgiã o contra os médicos, a obra é também justificativa
ibe -
tos da sa úde , bases da higiene. Vê se, ent ã o, que os maiores no ¬
mes da medicina e da história natural no século XVIII não hesi¬
anticartesiana do naturismo cartesiano, manifestamente igno taram em sustentar , com sua autoridade , uma tese progressiva ¬
¬
rado por Devaux. Ele quer demonstrar que o homem tem ins mente condenada , pelo recuo do ceticismo ou do niilismo tera ¬
¬
tinto como todo animal e que o instinto no animal nã o é pê utico, a sobreviver nas publieações de contesta çã o, de char
mecanismo, mas um conhecimento por imagens. Se a obra do
um
latanice ou de vulgarização retrógrada.
-
nglês John Archer (morto em 1684) , Every man, his own doctor
(1673) precedeu à de Devaux, ela , contudo, não pertence
No século XIX , as obras que portam o mesmo :ítulo são obras
ao de medicina doméstica , de medicina popular, de inten çã o fi¬
jênero demonstrativo, foi o escrito publicitá rio de um
mo renomado. Na realidade , a literatura médica de inspiraçã o
charla - lantrópica: Manuais de sa úde , Amigos da sa úde, Conservado ¬
res da sa ú de, Reguladores da sa úde, Medicinas sem médico,
íaturista permaneceu , permanece e perma
necerá, sem d ú vida Médicos sem medicina etc. A tese anteriormente citada da Sra.
)or muito tempo ainda ,
dividida entre duas intenções ou duas Aziza -Shuster estabeleceu um quadro sistemá tico dessas obras,
notivações: rea çã o sincera de compensa çã o quando das crises
na falta de seu recenseamento exaustivo.
20 ’
'
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 21

O que obrigou o tema da natureza curativa a se refugiar na A fisiologia justificou algumas intuições da antiga medicina
literatura popular foi , na conjunçã o da anatomopatologia e naturista mediante a descoberta progressiva de mecanismos de
das novas técnicas de exploraçã o clínica ( percussã o e auscul
ta çã o) , a descoberta dos fenô menos de silêncio espont â neo da
- -
auto regula ção e de estabiliza ção orgâ nicos, cuja explicaçã o é
hoje buscada em modelos de reação ativa , em outras palavras,
natureza pelos mé dicos austríacos e franceses do século XIX de feedback .
nascente. A nova cl ínica em Viera e em Paris , nos primeiros
anos de 1800, constata que a natureza só fala se for bem inter ¬ Simultaneamente, a terapê utica das doenças infecciosas, na
rogada. é poca de Pasteur, de Koch e de seus alunos , legitimou a atribui¬
ção - até ent ão sem provas , e talvez mesmo sem argumentos -
A partir do momento que a medicina fundamenta « eu diag¬ de um poder de defesa antitóxico inato ao organismo. Ora ,
n óstico nã o mais na observação de sintomas espontâ neos, mas compreender é ultrapassar . A recupera ção dirigida da imuniza ¬
no exame de sinais provocados , as rela ções do médico e do do¬ çã o espontâ nea pelas té cnicas imunológicas tem como efeito
ente com a natureza se veem perturbadas. Por não poder fazer excitar a ré plica curativa não por meio de um logro, mas de um
ele próprio a diferença entre os sinais e os sintomas, o doente é mal menor , um mal benevolente, que leva o organismo a reagir
levado a achar natural qualquer conduta que se regule exclusi ¬
vamente pelos sintomas. Mas porque doravante ele sabe que
-
de modo mais r á pido do que ele costuma fazê lo, visando a pas ¬
sar à frente de um mal mais grave , iminente. Cada vez mais , e de
n ão deve aceitar da natureza tudo o que ela diz e da maneira modo melhor , é possível transformar um organismo animal em
-
como o diz, sem sua arte de obrigá la a se expressar, o médico é
levado a desconfiar nã o somente do que ela diz, mas també m do
produtor permanente de remédios naturais cessíveis.

que ela faz. Se em sua tese de agrégé , em 1857 , De l expectation en Roux, von Behring, Ehrlich, três grandes artesãos da domes ¬
nédecine , Charcot sutiliza - a fim de conservar algum crédito ao tica çã o de uma natureza curativa “ selvagem ” . Pela engenhosi
dade de Ehrlich, a quimioterapia contempor â nea nasceu do es¬
-
naturismo e ao humorismo - Émile Littré, fiel ao ensino positi¬
vism que fundamenta a a çã o na ciê ncia , ele retoma a palavra de tudo sistemá tico dos modos de reação celulares , desconcertan¬
tes por sua parcialidade, nosentidcrée que a produção espontâ ¬
-
Tibé nçi apenas para refutá la , e lembra ao doente a obriga çã o
.le reCoVrer, sem se fiar cm seu pró prio sentido, ao homem capaz
nea de anticorpos , recuperada nas té cnicas da vacina çã o e da
seroterapia , nã o era mais observ ável no caso dos protozoá rios.
le saber o que ele mesmo ignora , ou seja , ao médico. Não se tra ¬
ia mais de suplantar a medicina pela higiene. Nada de higiene A medicina contempor â nea não pode melhor reverenciar
; em m é dico ( “ De 1’ hygi è ne , in M decine
” é et médecins , 1872 ) . Hipocrates senão cessando de se prevalecer dele ; ela nã o pode
** *
melhor celebrar a precisão aproximada de sua concepção do or ¬
ganismo senã o recusando sua prá tica de observa çã o e de expec ¬
ta çã o. N ã o é prudente esperar que a natureza se declare quan ¬
do verificamos que, para conhecer suas fontes, é preciso mobili -
'22 - Georges Canguilhem

-
zá las por meio do alerta. Agir é ativar, tanto para revelar quan ¬
to para remediar.

Entã o, é possível, mesmo na era da farmacodinâmica indus ¬


trial, do imperialismo do laborató rio de biologia , do tratamento
eletrónico da informa ção diagn óstica , continuar a falar da na ¬
tureza para designar o fato inicial da existência de sistemas au ¬
-
to reguladores vivos, cuja dinâ mica est á inscrita em um código
As doenças
-
gené tico. Deve se, a rigor, tolerar que, para os doentes , a con ¬
fiança no poder da natureza possa afetar a forma do pensamen ¬ No come ço dos Essais sur la peinture , Diderot escreve: “ A na ¬
to mítico. Mito de origem , mito da anterioridade da vida sobre a tureza n ão faz nada de incorreto. Toda forma bela ou leia tem
-
cultura . Pode se fazer psican á lise e reencontrar o rosto da M ãe
na figura da Natureza. Pouco importa , e pelo contrá rio. Até no¬
sua causa ; e , de todos os seres que existem , n ão há um que n ão
seja como deve ser.” Podemos imaginar “ Ensaios sobre a medi¬
va ordem, a ordem biológica é primordial em rela çã o à ordem cina ” , cujo começo seria assim: “ A natureza não faz nada de ar ¬
tecnológica . Inclusive, foi um psicanalista heterodoxo, Georg bitrá rio. Tanto a doença quanto a sa ú de têm suas causas, e de
Groddcck , quem elaborou os primeiros conceitos do que se todos os seres vivos n ão h á um cujo estado n ão seja o que deve
deveria chamar medicina psicossomá tica , ao desenvolver o en ¬ ser.” Esse gê nero de prólogo não poderia concernir a todas as
sino naturista de Schweninger , médico pessoal de Bismarck. populações em todos os tempos . Durante séculos e em muitos
Groddeck intitulou Nasamecu o livro que lhe dedicou em 1913: lugares , a doen ça foi considerada como uma possessão por um
NAcura SAnat , MEdicus CUrat. ser “ maligno ” , sobre o qual apenas um taumaturgo poderia
triunfar , ou como uma punição infligida por um poder sobrena ¬
tural a um desviante ou impuro. Sem precisar buscar exemplos
no Extremo Oriente , podemos lembrar que no Antigo Testa ¬
mento ( Levítico, capítulos 13 e f 4fa lepra era considerada e re¬
jeitada como uma impureza e os leprosos , expulsos das comuni¬
dades. Na Grécia, as primeiras formas de tratamento e de tera ¬
pê utica são de ordem religiosa. Asclé pio, filho de Apoio , é o
deus curador do qual os sacerdotes sã o os executantes. Nos
templos de Asclé pio, os pacientes eram recebidos , examinados
d e tratados segundo ritos dos quais a serpente e o galo permane ¬
ceram participantes simbólicos.
' 24 '
Georges Canguilhem Escritos sobre a medic na
'
25

Ajusto t ítulo, só se pode falar de medicina grega a partir do mal ou para o vegetal quanto para o homem. Para este último, à
período hipocrá tico, isto é , a partir do momento em que se tra - diferença do risco que nasce da resolu çã o de agir, o risco que
tam tanto doen ças quanto desordens corporais, a respeito das nasce pelo fato de se nascer é, com muita frequê ncia , inevitá ¬
quais se pode sustentar um discurso comunicá vel concernindo vel. O sofrimento, a reduçã o da atividade habitual escolhida ou
aos sintomas, suas causas supostas, seu futuro prová vel , assim obrigada , o enfraquecimento orgâ nico, a degrada çã o mental
como a conduta a ser observada para corrigir a desordem indi
cada por eles. Sempre se notou que essa medicina , cujos AforiS'
- sã o constitutivos de um estado de mal, mas não sã o por si mes ¬
mos os atributos específicos do que o médico de hoje identifica
mos de Hipocrates são , de algum modo, um breviá rio , é con- como doença no exato momento em que ele se esforça para
temporâ nea das primeiras pesquisas merecedoras do nome
-
fazer cessar o mal ou somente atenu á lo. Todavia , a rela çã o
ciê ncia e do progresso do pensamento filosófico. Um diá logo de
Platã o, Feclru , conté m um elogio a Hipocrates cujo mé todo é
-
doente doença nã o pode ser de completa discord ância. Nas so ¬
ciedades contemporâ neas em que a medicina se empenhou
declarado conforme à “ justa razão’’. para se tomar uma ciência das doenças, a vulgariza çã o do sa ¬
Nem por isso admitir -se-á que uma tal prá tica médica , em ¬ ber, por um lado, e as instituições de sa úde p ública , por outro ,
bora leiga e ponderada, possa ser qualificada de científica no fazem com que, na maioria dos casos, o viver a doença para o
sentido moderno do termo. A medicina de hoje fundamen ¬ doente seja també m falar dela ou ouvir falar dela segundo cli¬
tou -se , com a eficácia que cabe reconhecer , na dissocia çã o pro ¬ chés ou estereótipos , isto é, valorizar implicitamente as recaí¬
gressiva entre a doença e o doente , ensinando a caracterizar o das de um saber cujos progressos são, em parte , devidos ao fato
doente pela doença, mais do que a identificar uma doença se ¬ de o doente ter sido posto entre parênteses enquanto eleito da
gundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentados pelo diligê ncia médica.
doente. Doenç a remete mais a medicina do que a mal. Quando
O conhecimento atual das doenças somáticas é o resultado,
um médico fala da doen ça de Basedow , isto é , de bócio exoftál-
sem d ú vida provisório, de uma sucessão de crises e de inven¬
mico , ele designa um estado de disfun ção endócrina cujo enun ¬
ções do saber médico , de progressõsTõncementes às prá ticas de
ciado dos sintomas, o diagnóstico etiológico, o prognóstico e a
exames e à análise de seus resultados, surtindo o efeito de obri¬
decisão terapê utica sã o sustentados por uma sucessão de pes ¬
gar os médicos a deslocar o foco e a revisar a estrutura do agente
quisas cl í nicas e experimentais , de exames de laborató rio, no
patogênico e, por conseguinte , a mudar o alvo da intervençã o
decorrer dos quais os doentes foram tratados nã o como os sujei-
reparadora. Correlativamente , foram deslocados os locais de
ros de sua doen ç a , mas como objetos.
observa çã o e de an á lise das estruturas orgâ nicas suspeitas, em
A peste , o câ ncer, o zona , a leucemia, o asma , o diabetes sã o funçã o de aparelhos e de técnicas próprias ou emprestadas.
tipos de desordem orgâ nica sentida pelo ser vivo como um mal . Assim, as doenças foram sucessivamente localizadas no orga ¬
A doença é o risco do ser vivo como tal , é risco tanto para o ani- nismo, no órgã o , no tecido, na célula , no gene , na enzima . E, de
-
modo sucessivo, trabalhou-se para identificá las na sala de au -
' 26'
Georges CanguilKem Escritos sobre a medicina
27
tópsia, no laboratório de exames físicos (ótico, elétrico , radioló
- dos atos médicos e cir úrgicos, nas sociedades
-
gico, ultra sonográfico, ecográfico) e químicos ou bioquímicos. tecnologia de proteção sanit á ria , um risco
das fraquezas do sistema biológico intern
industriais de alta
de multiplicação
A relação cada vez mais estreita entre a medicina e a biologia o de resistência às
doenças.
permitiu distinguir entre as doenças , gra ç as a um conhecimen
to niais exato das leis de hereditariedade , as que s ã o hereditá ¬
- Não há nada no meio ambiente do homem
que seja inicial ¬
rias, dependendo da constituição do genoma ; as que sã o congé ¬
nitas , dependendo das circunst â ncias da vida intra - uterina ; as
-
mente natural, tornando se cada vez
que nãó possa ser considerado como fonte
mais factício e artificial,
de perigos para tais
que sã o, propriamente falando, ocasionais , tanto por meio das ou tais homens, uma vez que o conceito de
homem recobre com
rela ções do indivíduo com o meio ecológico quanto com o gru ¬ uma falsa aparência de identidade específica
organismos indi ¬
po social de vida . Pode ser o caso de acidentes individuais , co ¬ viduais, providos de diferentes poderes de resistê
ncia à s agres ¬
mo a pneumonia , ou coletivos , como a gripe ou o tifo, doenças sões por sua ascendência. O que se nomeou
erros inatos de me¬
consideradas infecciosas cujo nascimento, vida e morte foram tabolismo ou anomalias biológicas heredit á rias torna
alguns in ¬
estudados por Charles Nicolle. Sem d ú vida , essas doenças de ¬ divíduos ou algumas populações sensíveis e
receptivos a situa ¬
vem ser consideradas, na história das sociedades e das civiliza ¬ ções ou a objetos de nocividade paradoxal.
Para o indivíduo
ções, como fenômenos naturais caracterizados pela é poca , lo¬ mediterrâ neo, privado de uma certa diástase por seu
patrimó¬
cais de aparecimento, de difusã o e de extinção. Mas, se, a partir nio genético, o fato de comer favas equivale
a se envenenar. O
do final do século XIX, conhecemos , por um lado, suas causas mesmo deficit enzimá tico, pelo contrá rio, equivaleu
a algumas
determinantes: micróbios, bacilos, vírus, e, por outro, seus agen¬ populações africanas um aumento de resistência
ao impaludis ¬
tes vetores: a pulga do rato para a peste, o mosquito Aedes aegy - mo. Doravante, há muitos casos nos quais, para
se poder identi ¬
pti para a febre amarela , o historiador dessas doenças não pode
deixar de se interessar pelas razões de sua distribuição geogr á fi¬
-
ficar uma doença, deve se aprender a não buscar o
passando pelo doente. Do ponto de vista de enzimologis
acesso a ela
ta, é pos ¬
ca , pela forma das rela ções sociais próprias às popula ções afeta ¬ sível perceber estados de doença reai embora latent
^ e e proviso ¬
das. Em suma, no período contemporâ neo, a luta coletiva , por riamente tolerada, que são desconheci dos pelo clínico observa ¬
medida de higiene p ública, é um dos determinantes do quadro dor de sinais espont â neos ou provocados que aparecem
na es ¬
dessas doen ç as , da maneira como elas evoluem , quanto a seus cala do organismo ou do órgão.
sintomas e seus cursos, sob o efeito dos meios da luta provocada A eliminação progressiva da referência às situações vivida
por elas. Muito longe de ser excluído está o fato de que a pr á tica s
pelos doentes, no conhecimento das doenças, não é
generalizada de vacinações tem como consequência o apareci ¬ apenas o
efeito da colonização da medicina pelas ciências fundamenta
mento de variedades de micróbios mais resistentes às vacinas. is
e aplicadas, a partir dos primeiros anos do século XIX
; ela é
Esse é apenas um dos aspectos de uma intervençã o de fim também um efeito da atenção interessada, em todos os sentid
determinado, que faz da multiplicação e da eficácia crescente os
do termo, que a partir da mesma época as sociedades de tmo in
-
«•ai*


' 28 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 29

dustrial concederam à sa úde das populações operá rias, ou, para quanto a seu aparecimento, seu contextosocial e sua evolução,
usar as palavras de alguns , ao componente humano das forças é precisamente contempor â neo da revoluçã o anatomoclínica
produtivas. A vigilâ ncia e a melhoria das condições de vida fo ¬ nos hospitais austríacos , ingleses e franceses no começo do sé ¬
ram o objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo po ¬ culo XIX. Em suma , n ã o se pode recusar admitir a existê ncia de
der político solicitado e esclarecido pelos higienistas. Medicina um componente de natureza social , portanto político, na in ¬
e política , entã o, se encontraram em uma nova abordagem das vençã o de prá ticas teóricas atualmente eficazes para o conheci ¬
doenças, da qual temos uma ilustraçã o convincente na organi ¬ mento das doenças.
za çã o e nas prá ticas da hospitaliza ção. No decorrer do sé culo
Deve a introdução de um ponto de vista sociopolítico na his¬
XVIII, particularmente na França , na é poca da Revoluçã o, t ória da medicina ser acantonada na pesquisa das causas de
houve um empenho em se substituir o hospício , asilo de acolhi ¬ uma conversã o do saber e da conduta ? Nã o se deve igualmente
mento e de conforto de doentes quase sempre abandonados ,
reconhecer causalidades de ordem sociológica no aparecimen¬
pelo hospital, espaço de aná lise e de vigilâ ncia de doentes cata ¬
logados, construído e governado para funcionar como “ máqui¬ -
to e no curso das pró prias doenças ? Viram se, recentemente ,
sindicalistas partid á rios da autogest ão denunciarem as doenças
na de curar ” , segundo a express ã o de Tenon. O tratamento
do capitalismo, o que significa ver na doença o indício orgâ nico
hospitalar das doenças , em uma estrutura social regulamenta ¬
das rela ções de classe nas sociedades capitalistas. Houve um
-
da , contribuiu para desindividualizá las , ao mesmo tempo que a
aná lise cada vez mais artificial de suas condições de apareci¬
tempo em que se falava de doenças da misé ria , ou seja, de ca ¬
rências nascidas de uma subnutriçã o responsá vel pela avitami¬
mento extraiu sua realidade da representa çã o clínica inicial .
nose, ocorridas em algumas camadas da populaçã o. Com efeito,
O corolá rio desse desligamento teórico foi a mutaçã o sobre ¬ a primeira disciplina mé dica que se ocupou desse tipo de ques ¬
vinda à profissão médica e ao modo de abordagem das doenças. tão foi a higiene. Na introdu ção a seus Eléments d’ hygiene
O m édico terapeuta que exercia nas diversas partes da medici¬ ( 1797 ) , Tourtelle insiste sobre a incidê ncia patogênica da den ¬
na , atualmente chamado “ clínico geral ” , viu declinar seu pres¬ sidade de popula ção nas aglomerações modernas. Na Inglater ¬
tígio e sua autoridade em benefício dos médicos especialistas, ra , assim como na França , na primeira terça parte do século
engenheiros de um organismo decomposto tal como uma ma ¬ -
XIX, procedeu se a enquêtes sobre a sa úde dos operá rios nos di¬
quinaria. M édicos ainda pela funçã o , poré m , doravante , n ã o versos ramos da ind ústria. Villermé publicou , em 1840, um cé ¬
mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a lebre Tableau de 1’étatphysique et moral des ouvriers employés dans
consulta consiste na interroga ção de bancos de dados de ordem les fabriques de coton , de laine et de soie . Na França , durante o sé¬
semiológica e etiológica , por meio do computador, e que a for ¬ culo XIX, os Tratados de higiene industrial eram numerosos.
mulaçã o de um diagnóstico probabilista é sustentada pela ava ¬ Todavia, seja qual for a importâ ncia que se deve reconhecer ao
lia ção de informações estatísticas. A esse respeito , deve-se ob¬ modo de vida ligado às condições de trabalho na multiplicação
servar que o estudo das doenças do ponto de vista estatístico, das situa ções patológicas , por exemplo no fato do esgotamento
30 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
31

muscular ou da desregula çã o dos ritmos funcionais , é abusivo mais recentemente, pelos sucessos da bioq u ímica molecu .
lar É
"

confupdir a génese social das doenças com as próprias doenças. preciso, contudo, reconhecer que os m étodos atuais de identifi ¬
A úlqera do estômago, a tuberculose pulmonar sã o doenças ca çã o das doenças e da terapê utica se devem mais aos sucessos
cujo çiuadro clínico ignora que elas possam ser o efeito de situa ¬ da imunologia do que às taumaturgias de inspira ção psicosso ¬
ções dfidesarvora mento individuais ou coletivas. Ainda que os ciológica. A imunologia é uma disciplina bioquímica à base de
trabalhos do relojoeiro ou os deveres do estudante sejam mais experiência médica . Sua característica mais not á vel é a de ter
reveladores de defeitos da visão do que o trabalho do pastor, fundado, no próprio nível da estrutura molecular das células do
n ã o se chegará a dizer que as doenças da vista são fatos sociais. organismo, a singularidade do doente, que o personalismo mé ¬
No entanto , há casos nos quais o recenseamento e a avalia çã o
dos fatores da doença podem levar em considera çã o o status so ¬
-
dico ou as propagandas de “ franco atiradores da medicina ” ce ¬
lebram por contraste com a essência anónima da doença. Essa
cial dos doentes e a representa ção que eles têm dela. Para utili¬ concepçã o da doença conservava alguns vestígios da antiga
zar um vocabulá rio posto em voga pelos trabalhos de Hans teoria das espécies mórbidas , elaborada no século XVII por Tho¬
Selye, digamos que se pode inscrever entre as formas patógenas mas Sydenham. A revolução conceituai concern ndo às doen ¬
de stress, isto é, de agress ão n ã o específica , a percepçã o do indi ¬ ças foi o reconhecimento do que se p - .de nomear como sistema
víduo quanto a seu nível de inserçã o em uma hierarquia de or ¬ imunizador, ou seja , uma estrutura totalizadora das respostas às
dem profissional ou cultural. O fato de viver a doença como agressões de antígenos pela produção de anticorpos específicos.
uma degradação, como uma desvaloriza ção, e nã o apenas como A colaboraçã o, talvez ainda fr á gil, entre a clínica e o laborató ¬
sofrimento ou redução de comportamento , deve ser considera ¬ rio para a pesquisa imunológica introduziu a refer ê ncia à indivi ¬
do como um dos componentes da pró pria doen ça. Encontra
-
mo nos , aqui, na fronteira nebulosa entre a medicina somá tica
- dualidade biológica na representa çã o da doença . À oposiçã o,
por vezes viva no século XIX, entre a concepçã o médica e a
e a medicina psicossomá tica , ela própria assediada pela psica ¬ conctpção científica da doença sucedeu uma esperança co¬
n á lise. Aqui o inconsciente está em questão, tal como as técni ¬ mum de encontrar , um dia , por meio da biologia molecular,
-
cas próprias para fazê lo falar a fim de saber lhe responder. uma ré plica eficaz a doen ça s â t úSlmente carregadas de fanta ¬
'

sias de aflição: câ ncer ou AIDS. Com efeito, não se poderia dis ¬


Em uma perspectiva de psicologia médica, bastante admira ¬ sociar a existência e o movimento das doenças, das mutações,
da hoje em dia , podemos chegar a considerar a doença como a
sobrevindos no status epistemológico da medicina . O melhor
complacência do doente, obscuramente pesquisada , em uma exemplo disso é a recente extinçã o da varíola , sob o efeito das
-
situa ção refú gio de vítima ou de condenado. Sem chegar a con¬
medidas de vacina çã o preventiva deduzidas da bacterologia
siderar essas reminiscências de mitos como uma revanche da pasteuriana. Nã o se pode tratar de doenças como se trata de
etnologia sobre a biologia nas explicações das doenças, pode-se fenômenos meteorológicos, ainda que, neste último caso, a ati ¬
ver nisso o efeito longínquo de uma resistê ncia ao extremismo
vidade do Homofaber na superf ície da terra repercuta sobre os
Je teorias médicas enfeudadas no pasteurismo, ou exaltadas, climas.
. - 12 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 33

- Seja qual for o interesse de um estudo das doenças quanto a _


bre a experiência da doença , propriamente dita mortificante, foi
suas variedades, sua história e sua saída , ele nã o poderia eclip
sar o interesse de tentativas de compreensão do papel e do sen ¬
- expressa em poemas mais pungentes do que sermões. Mas coube
a um médico particularmente sensível ao sofrimento de viver do
tido da doença na experiência humana . As doen ças s ã o crises outro, ele próprio acometido pelo câ ncer , alcançar, na simplici ¬
do crescimento em direçã o à forma e à estrutura adultas do ór ¬ dade, a profundeza do paté tico. Em cartas endere çadas a Lou
gão, crises da maturação das funções de autoconserva çã o inter ¬
na e de adapta çã o às solicitações externas . Elas são també m cri ¬ -
Andréas Salomé, Freud escreveu: “ Eu bem suportei todas as rea ¬
lidades repugnantes, mas aceito mal as possibilidades, não admi¬
ses no esforço empreendido para nivelar um modelo na ordem
to esta existência sob ameaça de feriado.” E, em outra ocasião:
das atividades escolhidas ou impostas e, no melhor dos casos, “ Uma carapa ça de insensibilidade me envolve lentamente. Cons ¬
pqra defender valores ou razões de viver. As-Doenças são um
tato isso sem me queixar. É também uma saída natural , um modo
prbço a ser pago, eventualmente, por homens, feitos , vivos, sem
de começar a me tomar inorgâ nico.” Entre a revolta excitada
-
tê Jp pedido, e que devem aprender que tendem necessaria ¬
mente , desde seu primeiro dia , para um final a um só tempo im ¬
pela id éia de dar feriado à vida e a aceitação resignada do retomo
ao inorgâ nico, a doença fez seu trabalho. Trabalho, de acordo
previsível e inelutá vel. Esse final pode ser precipitado por doen ¬
com a etimologia , é tormento e tortura . Tortura é sofrimento in ¬
ç as brutais, ou então apenas responsá veis por uma diminuiçã o
'

fligido para obter revelação. As doenças são os instrumentos da


da capacidade de resistência a outras doenças . Inversamente ,
vida por meio dos quais o ser vivo, quando se trata do homem , se
algumas doenças podem , depois de curadas, conferir ao orga ¬
vê obrigado a se reconhecer mortal.
nismo um poder de oposição a outras. Assim, envelhecer, du ¬
rar, quando nã o indene , pelo menos resistente, pode ser tam ¬
bé m o benef ício de ter estado doente.
A existência da doença como fato biológico universal, e sin¬
gularmente no homem como prova existencial, suscita uma in ¬ Referências
terroga ção até hoje sem resposta convincente relativa à preca ¬ ACKERNECHT, E. H. History and geograph -
--
I7 •
y of the most important di¬
riedade das estruturas orgânicas. Para falar com propriedade, na¬ seases. Nova Iorque: Hairier, 1965.
da do que é vivo é acabado. Quer se chame ou não evolução, ou
DAGOGNET, F. Philosophie de I’ image , cap. 3: “ Pour une histoire de
alguma explicaçã o que se dê a esse respeito, a sucessão histórica la m é decine ” . Paris: Vrin, 1984. Le nombre et le lieu, cap. 4: “ Au ¬
de organismos é, a partir do que se nomeia hoje evoluçã o quími¬ topsie et tableau ” . Paris: Vrin, 1984.
-
ca pré biótica, uma sucessão de pretendentes impotentes a se
tornarem seres vivos diferentes de viáveis , isto é, aptos a viver,
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Fo¬
rense Universitá ria , 2004.
-
mas sem garantia de consegui lo por completo. A morte está na
GRMEK , M. D. Les maladies à I' aube de la civilisation occidentale. Paris:
vida , a doença é o signo disso. Com frequência , a meditação so - Payot , 1983.
moam
34 Georges Canguilhem

NICOLLE, Ch. Naissance, vie et mort des maladies infectieuses . Paris: F.


Alcan, 1930.
SEYLE, H. Le stress de la vie. Le problème de l’ adaptation. 2. ed. Paris:
Gallimard , 1975.

A sa úde: conceito vulgar e questão filos ófica


“ Quem de nós nã o falava do que é saudá vel e do que é
noci¬
vo ames da chegada de Hipocrates ? ” É assim que Ep
íteto, em
suas Conversações (II , 17) , fundamenta uma reivindica
ção de
pertinência popular sobre a existência de uma no ,
çã o a priori ,
do saudável e da sa úde, cuja aplica ção aos objetos e aos
com ¬
portamentos é considerada , por outro lado, incert .
a Se admitís ¬
semos, por nossa vez, que uma definição da sa úde é
poss ível ,
sem referência a qualquer saber explícito , onde busca
ríamos
% seu fundamento ?
Seria inconveniente, em Estrasburgo, submeter ao exame
dos senhores algumas reflexões sobre a sa úde sem lembrar a de¬
finição proposta , há meio século, por um célebre cirurgião, pro¬
fessor na Faculdade de Medicina , de 1925 a 1940: “ A sa úde é a
vida no silêncio dos órgãos.” ..TijbffiZ. tenha sido logo após as
conversações mantidas entre colegas, no Collège de France ,
que Paul Valé ry respondeu a René Leriche escrevendo: “ A sa ú ¬
de é o estado no qual as funções necessá rias se realizam insensi¬
velmente ou com prazer ” (Mauvaises pensées et ciutres , 1942) .
Algum tempo antes, Charles Daremberg, em uma coletânea de
artigos, Lamédecine , histoire et doctrines (1865) , escrevera: “ No
estado de sa úde, nã o sentimos os movimentos da vida, todas as
funções se realizam em silêncio.” Posteriormente a Leriche e a
Valéry, a assimila ção da sa úde ao silê ncio foi feita por Henri
36 Georges Canguiihem Escritos sobre a medicina 37

Michaux, mas estimada negativamente: “ Como o corpo (seus Entre os filósofos que concederam maior atenção à quest ão •

órgã os e suas funções) foi conhecido e desveladosobretudo nã o -


da sa ú de, deve-se citar Kant. Fortalecendo se com os sucessos
pelas proezas dos fortes, mas pelos dist ú rbios dos fracos, doen
tes , enfermos, feridos (a sa ú de sendo silenciosa e fonte desta
- e fracassos de sua arte de viver pessoal , dos quais Wasianski
fez um longo relato na obra Emmanuel Kant dans ses demières
impressã o imensamente errónea de que tudo é evidente) , são as années (1804) , Kant tratou da questã o na terceira seçã o do
perturba ções do espírito, seus disfuncionamentos que serã o Conflito das faculdades ( 1798) . Quanto à sa ú de, diz ele, encon ¬
-
meus ensinantes ” ( Les grandes é preuves de Vesprit et les innombra -
tramo nos em condições embara çadoras: “ Podemos nos sentir
blespetites, 1966) . Muito antes de todos eles, e talvez mais sutil- bem de sa ú de, isto é , julgar a partir do sentimento de bem
estar vital, mas nunca se pode saber se estamos bem de sa ú de
-
mente do que qualquer um deles, Diderot escrevera , em sua
Lettre sur les sourds et muets à Vusage de cenx qui entendem d qui [...] . A aus ê ncia do sentimento ( de estar doente) n ã o permite
parlent (1751) : “ Quando estamos bem, nenhuma parte do cor ¬ ao homem expressar que est á bem , a nã o ser dizendo que vai
po nos informa de sua existência ; se alguma delas nos adverte bem em aparência.” Essas observações de Kant s ã o importan ¬
por meio da dor é , com certeza , porque estamos mal; se for por tes, apesar de sua aparente simplicidade , pelo fato de elas faze ¬
meio do prazer , nem sempre é certo que estejamos melhor . ” rem da sa úde um objeto fora do campo do saber. Enrijeçamos

A sa úde é um tema filosófico frequente na é poca clássica e


o enunciado kantiano: nã o há ciê ncia da sa úde. Admitamo lo
por ora. Sa ú de n ã o é um conceito científico, é um conceito
-
no século das Luzes , abordado quase sempre do mesmo modo, vulgar. O que n ã o quer dizer trivial , mas simplesmente co ¬
com referência à doen ça , cuja isençã o é quase sempre conside ¬ mum . ao alcance de todos.
rada como o equivalente da sa úde. Foi assim, por exemplo, que
na Teodicéia (1710) , Leibniz, discutindo teses de Pierre Bayle Encabeçando essa sé rie de filósofos , Leibniz, Diderot , Kant ,
sobre o bem e o mal , escrevera: “ Consiste o bem físico unica ¬ parece- me que se deve inscrever Descartes. Sua concepção de
mente no prazer ? O Sr. Bayle parece concordar com isso; mas sa ú de importa mais ainda por ele ser o inventor de uma concep¬
sou de opini ã o que ele consiste em um estado mediano, tal çã o mecanicista das fun ções orgâ niças , Esse filósofo, médico de
cqmo o da sa úde. Estamos muito bem quando nã o temos ne ¬ si mesmo, associando sa úde e verdade em um elogio dos valores
nhum mal; é um grau de pondera çã o nada ter da loucura ” (§ -
silenciosos , parece me ter formulado uma questão até o mo¬
2|'S ) . E, mais adiante, Leibniz acrescenta: “ O Sr. Bayle gostaria mento mal percebida. Em uma carta a Chanut (31 de março de
de afastar a considera çã o da sa ú de. Ele a compara aos corpos ra ¬ 1649) , ele escreve: “ Ainda que a sa úde seja o maior de todos os
refeitos que n ã o se fazem sentir , como o ar, por exemplo; mas nossos bens concernentes ao corpo, ele é, contudo, aquele so¬
ele compara a dor aos corpos que tê m muita densidade e que bre o qual fazemos o mínimo de reflexã o e apreciamos menos. O
pesam muito com pouco volume. A própria dor , todavia , faz conhecimento da verdade é como a sa úde da alma: quando a
conhecer a importâ ncia da sa ú de quando somos privados possuímos, n ã o pensamos mais nela.”
dela " (§ 259) .
, - 38 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 39

'
Como se explica o fato de nunca se ter pensado em inverter todos os valores e todos os desejos. Em O anticristo, a religião
essa assimilaçã o, nunca se ter perguntado se a sa úde não seria a crist ã é denunciada por ter incorporado o rancor instintivo
verdade do corpo? A verdade não é apenas um valor lógico, es ¬ dos doentes para com os saud á veis , por sua repugn â ncia em
pecífico do exercício do juízo. Há um outro sentido de verdade rela çã o a “ tudo o que é reto, altivo e soberbo". Conservemos:
que n ã o se tem necessidade de tomar emprestado de Heideg¬ reto. Encontramos em Assim falava Zaratustra a retid ã o do cor ¬
ger. No Dictionnaire de la langue française de Emile Littré, o arti ¬ po oposta aos doentios pregadores do outro mundo. “ O corpo
go “ Verdade ” começa assim: “ Qualidade pela qual as coisas
aparecem tais como sã o.” Verus , verdadeiro, é utilizado em la ¬
-
são fala com melhor boa fé e mais pureza ; o corpo completo , o
corpo cujos â ngulos são retos (rechtwinklig = feito com esqua ¬
tim no sentido de real e de regular ou correto. Quanto a sanus , dro) fala do sentido da terra." Ser á supé rfluo lembrar , aqui,
s ã o, descende do grego, crcxoç , e també m é provido de dois sen ¬ que o esquadro é , na mitologia chinesa , o s ímbolo da terra ,- '

tidos: intacto ou bem conservado, e infalível ou seguro. Disso cuja forma é quadrada , cujas divisões são quadradas ? Para
decorre a express ã o sã o e salvo. Em sua Histoire des expressions Nietzsche , saúde resume , então , fiabilidade , retid ão, comple -
populaires relatives à 1' anatomie , à la physiologic et à la médecine tude. E , mais adiante: “ O corpo é uma grande razã o , uma mul ¬
( 1892) , Édouard Brissaud cita um provérbio que se pode consi ¬ tid ão de um só sentimento, uma guerra e uma paz, um reba ¬
derar como um tipo de reconhecimento popular da aliança sa ú ¬ nho e um pastor.” Por fim: “ H á mais raz ã o em teu corpo do que
-
de verdade: “ Tão parvo quanto um atleta doente.” Parvo, aqui, em tua melhor sabedoria . ”
quer dizer a um só tempo est ú pido e enganado. A compleiçã o
atl é tica significa uma posse m á xima dos meios físicos , a conve ¬ Quando Nietzsche escreveu isso, em 1884, a existência de
niê ncia das ambições às capacidades. Um atleta doente é uma aparelhos e de funções de regulações orgâ nicas havia sido esta ¬
confissã o de falsifica çã o de seu corpo. belecida experimentalmente pelos fisiologistas. Mas é pouco
prová vel que o grande fisiologista inglês Starling tenha pensado
Mas h á um autor de l íngua alem ã , mais sutil na escolha de em Nietzsche, quando deu ao seu Discurso de 1923 , sobre as re¬
suas referências do que um colecionador de provérbios, que gulações e a homeostase, o título de The luisdom of the body , títu ¬
traz um apoio inesperado ao que nomeio: uma tese à espera de lo retomado por Cannon em Í 932 . Starling, inventor, em 1905 ,
autor. É Friedrich Nietzsche. N ã o é f á cil , depois de tantos co ¬ do termo hormô nio, publicou , em 1912 , um tratado , Principies
mentadores, em especial Andler, Bertram , Jaspers, Lõwith, of human physiology , revisto mais tarde por Lowatt Evans, cujo
determinar o sentido e o alcance dos in ú meros textos de índice final n ão contém a palavra health. Do mesmo modo , sa ú ¬
Nietzsche relativos à doença e à sa úde. Em A vontade de poder, de n ão figura no índice da Physiologic de Kayser, ao passo que ,
Nietzsche, tal como Claude Bernard, ora acredita na homoge ¬ tanto em um quanto no outro desses tratados, o índice contém:
neidade da sa ú de e da doença ( I , 364) , ora celebra a “ grande homeostase , regulação , stress. Ser á que se deve ver nisso um novo
sayde ” , poder de absorver e de vencer as tendências mórbidas. argumento para recusar ao conceito de sa úde a qualidade de
Em A gaia ciência , essa grande sa ú de é o poder de pôr à prova cient ífico ?
40 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 41

. Será que podemos, será que devemos dizer que as funções do de, a desregulaçã o n ã o é uma doença. Ningué m o disse t ão pro¬
organismo sã o objetos de ciência , mas nã o o que Claude Ber¬
nard nomeava como “ as rela ções harmónicas das funções da
fundamente quanto Raymond Ruyer em Paradoxes de la cotis -
cience. Entre muitas passagens, basta citar , aqui, a que concerne
.
economia ” ( Leçons sur le diabè te , p 72 ) ? Ali ás, o próprio Claude ao círculo vicioso ciberné tico (p. 198) . E absurdo conceber o
Bernard o disse expressamente: “ Em fisiologia , n ã o há senão organismo vivo como uma máquina à regula çã o, visto que, de ¬
condições próprias a cada fenômeno que é preciso exatamente finitivamente , e sejam quais forem os intermediários, “ a má qui¬
determinar, sem se perder em divaga ções sobre a vida , a morte, na à regula çã o é sempre vicariante de uma regula çã o ou de um à
a sa úde, a doença e outras entidades de mesma espécie” ( ibid., seleçã o orgâ nica consciente [...] uma regula çã o natural só pode
p. 354) . Isso nã o proibiu Claude Bernard de utilizar, mais
adiante, a expressão “ organismo em estado de sa úde" ( ibid . , p.
-
ser, por definiçã o, [...] uma auto regula ção sem má quina ” .

421) ; N ã o haver doença da m á quina coaduna -se perfeitamente


com o fato de que nã o há morte da má quina . Villiers de
Todavia , o Tratado de Starling contém, na Introdu çã o geral, UIsle-Adam, este simbolista discutido, ao qual, todavia , se re ¬
uma observação que pode passar por menor , e que creio dever conhece o mé rito de ter estimulado Mallarmé , imaginou , em
revelar. Indica -se ali, em considera ção aos estudantes, que o L' Ève future , um Edison inventor de meios eletromagné ticos
termo mecanismo, com frequê ncia utilizado para expor o modo para simular as funções do ser vivo humano, a í compreendida a
de exercício de uma funçã o orgâ nica, nã o deve ser levado de ¬ -
fala. Sua Andréíde é a mulher má quina que pode dizer Eu , mas
masiadamente a sé rio (This rather overworked word need not to
be taken too seriously ...) .
-
que se sabe nã o viva, uma vez que n ã o lhe dizem Tu , e que de ¬
clara. no final: “ Eu que me apago, ningué m me resgatará do
-
Vemo nos, aqui, fortalecidos na recusa de assimilar a sa ú de a Nada [...] . Sou o ser obscuro cujo desaparecimento não vale
um efeito necessá rio de rela ções de tipo mecâ nico. A sa ú de , uma lembrança de luto. Meu seio infortunado nem mesmo é
verdade do corpo, não está referida a uma explicação por teore ¬ digno de ser chamado estéril. Se pudesse viver, se possuísse a
mas. Não h á sa úde de um mecanismo. Ali ás, o próprio Descar ¬
-
tes no lo ensina , em sua Sexta meditação, ao negar que haja uma
-
vida [ ...] . Poder somente morrer-21 ,..
L O corpo vivo é, então, este existente singular cuja sa úde ex ¬
diferença entre um relógio regulado e um relógio desregulado, prime a qualidade dos poderes que o constituem, visto que ele
ao passo que há uma diferença de ser entre um relógio desregu ¬ deve viver sob a imposição de tarefas , portanto em relaçã o de
lado e um homem hidró pico, ou seja , um organismo que a sede exposiçã o com um meio ambiente do qual, em primeiro lugar,
leva a beber a contra-senso. E um erro da natureza ter sede, diz ele não tem escolha. O corpo humano vivo é o conjunto dos po¬
Descartes, quando beber é nocivo. Por sa úde, Descartes enten ¬ deres de um existente tendo capacidade de avaliar e de se re ¬
de “ aliquid [ ...] quod reverá in rebus reperitur , ac proinde nonnihil presentar a si mesmo esses poderes , seu exercício e seus limites.
habet veritatis" . Para a máquina, o estado de marcha não é a sa ú ¬
;
\ 42’ Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 43

Esse corpo é , ao mesmo tempo, um dado e um produto. Sua qua í se exerce o controle administrativo da sa úde dos indiví¬
sa ú de é, ao mesmo tempo, um estado e uma ordem. duos desembocou , nos dias de hoje , em uma Organização
O corpo é um dado, uma vez que é um genó tipo, efeito a um Mundial da Saúde , que nã o podia delimitar seu domínio de in ¬
tervençã o sem que ela mesma publicasse sua própria defini çã o
só tempo necessá rio e singular dos componentes de um patri ¬
mónio gené tico. Desse ponto de vista , a verdade de sua presen ¬ -
da sa ú de. Ei la: “ A sa úde é um estado de completo bem estar -
físico, moral e social, n ão consistindo somente na aus ê ncia de
ça no mundo n ã o é incondicional. Por vezes , ocorrem erros de
codifica ção genética que, segundo os meios de vida , podem de ¬ enfermidade ou de doença.”
-
terminar ou n ã o efeitos patológicos. A não verdade do corpo
pode ser manifesta ou latente.
A sa úde, como estado do corpo dado , é a prova de que ele
nã o é congenitalmente alterado, pelo fato de que esse corpo
vivo é possível, já que ele é. Sua verdade é uma segurança. Mas,
O corpo é um produto, visto que sua atividade de inserçã o
entã o , não é surpreendente que, à s vezes , e muito naturalmen ¬
em um meio caracter ístico, seu modo de vida escolhido ou im ¬
te, se fale de sa úde fr ágil ou precá ria e até mesmo de má sa úde ?
posto, esporte ou trabalho, contribui para dar forma a seu feno
tipo, ou seja , para modificar sua estrutura morfológica e, por
- A má sa ú de é a restrição das margens de segurança orgânica , a
limita çã o do poder de tolerâ ncia e de compensa ção das agres¬
conseguinte, para singularizar suas capacidades. É neste ponto
sões do meio ambiente. Em uma célebre entrevista em Amster ¬
que um certo discurso encontra ocasiã o e justificativa . Esse dis ¬
dam, em 1648, o jovem Burman faz objeção ao que diz Descar ¬
curso é o da Higiene , disciplina médica tradicional, doravante
tes sobre as doenças, ao confiar na retidã o da constituiçã o do
recuperada e travestida de uma ambiçã o sociopolítico médica
de regulamentar a vida dos indivíduos .
- corpo para a conduta e o prolongamento da vida humana . A
resposta de Descartes pode surpreender. Ele diz que a natureza
A partir do momento em que a palavra saúde foi dita a res ¬ permanece a mesma , que ela parece lançar o homem nas doen ¬
peito do homem como participante de uma comunidade so ¬ -
ças apenas para que ele possa , ao super á-las , tornar se mais vá li ¬
cial ou profissional , seu sentido existencial foi ocultado pelas do. Evidentemente , Descartes não podia anunciar Pasteur.
exigê ncias de uma contabilidade. Tissot ainda n ão havia che ¬ Não será a vacina ção o artifícicfcle uma infecçã o justamente
gado a isso quando publicou , em 1761, seu Avis au peuple sur la calculada para permitir que o organismo se oponha , doravante ,
saut é e , em 1768, De la sant è des gens de lettres . Mas saúde co¬ à infecçã o selvagem ?
meçava a perder sua significa çã o de verdade para receber uma A sa úde, como expressã o do corpo produzido , é uma garantia |
significa çã o de facticidade. E > a se tornava objeto de um cá lcu ¬ vivida em duplo sentido: garantia contra o risco e audá cia para :
lo. Desde ent ã o, conhecemos o checkup. Convé m lembrar, em
Estrasburgo, que foi aqui que É tienne Tourtelle , professor da
-
corrê lo. É o sentimento de uma capacidade de ultrapassar ca ¬
pacidades iniciais , capacidade de fazer com que o corpo fa ça o .
Escola Especial de Medicina, publicou por Levrault, em 1797 , que ele parecia n ão prometer inicialmente. E reencontramos o
seus Éléments d ' hygiene. A amplia çã o histórica do espa ço no
M i' Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
%
\ % 45
. atleta . Embora a seguinte cita ção de Antonin Artaud possa considerar a sa úde como verdade do corpo em situação de exer¬
concernir, tanto quanto possível, à exist ê ncia humana sob o
cício, expressã o originá ria de sua posição como unida
nome vida , mais do que à própria vida , podemos evocar este de de
vida , fundamento da multiplicidade de seus órgã os próprios. A
texto no momento de uma definiçã o da sa ú de: “ Só se pode acei ¬
recente técnica de extra çã o e transplanto de órgãos n
tar a vida sob a condiçã o de ser grande, de se sentir na origem ão retira
nada da capacidade do corpo dado de integrar, ápropriando se
dos fenô menos, pelo menos de um certo n ú mero deles . Sem po ¬ -
dela , de algum modo, uma parte retirada de um todo cuja estru ¬
tê ncia de expans ã o, sem uma certa domina çã o sobre as coisas, a
tura histológica é compatível.
vida é indefens á vel ” ( “ Lettre à la voyante ” , in La revolution sur
realists , 1- de dezembro de 1926) . A verdade de meu corpo, sua própria constituição ou sua au ¬
tenticidade de existência , não é uma idéia suscetível de repre¬
Estamos longe da sa úde medida por meio de aparelhos. Cha ¬ senta ção, do mesmo modo que, segundo Malebranche , não há
maremos essa -sa ú de: livre, n ão condicionada , nã o contabiliza ¬ idéici da alma. Há, contudo, uma idéia do corpo em geral, com
da . Essa sa úde livre não é um objeto para aquele que se diz ou se certeza não visível e legível em Deus, como o pensava Maleb
crê o especialista da sa úde. O higienista se esmera em gerir uma ran¬
che, mas exposta nos conhecimentos biológicos e médicos pro¬
popula ção. Ele não tem de se haver com indivíduos . Sa úde p ú ¬ gressivamente verificados. Essa sa úde sem idéia , ao mesmo tem ¬
blica é uma denomina çã o contestá vel. Salubridade conviria po presente e opaca é, no entanto, o que suporta e valida , de fato
melhor. O que é p ú blico, publicado, é , com frequ ência , a doen ¬ e em ú ltima instâ ncia, para mim mesmo e também para o médico
ça . O doente pede ajuda , chama a atenção; ele é dependente. O enquanto meu m édico, o que a idéia do corpo, isto é , o saber mé
¬
homem sadio que se adapta silenciosamente às suas tarefas, que dico, pode sugerir como artifícios para sustentá la. Meu médico é
vive sua verdade de existê ncia na liberdade relativa de suas es ¬ -
aquele que aceita , de um modo geral , que eu o instrua sobre aqui ¬
colhas, está presente na sociedade que o ignora . A sa úde nã o é lo que só eu estou fundamentado para lhe dizer , ou seja , o que
somente a vida no silê ncio dos órgã os , é també m a vida na dis ¬ meu corpo me anuncia por meio dos sintomas e cujo sentido nã o
cri çã o das rela ções sociais. Se digo que vou bem , bloqueio , an ¬ me é claro. Meu médico é aquele que aceita que eu veja nele um
tes que as profiram , interroga ções estereotipadas. Se digo que
vou mal , as pessoas querem saber como e por que , elas se
-
exegeta, antes de vê lo como reparador . A definiçã o de sa
úde
que inclui a referê ncia da vida orgânica ao prazer e à dor experi ¬
perguntam ou me perguntam se estou inscrito na Seguridade mentados como tais introduz sub-repticiamente o conceito de
Social. O interesse por uma fraqueza orgâ nica individual se corpo subjetivo na definição de um estado que o discurso m édico
transforma , eventualmente, em interesse pelo deficit orçamen - acredita poder descrever na terceira pessoa.
t á rio de uma institui çã o.
Ao reconhecer na sa úde do corpo humano vivo sua verdade,
Mas, abandonando agora a descrição da situa ção vivida de será que não aceitamos seguir Descartes em uma via na qual al ¬
sa úde ou de doença , é preciso tentar justificar a proposição de guns de nossos contemporâ neos acreditaram descobrir a arma ¬
dilha da ambiguidade ? Foi o caso de Michel Henry em sua obra
46 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 47

Philosophic et phénoménologie du corps (1935) . Merleau Ponty,


pelo contrá rio, valorizou o que reprovam em Descartes como
- tido de uma permissã o de viver e de agir pela vontade do corpo,
parecemos desprezar a disciplina que, mesmo do ponto de vista
qma ambiguidade. Sobre esse ponto, cabe que nos reportemos popular, parece ser a mais apropriada para tratar de nossa ques¬
áo texto póstumo O visível e o invisível , mas a questão fora ante - tão: a medicina. Podem nos objetar que o corpo, desde sempre ,
|
fi rmente abordada nas lições sobre L’union de l’ âme et du corps muito simplesmente sentido e percebido como um poder - e
-
chez Malebranche , Biran et Bergson (1947 1948) , e no último
curso no Collège de France , em 1960 - Nature et logos : le corps
por vezes també m como um entrave -, teve alguma rela çã o
com o corpo tal como apresentado e tratado pelo saber médico.
húmain. Em uma nota de O visível e o invisível , pode se ler: “ A - Essa rela ção pôde se tomar manifesta , na Fran;a , no século
ideia cartesiana do corpo humano, enquanto humano não fe
chado, aberto, enquanto governado pelo pensamento, é talvez a
- XIX, por meio de uma instituiçã o, bastante esquecida nos dias
de hoje, a de hm corpo de oficiais de saúde. Esses \ igias e conse ¬
mais profunda id éia da uniã o da alma e do corpo.” Decidida ¬ lheiros em matéria de sa úde eram, de fato, sut médicos, dos
mente, apesar de sua virtuosidade e de sua ambição, o melhor quais se exigia um nível de conhecimentos menos elevado do
-
que Merleau Ponty pôde fazer foi comentar o intransponível.
Comentador por comentador, a superioridade pertence a quem
que o dos doutores. Eles estavam a serviço do povo, notada -
mente nos campos, onde a vida era , então, considerada menos
simplesmente se considera como tal, reconhecendo, por um sofisticada do que nas cidades. O corpo, segundo o povo, nunca
lado, a existência do corpo humano vivo “ inacessível aos ou ¬ deixou de ter alguma dívida para com o corpo, segundo a Facul ¬
-
tros , acessível unicamente a seu titular" (M. P. Résumé de cours , dade. Ainda hoje, o corpo é , segundo o povo e com frequência ,
-
Collège de France, 1952 1960) . Aqui vamos ao encontro de
Raymond Ruycr, para quem os paradoxos da consciência só sã o
um corpo dividido. A difusã o de uma ideologia médica de espe ¬
cialistas faz com que o corpo seja quase sempre vivido como se
paradoxos em relação a “ nossos usos dos fenômenos mecâ nicos fosse uma bateria de órgãos. Inversamente, por trás do debate
em nossa escala " ( p. 285) . 1 de ordem profissional e de fundo político entre especialistas e
Nossa tentativa de elucidação de um conceito não correria o clínicos gerais, o corpo médico põe novamente em quest ã o, de
modo tímido e confuso, sua relãçãoEom a sa úde. Esse esboço de
risco de ser considerada uma elucubra ção? Quando pedimos à
revisão de ordem profissional dá uma espécie de resposta a uma
filosofia para fortalecer nossa proposiçã o de considerar a sa ú de
multiplicidade de protestos naturistas, ligados aos movimentos
como um conceito ao qual a experiência comum confere o sen - ecológicos, a uma idéia da sa úde retornada às suas fontes. O
mesmo homem que militou pela sociedade sem escolas convo¬
* N ão posso me abster de evocar, aqui e neste momento, a memória do saudo¬ cou à insurreição contra o que ele nomeou “ a expropria ção da
so Roger Chambon. Em sua tese de 1974, Le monde comine perception et ré alit é , sa úde” . Essa defesa e ilustra çã o da sa úde selvagem privada, por
ele apresentou e discutiu, de modo brilhante , os trabalhos de Michel Henry e desconsideraçã o da sa úde cientificamente condicionada , to¬
de Maurice Merleau - Ponty , poré m, de maneira mais cuidadosa ainda , os de mou todas as formas possíveis, inclusive as mais ridículas.
Raymond Ruyer.
4S Georges Canguilhem

Mas será que se inspirar na filosofia cartesiana para tentar


definir a sa ú de como a verdade do corpo significa també m que,
na autogestã o de sua sa úde, não se pode ir mais longe do que se¬
guir o preceito cartesiano de usar da vida e das conversa ções
comuns ? ( Lettre à Elisabeth, 28 de junho de 1643 ) . Esse crédito
concedido a uma espécie de naturismo, que se pode dizer teoló ¬
gico, será que ele pode ser invocado pelos adeptos de um natu ¬
È possível uma pedagogia dã cura?
-
ralismo anti racionalista ? Preconizar a sa ú de selvagem, o retor¬
no à sa ú de fundadora , pela rejeição das escleroses que dizem
Considerada como um acontecimento na rela çã o entre o
sq|r consecutivas a comportamentos sabidamente controlados, doente e o m édico, a cura é , à primeira vista , o que 0 doente es ¬
será esse o meio de chegar à verdade do corpo? Uma coisa é en ¬
pera do médico, mas nem sempre o que o doente obté m dele.
carregar-se do corpo subjetivo , outra coisa é acreditar se obri
gáào a liberar essa educa ção da tutela da medicina , considerada
- - Há , então, uma decalagem entre a esperança fundamentada,
no primeiro , sobre a presunção de poder, fruto do saber , que ele
repressiva , e, além disso, das ciências das quais ela é a aplica çã o.
empresta ao outro, e a consciê ncia dos limites que o segundo
O reconhecimento da sa úde como verdade do corpo, no senti ¬ deve reconhecer em sua eficá cia . Sem d ú vida , essa é a principal
do ontológico, não somente pode mas deve admitir a presença , raz ã o para o fato de que , de todos os objetos espec íficos do pen ¬
em termos precisos , como controle c muro protetor da verdade samento m édico, a cura seja o menos tratado por ele . Mas é
no sentido lógico, ou seja , da ciência. Certamente, o corpo vivi ¬ també m devido ao fato de o m édico perceber na cura um ele ¬
do nã o é um objeto, mas, para o homem , viver é també m co¬ mento de subjetividade , a referê ncia à avaliação do beneficiá ¬
nhecer. Eu me porto bem à medida que me sinto capaz deporcar rio, quando, de seu ponto de vista objetivo, a cura é visada no
a responsabilidade de meus atos, deportar coisas à existê ncia e eixo de um tratamento validado pela enquête estatística de seus
criar entre as coisas rela ções que nã o lhes aconteceriam sem
resultados. E, sem alusão descortês aos médicos de comédia ,
mim, mas que nã o seriam o que são sem elas. Entã o, preciso
que fazem a responsabilidade dosdrneassos terapê uticos ser ar ¬
aprender a conhecer o que elas são para poder mud á las. - cada pelos doentes, conviremos que a ausê ncia de cura de tal
-
Ao concluir, devo, sem dú vida , justificar me por ter feito da
sa ú de uma questã o filosófica. Essa justifica çã o será breve: eu a
ou tal doente nã o basta para induzir no espírito do médico a sus ¬
peita concernindo à virtude dispensada por ele, de um modo
encontro em Maurice Merleau -Ponty. Ele escreveu em O visí -
vel e o invisível ( p. 47 ): “ A filosofia é o conjunto das questões no
geral, a esta ou àquela de suas prescrições. Inrersamente , quem
tiver i pretensão de falar de modo pertinente sebre a cura de
qual aquele que questiona é, ele próprio, posto em causa pela um indiv íduo deveria poder demonstrar que , entendida como
questã o.” satisfação dada à expectativa do doente , a cura é , na realidade,
o efeito pró prio da terapê utica prescrita , escrupulosamente
50 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 51

aplicada. Ora , nunca foi tão difícil alegar uma tal demonstra ção ça, a medicina selvagem sempre prosperou nas portas das fa ¬
como nos dias de hoje , devido ao uso do mé todo do placebo, 1 das culdades de medicina .
observa ções da medicina psicossomá tica , do interesse concedi' Portanto, nã o há razã o em nos surpreendermos ao constatar
-
do à rela çã o intersubjetiva médico doente e da assimila ção, por
alguns médicos, de seu poder de presença ao próprio poder de
que os médicos, os primeiros a considerar a cura como proble ¬
ma e assunto de interesse, s ão, em sua maioria , psicanalistas ou
um medicamento. Doravante, em se tratando de remédios, a
maneira de os dar vale mais, por vezes, do que o que é dado.
homens para quem a psicanálise existe como instâ ncia de ques
tionamento sobre sua prá tica e seus pressupostos , como por
-
-
Em suma , pode se dizer que , para o doente, a cura é o que a
medicina lhe deve, ao passo que, para a maioria dos médicos,
exemplo Georg Groddeck , qué n ã o temeu igualar em Das Buck
vom Es , em 1923, medicina e charlatanismo, 2 ou René Allendy ,
ainda hoje, a medicina deve ao doente o tratamento mais bem na França.3 Enquanto, segundo a ótica médica tradicional, a
estudado, experimentado e testado at é o momento. Disso de¬ cura era considerada como o efeito de um tratamento causal,
corre a diferen ça entre o médico e o curandeiro. Um médico cujo interesse era sancionar a validade do diagnóstico e da pres¬
que n ã o curaria ningu é m n ã o deixaria de ser um médico de di ¬ crição, portanto, o valor do médico , na ó tica da psicanálise a
reito, habilitado como ele o é por um diploma que sanciona cura se tomava o signo de uma capacidade encontrada pelo pa ¬
unijsaber convencionalmente reconhecido para tratar dos ciente de acabar , ele próprio, com suas dificuldades.4 A cura
doentes cujas doenças sã o expostas em tratados quanto à sin ¬ nã o era mais comandada do exterior, ela se tomava uma inicia ¬
tomatologia , à etiologia , à patogenia e à terapê utica. Um cu ¬ tiva reconquistada , j á que a doença nã o era mais considerada
-
randeiro só pode sê lo de fato, pois ele n ã o é avaliado sobre
seus "conhecimentos", mas sobre seus sucessos. Para o médico
e para o curandeiro, a rela çã o com a cura é invertida . O m édi ¬ ^“ Experimentei e utilizei todo tipo de tratamentos médicos, quer de um
co está habilitado publicamente a pretender curar , ao passo modo, quer de outro, e descobri que todos os caminhos levan i a Roma , tanto os
que é a cura , experimentada e declarada pelo doente , mesmo da ciência quanto os da charlatanice .. ." ( Le livre du Ça [ trad . Lily Juntei ] , Pa ¬
ris, Gallintard , 1973 , p. 302 ) 1 Em seu (Srefacio a essa obra , Lawrence Durrell
quando clandestina , que atesta o “ dom ” do curandeiro em um escreve que “ Groddeck era mais um curandeiro e um erudico do que um mé ¬
homem cujo poder infundido, com muita frequê ncia , foi reve ¬ dico” .
lado pela experiência dos outros. Para se instruir sobre esse as ¬ 3 Essaisurlaguérison , Paris , Denõel e Steele , 1934. á , anteriormente , Orienta ¬
J
sunto ningu é m precisa ir até os “ selvagens ” . Mesmo na Fran- tion actuelle des id é es mé dicales , 1927 . Podem » » citar també r i , em razão de sua
"
. .

colaboração com Allendy , René Laforgue , Clinique psychanaly tique , 1936 , li ¬


ção VII: “ A cura e o final do tratamento, ” que não concern e exclusivamente
1 Cf . F. Dagognet, La raison et les remedes , Paris, PUF,
1964, cap. 1 , notada - ao tra tantento psicanalí tico.
4 “ N ão é o médico que acaba com a doença , mas o doente . O doente se cura
.
mente; P. Kissel c D. Barrucand , Placebos et effet placebo en mé decine Paris,
Masson , 1964; D . Schwartz , R. Flamant, . Lellouch, Uessai thé rapeutique cbez
J por suas próprias forças , assim como é por suas próprias forç as que ele anda ,
1' homme , Paris, Flamntarion, 1970. come , pensa, respira , dorme” (Groddeck , op. cit . , p . 304) .
52 Georges Cnnguilhem
Escritos sobre a medicina
53
wcomo um acidente , mas como um fracasso de conduta , se n ã o dade governada para seu bem pela autoridade de um chefe
uma conduta de fracasso.5 do ¬
m éstico ou pol ítico. A integridade orgâ nica foi uma
met á fora
É bastante conhecido , por meio da etimologia , que curar é da integra çã o social antes de se tornar maté ria para
met á fora
proteger, defender , munir , quase militarmente , contra uma inversa.7 Disso decorre a tend ê ncia geral e constante de
con ¬
agressão ou uma sediçã o. A imagem do organismo aqui pre ¬ ceber a cura como final de uma perturba çã o e retorno à ordem
sente é a de uma cidade amea çada por um inimigo exterior ou anterior, tal como o testemunham todos os termos
de prefixo
interior. Curar é conservar , abrigar. Isso foi pensado muito an ¬ re que servem para descrever seu processo: restaurar,
restituir ,
tes que alguns conceitos da fisiologia contemporâ nea , como restabelecer, reconstituir , recuperar , recobrir etc. Nesse sen ¬
os de agressão, stress , defesa , entrassem no dom ínio da medici ¬ tido, cura implica reversibilidade dos fenô menos cuja suces ¬
na e de suas ideologias. E a assimilaçã o da cura a uma resposta sã o constituía a doenç a ; é uma variante dos princípios
de con ¬
-
ofensiva de íensiva é tã o profunda e origin á ria que ela pene ¬ serva ção ou de invari â ncia sobre os quais sã o fundamentada
s
trou no pró prio conceito de doença , considerada como rea çã o a mecâ nica e a cosmologia da época cl á ssica.8 Assim entend

de oposição a uma efração ou a uma desordem. Essa foi a razã o
pela qual , em alguns casos, a inten ção terapê utica pôde res ¬
<
-
da , concebe se que a possibilidade de uma cura pudesse ser
contestada , exceto em alguns casos de benignidade patente,
peitar provisoriamente o mal do qual o doente esperava que o como a coriza ou a oxiurose, pois, frequentemente, a restitui ¬
tomassem de imediato como alvo. A justificativa dessa apa ¬ çã o ou o restabelecimento ao estado orgâ nico anterior pode
rente conivê ncia ocasionou alguns escritos , dos quais o nvais revehr-se ilusó ria caso peçamos a sua confirma ção por testes
conhecido tem como título Traité cies maladies qu' il esc clangereux funcionais em vez de nos reportarmos simplesmente à satisfa ¬
cie guérir ,6 expressão que J .- M. Charcot assumiu , em 1857 , nas çã o do homem que cessou de se dizer doente.
conclusões de sua tese de doutorado De [’ expectation enmécle -
cine . Essa tese da doença m é dico, malgrado ela pr ó pria, com ¬ 7Cf. Ch. Lichtenthaeler,
Lamédecine hippocratique , Neuchâ tel , La Baconniè -
punha a representação do organismo animal como uma “ eco ¬ re, 1957: “ Da origem social de alguns conceitos cient íficos e filosóficos
gre ¬
gos"; B. Balan, “ Primeiras pesquisas sobre a origem e a fomu.ção do
nomia ” , com uma tradi çã o hipocrá tica extenuada , latente, de economia animal", in Revue d’ Histbire des Sciences , XXVIII, 1975, p.
conceito
, 'suh muitos disfarces mecâ nicos ou qu ímicos, desde o sé culo
;Wll at é a metade do s é culo XIX. A economia animal o con ¬
-
289 326.
8Leibniz , te
ó rico da conservaçã o da força , inscreve como argumento em seu
é
junto das regras que presidem às rela çõ es das partes em um sistema o teorema liipocrá tico de conserva çã o das “ forças" orgâ nicas, sobre o
todo , à imagem da associa ção dos membros de uma comuni - qual concordam os dois médicos rivais, Halle, Stahl , animista , e Hoffma ,
nn
mecanicista: “ Não me surpreendo que os homens, por vezes, adoeçam, mas
me surpreendo que eles adoeçam tã o pouco, e que não estejí .m sempre doen¬
^ Cí. Yvon Behival, Les continues W éclwc, Paris, Gallimard, 1953.
(
tes; e é isso també m que nos deve fazer estimar o artif ício divino do mecanis
¬
’ De Dominique Raymond , 1- ed., Avignon , 1757. Nova edi çã o ampliada de mo dos animais, cujo autor fez má quinas t ão frá geis e t ã o sujeitas à corrup
çã o
noras por M. Giraudy, Paris, 1808. c, no entanto, tão capazes de se manter; pois é a natureza quem nos cura , mais
do que a medicina ” ( Essai de Théodicée , 1- parte, § 14) .
Ge- «rges Canguilhem Escritos sobre a medicina
55
54

éculo XIX , a fisiologia come¬ A abertura do organismo sobre o meio, ainda que
A partir do ú ltimo quarto do s -
nha podido ser concebida como uma simples relação de
nunca te ¬
organismo como mecanismo
çou a substituir a concepção do por uma concepção ção passiva, foi progressivamente compreendida
sujei¬
compens ador ou como economi a fechada como subordi¬
nada à manutençã o de constantes próprias, expressando se por
-
regulação estão infima¬
do organismo cujas funções de auto o ao meio ambiente. Se meio de relações nas quais o gasto e o ganho de energia s
-
adaptaçã
mente atreladas à s funções de ão con¬
trolados por circuitos de regulação. Mas o equilíbrio aparente
vista , compará vel com a
a homeostase pode parecer , à primeirapela medicina da idade ou o estado estacioná rio de um tal sistema aberto não é
conservação espontânea, celebradaconsiderada como isomor ¬ modo algum privativo de sua submissão ao segundo princípio
de
clássica , ela, contudo, não pode ser da termodinâ mica , à lei geral de
exterior é , doravante, consi¬ irreversibilidade e de nã o -
fa , uma vez que a abertura sobre o propriamente bioló¬ retorno a um estado anterior. Doravante, todas as
derada como constitutiva dos fenômenos de um organismo, sadio, doente ou considerado
vicissitudes
pré fisiológica não ignorava a en
- ¬
gicos. Sem d ú vida, a medicina
curado, são
, as estações. Disso resultou a teo¬ afetadas pelo estigma da degradação. Apesar da persistência de
tourage do organismo, o clima uma imagem confusa do Apoio taumaturgo na simbólica da te
doenças populares, ou seja,
ria das constituições. Mas havia . Elas levavam em rapia , o médico não pode ignorar que nenhuma
¬
epidemias, como das campanhas militares cura é um re ¬
torno. E quando Freud , na parte mais discutida de sua obra, ri
Sydenham, para quem as do¬ -
consideração o tempo, como diz do ano, a exemplo de al ¬ tualizou o conceito de retorno, foi como retorno à morte, ao es¬
en ças seguiam os “ tempos particula res
plantas ". O conhecimento das cir ¬ tado inorgânico que teria precedido à vida.11
guns p ássaros e de algumas
para se saber em que consistia
cunstâ ncias nã o era pesquisado Se a termodinâ mica é, quanto ao seu objeto de origem, a
, mas para saber com qual essência de doença se teria ciência da máquina a vapor, ela é também, quanto
a doen ça ao tipo de
ê utica era preciso se deter. Por
¬
de lidar e em qual tipo de terap sociedade nas instituições científicas das quais foi elaborada ,
, cometer - -
se ia um engano ao buscar na velha teoria das uma ciência característica das primeiras sociedades industriais,
tanto
espécie de antecipação da teoria sociedades de população urba n t r d omina n te, nas quais a
constituições epidêmicas uma 9 desenvolvida pelos
, esbo çada por Auguste Comte e concentração demográfica e as condições de trabalho dos ope ¬
dos meios
da Socieda de de Biologia , contemporâ nea rá rios contribuíram amplamente para o
médicos positivis tas
ciê ncia.10
desenvolvimento das
da constituiçã o da fisiologia como doenças infecciosas, onde o hospital se impôs como lugar de
tratamento generalizado no anonimato. A descoberta por
Koch, Pasteur e seus alunos dos fenômenos de contágio micro
-
philosophic positive , 402 lição ( 1836 .
)
9 Cours de
10Cf. Émile Gley , “ La Société de Biologic de
1849 à 1900 et Involution des
f ", in Essais d' hisioire et de philosophic de la
biologic , Paris, 11Cf
-J - Laplanche, Vie et mon en psychanalyse , Paris, Flammarion, 1970: “ Por
sciences biologique s Dictionuaire que a pulsão de morre ?". O autor mostra em que e como Freud se
o verbete “ mésologie” no referiu, não
r
'
— --
Masson , 1900, p. 187. Cf. igualmente .
.
.i.f, ,|p Littré e Robin
sem confusões, aos trabalhos de Hermann von Helmholtz sobre a energé tica.
» ' 56 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
57

biano ou virótico e da imunidade, a invenção das técnicas de Mas essa medida da cura , mediante uma duração de
sobrevida
-
anti sepsia, de seroterapia e de vacina ção forneceram às exi ¬
gê ncias da higiene p ú blica, até ent ão desarmadas, meios de efi ¬
calculada estatisticamente, se inscreve em um quadro no qual
figuram també m o aparecimento das doenças novas (
cácia maciça . Paradoxalmente, foi o sucesso dos primeiros mé ¬ tias ) e o aumento da frequência de antigas doen as (
cardiopa
ç câ nceres) ,
-
todos curativos fundamentados na microbiologia que provocou afecções cujo aumento da dura çã o média da vida permitiu
a
a substituição progressiva no pensamento médico de um ideal manifestaçã o de seus prazos. Assim, a realiza ção de duas
ambi¬
pessoal de cura das doenças por um ideal social de prevençã o ções da velha medicina - curar as doenç as e prolongar
a vida
das doenças. No limite, não era absurdo esperar , para uma po¬ humana - surtiu como efeito direto colocar o m édico diante
pulação dócil às medidas de prevençã o, um estado de sa úde co ¬ de doentes sujeitos a uma nova ansiedade de cura poss
ível ou
letiva de modo que nenhum indivíduo se encontrasse na situa ¬ impossível. O câ ncer substituiu a tuberculose. Se o
aumento da
ção de ser tratado e curado por tal doen ça declarada . E, de fato, duraçã o da vida vem confirmar a fragilidade do organismo e a
-
atualmente admite se não haver, nas sociedades ocidentais, irreversibilidade de sua degradação, se a história da medicina
quase nenhum caso de var íola a ser tratado, uma vez que a vaci ¬ tem como efeito abrir a hist ória dos homens a novas
doenças,
nação antivariólica, sistematicamente praticada , obteve o re ¬ entã o o que é a cura ? Um mito ?
sultado de se tornar , doravante , in ú til. A imagem do médico
h á bil e atento de quem os doentes individuais esperam a cura ** *
est á sendo, pouco a pouco , ocultada por aquela de um agente
Embora os m édicos , de um modo geral , sejam críticos a res ¬
executando as instru ções de um aparelho de Estado, encarrega ¬
peito da noção popular de cura, não é proibido tentar sua legiti
do de velar pelo respeito do direito à sa úde reivindicado por ¬
ma ção. Nossa língua conhece curar , verbo ativo, e curar, verbo
cada cidadão, em réplica aos deveres que a coletividade declara
intransitivo, como florir ou triunfar. Popularmente, curar é
assumir para o bem de todos.
reencontrar um bem comprometido ou perdido, a sa ú de. Ape ¬
O progresso da higiene pú blica e o desenvolvimento da me ¬ sar das implicações sociais e políticas desse conceito, devido
ao
dicina preventiva foram sustentados pelos sucessos espetacula ¬ fato recente de que a sa úde é, por WZés , percebida como um de ¬
res da quimioterapia fundada , nos primeiros anos do século XX, ver a ser observado do ponto de vista dos poderes sociomédicos,
pelas pesquisas de Paul Ehrlich pautadas na imita çã o artificial a sa úde continuou sendo, na realidade, o estado orgâ nico
do
do processo natural de imunidade. Essa talvez seja a invenção qual um indivíduo se considera juiz. Mesmo que os médicos es ¬
mais revolucioná ria na história da terapê utica. O antibiótico tejam fundamentados para achar ilusória a sa úde definid
a
não apenas forneceu um meio de cura, como também transfor¬ como vida no silê ncio dos órgãos (René Leriche) , lembrando
mou o conceito de cura ao transformar a esperan ça de vida. A que o silê ncio pode mascarar uma lesão que já tenha alcançado
avaliação estatística das performances terapê uticas introduziu um está gio irremedi á vel , ocorre que se portar bem , quer dizer,
na aprecia çã o da cura uma medida objetiva de sua realidade. -
comportar se bem nas situa ções as quais se deve enfrentar, é
58 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
59

um critério a ser conservado.12 A sa úde é a condição a priori la ¬ recusam reconhecer que se fez por eles tudo o que lhes era
devi
tente, vivida em um sentido propulsivo, de toda atividade esco¬ do. É que a sa úde e a cura resultam de um gênero de discurso ¬
di
lhida ou imposta . Esse a priori pode ser decomposto, a posteriori , ferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulário e a¬
pela ciência do fisiologista em uma pluralidade de constantes, sintaxe nos tratados de medicina e nas conferências de cl
das quais as doenças representam uma distâ ncia superior a uma j ínica.
norma determinada por uma mediana. Mas, ao substituir a aná ¬ Quando, em 1865, Villemin expôs as provas, que
acreditava
lise objetiva de suas condições de possibilidade, de seu poder de sólidas, da contagiosidade da tuberculose, estava longe
de con¬
seguir a adesão de seus contemporâ neos, dos quais
“ fazer face a", pelo todo, vivido peio sujeito vivo, substitui se - muitos pen¬
savam, como Bricheteau, fazendo alusã o às Prescrições draco
um modo de expressão ao qual se recusa a dignidade de língua ¬
nianas em vigor desde o século XVIII, na. Espanha e
por uma língua . O médico n ã o está longe de pensar que sua no reino
das Duas Sicílias, que a id éia de cot tá gio só pôde nascei ua ima ¬
-
ciê ncia é uma língua bem feita , ao passo que o paciente se ex ¬
ginaçã o dos habitantes do sul.13 De algum modo, os m
pressa com jargões. Mas como no início o mé dico foi homem, édicos in ¬
tegraram à sua concepção da doença uma reação popular
na idade em que era incerto saber se ele se tornaria Deus, mesa de pa ¬
vor e de rejeição exatamente quando lutavam contra ela.
ou bacia , ele conserva algumas lembranças do bloco original no É que
entre a tuberculose humana e a tuberculose bovina
qual ele foi .esculpido e reteve, a princípio, alguns elementos do ou aviária,
jargão desvalorizado por sua língua de cientista. Ocorre lhe , - sobre cuja identidade ou diferença se discutia ainda, a medicina
constatava a presença ativa de um determinante que é
por vezes, consentir em compreender que a demanda de seus preciso
nomear, na falta de outro melhor, como psicológico.14 A tuber
-
clientes possa restringir se a conservar uma certa qualidade da
culose era objeto de terror, como a lepra o fora na Idade Média.
¬
disposi çã o para viver , ou a encontrar seu equivalente, sem se
Nomear a doença agravava os sintomas .15 Pois a doença acarre
preocupar em saber se os testes objetivos de cura sã o positivos e
concordantes. Inversamente, pode acontecer que o médico
-
13Sobre a
não compreenda que tal paciente, ao final do que foi prescrito, história da tuberculose, cf. M. Piery e J . Roshem, Histoire de la tuber
culose , Paris, Doin, 1931; Ch. Coury, La tuberculose au cours des âges, -
executado e obtido, no que concerne ao desaparecimento de nes, Lepetit , 1972 . .
Sures -
uma infecção ou de uma disfunção, não se considere livre da 14J.- B. Pontalis
reconhece a ambiguidade do termo psicologia , designando ao
-
doen ça , recuse dizer se curado e não se comporte como tal. Em
suma , do ponto de vista da prá tica médica, fortalecida por sua
mesmo tempo a disciplina e seu objeto, como se a representa ção
constitutiva do sujeito representante ( Entre le rêve et la douleur,
de si já fosse

cientificidade e por sua tecnologia , muitos doentes se satisfa ¬ mard , 1977, p. 135) .
Paris, Galli-
15Cf .
zem menos do que se considera como seu dever, e alguns outros Journal de Marie Bashkirtseff: “ Potain nunca quis direr que os pulmões
eram atingidos; em semelhantes casos, ele empregava as fórmulas
comuns, os
brônquios, a bronquite etc. É melhor saber em termos exatos... então eu
sou
tísico ? Há apenas dois ou três anos. Em suma , n ã o est
12 para as diferentes concepções e avaliações da cura , cf. J . Sarano, La guéri - á t ã o avanç ado para que
-
eu morra disso, só que é bastante incómodo” (quinta feira, 28 de dezembro
-
son , PUF, Col. “ Que sais jc ? ". 1882 ). Note-se que foi em 1S82 que Koch identificou o bacilo tuberculoso
de
.
6ÒÍ Georges Canguilhem
:§ Escritos sobre a medicina
61
taya tanto a exclusã o social quanto a consumpçã o orgâ nica.
vamente física ou fisiológica. Não há pior ilus
-
Durante muito tempo, estava se doente por se ter sido curado
de uma tal doença , uma vez que se percebia em torno de si uma
ão de subjetivida ¬
de profissional, por parte dos médicos, do que sua
confianç
fundamentos estritamente objetivos de seus conselhos e a nos
suspeita de nocividade remanente. Embora controlada por gestos
terapê uticos , desprezando ou esquecendo autoju
meio de testes de laborató rio, a cura nã o se realizava na reinte ¬ te a rela ção ativa, positiva ou negativa , que
stificadamen
não pode deixar de
-
gra çã o à exist ência , devido mais à ang ústia da segrega çã o do
se estabelecer entre médico e doente. Essa rela
que à redu ção das capacidades vitais . Essa forma de cura que se ção era conside¬
rada , na idade positivista da medicina , como um
poderia dizer patológica , mais rara nos dias de hoje no caso da resíduo arcai¬
co de magia ou de fetichismo. A réà tualizaçã o
-
tuberculose, tornou se frequente no caso do câ ncer, em razã o deve ser creditada à psicaná lise, e muitos estudo
dessa relação
s foram
de uma semelhante rea çã o de angústia diante da idéia que a en ¬ de modo a ser ú til retornar a isso. 17 Mas pode parecer feitos
tourage da pessoa doente costuma fazer a respeito dessa doen ç a
que n ã o perdoa . Mas, ao lado dos doentes que não conseguem -
interrogarmo nos sobre o lugar que a atençã o
um m é dico particular a um doente particular
urgente
concedida por
-
assumir sua cura , comportar se como curados e decidir se a en¬
frentar uma vez mais, embora de modo diferente de outrora , o
- pode ainda pre ¬
tender ter, em um espa ço médico cada vez mais ocupado,
na es ¬
cala das nações ditas desenvolvidas, pelos equipam
questionamento da existência , há doentes que encontram em entos e re ¬
gulamentos sanitá rios e pela multiplica o
sua doença um bem ao seu alcance e que recusam a cura. Nessa çã programada das
“ m áquinas de curar ” . 18
resistência passiva à intervenção médica , o doente busca uma
espécie de compensação à sua condição diminuída , dominada. ***
No que concerne à relação terapê utica , ele garante para si a ini ¬ “ As coisas chegaram ao ponto em que meu
ciativa.16 cé rebro nã o po ¬
dia mais suportar as preocupações e os tormentos que lhe
esta ¬
. Essa revocação, sem originalidade, de configurações patoló ¬ vam sendo infligidos. Ele dizia: ‘Renuncio; mas se aqui
há al ¬
gicas nas quais n ã o é possível cogitar a cura no sentido tradicio¬ guém que insista na minha conservação, que ele me
alivie de
nal de final e recomeço, proíbe que se conceba a rela ção do mé ¬ um pedacinho do meu fardo, e continuaremos ainda por um
dico para com o doente como a de um técnico competente com tempo.’ Foi nesse momerito'que S' pulmao se apresentou ; apa ¬
um mecanismo perturbado. E, no entanto, a forma ção dos mé ¬ rentemente, ele n ã o tinha grande coisa a perder. Esses debates
dicos nas faculdades os prepara muito mal para que admitam entre o cé rebro e o pulmão, que se desenrolavam sem que eu o
que a cura não se determina por intervenções de ordem exclusi-
17Cf. .
J - P. Valabrega, LM relation thé rapeutique , malade et médecin, Paris, Fiam-
l óAqui não se trata do caso em que a complacência na situação de doença marion, 1962 .
18Les machines à gué rir ( aux origines de 1' hô pital modeme ) , por M. Foucault, B.
tem por finalidade retardar o retorno obrigatório do doente a uma atividade
profissional ao final de uma licença médica. -
Fortier, B. Barret Kriegel , A. Thalamy, F. Beguin, Paris, Institut de 1’ Envi
ronnement, 1976.
-
62 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina

63

soubesse, devem ter sido algo medonho," E ainda: “ Tenho hoje que doença e cura estão inscritas nos limites e
nos poderes das
com a tuberculose a mesma relação que uma criança com as regulações biológicas ? Mas as normalidades biológicas
só têm
saias de sua mãe às quais se agarra [...]. Busco assiduamente ex¬ como garantia seu acontecimento, a nã o ser que se
lhes d ê um
fundamento metafísico no qual nã o é proibido ver se apenas a
plicar a doença, pois, afinal, não fui eu que corri atrás dela. Por
vezes, tenho a impressã o de que meu cérebro e meus pulmões consagra ção do pr óprio acontecimento. É preciso -
que a vida
teriam concluído um pacto à minha revelia.” 19 Nem todos os seja um dado para que se possa acreditar sua possibilidad
e ne ¬
doentes, nem todos os tuberculosos, em particular, sã o Kafka. cessá ria .
Contudo, quem não reconhece nas confidências do autor do Os organismos dos seres vivos sã o capazes de alterações
Processo a verdade dessas situações de abandono, de origem psi ¬ de
estrutura ou de perturbações de funções que,
cossocial , geradoras do esgotamento orgâ nico propício à eclo¬ mesmo que não
são de uma doença infecciosa ? Mais certamente ainda, quando -
cheguem a destruí los, podem comprometer a execu
ção de ta ¬
refas impostas pela hereditariedade específica. Mas a tarefa
se trata de afecções relacionadas com o sistema neuroendócri - -
pecífica do homem revelou se como a invenção v. a
renovação
es ¬
no, desde a fadiga crónica até a úlcera gastroduodenal , e, de um de tarefas , cujo exercício requer ao mesmo tempo aprendiza
modo geral, das doenças consideradas de adapta ção. gem e iniciativa em um meio modificado pelos pró
¬
prios resulta ¬
Pelo fato de essas situa ções de afliçã o serem, com frequê n ¬ dos desse exercício. As doenças do homem nã o sã o somente
li¬
cia , manifestações de bloqueios no nível das estruturas sociais mitações de seu poder físico, são dramas de sua histó
ria. A vida
de comunica çã o, o estudo de seus remédios eventuais nã o de ¬ -
humana é uma existência , um ser aí para um devir nã o preor
denacio, na obsessão de seu fim. Portanto, o homem é aberto à -
correria apenas de disciplinas de ordem sociológica ? E qual é,
entã o, o tipo de sociedade provido de uma organiza ção sanitá ¬ doença n ã o por uma condenação ou por uma sina , mas por sua
ria que explore a informação mais sofisticada sobre a distribui¬ simples presença no mundo. Sob esse aspecto, a sa úde não
é de
ção e as correlações dos fatores de doenças que, algum dia , dis¬ modo algum uma exigência de ordem económica a ser valoriza
¬
pensará o médico da tarefa , talvez desesperada, de ter de sus ¬ da no enquadramento de uma legisla çã o , ela é a unidade espon
¬
tentar indivíduos em situação de aflição, em sua luta ansiosa t â nea das condições de exercício-4a vida . Esse exercício,
no
por uma cura aleatória ? qual se fundamentam todos os outros exercícios, funda
como
eles e conté m como eles o risco de insucesso, risco do qual ne ¬
E por que, enfim, empenhar-se em dissimular para as pessoas nhum status de vida socialmente normalizada pode preservar o
que é normal ficar doente , uma vez que se está vivo, que é nor ¬
-
mal curar se da doença , com ou sem o recurso da medicina , -
indivíduo. O seguro doença, inventado e institucionalizado
pelas sociedades industriais, encontra sua justificativa no pro
¬
jeto de propiciar ao homem, certo da compensação de deficits
econó micos eventuais, confiança e audá cia na aceitação de ta ¬
19Essas duas citações foram tomadas emprestado de K. Wagenbach, Kafka
refas que comportam sempre, em algum grau, um risco para a
- -
par lui inême , Paris, Seuil , 1968, p. 137 138.
64 Georges Cangutlhem Escritos sobre a medicina 65

vida. Convé m, entã o, trabalhar hoje para curar os homens, de


.
- conceitos de comportamento ordenado e de comportamento
vido ao medo de, eventualmente , ter de se esmerar em curar, catastrófico a partir de observa ções relativas à s condutas do ho¬
sem garantia de sucesso, doenças cujo risco é inerente ao gozo mem acometido de lesões cerebrais. Um organismo saudá vel
da sa ú de.20 compõe com o mundo circunvizinho, de maneira a poder reali¬
A esse respeito, podemos achar surpreendente que a tese de
• zar todas as suas capacidades. O estado patológico é a reduçã o
Kurt Goldstein, desenvolvida em Aufbau des Organismiis,21 te ¬ da latitude inicial de intervençã o no meio. O empenho ansioso
nha tido tão pouca repercuss ão fora dos círculos filosóficos in ¬ para evitar as situações geradoras de comportamento catastró¬
fluenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau Ponty. Talvez
jborque o próprio Goldstein tenha apresentado sua tese como
- fico, a tendência à simples conserva çã o de um resíduo de poder
é a expressão de uma vida em perda de “ responsividade ". Se en¬
ê pistemologia da biologia , mais do que como filosofia da tera ¬ tendermos por cura o conjunto dos processos peios quais o or ¬
pê utica. E, no entanto, nas últimas pá ginas da obra , a atividade ganismo tende a superar a limita çã o de capacidades à qual a
dò médico é aproximada à do pedagogo.22 Goldstein formou os doença o obrigou , será preciso admitir que curar é pagar com
esforços o preço de um atraso da degrada çã o. “ Com frequê ncia,
20Cf as .
reflexões do professor P. Cornillor , “ Quatre vé rités sur la santé", in
segundo as modifica ções provocadas pela doença, o doente se
-
Frcmcs tireusdelamédecine ( Autrement , n- 9, 1977). O autor mostra que a no¬
çã o de sa ú de absoluta está cm contradição com a dinâ mica pró pria a todos os
encontra diante de uma alternativa ; ele pode escolher um es ¬
treitamento do meio, e assim sofrer uma perda de liberdade, ou
sistemas biológicos e que, por conseguinte , a sa ú de relativa é um estado de entã o escolher um estreitamento menor, mas, em contraparti ¬
equil íbrio dinâ mico instável. “ A sa úde relativa permanece um estado aparen¬ da , assumir um sofrimento maior. Se o doente é capaz de supor ¬
te, n ão trazendo nenhuma garantia quanto à evolu çã o muda eventual de pro¬
tar um sofrimento maior, suas possibilidades de agir aumentam ;
cessos patológicos que escapam à vigilâ ncia dos mecanismos naturais de luta
contra a agressã o, a infec çã o ou a despersonalização, no sentido biológico ou
seu sofrimento diminuiria gra ças à terapê utica médica , mas
psicológico do termo" (p. 234) . suas possibilidades de agir diminuiriam ao mesmo tempo.” 23
Em Histoire des expressions populaires relatives à 1' anatomie , à la physiologic et à la Nessas condições, qual pode ser a atitude do m édico, conse ¬
médecine ( Paris, Masson, 1892 ) , E. Brissaud escreve: “ A sa úde mais florescen¬
te não pressagia a mais longa vida. É in ú til evitar as faltas de higiene, preser ¬
.
lheiro ou guia ? Goldstein anuncia Jtq.ui, as questões às quais os
trabalhos de Balint deram uma notoriedade talvez menos fun¬
-
var se das imprudê ncias e sobretudo dos v ícios que aceleram a velhice, pois,
damentada . O m é dico que se decide a guiar o doente sobre o
apesar de tudo, a doenç a sobrevé m. Um de nossos mestres - hipocondr íaco, é
verdade - não definiu a sa úde como “ um estado precá rio, transitório, que não -
caminho difícil da cura “ só estará em condições de fazê lo se ti ¬
ver a profunda convic çã o de que não se trata , na rela çã o mé di¬
-
pressagia nada de bom ?" (p. 93 94) . Disso podemos concluir que o Dr. Knock
era mais velho que Jules Romains. -
co paciente, de uma situaçã o baseada unicamente em um co¬
Publicada em 1934, essa obra foi traduzida em francês sob o título La struc¬
ture de 1'organisme ( Paris, Gallimard , 1951 ) . Devemos lamentar a ausê ncia de
nhecimento do tipo da causalidade, mas sim de um debate en -
uma reimpressão nos dias atuais.
22 P. 429 da tradução francesa . i 3lhid ., p. 360.
66 Georges Canguilhcm Escritos sobre a medicina
67
tre duas pessoas das quais uma quer ajudar a outra a adquirir rem se curar, com vocês, faremos o resto. Os argumentos
uma estrutura çã o tã o conforme quanto possível à sua essência. evo ¬
cados sã o por vezes tão ocos, tão vaidosamente peremptórios,
É por realçar a rela çã o existente entre médico e paciente que o que quase se chegaria a lamentar o apagamento progressivo
ponto de vista médico moderno se opõe , de modo mais nítido,
dessa espé cie de médicos, sobre os quais Goldstein disse que ti ¬
à quele dos médicos do final do ú ltimo s éculo, cujos há bitos de nham há bitos de pensamento pr óprios às ciências físicas. E
pensamento eram próprios à s ci ê ncias físicas ” .24
-
vê se por que a trivialidade conceituai dos propagandista
s da
Poré m , mais do que se surpreender, é preciso buscar com ¬ autocura desvia muitos m édicos , no entanto descon
fortados
preender . A indiferença ou a hostilidade da grande maioria dos em seu personagem de terapeuta frequentemente impotente,
médicos para com as questões que lhes sã o formuladas, por de dar sua ades ã o a uma ideologia tã o bem intencionada , mas
-
meio de alguns movimentos de contesta çã o interiores à sua muito pouco preocupada com a autocrítica .
profiss ã o, quanto ao abandono de sua vocaçã o para curar em
benefício de tarefas regulamentadas de descoberta das pistas,
Tanto a antimedicina quanto a antipsiquiatria exploram a
vantagem inicial de todas as petições de princípio. Supon
de tratamento e de controle , pode ser explicada pelas razões a ha ¬
mos o problema resolvido, fa çamos Brutus César. Pode aconte
seguir. Nada é mais difundido e mais rent á vel , nos dias de hoje, ¬
cer a Brutus sofrer dores tardias, violentas, quotidianas, sobre¬
-
do que uma proclamaçã o anti x. Foi a antipsiquiatria quem deu
íi partida , e a antimedicaliza ção a seguiu . Muito antes das exor ¬
vindo periodicamente na regiã o do estômago.20 A contra in ¬
-
forma çã o médica o instruiu quanto aos sintomas da úlcera , ao
ta ções de Ivan Illich à recupera çã o pelos indivíduos da regulari ¬ efeito das emoções sobre as secreções hormonais. Ele ouviu fa ¬
za çã o de sua sa ú de, à autogestã o de sua cura e à reivindica çã o lar da epidemia de ú lceras gástricas na popula çã o londrina du ¬
Ú k sua morte, as repercussões da psicanálise e da psicossom á ti ¬ rante os bombardeios da ú ltima guerra . Brutus irá primeir
ca , no nível de vulgariza çã o próprio à m ídia , popularizaram a o con ¬
sultar um psicoterapeuta sobre suas dificuldades conjugais com
idéia de uma conversã o do doente , almejá vel e possível, em seu
Portia , ou correr á para consultar um radiologista ? Enquanto es ¬
próprio m édico. Acreditou-se inventar quando , na realidade,
se retomava o tema milenar do médico de si mesmo.25 Como os -
pera decidir sé, ser á que ele adotar á um regime alimentar res ¬
trito e tomará sais de bismuto ? É*vtsível , Brutus se tornou , à sua
tempos est ã o difíceis e os mercados, raros, uma quantidade cres ¬
revelia , o espelho no qual se refletem e se confur dem rostos de
cente de praticantes de terapê uticas n ão científicas - a ciência ,
eis a í o inimigo - se vangloria de obter o que ela recrimina como
-
-
diferentes médicos. Aquele que queria liberar se da tecnocra ¬
negligê ncia e falta por parte dos médicos. Disso decorre o apelo
cia dos m édicos encontra se entravado nas redes de uma medi
-
aos doentes decepcionados: venham nos dizer que vocês que - 2
°Um grande cancerologista de Toulouse, conhecido justamente por sua de ¬
dica çã o generosa , por sua preocupa ção incansá vel quanto aos problemas pes ¬
24 ilwl., p. 361. soais ue seus doentes, ensinava que, no que concerne à ú lcera de estô mago, o
25Cf . -
Le médecin de soi meme , por E. Aziru -Schuster, Paris, PUF, 1972. diagnóstico podia ser feito por telefone.
‘68
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
69
etna ainda cm busca de sua melhor textura . Brutus pode sair de¬ çã o nã o igualitá ria. Em uma equipe de trabal
las indo ver um curandeiro. hadores da sa úde,
Em suma , porque os médicos negligenciam indagar pacien ¬
--
encontrar se ão pessoas que t êm uma responsabilidade
genheiros, outras se contentando em ser
de en¬
contramestres. E, fi¬
temente a eventual afliçã o afetiva de seus clientes, preocupa ¬ nalmente , é garantido que uma campanha sistemá tica de des
dos, por outro lado, com a atualidade de sua competência , ser á medicalização da sa úde não venha a obter o resultado -
inverso
que se deve concluir por sua inferioridade em rela çã o ao pri ¬ ao seu objetivo? Ao prometer um melhor uso indivi
dual de me ¬
-
meiro terapeuta que chegou prevalecendo se da psicossomá ti¬ lhores condições coletivas de sa úde, à imagem de uma
reparti ¬
ca ? Este último seria mais qualificado para obter a cura de uma çã o mais equitativa das riquezas, será que se est á seguro
de nã o
obesidade, a princípio consecutiva a comportamentos alimen ¬ suscitar uma doença obsessiva da sa úde ? É uma forma
de doen¬
tares de compensa ção afetiva , mas doravante comandada por -
ça achar se frustrado da sa ú de que se merece, pelo
exercício atual da medicina .
modo de
uma desregulaçã o tireoidiana ou supra - renal ? Em matéria de
reducionismo em terapê utica , o psicologismo valeria mais do
***
que o fisiologismo ?
Uma coisa é obter a sa úde que se acredita merecer, outra coi¬
Suponhamos, ent ã o, resolvido o problema do tempo neces ¬ sa é merecer a sa úde que nos propiciamos. Neste último senti
sá rio a longas consultas terapê uticas, que equivale ao problema ¬
do, a parte que o médico pode ter na cura consistiria , uma
da multiplica ção inevit á vel e da remuneraçã o de médicos for ¬ vez
prescrito o tratamento exigido pelo estado orgâ nico,
mados para escutar a queixa embara çada de seus clientes. Será em ins ¬
truir o doente sobre sua responsabilidade , que n ão pode
preciso introduzir na formação hospitalar-universitá ria dos fu ¬ ser de ¬
legada , na conquista de um novo estado de equilíbrio com
turos médicos um ensino da participa çã o “ convival ” e, conse ¬ as
solicitações do meio ambiente. O objetivo do médico, assim
quentemente, dos testes e dos exames de aptid ã o para o conta ¬ como o do educador, é o de tornar sua função inútil.
to humano ? Será preciso resolver a dificuldade diferentemente,
por meio da criaçã o de equipes de sa ú de, nas quais alguns mé di ¬ Não parece indispensá vel celebrar sem discernimento as vir ¬
cos e um pessoal paramédico fortemente motivados se empe ¬ tudes de uma medicina sèlvà gêmpara confirmar críticas evoca ¬
nhem em recriar as rela ções dos indivíduos com o corpo, com o das por algumas pr á ticas do corpo médico civilizado. Mas pare ¬
trabalho, com a coletividade ? Essa: soluções que, de bom gra ¬ ce ter chegado o tempo de uma Crítica da razão médica prá tica
que reconheceria explicitamente , na prova da cura , a necessá
do, se dizem de esquerda, estão isentas de todo conluio com
. a colabora çã o do saber experimenta
-
-
'
uma ideologia de direita ? O contato humano nã o sc ensina nem i
l com o n ã o-saber propul
se aprende como a fisiologia do sistema neurovegetativo. Afas ¬ sivo c esse a priori de oposiçã o à lei da degrada çã o, do qual a sa ú ¬
tar da profissão médica quem nã o fosse dotado para a participa ¬ de exprime um sucesso sempre reposto em questã o. Por essa ra ¬
çã o “ convival" equivaleria a instituir um novo crité rio de sele ¬ zão, se uma pedagogia da cura fosse possível , ela deveria com ¬
portar um equivalente ao que Freud chamou “ prova de realida
-
70 Georges Canguilhem

. de” . Essa pedagogia deveria tender a obter o reconhecimento,


pelo sujeito, do fato de que nenhuma técnica , nenhuma insti -
tuição, atuais ou por advir, lhe assegurarão a integridade garan
tida de seus poderes de rela çã o com os homens e com as coisas.
-
A vida do indivíduo é, desde a origem , redu çã o dos poderes da
vida. Porque a sa ú de não é uma constante de satisfa çã o, mas o a
priori do poder de dominar situa ções perigosas, esse poder é usa
do para dominar perigos sucessivos. A sa úde, depois da cura ,
- O problema das regula ções no
organismo e na sociedade
rar nã o é retornar ajuda o doente em sua busca de um estado de
-
n ã o é à sa ú de anterior. A consciê ncia l úcida do fato de que cu j

menor ren ú ncia possível, liberando-o da fixa ção ao estado an ¬


'

-
Quando meu amigo Pierre Maxime Schuhl me pediu para
fazer uma conferência nestas reuniões da Aliança Israelita, acei¬
terior. [
tei de muito bom grado e com muito prazer. É uma honra para
Um dos ú ltimos textos de F. Scott Fitzgerald, La F êlure , co¬ mim. Lamento simplesmente ter posto esta condiçã o, da qual
meça com as seguintes palavras: “ Toda vida é, bem entendido, peço que me desculpem, que faz com que nos rc mamos em
um processo de demoliçã o...” Algumas linhas adiante, o autor j uma hora inteiramente insólita.
acrescenta: “ A marca de uma inteligência de primeiro plano é
Escolhi tratar de um problema pelo qual, eu lhes asseguro,
que ela é capaz de se fixar em duas idéias contraditórias, sem
senhores, nã o esgotei meu interesse, já que ele constitui uma
- -
por isso perder a possibilidade de funcionar. Dever se ia, por
exemplo, poder compreendei: que as coisas sã o sem esperança -
questã o para mim mesmo. Escolhi, contudo, falar lhes de um
assunto que nã o é preocupante pelo fato de ele me preocupar,
-
e, todavia , estar decidido a mud á las.” 27 mas que me preocupa porque o considero fundamentalmente
Aprender a curar é aprender a conhecer a contradição entre preocupante. Sob o título um tanto demasiado técnico “ O
a esperança de um dia e o fracasso, no final , sem dizer n ã o à es ¬
perança de um dia . Inteligê ncia ou simplicidade ?
problema das regula ções no orgatúsmo e na sociedade” , tra
-
ta se, no fundo, de nada menos do que um problema muito
-
antigo, sempre aberto, o das rela ções entre a vida do organis ¬
mo e a vida de uma sociedade. A assimila ção usual, ora cientí¬
fica , ora vulgar, da sociedade a um organismo é mais do que
uma met á fora ? Será que essa assimilaçã o recobre algum pa ¬
rentesco substancial ?

Naturalmente, esse problema só interessa à medida que a so¬


27 paris, Gallimard , 1963, p. 341. :
í lu ção que lhe é dada sé toma, caso seja positiva , o ponto de par-
- 72 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
73
- tida de uma teoria política e de uma teoria sociológica que ten
de a subordinar o social ao biológico e que se toma , de fato -
- Ernst Haeckel , um dos que mais fizeram para elevar a
celular ao nível de dogma , falava de “ Estado celular
teoria
não direi um risco um argumento para a prá tica política. Por pública das células” para designar o corpo do
” de “ Re ¬
ou
vivo pluricelular.
conseguinte, sendo esse um assunto de preocupação maior, pa ¬
- - -
rece me não ser preciso declará lo e demonstrá lo mais ampla ¬
mente.
Em suma , da sociologia à biologia , a multiplicação dos exem
plos não traria nenhum reforço à idéia.
¬

Essa assimilação permanente da sociedade ao organismo Aqui, cabe observar que sempre houve troca de bons e
maus
procedimentos entre a sociologia e a biologia. Só a
provém de uma tentação que é, em geral, duplicada com a ten¬ história , em
alguns casos, nos permite esclarecer a origem de alguns
ta ção inversa , a de assimilar o organismo a uma sociedade. concei¬
tos aos quais uma certa equivocidade em biologia e
em sociolo¬
-
; Um dos pensadores gregos pelos quais P. M. Schuhl se inte¬
ressou, em suas primeiras etapas da filosofia biológica, Alcmeão
gia dá uma aparê ncia de terem uma validade equival
um e no outro domínios, de significações e de usos.
ente, em
de Crotona, interpretava o desequilíbrio causado pela doença, Por exemplo, há um conceito fundamental em política e em
o dist ú rbio patológico, como uma sediçã o, ou seja , para explicar
economia, o conceito de crise. Ora, esse é um conceito de
p natureza da doença , ele transportava para o organismo um ori¬
gem mé dica , é o conceito de uma mudança advinda
jconceito de origem sociológica e política. no curso de
uma doença , anunciada por certos sintomas , e na qual se deci¬
dirá efetivamente a vida do paciente.
^ Quando os economistas liberais e os socialistas dos séculos
XVIII e XIX chamaram a atenção para o fenômeno social da di¬
vis ão do trabalho e seus efeitos, efeitos felizes para alguns, de¬
Eu lhes lembrarei que o termo constituição, que também faz
parte desses termos perfeitamente equívocos, é válido
tanto no
test á veis para outros, os fisiologistas acharam muito natural fa ¬ terreno biológico quanto no terreno social. Se buscar
lar de divisão do trabalho no que concerne às células, aos ór ¬ mos a pas¬
sagem de um terreno ao outro, do terreno biológico ao terreno
gãos ou aos aparelhos que compõem um corpo vivo. social, não a encontraremos, ponmms longe que nos remonte¬
mos. Esse termo sempre teve uma ambiguidade, cma equivoci¬
Na segunda metade do século XIX, no momento da difusão
dade, ele vale tanto para um domínio de explicação quanto
da teoria celular, Claude Bernard falava da “ vida social” das cé¬
para o outro.
lulas. Ele se perguntava se as células, em sociedade, têm a mes ¬
ma vida que elas teriam em liberdade, o que equivalia a formu ¬ Por conseguinte, lembro todos esses fatos apenas para mos¬
lar , por antecipação, o problema dos resultados de uma cultura trar que , quando se assimila a sociedade a um organismo, não
de células. Será que , quando liberada de todas as rela ções que é somente em funçã o de uma teoria sociológica bastante cur¬
manté m com as outras em um organismo, a célula se comporta ¬ ta , cujos dias foram rapidamente contados , no final do século
rá da mesma maneira que em sociedade ? XIX. Essa teoria é chamada organicismo. O fato de essa teoria
74 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 75

ter aparecido explicitamente naquele momento nã o impediu _


Aquilo a que farei alusão nada tem de misterioso. Todo
alguns sociólogos, como Auguste Comte, de ir buscar em uma mundo já o experimentou, se assim posso dizer; i sso alimenta as
noçã o de origem biológica a noçã o de “ consenso” ou de simpa ¬ conversações habituais. Um organismo é um modo de ser abso¬
tias das partes do organismo entre si , uma noção importada lutamente excepcional, visto que entre sua exist ência e sua re ¬
por ele para o terreno sociológico, mesmo reconhecendo eme, gra ou sua norma não h á diferença , para falar com propriedade.
através da história humana , pelo fato da tradiçã o, a vida social A partir do momento em que um organismo é, que ele vive, é
e a vida orgâ nica compõem dois domínios radicalmente hete ¬ que ele é possível, ou seja, ele responde a um ideal de organis ¬
rogé neos. mo. A norma ou a regra de sua existência é dada em sua própria
existência , de tal modo que, quando se trata de um organismo
Dito isso, abordamos o problema pelo que eu poderia cha ¬
mar seu aspecto mais popular , ou seja , a dupla tenta ção de assi ¬ vivo, e para tomar o exemplo mais banal , quando se trata do or
ganismo humano, a norma que é preciso restaurar, quando esse
- '

mila ção. E gostaria de mostrar , imediatamente, que, se nos co¬


organismo está lesado ou doente, não se presta em nada à am¬
locarmos também do ponto de vista da representação popular,
a correção dessa assimilaçã o se impõe de imediato. Quero dizer -
biguidade. Sabe se muito bem qual é o ideal de um organismo
doente: é um organismo sã o da mesma espécie. Quer dizer que,
com isso que, no que concerne ao problema social e aos proble ¬
mesnio quando não se sabe exatamente ém que consiste a de ¬
mas apresentados pela vida orgânica e suas desordens, h á , na
opinião comum, uma atitude que já deveria convidar o filósofo
sordem orgânica, quando o médico discute sobre a natureza do
a sondar suas razões profundas.
mal, quando se discute sobre á composição e a administra çã o
dos remédios , ninguém discute sobre o efeito esperado desses ,

É claro que o problema da assimila çã o da sociedade a um or¬ remédios. O efeito esperado desses rem édios é a restauração do
ganismo só interessa à medida que se espera dele alguma visã o organismo em seu estado de organismo são. Em suma , aqui, fica
robre a estrutura de uma sociedade, sobre seu funcionamento, claro para todo mundo qual é o ideal do organismo: é o próprio
poré m mais ainda sobre as reformas a serem operadas quando a -
organismo. Pode se hesitar sobre o diagnóstico e a terapê utica
sociedade em questão é afetada por dist úrbios graves. Em ou ¬ de uma afecção do fígado ou de um&doença dos olhos, mas nin¬
tros termos, o que domina a assimila ção do organismo a uma so¬ guém hesita sobre o que se deve esperar da terapêutica. De¬
ciedade é a idéia da medicação social, a idéia da terapê utica so¬ ve-se esperar do fígado que ele secrete a bile, e dos olhos que
cial, a id éia de remédios para os males sociais. eles tenham uma acuidade visual satisfatória . Em suma , na or¬
dem do organismo é comum ver todo mundo discutir, se assim
Ora , cabe observar que, sob a relação entre a sa úde e a doen ¬ posso dizer, sobre a natureza do mal, mas ningué m discute sobre
ça , portanto sob a rela çã o da reparação dos dist ú rbios orgâ nicos o ideal do bem.
ou sociais, as relações entre o mal e o remédio são radicalmente
diferentes no que concerne a um organismo e no que concerne Mas a existência das sociedades, .de suas desordens, de seus.
a uma sociedade. distú rbios faz aparecer uma relação completamente diferente
B , ' 76 Georges Canguilhem S Escritos sobre a medicina 77

entre os males e as reformas, porque , para a sociedade , o que se


discute é saber qual é seu estado ideal ou sua norma.
--
Poder se ia dizer que, na ordem social, a loucura é mais bem
discernida do que a razã o, ao passo que, na ordem orgâ nica, a
É precisamente aqui que o problema se apresenta: a finali- sa ú de é mais bem discernida , mais bem determinada do que a
natureza da doença. Essa idéia foi o objeto de desenvolvimen¬
dade do organismo é interior ao organismo e, por conseguinte ,
esse ideal que é preciso restaurar é o próprio organismo. Quan ¬ tos brilhantes, um pouco demasiado brilhantes, da parte de um
to à finalidade da sociedade, é exatamente um dos problemas autor inglês, Chesterton, em uma obra pouco conhecida que foi
capitais da existência humana e um dos problemas fundamen ¬ traduzida para o francês: Ce qui cloche dans le monde. Ele se con¬
tais que se colocou a razão. Desde que o homem vive em socie ¬ tentou , como é seu h á bito, em formular sobre o assunto parado¬
dade , todo mundo discute, precisamente , sobre o ideal da so¬ xos muito excitantes, muito estimulantes. Mas descrever n ã o
ciedade. Em contrapartida , os homens concordam mah fá cil- ' basta . Nã o digo que os explicarei, n ã o tenho essa pretensão,
mente sobre a natureza dos males sociais do que sobre o alcan ¬ mas gostaria de tentar mostrar como, a partir dessa constatação
ce dos remédios a lhes serem aplicados. Na existê ncia de uma acessível a todo homem de boa vontade, é possível fundamen¬
sociedade, a norma da sociabilidade humana não é fechada. tar alguns princípios de explicação.
Mais adiante , tentarei dizer por qu ê. Disso decorre a multipli ¬ É neste ponto que a palavra “ regula ção” , que aparece no tí¬
cidade das solu ções possíveis que são calculadas ou sonhadas
-
pelos homens para pôr um termo às injustiças. Poder-se ia di¬
tulo de minha conferência , vai intervir. E uma palavra erudita
mas nã o muito, no sentido de que todo mundo sabe o que é um

zer que , na ordem do orgâ nico, o uso do ó rgã o , do aparelho, do regulador em uma antiga locomotiva , todo mundo sabe o que é
organismo é patente. O que por vezes é obscuro, o que é com uma estação reguladora. Nã o diria que o conceito de regulaçã o
frequ ê ncia obscuro é a natureza da desordem . Do ponto de é um conceito, mas, sim, nã o rebarbativo.
vista social parece , pelo contrá rio, que o abuso, a desordem , o
mal são mais claros do que o uso normal. O assentimento cole ¬ O organismo vivo é um tipo a ser caracterizado pela presença
tivo se faz mais facilmente sobre a desordem . O trabalho das constante e pela influência permanente de todas as suas partes
crianças, a inércia da burocracia , o alcoolismo, a prostituiçã o, em cada uma delas. O própr íò de um organismo é vW°. 'omo
*

a arbitrariedade da polícia são males sociais sobre os quais a i um todo, e ele só poder viver como um todo. Isso se tomou pos¬
atençã o coletiva incide (é claro, para os homens de boa -fé e de sível pela existência no organismo de um conjunto de dispositi¬
boa vontade ) , e sobre os quais o sentimento coletivo é fácil. vos ou de mecanismos de regulação, cujo efeito consiste preci¬
Em contrapartida, os mesmos homens que concordam sobre o samente na manutenção dessa integridade, na persistência do
mal se dividem quanto ao tema das reformas. O que parece re - ‘ organismo como todo. Essa idéia de regula ção orgânica é um
médio para uns, para outros aparece como um estado pior que j- conceito bastante recente. Mais adiante darei alguns exemplos
o mal, devido ao fato de que , precisamente, a vida de uma so¬ dos tipos principais de regula ção orgâ nica.
ciedade não é inerente a ela pró pria. f
i 1
W.
78 •
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 79

Essa idéia , que começa com a fisiologia de Claude Bernard , Os estados estáveis do organismo sã o obtidos em todas as
apenas confirma uma velha intuição da medicina hipocrá tica,
ou seja, existe, pelo pró prio fato da vida do organismo, uma es ¬
partes do organismo conservando uniformes , quer dizer, pre
servadas de desvios muito importantes, aquém ou alé m das
- '

pécie de medicação natural ou de compensação natural das le- condições naturais de vida dessas partes, o que chamamos, a
: sões ou dos dist ú rbios aos quais o organismo pode estar exposto. partir de Claude Bernard , o meio interior. Tal como a noçã o
Essa velha id éia hipocrática da força curativa da natureza não de meio serve aos biólogos do final do século XVIII e do início
recebeu senão confirmações por parte da fisiologia moderna. do século XIX para explicar as modifica ções e as adapta ções
do organismo e das espécies , assim também essa noçã o de
Um organismo comporta , pelo simples fato de ser um organis
d mo, um sistema de mecanismos de correção e de compensação
- meio interior serve a Claude Bernard para explicar como, no
1 dos desvios ou dos danos sofridos , em relação ao mundo no qual interior do organismo, cada parte se encontra em rela ção com
todas as outras, pela intermedia çã o desse tipo de matriz líqui ¬
ência desses mecanismos de regulação lhe permite levar uma
•íf
-
iele vive, em relação ao seu meio, meio a respeito do qual a exis
da , composta de sais, água , produtos de secreçã o interna , cuja
existência relativamente independente. Para tomar um exem ¬ estabilidade se encontra sob a dependência de dois aparelhos
plo muito simples, citarei o que se chamava outrora os animais que , nos animais superiores, sã o a pedra angular de todas essas
de sangue frio e os animais de sangue quente , hoje chamados, opera ções: o sistema nervoso e o sistema das gl ândulas de se ¬
de modo mais científico, poiquilotermos e homeotermos. Nos creção interna ou glândulas endócrinas. Claude Bernard teve
animais de sangue frio, não há sistema de regulação de tempe ¬ a originalidade de mostrar a existência de um meio interior,
ratura , eles são escravos da temperatura do meio; quanto ao ho-
mas teve, alé m disso, a originalidade de mostrar que é o pró¬
meotcrmo, ele tem um sistema de regulação que lhe permite
prio organismo quem produz esse meio interior . Insisto, aqui,
compensar os desvios, manter uma temperatura constante , in ¬ sobre o fato de que a regulação do organismo é garantida por
dependentemente das solicitações do meio. aparelhos especiais que sã o o sistema nervoso e o sistema en -
dócríno. As regulações pelas quais Claude Bernard se interes ¬
O pró prio organismo, pelo simples fato de sua existê ncia , sara s ã o regula ções fisiológicas.^Porexemplo, a regula ção dos
resolve uma espécie d é contradição entre a estabilidade e a movimentos respiratórios sob o efeito da taxa de ácido carbó ¬
modificaçã o. A expressã o desse fato original requer termos nico que está contida no meio interior, ou então a regula çã o
cuja significação é ao mesmo tempo fisiológica e moral . Há , da elimina çã o da á gua e dos sais que anula a varia çã o de pres¬
em todo organismo, uma modera çã o congé nita , um controle sã o osmótica nos líquidos internos ; a termorregulaçã o, ou
congé nito, um equilíbrio congé nito. É a existê ncia dessa mo ¬ seja , a regula çã o do calor animal, ou ainda a regulaçã o dos
dera çã o, desse controle, desse equil íbrio que chamamos, em desvios da alimenta çã o azotada pela manutenção da lei do
termos cient íficos , n partir do í isiologista americano Cannon , equil íbrio azotado.
a “ homeostase ” .
80 Georges Canguilhem ft Escritos sobre a medicina 81

-
A essas pesquisas de Claude Bernard juntaram se pesquisas
de dois outros tipos: as que concernem ao desenvolvimento
l Dè fato, qual era a idéia antiga e pagã de sabedoria ?
embrionário e as que concernem à regeneraçã o. Passarei rapidamente sobre essa questão, para não cair sob o
golpe das críticas de meu amigo Schuhl. Direi que a idéia da sa ¬
Os embriologistas descobriram que, no ovo fecundado, a par
tir desse ovo fecundado, no decorrer da vida embrioná ria, exis ¬
- bedoria era essencialmente a id éia da medida, do controle e do
domínio na condução da vida. Era o que preservava o homem
te uma espécie de controle de uma totalidade sobre as partes do domínio da desmedida, tenta ção permanente de desvio, de
que faz com que, sejam quais forem as variações, se assim posso aberra ção e de desdém pelo limite.
dizer, de substâ ncia ovular, o ser vivo conserva ou manté m a in ¬
tegridade de uma forma específica e que se pode, por exémplo , É certo que, para muitos pensadores gregos, os mais impor¬
com a metade de um ovo ou, pelo contrá rio, com dois ovos liga ¬ tantes, a idéia do universo , a idéia do Tudo, eia a idé ia de un .
dos, obter um só indivíduo do qual todos os caracteres específi ¬ organismo sã o, ou seja , um organismo no qual todas as partes
cos sã o idênticos à queles que se obteria pelo desenvolvimento concordam umas com as outras, estão presentes umas nas ou ¬
de um ovo normal, salvo algumas diferenças quantitativas.
I
tras e no qual as rela ções funcionais entre essas partes permane
cem invariáveis. No interior desse Todo, no interior dessa or ¬
-
Aqui , a regula çã o do que chamamos os organizadores espe ¬ dem, que é ao mesmo tempo vida , cada ser, inclusive o homem,
cíficos se exerce de modo tal que, em relaçã o a esses danos que tem um lugar. Nesse lugar, ele deve trabalhar em coopera çã o
o ovo pode sofrer da parte dos elementos exteriores, a forma es ¬ com o conjunto dos outros seres; deve respeitar as relações fun¬

mantida.
-
pecífica a ser obtida encontra se constantemente preservada e cionais de sujeiçã o às exigências do Todo.

Essa idéia da sabedoria antiga talvez seja uma idéia enxer¬


Do mesmo modo, e isto é apenas uma consequência , a rege ¬ tada em uma imagem emprestada da intuiçã o da vida . Eviden¬
nera ção que acontece em alguns animais e que faz com que es ¬ temente, nã o é o corpo que é s á bio, é a razão. Mas, quando se
ses animais reencontrem, depois de uma mutila çã o, e salvo al ¬
gumas diferenças quantitativas , sua própria forma , mostra bem
-
fala da sabedoria do corpo, restitui se ao corpo a imagem do
equilíbrio, na qual eu digo que talvez tenha sido enxertada,
que há uma espécie de dominaçã o da forma sobre a matéria , em todos os casos foi certamente desenvolvida , a id éia de sa ¬
uma espécie de comando do todo sobre as partes. bedoria.
Tudo isso para dizer que nã o foi sem profundidade que um Ora , a obra de Cannon comporta um epílogo intitulado “ Re¬
bi ólogo do qual falei há pouco, Cannon, pôde intitular a obra la ções entre a homeostase biológica e a homeostase social” .
na qual ele expõe sumariamente esses mecanismos de regula ¬ Aqui, Cannon cede à tendência própria a todo especialista: ele
ção: A sabedoria do corpo. É um n'tulo do qual se pode rir, mas, to¬ cede a esta tentação partilhada entre o científico e o vulgar de
davia, sobre o qual merece que se reflita. importar para a sociologia esse conceito magnífico de regulação
82
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 83
e de homeostase, do qual ele mostrou o
mecanismo no decorrer '

5 do ou prontos para agir a fim de defender essa constância. Do


das pá ginas precedentes.
mesmo modo, quando um sistema se mantém estável, ele conse¬
Esse livro de Cannon , digo isto imediatamente, pois
aproximação nã o é sem interesse, é a reprodução
esta -
gue fazê lo porque a menor tendência a uma mudança é ime¬
diatamente entravada pelo aumento da eficácia do ou dos fato¬
de conferên ¬
cias dadas por ele, em 1930, na Sorbonne. Ele
era , então, pro
fessor na Universidade de Harvard. Ora , 1930 foi o ano em que¬
res que se opõem a essa mudança. Uma tendência ao cdnser
vantismo excita uma revolta dos elementos de esquerda que,
-
Bergson dava o último retoque (talvez a correçã por sua vez, é seguida de um retomo ao conservantismo. Um go¬
o das provas)
em Deux sources de la morale et de la religion. Portan , verno pouco severo, com as consequências que essa falta de se¬
to temos
mais ou menos certeza de que nã o houve influê
ncia. Mas os tra ¬ veridade acarreta , provoca a chegada ao poder de reformadores
balhos de Cannon são muito anteriores , e Bergson , que lia cujo rigonsmo trará agitação e o desejo de mais liberdade. Os no¬
tudo
-
-
e sabia tudo, podia conhecê los. O que é interessante
nos anos 1930 1932 , Cannon e Bergson encontr
é ver que,
bres entusiasmos e os sacrifícios da guerra são seguidos de uma
apatia moral e de um excesso de indulgência para consigo mes ¬
am o mesmo
problema: um o encontra a partir de sua biologia , o
outro , a par ¬
mo. ” Eis agora a passagem na qual eu lhes peço para prestar aten¬
tir de sua filosofia. ção: “ Em uma nação, é raro que uma tendência tome uma força
tal que possa chegar ao desastre. Antes que esse extremo seja
É importante dizer que o epílogo de Cannon sobre a homeo alcançado, forças corretivas se elevam e detêm essa tendência ;

tase social é a parte mais fraca de seu livro. Em primeiro de um modo geral, elas chegam a dominar de maneira absoluta,
lugar, é
--
á mais curta; poder se ia dizer que ele foi modesto, que
fora de seu domínio, que avançou com prudência. Mas, al
estava de forma que elas próprias provocam uma nova reação.”
ém de Não posso me impedir de aproximar essa observação de
sé r a mais curta, é também a mais fraca , porque , nela,
a maioria Cannon das observações muito mais profundas feitas por Berg¬
das assimilações é fundamentada nos lugares comuns
qa ou de sociologia, sem que se busquem os
- de políti
fundamentos.
- son, no final de seu livro Les deux sources de la morale et de la reli'
gion, sobre o que ele chama a lei da dicotomia e dc duplo frenesi
| Cannon se pergunta se não se encontrariam, na socied das tendências.
ade,
è pmplos de mecanismos de regulação amortecendo os desvios
| Também para Bergson, a sociedade - vocês sabem que ela é
e tendendo a compensar as desordens.
ao mesmo tempo fechada e aberta, quer dizer, conservadora,
Eis aqui um exemplo que me permitirei ler: “ Em primeiro lu tendendo à sua conservação como um organismo, mas buscan¬
gar, é preciso notar que o própno corpo político oferece
¬
rastros -
do ultrapassar se, finalmente , em direção à Humanidade, tal
como o élan que, por meio da matéria, leva a existência univer¬
de dispositivo grosseiro de estabiliza ção. No capítulo preceden
te, formulei a id éia de que uma certa constância em um
sistema
¬

sal em uma corrente infinita de criação , a cada momento de
sua história , é orientada por uma certa tendência ; uma tendên -
complexo é , em si mesma , a prova de que há mecanismos agin
-
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 85
0
*
cia ganha da outra, mas quando uma delas chegou a uma espé ¬ ção orgânica, pois o que faz o organismo é precisamente o fato de
cie de paroxismo, é a tendência contrária que, por sua vez, irá se que sua finalidade, sob forma de totalidade , esteja presente e es¬
desdobrar. teja presente em todas as partes. Peço desculpas, pois talvez eu vá

Bergson, poré m, não raciocina como Cannon, que parece


-
escandalizá los: uma sociedade não tem finalidade própria; uma
sociedade é um meio; uma sociedade é mais da ordem da máqui¬
-
apegar se, em sua erudição do corpo social , a uma espécie de na ou da ferramenta do que da ordem do organismo.
extensão da lei de Le Chatelier: quando em um sistema em mo¬
vimento algumas perturbações tendem a se exercer, a resistên - '
Certamente, uma sociedade tem alguma semelhança com o
orgâ nico, já que ela é uma coletividade de vivos. Não podemos ,
cia a essas perturbações se produz em consequ ência das liga ¬
ções no interior do sistema. Bergson , pelo contrário, diz que se, para falar com propriedade, decompor uma sociedade, mas, se a
em um certo sentido, uma oscila çã o em torno de uma posição analisamos, o que é bem diferente , descobrimos que uma socie ¬
mediana , uma espécie de movimento pendular existe, o pêndu ¬ dade é uma coletividade de vivos; essa coletividade, porém ,
lo, no que concerne à sociedade, é dotado de memória e o fenô¬ não é nem um indiv íduo nem uma espécie. Ela não é um indiví¬
meno, na volta, não é mais o mesmo que na ida. De resto, a al¬ duo porque não é um organismo provido de sua finalidade e de
ternâ ncia conservadora e reformadora , nesse exemplo evocado sua totalidade obtida mediante um sistema especializado de
-
por Cannon, é preciso dizê lo, não tem sentido para toda socie ¬
dade. Ela tem um sentido em um regime parlamentar , ou seja ,
aparelhos de regulação. Ela não é uma espécie porque é, como
diz Bergson, fechada. As sociedades humanas não são a espécie
para um dispositivo político que é uma invenção hist órica fei ¬ humana. Bergson mostra que a espécie humana está em busca
ta para canalizar o descontentamento. É um tipo de dispositi ¬ de sua sociabilidade específica. Portanto, não sendo nem um
vo que nã o é inerente à vida social como tal. E uma aquisição indiv íduo nem uma espécie, a sociedade , ser de um gênero am ¬
da história , é uma ferramenta que uma certa sociedade se pro¬ bíguo, é máquina tanto quando vida , e , não estando seu fim
piciou. nela própria, ela representa simplesmente um meio, ela é uma
ferramenta. Por conseguinte, não sendo um organismo, a socie ¬
-
Tendo pronunciado essa palavra ferramenta , tentarei agora
delimitar rapidamente as razões pelas quais nós não podemos
dade supõe e mesmo apela -para íegtda ções. N ão há sociedade
sem regulação, n ão há sociedade sem regra , mas não há, na so¬
considerar uma sociedade como um organismo. ciedade, auto-regulação. Nela, a regulação é sempre acrescen ¬
No que concerne à sociedade, devemos desfazer uma confu ¬ tada , se assim posso dizer, e sempre precária.
sã o que consiste em confundir organização e organismo. O fato De modo que se poderia perguntar, sem paradoxo, se o esta¬

de uma sociedade ser organizada e não há sociedade sem um
mínimo de organiza ção - não quer dizer que ela seja orgâ nica.
do normal de uma sociedade não seria mais a desordem e a crise
do que a ordem e a harmonia. Ao dizer “ o estado normal da so¬
Diria, de bom grado, que a organização, no nível da sociedade, é ciedade” , quero dizer o estado da sociedade considerada como
mais da ordem do agenciamento do que da ordem da organiza -

86 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 87
máquina , o estado da sociedade considerada como ferramenta .
E uma ferramenta sempre desregulada, porque desprovida de -
justo, é preciso tomar se. O sinal objetivo.de que não há justiça

-
seu aparelho específico de auto regulação. Ao dizer “ o estado
,

-
social espontâ nea, quer dizer, não há auto regulaçã o social, de
que a sociedade nã o é um organismo e que, por conseguinte,
normal” , não quis dizer o ideal da vida humana. O ideal da vida seu estado normal é talvez a desordem e a crise, é a necessidade
humana nã o é nem a desordem nem a crise. Mas é precisamen¬ periódica do herói experimentada pelas sociedades.
te por isso que a regula ção suprema na vida social , que é a justi ¬
ça , mesmo que haja na sociedade instituições de justiça , não fi¬ Entre a sabedoria e o heroísmo há a impenetrabilidade.
gura sob a forma de um aparelho que seria produzido pela pró¬ Onde há sabedoria , nã o se precisa do heroísmo, e quando o he¬
pria sociedade. roísmo aparece, é porque nã o houve sabedoria. Em outros ter ¬

Na sociedade, é preciso que a justiça venha de outro lugar,


mos, é pela ausência de sabedoria social, pela ausência de ho
meostase social, pela ausência dessas regula ções que fazem com
-
foi o que Bergson mostrou. A idéia bergsoniana é muito mais que um organismo seja um organismo, é precisamente pela au ¬
profunda do que parece , nã o diria a uma leitura rá pida - pois, sência disso que se explica para o homem a crise social chegada
^
, então, não se compreenderia mas mesmo a uma leitura séria a tal ponto que a própria existência da sociedade aparece amea ¬

|
[e atenta. Eu me pergunto, precisamente, se a distinçã o e a opo
' |ção que ele faz entre a sabedoria e o heroísmo nã o vão ao en ¬
- çada. Neste momento, há o que Bergson chama “ o apelo ao he¬
rói ” , e o herói é aquele que, uma vez que os sá bios não resolve ¬
contro dessa idéia de que a justiça não pode ser uma instituiçã o ram o problema, não evitaram que o problema se apresentasse,
social, de que a justiça não é uma regulação inerente à socieda ¬ vai encontrar, vai inventar uma solução. Naturalmente, ele só
de, a justiça é outra coisa completamente diferente. J á em Pla ¬ pode inventar a solução em situa ções extremas, só pode inven¬
tão, a justiça nã o era inerente a uma parte do corpo social , era a
forma do todo. Se a justiça, que é a forma suprema da regulação
-
tá la no perigo.

da sociedade humana, não é congénita à própria sociedade, ela Essa é a razão pela qual acredito haver uma ligação essencial
n ã o é exercida por uma instituição situada no mesmo nível que entre a idéia de que a justiça não é um aparelho social e a idéia
as outras instituições. Talvez isso nos ajude a compreender um de que, até o momento, rierihumsTsociedade pode sobreviver
fato: não há sabedoria social tal como há sabedoria orgânica. senã o por meio das crises e graças a esses seres excepcionais que
se chamam her óis.
-
N ão é necessá rio tornar se clarividente pelo fato de se ter nas ¬
cido em uma certa espécie que tem olhos , que só pode mo¬ Nessas condições, caso eu não tenha lhes provado, caso nã o
-
ver se , só pode viver sob a condiçã o de se mover na luz (à dife ¬
rença de uma planta que vive crescendo na luz) . Uma vez que
-
tenha sido bem sucedido - e estou bem longe disso - nesse es¬
forço ao qual muito generosamente fazia alusão o presidente
temos olhos, vemos , mas não somos sá bios do mesmo modo dos senhores, se nã o consegui lhes provar (e, alé m do mais, nes ¬
como vemos com seus olhos. N ão há uma sabedoria social tal sas matérias não há provas) que a sociedade não é um organis ¬
como há uma sabedoria do corpo. Sá bio, é preciso tomar-se, e mo, que n ão se deve deixar dizer que ela pode assemelhar se a-
88 Georges Canguilhem

um organismo, e que, portanto, é preciso estar muito vigilante a


respeito de todas as assimilações cujas consequências são as que
os senhores bem podem imaginar se nã o consegui demons ¬
trado, eu ficaria feliz simplesmente por ter, pelo menos, sabido
-
apresentar lhes alguns problemas, os mesmos que coloco para
mim, de uma forma tal que lhes tenham parecido dignos de sua
reflexão.

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