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eorges Canguiltíem convida a uma crítica da razão
VJTm édica, da qual esta sé rie de intervenções oferece
os prolegô menos. Dessa cr ítica, ele d á o tom - rigor e
limpidez ilustra pudicamente as condições - enquête
erudita e lucidez seletiva - e assenta os marcos, de
Hipocrates aos dias de hoje: a medicina não hipocrá
tica nem por isso é anti, não mais do que a geometria
- coleção FUNDAMENTOS DO SABE
n ão euclidiana é antieudidiana. Não obstante nada de
^
sistematicidade kantiana no estilo, que resulta, antes,
.
da fórmula cristalizada nietzchiana, melhor ainda, do Georges
”
*
aforismo ao qual Hipocrates recorreu. _
Se o leitor se aplicar a pô-las em série, estará em conrt¬ - -
dições de formular as boas questões, inceSsantemerite
,
FORENSE '
UNIVERSITÁRIA
m
Georges
Canguilhem
!
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FILOSOFIA
-
Escritos
sobre a
Medicina
Tradução:
Vera Avellar Ribeiro
Revisão Técnica:
Manoel Barros da Motta
-
Prefácioh
Armand Zaloszyc —
.
* ^
11 ,
FORENSE
UNIVERSITÁ RIA
'A
- -
CX IV • xvr .
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© Copyright
As referências de primeira publicação de cada
um dos textos
figuram no infeio do volume.
!
© PUF. 1939, 4a edição. 2001 . para o texto “ As doenças”
© Sables. 1990, para o texto "A sa úde: conceito vulgar e quest ã o filos ó ”
© Editions du Seuil, junho. 2002. para todos os outros textos e para ficaa
composição do volume
Impresso no Brasil
Primai w Brazil
Prefácio
Um certo disparate sempre me pareceu ser um traço da com
posição dos livros publicados por Georges Canguilhem. Com
,
-
exceçã o de suas duas teses, uma sobre O normal e o patológico e a
outra sobre La formation du concept de ré flexe (ambas publicadas
pela PUF) , ele, sem dúvida, procedeu essencialmente por meio
de artigos publicados aqui e ali, os quais reunia em uma seleção,
de tempos em tempos, para fazer deles um volume: assim obti¬
vemos seus É tudes d’ histoire et de philosophie des sciences , ou La
connaissance de la vie , ou ainda Idéologie et rationalité darts
Vhistoire des sciences de la vie (todos atualmente editados por
Vrin) . Penso, todavia, que, mais além do que aparece fulguran¬
% —
te como um método - de trabalho, de transmissão , é uma ori¬
enta ção que nos é dada.
Quem sabe era assim que ele pretendia nos apresentar este
novo objeto de saber inventadcfpOf ele, com novos contornos,
expansões imprevistas ? Por um outro aspecto, n ão estaria neste
homem, neste ensinante de um rigor contínuo, a marca da inci¬
dência de uma lógica que valorizava a inconsistê ncia do grande
Todo ? Encontrarei facilmente um outro sinal ciisso no fato de
ele ter dirigido, em 1970, de maneira bastante inesperada , um
colóquio do CNRS sobre “ A matematização das doutrinas in¬
formes” .
1Ò / Georges Canguilhcm
de sua história. É fácil imaginar qual impressão uma doutrina ções orgâ nicas paradoxais a um hipocratismo de estrita obe ¬
médica , tal como o hipocratismo, pode produzir no espírito de diê ncia . Há erros de réplica ou de exposição. Ocorre que, a algo
quem só conhece o nome de Hipocrates pelo famoso juramen ¬ insignificante , a natureza responde com um paroxismo. Assim
to, fito final doravante esvaziado de seu sentido. Pior ainda se , é na alergia , na anafilaxia . Por vezes, dizer que o remédio natu ¬
por á&aso, projetando retroativamente no passado os princípios ral é pior do que o mal é ainda pouco , ele é o pró prio mal. Po ¬
teóricos e os preceitos técnicos do ensino médico de hoje , se ré m , se examinarmos bem as técnicas m édicas de defesa contra
pretendesse julgar Hipocrates, como se a vazante do curso da essa autodefesa desmedida , não seria possível tornar a dar um
história transparecesse a montante. Notemos, sem animosida ¬ sentido ao conceito de natureza ?
de, que até mesmo um mestre como Édouard Rist , que não ig¬
norava a histó ria , só soube tratar da medicina hipocrá tica , em No que concerne às defesas .orgâ nicas nanirais, a medicina de
sua Histoire critique de la médecine dans 1‘Antiquité, sob a forma hoje exerce uma prá tica de d ú vida provisó ria. A d ú vida n ão inci ¬
de um requisitório. Aparentemente, essa espécie de ingratidão de sobre o fato da reação, mas sobre a pertin ê ncia i ticial e sua su ¬
n ão deixa de ter fundamento. Como Fran çois Dagognet o mos ¬ ficiência definitiva. E, no entanto, essa d ú vida n ão suspende a
trou em La raison et les remedes ,1 a medicina contempor â nea, decisão de intervir; pelo contrário, ela. a precipita. É que essa d ú ¬
muito longe de vigiar ou de estimular , sistematicamente, as rea ¬ vida é fundamentada no conhecimento do papel desempenhado
pelo sistema neurovegetativo, no que se nomeou situações pato
ções de autodefesa do organismo , com frequ ê ncia se esforça em
moderá-las, e talvez mesmo em reprimi las, em deter , por
-
-
exemplo, rea ções humorais desproporcionais em rela çã o à
gênicas, independentes da natureza dos agentes patógenos. Ora,
a ação sobre o sistema vegetativo, seja qual for seu mecanismo
agressividade que as suscita. Por vezes a terapê utica colabora , indireto, a complexidade dos desvios, notadamente pela inibição
inclusive , com o próprio mal, reforça o que ela deveria enfra ¬ hierarquizada dos centros de excitação ou de frenamento, per-
quecer , multiplica o que deveria reduzir, a fim de converter em mant ce, em ú ltima análise, uma cópia , embora invertida, do pro
¬
instrumento do bem a exaltação provocada por uma afecção
espontâ nea. É o caso de algumas prá ticas imunológicas que
-
cesso orgâ nico natural. Mesmo tomando a pelo avesso, a arte
imita a natureza, no sentido em._q.Lie La Fontaine diz: “ Minha
,
contam com a intensidade do processo infeccioso para facilitar , imitação não é uma escravidão, pego apenas a idéia, os contor¬
por meio da secreção de substâ ncias proteol íticas, a ação das nos, as leis [...].” Uma terapê utica sistematicamente não hipo ¬
bacté rias. N ão nos parece , então, que a medicina contemporâ ¬ crá tica pôde ser inventada porque , por volta de 1921 , Otto Loe¬
nea lança por terra as prescrições hipocrá ticas e só reconhece a wi , confinnando observa ções acompanhadas desde 1904 por
existê ncia de uma natureza curativa das doenças por temer e, Elliot e Dale , conseguiu demonstrar que o pneumogástrico age
por conseguinte , para entravar suas iniciativas ? É que a patolo ¬ por meio da liberação de uma substâ ncia inibidora, de um trans ¬
gia contempor â nea aprendeu a reconhecer a existê ncia de rea - missor qu ímico. Por essa razão, ao identificar a histamina, Sir
Henry Dale pôde dizer que ela era um produto da “ autofamiaco
logia orgâ nica ” . Mas, tanto na farmacopéia viva quanto na far-
-
‘Paris, PUF, 1964, Cd. “ Galien".
* 16 ‘
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 17
O que obrigou o tema da natureza curativa a se refugiar na A fisiologia justificou algumas intuições da antiga medicina
literatura popular foi , na conjunçã o da anatomopatologia e naturista mediante a descoberta progressiva de mecanismos de
das novas técnicas de exploraçã o clínica ( percussã o e auscul
ta çã o) , a descoberta dos fenô menos de silêncio espont â neo da
- -
auto regula ção e de estabiliza ção orgâ nicos, cuja explicaçã o é
hoje buscada em modelos de reação ativa , em outras palavras,
natureza pelos mé dicos austríacos e franceses do século XIX de feedback .
nascente. A nova cl ínica em Viera e em Paris , nos primeiros
anos de 1800, constata que a natureza só fala se for bem inter ¬ Simultaneamente, a terapê utica das doenças infecciosas, na
rogada. é poca de Pasteur, de Koch e de seus alunos , legitimou a atribui¬
ção - até ent ão sem provas , e talvez mesmo sem argumentos -
A partir do momento que a medicina fundamenta « eu diag¬ de um poder de defesa antitóxico inato ao organismo. Ora ,
n óstico nã o mais na observação de sintomas espontâ neos, mas compreender é ultrapassar . A recupera ção dirigida da imuniza ¬
no exame de sinais provocados , as rela ções do médico e do do¬ çã o espontâ nea pelas té cnicas imunológicas tem como efeito
ente com a natureza se veem perturbadas. Por não poder fazer excitar a ré plica curativa não por meio de um logro, mas de um
ele próprio a diferença entre os sinais e os sintomas, o doente é mal menor , um mal benevolente, que leva o organismo a reagir
levado a achar natural qualquer conduta que se regule exclusi ¬
vamente pelos sintomas. Mas porque doravante ele sabe que
-
de modo mais r á pido do que ele costuma fazê lo, visando a pas ¬
sar à frente de um mal mais grave , iminente. Cada vez mais , e de
n ão deve aceitar da natureza tudo o que ela diz e da maneira modo melhor , é possível transformar um organismo animal em
-
como o diz, sem sua arte de obrigá la a se expressar, o médico é
levado a desconfiar nã o somente do que ela diz, mas també m do
produtor permanente de remédios naturais cessíveis.
que ela faz. Se em sua tese de agrégé , em 1857 , De l expectation en Roux, von Behring, Ehrlich, três grandes artesãos da domes ¬
nédecine , Charcot sutiliza - a fim de conservar algum crédito ao tica çã o de uma natureza curativa “ selvagem ” . Pela engenhosi
dade de Ehrlich, a quimioterapia contempor â nea nasceu do es¬
-
naturismo e ao humorismo - Émile Littré, fiel ao ensino positi¬
vism que fundamenta a a çã o na ciê ncia , ele retoma a palavra de tudo sistemá tico dos modos de reação celulares , desconcertan¬
tes por sua parcialidade, nosentidcrée que a produção espontâ ¬
-
Tibé nçi apenas para refutá la , e lembra ao doente a obriga çã o
.le reCoVrer, sem se fiar cm seu pró prio sentido, ao homem capaz
nea de anticorpos , recuperada nas té cnicas da vacina çã o e da
seroterapia , nã o era mais observ ável no caso dos protozoá rios.
le saber o que ele mesmo ignora , ou seja , ao médico. Não se tra ¬
ia mais de suplantar a medicina pela higiene. Nada de higiene A medicina contempor â nea não pode melhor reverenciar
; em m é dico ( “ De 1’ hygi è ne , in M decine
” é et médecins , 1872 ) . Hipocrates senão cessando de se prevalecer dele ; ela nã o pode
** *
melhor celebrar a precisão aproximada de sua concepção do or ¬
ganismo senã o recusando sua prá tica de observa çã o e de expec ¬
ta çã o. N ã o é prudente esperar que a natureza se declare quan ¬
do verificamos que, para conhecer suas fontes, é preciso mobili -
'22 - Georges Canguilhem
-
zá las por meio do alerta. Agir é ativar, tanto para revelar quan ¬
to para remediar.
Ajusto t ítulo, só se pode falar de medicina grega a partir do mal ou para o vegetal quanto para o homem. Para este último, à
período hipocrá tico, isto é , a partir do momento em que se tra - diferença do risco que nasce da resolu çã o de agir, o risco que
tam tanto doen ças quanto desordens corporais, a respeito das nasce pelo fato de se nascer é, com muita frequê ncia , inevitá ¬
quais se pode sustentar um discurso comunicá vel concernindo vel. O sofrimento, a reduçã o da atividade habitual escolhida ou
aos sintomas, suas causas supostas, seu futuro prová vel , assim obrigada , o enfraquecimento orgâ nico, a degrada çã o mental
como a conduta a ser observada para corrigir a desordem indi
cada por eles. Sempre se notou que essa medicina , cujos AforiS'
- sã o constitutivos de um estado de mal, mas não sã o por si mes ¬
mos os atributos específicos do que o médico de hoje identifica
mos de Hipocrates são , de algum modo, um breviá rio , é con- como doença no exato momento em que ele se esforça para
temporâ nea das primeiras pesquisas merecedoras do nome
-
fazer cessar o mal ou somente atenu á lo. Todavia , a rela çã o
ciê ncia e do progresso do pensamento filosófico. Um diá logo de
Platã o, Feclru , conté m um elogio a Hipocrates cujo mé todo é
-
doente doença nã o pode ser de completa discord ância. Nas so ¬
ciedades contemporâ neas em que a medicina se empenhou
declarado conforme à “ justa razão’’. para se tomar uma ciência das doenças, a vulgariza çã o do sa ¬
Nem por isso admitir -se-á que uma tal prá tica médica , em ¬ ber, por um lado, e as instituições de sa úde p ública , por outro ,
bora leiga e ponderada, possa ser qualificada de científica no fazem com que, na maioria dos casos, o viver a doença para o
sentido moderno do termo. A medicina de hoje fundamen ¬ doente seja també m falar dela ou ouvir falar dela segundo cli¬
tou -se , com a eficácia que cabe reconhecer , na dissocia çã o pro ¬ chés ou estereótipos , isto é, valorizar implicitamente as recaí¬
gressiva entre a doença e o doente , ensinando a caracterizar o das de um saber cujos progressos são, em parte , devidos ao fato
doente pela doença, mais do que a identificar uma doença se ¬ de o doente ter sido posto entre parênteses enquanto eleito da
gundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentados pelo diligê ncia médica.
doente. Doenç a remete mais a medicina do que a mal. Quando
O conhecimento atual das doenças somáticas é o resultado,
um médico fala da doen ça de Basedow , isto é , de bócio exoftál-
sem d ú vida provisório, de uma sucessão de crises e de inven¬
mico , ele designa um estado de disfun ção endócrina cujo enun ¬
ções do saber médico , de progressõsTõncementes às prá ticas de
ciado dos sintomas, o diagnóstico etiológico, o prognóstico e a
exames e à análise de seus resultados, surtindo o efeito de obri¬
decisão terapê utica sã o sustentados por uma sucessão de pes ¬
gar os médicos a deslocar o foco e a revisar a estrutura do agente
quisas cl í nicas e experimentais , de exames de laborató rio, no
patogênico e, por conseguinte , a mudar o alvo da intervençã o
decorrer dos quais os doentes foram tratados nã o como os sujei-
reparadora. Correlativamente , foram deslocados os locais de
ros de sua doen ç a , mas como objetos.
observa çã o e de an á lise das estruturas orgâ nicas suspeitas, em
A peste , o câ ncer, o zona , a leucemia, o asma , o diabetes sã o funçã o de aparelhos e de técnicas próprias ou emprestadas.
tipos de desordem orgâ nica sentida pelo ser vivo como um mal . Assim, as doenças foram sucessivamente localizadas no orga ¬
A doença é o risco do ser vivo como tal , é risco tanto para o ani- nismo, no órgã o , no tecido, na célula , no gene , na enzima . E, de
-
modo sucessivo, trabalhou-se para identificá las na sala de au -
' 26'
Georges CanguilKem Escritos sobre a medicina
27
tópsia, no laboratório de exames físicos (ótico, elétrico , radioló
- dos atos médicos e cir úrgicos, nas sociedades
-
gico, ultra sonográfico, ecográfico) e químicos ou bioquímicos. tecnologia de proteção sanit á ria , um risco
das fraquezas do sistema biológico intern
industriais de alta
de multiplicação
A relação cada vez mais estreita entre a medicina e a biologia o de resistência às
doenças.
permitiu distinguir entre as doenças , gra ç as a um conhecimen
to niais exato das leis de hereditariedade , as que s ã o hereditá ¬
- Não há nada no meio ambiente do homem
que seja inicial ¬
rias, dependendo da constituição do genoma ; as que sã o congé ¬
nitas , dependendo das circunst â ncias da vida intra - uterina ; as
-
mente natural, tornando se cada vez
que nãó possa ser considerado como fonte
mais factício e artificial,
de perigos para tais
que sã o, propriamente falando, ocasionais , tanto por meio das ou tais homens, uma vez que o conceito de
homem recobre com
rela ções do indivíduo com o meio ecológico quanto com o gru ¬ uma falsa aparência de identidade específica
organismos indi ¬
po social de vida . Pode ser o caso de acidentes individuais , co ¬ viduais, providos de diferentes poderes de resistê
ncia à s agres ¬
mo a pneumonia , ou coletivos , como a gripe ou o tifo, doenças sões por sua ascendência. O que se nomeou
erros inatos de me¬
consideradas infecciosas cujo nascimento, vida e morte foram tabolismo ou anomalias biológicas heredit á rias torna
alguns in ¬
estudados por Charles Nicolle. Sem d ú vida , essas doenças de ¬ divíduos ou algumas populações sensíveis e
receptivos a situa ¬
vem ser consideradas, na história das sociedades e das civiliza ¬ ções ou a objetos de nocividade paradoxal.
Para o indivíduo
ções, como fenômenos naturais caracterizados pela é poca , lo¬ mediterrâ neo, privado de uma certa diástase por seu
patrimó¬
cais de aparecimento, de difusã o e de extinção. Mas, se, a partir nio genético, o fato de comer favas equivale
a se envenenar. O
do final do século XIX, conhecemos , por um lado, suas causas mesmo deficit enzimá tico, pelo contrá rio, equivaleu
a algumas
determinantes: micróbios, bacilos, vírus, e, por outro, seus agen¬ populações africanas um aumento de resistência
ao impaludis ¬
tes vetores: a pulga do rato para a peste, o mosquito Aedes aegy - mo. Doravante, há muitos casos nos quais, para
se poder identi ¬
pti para a febre amarela , o historiador dessas doenças não pode
deixar de se interessar pelas razões de sua distribuição geogr á fi¬
-
ficar uma doença, deve se aprender a não buscar o
passando pelo doente. Do ponto de vista de enzimologis
acesso a ela
ta, é pos ¬
ca , pela forma das rela ções sociais próprias às popula ções afeta ¬ sível perceber estados de doença reai embora latent
^ e e proviso ¬
das. Em suma, no período contemporâ neo, a luta coletiva , por riamente tolerada, que são desconheci dos pelo clínico observa ¬
medida de higiene p ública, é um dos determinantes do quadro dor de sinais espont â neos ou provocados que aparecem
na es ¬
dessas doen ç as , da maneira como elas evoluem , quanto a seus cala do organismo ou do órgão.
sintomas e seus cursos, sob o efeito dos meios da luta provocada A eliminação progressiva da referência às situações vivida
por elas. Muito longe de ser excluído está o fato de que a pr á tica s
pelos doentes, no conhecimento das doenças, não é
generalizada de vacinações tem como consequência o apareci ¬ apenas o
efeito da colonização da medicina pelas ciências fundamenta
mento de variedades de micróbios mais resistentes às vacinas. is
e aplicadas, a partir dos primeiros anos do século XIX
; ela é
Esse é apenas um dos aspectos de uma intervençã o de fim também um efeito da atenção interessada, em todos os sentid
determinado, que faz da multiplicação e da eficácia crescente os
do termo, que a partir da mesma época as sociedades de tmo in
-
«•ai*
‘
' 28 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 29
dustrial concederam à sa úde das populações operá rias, ou, para quanto a seu aparecimento, seu contextosocial e sua evolução,
usar as palavras de alguns , ao componente humano das forças é precisamente contempor â neo da revoluçã o anatomoclínica
produtivas. A vigilâ ncia e a melhoria das condições de vida fo ¬ nos hospitais austríacos , ingleses e franceses no começo do sé ¬
ram o objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo po ¬ culo XIX. Em suma , n ã o se pode recusar admitir a existê ncia de
der político solicitado e esclarecido pelos higienistas. Medicina um componente de natureza social , portanto político, na in ¬
e política , entã o, se encontraram em uma nova abordagem das vençã o de prá ticas teóricas atualmente eficazes para o conheci ¬
doenças, da qual temos uma ilustraçã o convincente na organi ¬ mento das doenças.
za çã o e nas prá ticas da hospitaliza ção. No decorrer do sé culo
Deve a introdução de um ponto de vista sociopolítico na his¬
XVIII, particularmente na França , na é poca da Revoluçã o, t ória da medicina ser acantonada na pesquisa das causas de
houve um empenho em se substituir o hospício , asilo de acolhi ¬ uma conversã o do saber e da conduta ? Nã o se deve igualmente
mento e de conforto de doentes quase sempre abandonados ,
reconhecer causalidades de ordem sociológica no aparecimen¬
pelo hospital, espaço de aná lise e de vigilâ ncia de doentes cata ¬
logados, construído e governado para funcionar como “ máqui¬ -
to e no curso das pró prias doenças ? Viram se, recentemente ,
sindicalistas partid á rios da autogest ão denunciarem as doenças
na de curar ” , segundo a express ã o de Tenon. O tratamento
do capitalismo, o que significa ver na doença o indício orgâ nico
hospitalar das doenças , em uma estrutura social regulamenta ¬
das rela ções de classe nas sociedades capitalistas. Houve um
-
da , contribuiu para desindividualizá las , ao mesmo tempo que a
aná lise cada vez mais artificial de suas condições de apareci¬
tempo em que se falava de doenças da misé ria , ou seja, de ca ¬
rências nascidas de uma subnutriçã o responsá vel pela avitami¬
mento extraiu sua realidade da representa çã o clínica inicial .
nose, ocorridas em algumas camadas da populaçã o. Com efeito,
O corolá rio desse desligamento teórico foi a mutaçã o sobre ¬ a primeira disciplina mé dica que se ocupou desse tipo de ques ¬
vinda à profissão médica e ao modo de abordagem das doenças. tão foi a higiene. Na introdu ção a seus Eléments d’ hygiene
O m édico terapeuta que exercia nas diversas partes da medici¬ ( 1797 ) , Tourtelle insiste sobre a incidê ncia patogênica da den ¬
na , atualmente chamado “ clínico geral ” , viu declinar seu pres¬ sidade de popula ção nas aglomerações modernas. Na Inglater ¬
tígio e sua autoridade em benefício dos médicos especialistas, ra , assim como na França , na primeira terça parte do século
engenheiros de um organismo decomposto tal como uma ma ¬ -
XIX, procedeu se a enquêtes sobre a sa úde dos operá rios nos di¬
quinaria. M édicos ainda pela funçã o , poré m , doravante , n ã o versos ramos da ind ústria. Villermé publicou , em 1840, um cé ¬
mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a lebre Tableau de 1’étatphysique et moral des ouvriers employés dans
consulta consiste na interroga ção de bancos de dados de ordem les fabriques de coton , de laine et de soie . Na França , durante o sé¬
semiológica e etiológica , por meio do computador, e que a for ¬ culo XIX, os Tratados de higiene industrial eram numerosos.
mulaçã o de um diagnóstico probabilista é sustentada pela ava ¬ Todavia, seja qual for a importâ ncia que se deve reconhecer ao
lia ção de informações estatísticas. A esse respeito , deve-se ob¬ modo de vida ligado às condições de trabalho na multiplicação
servar que o estudo das doenças do ponto de vista estatístico, das situa ções patológicas , por exemplo no fato do esgotamento
30 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
31
muscular ou da desregula çã o dos ritmos funcionais , é abusivo mais recentemente, pelos sucessos da bioq u ímica molecu .
lar É
"
confupdir a génese social das doenças com as próprias doenças. preciso, contudo, reconhecer que os m étodos atuais de identifi ¬
A úlqera do estômago, a tuberculose pulmonar sã o doenças ca çã o das doenças e da terapê utica se devem mais aos sucessos
cujo çiuadro clínico ignora que elas possam ser o efeito de situa ¬ da imunologia do que às taumaturgias de inspira ção psicosso ¬
ções dfidesarvora mento individuais ou coletivas. Ainda que os ciológica. A imunologia é uma disciplina bioquímica à base de
trabalhos do relojoeiro ou os deveres do estudante sejam mais experiência médica . Sua característica mais not á vel é a de ter
reveladores de defeitos da visão do que o trabalho do pastor, fundado, no próprio nível da estrutura molecular das células do
n ã o se chegará a dizer que as doenças da vista são fatos sociais. organismo, a singularidade do doente, que o personalismo mé ¬
No entanto , há casos nos quais o recenseamento e a avalia çã o
dos fatores da doença podem levar em considera çã o o status so ¬
-
dico ou as propagandas de “ franco atiradores da medicina ” ce ¬
lebram por contraste com a essência anónima da doença. Essa
cial dos doentes e a representa ção que eles têm dela. Para utili¬ concepçã o da doença conservava alguns vestígios da antiga
zar um vocabulá rio posto em voga pelos trabalhos de Hans teoria das espécies mórbidas , elaborada no século XVII por Tho¬
Selye, digamos que se pode inscrever entre as formas patógenas mas Sydenham. A revolução conceituai concern ndo às doen ¬
de stress, isto é, de agress ão n ã o específica , a percepçã o do indi ¬ ças foi o reconhecimento do que se p - .de nomear como sistema
víduo quanto a seu nível de inserçã o em uma hierarquia de or ¬ imunizador, ou seja , uma estrutura totalizadora das respostas às
dem profissional ou cultural. O fato de viver a doença como agressões de antígenos pela produção de anticorpos específicos.
uma degradação, como uma desvaloriza ção, e nã o apenas como A colaboraçã o, talvez ainda fr á gil, entre a clínica e o laborató ¬
sofrimento ou redução de comportamento , deve ser considera ¬ rio para a pesquisa imunológica introduziu a refer ê ncia à indivi ¬
do como um dos componentes da pró pria doen ça. Encontra
-
mo nos , aqui, na fronteira nebulosa entre a medicina somá tica
- dualidade biológica na representa çã o da doença . À oposiçã o,
por vezes viva no século XIX, entre a concepçã o médica e a
e a medicina psicossomá tica , ela própria assediada pela psica ¬ conctpção científica da doença sucedeu uma esperança co¬
n á lise. Aqui o inconsciente está em questão, tal como as técni ¬ mum de encontrar , um dia , por meio da biologia molecular,
-
cas próprias para fazê lo falar a fim de saber lhe responder. uma ré plica eficaz a doen ça s â t úSlmente carregadas de fanta ¬
'
Michaux, mas estimada negativamente: “ Como o corpo (seus Entre os filósofos que concederam maior atenção à quest ão •
'
Como se explica o fato de nunca se ter pensado em inverter todos os valores e todos os desejos. Em O anticristo, a religião
essa assimilaçã o, nunca se ter perguntado se a sa úde não seria a crist ã é denunciada por ter incorporado o rancor instintivo
verdade do corpo? A verdade não é apenas um valor lógico, es ¬ dos doentes para com os saud á veis , por sua repugn â ncia em
pecífico do exercício do juízo. Há um outro sentido de verdade rela çã o a “ tudo o que é reto, altivo e soberbo". Conservemos:
que n ã o se tem necessidade de tomar emprestado de Heideg¬ reto. Encontramos em Assim falava Zaratustra a retid ã o do cor ¬
ger. No Dictionnaire de la langue française de Emile Littré, o arti ¬ po oposta aos doentios pregadores do outro mundo. “ O corpo
go “ Verdade ” começa assim: “ Qualidade pela qual as coisas
aparecem tais como sã o.” Verus , verdadeiro, é utilizado em la ¬
-
são fala com melhor boa fé e mais pureza ; o corpo completo , o
corpo cujos â ngulos são retos (rechtwinklig = feito com esqua ¬
tim no sentido de real e de regular ou correto. Quanto a sanus , dro) fala do sentido da terra." Ser á supé rfluo lembrar , aqui,
s ã o, descende do grego, crcxoç , e també m é provido de dois sen ¬ que o esquadro é , na mitologia chinesa , o s ímbolo da terra ,- '
tidos: intacto ou bem conservado, e infalível ou seguro. Disso cuja forma é quadrada , cujas divisões são quadradas ? Para
decorre a express ã o sã o e salvo. Em sua Histoire des expressions Nietzsche , saúde resume , então , fiabilidade , retid ão, comple -
populaires relatives à 1' anatomie , à la physiologic et à la médecine tude. E , mais adiante: “ O corpo é uma grande razã o , uma mul ¬
( 1892) , Édouard Brissaud cita um provérbio que se pode consi ¬ tid ão de um só sentimento, uma guerra e uma paz, um reba ¬
derar como um tipo de reconhecimento popular da aliança sa ú ¬ nho e um pastor.” Por fim: “ H á mais raz ã o em teu corpo do que
-
de verdade: “ Tão parvo quanto um atleta doente.” Parvo, aqui, em tua melhor sabedoria . ”
quer dizer a um só tempo est ú pido e enganado. A compleiçã o
atl é tica significa uma posse m á xima dos meios físicos , a conve ¬ Quando Nietzsche escreveu isso, em 1884, a existência de
niê ncia das ambições às capacidades. Um atleta doente é uma aparelhos e de funções de regulações orgâ nicas havia sido esta ¬
confissã o de falsifica çã o de seu corpo. belecida experimentalmente pelos fisiologistas. Mas é pouco
prová vel que o grande fisiologista inglês Starling tenha pensado
Mas h á um autor de l íngua alem ã , mais sutil na escolha de em Nietzsche, quando deu ao seu Discurso de 1923 , sobre as re¬
suas referências do que um colecionador de provérbios, que gulações e a homeostase, o título de The luisdom of the body , títu ¬
traz um apoio inesperado ao que nomeio: uma tese à espera de lo retomado por Cannon em Í 932 . Starling, inventor, em 1905 ,
autor. É Friedrich Nietzsche. N ã o é f á cil , depois de tantos co ¬ do termo hormô nio, publicou , em 1912 , um tratado , Principies
mentadores, em especial Andler, Bertram , Jaspers, Lõwith, of human physiology , revisto mais tarde por Lowatt Evans, cujo
determinar o sentido e o alcance dos in ú meros textos de índice final n ão contém a palavra health. Do mesmo modo , sa ú ¬
Nietzsche relativos à doença e à sa úde. Em A vontade de poder, de n ão figura no índice da Physiologic de Kayser, ao passo que ,
Nietzsche, tal como Claude Bernard, ora acredita na homoge ¬ tanto em um quanto no outro desses tratados, o índice contém:
neidade da sa ú de e da doença ( I , 364) , ora celebra a “ grande homeostase , regulação , stress. Ser á que se deve ver nisso um novo
sayde ” , poder de absorver e de vencer as tendências mórbidas. argumento para recusar ao conceito de sa úde a qualidade de
Em A gaia ciência , essa grande sa ú de é o poder de pôr à prova cient ífico ?
40 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 41
. Será que podemos, será que devemos dizer que as funções do de, a desregulaçã o n ã o é uma doença. Ningué m o disse t ão pro¬
organismo sã o objetos de ciência , mas nã o o que Claude Ber¬
nard nomeava como “ as rela ções harmónicas das funções da
fundamente quanto Raymond Ruyer em Paradoxes de la cotis -
cience. Entre muitas passagens, basta citar , aqui, a que concerne
.
economia ” ( Leçons sur le diabè te , p 72 ) ? Ali ás, o próprio Claude ao círculo vicioso ciberné tico (p. 198) . E absurdo conceber o
Bernard o disse expressamente: “ Em fisiologia , n ã o há senão organismo vivo como uma máquina à regula çã o, visto que, de ¬
condições próprias a cada fenômeno que é preciso exatamente finitivamente , e sejam quais forem os intermediários, “ a má qui¬
determinar, sem se perder em divaga ções sobre a vida , a morte, na à regula çã o é sempre vicariante de uma regula çã o ou de um à
a sa úde, a doença e outras entidades de mesma espécie” ( ibid., seleçã o orgâ nica consciente [...] uma regula çã o natural só pode
p. 354) . Isso nã o proibiu Claude Bernard de utilizar, mais
adiante, a expressão “ organismo em estado de sa úde" ( ibid . , p.
-
ser, por definiçã o, [...] uma auto regula ção sem má quina ” .
Esse corpo é , ao mesmo tempo, um dado e um produto. Sua qua í se exerce o controle administrativo da sa úde dos indiví¬
sa ú de é, ao mesmo tempo, um estado e uma ordem. duos desembocou , nos dias de hoje , em uma Organização
O corpo é um dado, uma vez que é um genó tipo, efeito a um Mundial da Saúde , que nã o podia delimitar seu domínio de in ¬
tervençã o sem que ela mesma publicasse sua própria defini çã o
só tempo necessá rio e singular dos componentes de um patri ¬
mónio gené tico. Desse ponto de vista , a verdade de sua presen ¬ -
da sa ú de. Ei la: “ A sa úde é um estado de completo bem estar -
físico, moral e social, n ão consistindo somente na aus ê ncia de
ça no mundo n ã o é incondicional. Por vezes , ocorrem erros de
codifica ção genética que, segundo os meios de vida , podem de ¬ enfermidade ou de doença.”
-
terminar ou n ã o efeitos patológicos. A não verdade do corpo
pode ser manifesta ou latente.
A sa úde, como estado do corpo dado , é a prova de que ele
nã o é congenitalmente alterado, pelo fato de que esse corpo
vivo é possível, já que ele é. Sua verdade é uma segurança. Mas,
O corpo é um produto, visto que sua atividade de inserçã o
entã o , não é surpreendente que, à s vezes , e muito naturalmen ¬
em um meio caracter ístico, seu modo de vida escolhido ou im ¬
te, se fale de sa úde fr ágil ou precá ria e até mesmo de má sa úde ?
posto, esporte ou trabalho, contribui para dar forma a seu feno
tipo, ou seja , para modificar sua estrutura morfológica e, por
- A má sa ú de é a restrição das margens de segurança orgânica , a
limita çã o do poder de tolerâ ncia e de compensa ção das agres¬
conseguinte, para singularizar suas capacidades. É neste ponto
sões do meio ambiente. Em uma célebre entrevista em Amster ¬
que um certo discurso encontra ocasiã o e justificativa . Esse dis ¬
dam, em 1648, o jovem Burman faz objeção ao que diz Descar ¬
curso é o da Higiene , disciplina médica tradicional, doravante
tes sobre as doenças, ao confiar na retidã o da constituiçã o do
recuperada e travestida de uma ambiçã o sociopolítico médica
de regulamentar a vida dos indivíduos .
- corpo para a conduta e o prolongamento da vida humana . A
resposta de Descartes pode surpreender. Ele diz que a natureza
A partir do momento em que a palavra saúde foi dita a res ¬ permanece a mesma , que ela parece lançar o homem nas doen ¬
peito do homem como participante de uma comunidade so ¬ -
ças apenas para que ele possa , ao super á-las , tornar se mais vá li ¬
cial ou profissional , seu sentido existencial foi ocultado pelas do. Evidentemente , Descartes não podia anunciar Pasteur.
exigê ncias de uma contabilidade. Tissot ainda n ão havia che ¬ Não será a vacina ção o artifícicfcle uma infecçã o justamente
gado a isso quando publicou , em 1761, seu Avis au peuple sur la calculada para permitir que o organismo se oponha , doravante ,
saut é e , em 1768, De la sant è des gens de lettres . Mas saúde co¬ à infecçã o selvagem ?
meçava a perder sua significa çã o de verdade para receber uma A sa úde, como expressã o do corpo produzido , é uma garantia |
significa çã o de facticidade. E > a se tornava objeto de um cá lcu ¬ vivida em duplo sentido: garantia contra o risco e audá cia para :
lo. Desde ent ã o, conhecemos o checkup. Convé m lembrar, em
Estrasburgo, que foi aqui que É tienne Tourtelle , professor da
-
corrê lo. É o sentimento de uma capacidade de ultrapassar ca ¬
pacidades iniciais , capacidade de fazer com que o corpo fa ça o .
Escola Especial de Medicina, publicou por Levrault, em 1797 , que ele parecia n ão prometer inicialmente. E reencontramos o
seus Éléments d ' hygiene. A amplia çã o histórica do espa ço no
M i' Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
%
\ % 45
. atleta . Embora a seguinte cita ção de Antonin Artaud possa considerar a sa úde como verdade do corpo em situação de exer¬
concernir, tanto quanto possível, à exist ê ncia humana sob o
cício, expressã o originá ria de sua posição como unida
nome vida , mais do que à própria vida , podemos evocar este de de
vida , fundamento da multiplicidade de seus órgã os próprios. A
texto no momento de uma definiçã o da sa ú de: “ Só se pode acei ¬
recente técnica de extra çã o e transplanto de órgãos n
tar a vida sob a condiçã o de ser grande, de se sentir na origem ão retira
nada da capacidade do corpo dado de integrar, ápropriando se
dos fenô menos, pelo menos de um certo n ú mero deles . Sem po ¬ -
dela , de algum modo, uma parte retirada de um todo cuja estru ¬
tê ncia de expans ã o, sem uma certa domina çã o sobre as coisas, a
tura histológica é compatível.
vida é indefens á vel ” ( “ Lettre à la voyante ” , in La revolution sur
realists , 1- de dezembro de 1926) . A verdade de meu corpo, sua própria constituição ou sua au ¬
tenticidade de existência , não é uma idéia suscetível de repre¬
Estamos longe da sa úde medida por meio de aparelhos. Cha ¬ senta ção, do mesmo modo que, segundo Malebranche , não há
maremos essa -sa ú de: livre, n ão condicionada , nã o contabiliza ¬ idéici da alma. Há, contudo, uma idéia do corpo em geral, com
da . Essa sa úde livre não é um objeto para aquele que se diz ou se certeza não visível e legível em Deus, como o pensava Maleb
crê o especialista da sa úde. O higienista se esmera em gerir uma ran¬
che, mas exposta nos conhecimentos biológicos e médicos pro¬
popula ção. Ele não tem de se haver com indivíduos . Sa úde p ú ¬ gressivamente verificados. Essa sa úde sem idéia , ao mesmo tem ¬
blica é uma denomina çã o contestá vel. Salubridade conviria po presente e opaca é, no entanto, o que suporta e valida , de fato
melhor. O que é p ú blico, publicado, é , com frequ ência , a doen ¬ e em ú ltima instâ ncia, para mim mesmo e também para o médico
ça . O doente pede ajuda , chama a atenção; ele é dependente. O enquanto meu m édico, o que a idéia do corpo, isto é , o saber mé
¬
homem sadio que se adapta silenciosamente às suas tarefas, que dico, pode sugerir como artifícios para sustentá la. Meu médico é
vive sua verdade de existê ncia na liberdade relativa de suas es ¬ -
aquele que aceita , de um modo geral , que eu o instrua sobre aqui ¬
colhas, está presente na sociedade que o ignora . A sa úde nã o é lo que só eu estou fundamentado para lhe dizer , ou seja , o que
somente a vida no silê ncio dos órgã os , é també m a vida na dis ¬ meu corpo me anuncia por meio dos sintomas e cujo sentido nã o
cri çã o das rela ções sociais. Se digo que vou bem , bloqueio , an ¬ me é claro. Meu médico é aquele que aceita que eu veja nele um
tes que as profiram , interroga ções estereotipadas. Se digo que
vou mal , as pessoas querem saber como e por que , elas se
-
exegeta, antes de vê lo como reparador . A definiçã o de sa
úde
que inclui a referê ncia da vida orgânica ao prazer e à dor experi ¬
perguntam ou me perguntam se estou inscrito na Seguridade mentados como tais introduz sub-repticiamente o conceito de
Social. O interesse por uma fraqueza orgâ nica individual se corpo subjetivo na definição de um estado que o discurso m édico
transforma , eventualmente, em interesse pelo deficit orçamen - acredita poder descrever na terceira pessoa.
t á rio de uma institui çã o.
Ao reconhecer na sa úde do corpo humano vivo sua verdade,
Mas, abandonando agora a descrição da situa ção vivida de será que não aceitamos seguir Descartes em uma via na qual al ¬
sa úde ou de doença , é preciso tentar justificar a proposição de guns de nossos contemporâ neos acreditaram descobrir a arma ¬
dilha da ambiguidade ? Foi o caso de Michel Henry em sua obra
46 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 47
aplicada. Ora , nunca foi tão difícil alegar uma tal demonstra ção ça, a medicina selvagem sempre prosperou nas portas das fa ¬
como nos dias de hoje , devido ao uso do mé todo do placebo, 1 das culdades de medicina .
observa ções da medicina psicossomá tica , do interesse concedi' Portanto, nã o há razã o em nos surpreendermos ao constatar
-
do à rela çã o intersubjetiva médico doente e da assimila ção, por
alguns médicos, de seu poder de presença ao próprio poder de
que os médicos, os primeiros a considerar a cura como proble ¬
ma e assunto de interesse, s ão, em sua maioria , psicanalistas ou
um medicamento. Doravante, em se tratando de remédios, a
maneira de os dar vale mais, por vezes, do que o que é dado.
homens para quem a psicanálise existe como instâ ncia de ques
tionamento sobre sua prá tica e seus pressupostos , como por
-
-
Em suma , pode se dizer que , para o doente, a cura é o que a
medicina lhe deve, ao passo que, para a maioria dos médicos,
exemplo Georg Groddeck , qué n ã o temeu igualar em Das Buck
vom Es , em 1923, medicina e charlatanismo, 2 ou René Allendy ,
ainda hoje, a medicina deve ao doente o tratamento mais bem na França.3 Enquanto, segundo a ótica médica tradicional, a
estudado, experimentado e testado at é o momento. Disso de¬ cura era considerada como o efeito de um tratamento causal,
corre a diferen ça entre o médico e o curandeiro. Um médico cujo interesse era sancionar a validade do diagnóstico e da pres¬
que n ã o curaria ningu é m n ã o deixaria de ser um médico de di ¬ crição, portanto, o valor do médico , na ó tica da psicanálise a
reito, habilitado como ele o é por um diploma que sanciona cura se tomava o signo de uma capacidade encontrada pelo pa ¬
unijsaber convencionalmente reconhecido para tratar dos ciente de acabar , ele próprio, com suas dificuldades.4 A cura
doentes cujas doenças sã o expostas em tratados quanto à sin ¬ nã o era mais comandada do exterior, ela se tomava uma inicia ¬
tomatologia , à etiologia , à patogenia e à terapê utica. Um cu ¬ tiva reconquistada , j á que a doença nã o era mais considerada
-
randeiro só pode sê lo de fato, pois ele n ã o é avaliado sobre
seus "conhecimentos", mas sobre seus sucessos. Para o médico
e para o curandeiro, a rela çã o com a cura é invertida . O m édi ¬ ^“ Experimentei e utilizei todo tipo de tratamentos médicos, quer de um
co está habilitado publicamente a pretender curar , ao passo modo, quer de outro, e descobri que todos os caminhos levan i a Roma , tanto os
que é a cura , experimentada e declarada pelo doente , mesmo da ciência quanto os da charlatanice .. ." ( Le livre du Ça [ trad . Lily Juntei ] , Pa ¬
ris, Gallintard , 1973 , p. 302 ) 1 Em seu (Srefacio a essa obra , Lawrence Durrell
quando clandestina , que atesta o “ dom ” do curandeiro em um escreve que “ Groddeck era mais um curandeiro e um erudico do que um mé ¬
homem cujo poder infundido, com muita frequê ncia , foi reve ¬ dico” .
lado pela experiência dos outros. Para se instruir sobre esse as ¬ 3 Essaisurlaguérison , Paris , Denõel e Steele , 1934. á , anteriormente , Orienta ¬
J
sunto ningu é m precisa ir até os “ selvagens ” . Mesmo na Fran- tion actuelle des id é es mé dicales , 1927 . Podem » » citar també r i , em razão de sua
"
. .
éculo XIX , a fisiologia come¬ A abertura do organismo sobre o meio, ainda que
A partir do ú ltimo quarto do s -
nha podido ser concebida como uma simples relação de
nunca te ¬
organismo como mecanismo
çou a substituir a concepção do por uma concepção ção passiva, foi progressivamente compreendida
sujei¬
compens ador ou como economi a fechada como subordi¬
nada à manutençã o de constantes próprias, expressando se por
-
regulação estão infima¬
do organismo cujas funções de auto o ao meio ambiente. Se meio de relações nas quais o gasto e o ganho de energia s
-
adaptaçã
mente atreladas à s funções de ão con¬
trolados por circuitos de regulação. Mas o equilíbrio aparente
vista , compará vel com a
a homeostase pode parecer , à primeirapela medicina da idade ou o estado estacioná rio de um tal sistema aberto não é
conservação espontânea, celebradaconsiderada como isomor ¬ modo algum privativo de sua submissão ao segundo princípio
de
clássica , ela, contudo, não pode ser da termodinâ mica , à lei geral de
exterior é , doravante, consi¬ irreversibilidade e de nã o -
fa , uma vez que a abertura sobre o propriamente bioló¬ retorno a um estado anterior. Doravante, todas as
derada como constitutiva dos fenômenos de um organismo, sadio, doente ou considerado
vicissitudes
pré fisiológica não ignorava a en
- ¬
gicos. Sem d ú vida, a medicina
curado, são
, as estações. Disso resultou a teo¬ afetadas pelo estigma da degradação. Apesar da persistência de
tourage do organismo, o clima uma imagem confusa do Apoio taumaturgo na simbólica da te
doenças populares, ou seja,
ria das constituições. Mas havia . Elas levavam em rapia , o médico não pode ignorar que nenhuma
¬
epidemias, como das campanhas militares cura é um re ¬
torno. E quando Freud , na parte mais discutida de sua obra, ri
Sydenham, para quem as do¬ -
consideração o tempo, como diz do ano, a exemplo de al ¬ tualizou o conceito de retorno, foi como retorno à morte, ao es¬
en ças seguiam os “ tempos particula res
plantas ". O conhecimento das cir ¬ tado inorgânico que teria precedido à vida.11
guns p ássaros e de algumas
para se saber em que consistia
cunstâ ncias nã o era pesquisado Se a termodinâ mica é, quanto ao seu objeto de origem, a
, mas para saber com qual essência de doença se teria ciência da máquina a vapor, ela é também, quanto
a doen ça ao tipo de
ê utica era preciso se deter. Por
¬
de lidar e em qual tipo de terap sociedade nas instituições científicas das quais foi elaborada ,
, cometer - -
se ia um engano ao buscar na velha teoria das uma ciência característica das primeiras sociedades industriais,
tanto
espécie de antecipação da teoria sociedades de população urba n t r d omina n te, nas quais a
constituições epidêmicas uma 9 desenvolvida pelos
, esbo çada por Auguste Comte e concentração demográfica e as condições de trabalho dos ope ¬
dos meios
da Socieda de de Biologia , contemporâ nea rá rios contribuíram amplamente para o
médicos positivis tas
ciê ncia.10
desenvolvimento das
da constituiçã o da fisiologia como doenças infecciosas, onde o hospital se impôs como lugar de
tratamento generalizado no anonimato. A descoberta por
Koch, Pasteur e seus alunos dos fenômenos de contágio micro
-
philosophic positive , 402 lição ( 1836 .
)
9 Cours de
10Cf. Émile Gley , “ La Société de Biologic de
1849 à 1900 et Involution des
f ", in Essais d' hisioire et de philosophic de la
biologic , Paris, 11Cf
-J - Laplanche, Vie et mon en psychanalyse , Paris, Flammarion, 1970: “ Por
sciences biologique s Dictionuaire que a pulsão de morre ?". O autor mostra em que e como Freud se
o verbete “ mésologie” no referiu, não
r
'
— --
Masson , 1900, p. 187. Cf. igualmente .
.
.i.f, ,|p Littré e Robin
sem confusões, aos trabalhos de Hermann von Helmholtz sobre a energé tica.
» ' 56 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
57
biano ou virótico e da imunidade, a invenção das técnicas de Mas essa medida da cura , mediante uma duração de
sobrevida
-
anti sepsia, de seroterapia e de vacina ção forneceram às exi ¬
gê ncias da higiene p ú blica, até ent ão desarmadas, meios de efi ¬
calculada estatisticamente, se inscreve em um quadro no qual
figuram també m o aparecimento das doenças novas (
cácia maciça . Paradoxalmente, foi o sucesso dos primeiros mé ¬ tias ) e o aumento da frequência de antigas doen as (
cardiopa
ç câ nceres) ,
-
todos curativos fundamentados na microbiologia que provocou afecções cujo aumento da dura çã o média da vida permitiu
a
a substituição progressiva no pensamento médico de um ideal manifestaçã o de seus prazos. Assim, a realiza ção de duas
ambi¬
pessoal de cura das doenças por um ideal social de prevençã o ções da velha medicina - curar as doenç as e prolongar
a vida
das doenças. No limite, não era absurdo esperar , para uma po¬ humana - surtiu como efeito direto colocar o m édico diante
pulação dócil às medidas de prevençã o, um estado de sa úde co ¬ de doentes sujeitos a uma nova ansiedade de cura poss
ível ou
letiva de modo que nenhum indivíduo se encontrasse na situa ¬ impossível. O câ ncer substituiu a tuberculose. Se o
aumento da
ção de ser tratado e curado por tal doen ça declarada . E, de fato, duraçã o da vida vem confirmar a fragilidade do organismo e a
-
atualmente admite se não haver, nas sociedades ocidentais, irreversibilidade de sua degradação, se a história da medicina
quase nenhum caso de var íola a ser tratado, uma vez que a vaci ¬ tem como efeito abrir a hist ória dos homens a novas
doenças,
nação antivariólica, sistematicamente praticada , obteve o re ¬ entã o o que é a cura ? Um mito ?
sultado de se tornar , doravante , in ú til. A imagem do médico
h á bil e atento de quem os doentes individuais esperam a cura ** *
est á sendo, pouco a pouco , ocultada por aquela de um agente
Embora os m édicos , de um modo geral , sejam críticos a res ¬
executando as instru ções de um aparelho de Estado, encarrega ¬
peito da noção popular de cura, não é proibido tentar sua legiti
do de velar pelo respeito do direito à sa úde reivindicado por ¬
ma ção. Nossa língua conhece curar , verbo ativo, e curar, verbo
cada cidadão, em réplica aos deveres que a coletividade declara
intransitivo, como florir ou triunfar. Popularmente, curar é
assumir para o bem de todos.
reencontrar um bem comprometido ou perdido, a sa ú de. Ape ¬
O progresso da higiene pú blica e o desenvolvimento da me ¬ sar das implicações sociais e políticas desse conceito, devido
ao
dicina preventiva foram sustentados pelos sucessos espetacula ¬ fato recente de que a sa úde é, por WZés , percebida como um de ¬
res da quimioterapia fundada , nos primeiros anos do século XX, ver a ser observado do ponto de vista dos poderes sociomédicos,
pelas pesquisas de Paul Ehrlich pautadas na imita çã o artificial a sa úde continuou sendo, na realidade, o estado orgâ nico
do
do processo natural de imunidade. Essa talvez seja a invenção qual um indivíduo se considera juiz. Mesmo que os médicos es ¬
mais revolucioná ria na história da terapê utica. O antibiótico tejam fundamentados para achar ilusória a sa úde definid
a
não apenas forneceu um meio de cura, como também transfor¬ como vida no silê ncio dos órgãos (René Leriche) , lembrando
mou o conceito de cura ao transformar a esperan ça de vida. A que o silê ncio pode mascarar uma lesão que já tenha alcançado
avaliação estatística das performances terapê uticas introduziu um está gio irremedi á vel , ocorre que se portar bem , quer dizer,
na aprecia çã o da cura uma medida objetiva de sua realidade. -
comportar se bem nas situa ções as quais se deve enfrentar, é
58 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
59
um critério a ser conservado.12 A sa úde é a condição a priori la ¬ recusam reconhecer que se fez por eles tudo o que lhes era
devi
tente, vivida em um sentido propulsivo, de toda atividade esco¬ do. É que a sa úde e a cura resultam de um gênero de discurso ¬
di
lhida ou imposta . Esse a priori pode ser decomposto, a posteriori , ferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulário e a¬
pela ciência do fisiologista em uma pluralidade de constantes, sintaxe nos tratados de medicina e nas conferências de cl
das quais as doenças representam uma distâ ncia superior a uma j ínica.
norma determinada por uma mediana. Mas, ao substituir a aná ¬ Quando, em 1865, Villemin expôs as provas, que
acreditava
lise objetiva de suas condições de possibilidade, de seu poder de sólidas, da contagiosidade da tuberculose, estava longe
de con¬
seguir a adesão de seus contemporâ neos, dos quais
“ fazer face a", pelo todo, vivido peio sujeito vivo, substitui se - muitos pen¬
savam, como Bricheteau, fazendo alusã o às Prescrições draco
um modo de expressão ao qual se recusa a dignidade de língua ¬
nianas em vigor desde o século XVIII, na. Espanha e
por uma língua . O médico n ã o está longe de pensar que sua no reino
das Duas Sicílias, que a id éia de cot tá gio só pôde nascei ua ima ¬
-
ciê ncia é uma língua bem feita , ao passo que o paciente se ex ¬
ginaçã o dos habitantes do sul.13 De algum modo, os m
pressa com jargões. Mas como no início o mé dico foi homem, édicos in ¬
tegraram à sua concepção da doença uma reação popular
na idade em que era incerto saber se ele se tornaria Deus, mesa de pa ¬
vor e de rejeição exatamente quando lutavam contra ela.
ou bacia , ele conserva algumas lembranças do bloco original no É que
entre a tuberculose humana e a tuberculose bovina
qual ele foi .esculpido e reteve, a princípio, alguns elementos do ou aviária,
jargão desvalorizado por sua língua de cientista. Ocorre lhe , - sobre cuja identidade ou diferença se discutia ainda, a medicina
constatava a presença ativa de um determinante que é
por vezes, consentir em compreender que a demanda de seus preciso
nomear, na falta de outro melhor, como psicológico.14 A tuber
-
clientes possa restringir se a conservar uma certa qualidade da
culose era objeto de terror, como a lepra o fora na Idade Média.
¬
disposi çã o para viver , ou a encontrar seu equivalente, sem se
Nomear a doença agravava os sintomas .15 Pois a doença acarre
preocupar em saber se os testes objetivos de cura sã o positivos e
concordantes. Inversamente, pode acontecer que o médico
-
13Sobre a
não compreenda que tal paciente, ao final do que foi prescrito, história da tuberculose, cf. M. Piery e J . Roshem, Histoire de la tuber
culose , Paris, Doin, 1931; Ch. Coury, La tuberculose au cours des âges, -
executado e obtido, no que concerne ao desaparecimento de nes, Lepetit , 1972 . .
Sures -
uma infecção ou de uma disfunção, não se considere livre da 14J.- B. Pontalis
reconhece a ambiguidade do termo psicologia , designando ao
-
doen ça , recuse dizer se curado e não se comporte como tal. Em
suma , do ponto de vista da prá tica médica, fortalecida por sua
mesmo tempo a disciplina e seu objeto, como se a representa ção
constitutiva do sujeito representante ( Entre le rêve et la douleur,
de si já fosse
cientificidade e por sua tecnologia , muitos doentes se satisfa ¬ mard , 1977, p. 135) .
Paris, Galli-
15Cf .
zem menos do que se considera como seu dever, e alguns outros Journal de Marie Bashkirtseff: “ Potain nunca quis direr que os pulmões
eram atingidos; em semelhantes casos, ele empregava as fórmulas
comuns, os
brônquios, a bronquite etc. É melhor saber em termos exatos... então eu
sou
tísico ? Há apenas dois ou três anos. Em suma , n ã o est
12 para as diferentes concepções e avaliações da cura , cf. J . Sarano, La guéri - á t ã o avanç ado para que
-
eu morra disso, só que é bastante incómodo” (quinta feira, 28 de dezembro
-
son , PUF, Col. “ Que sais jc ? ". 1882 ). Note-se que foi em 1S82 que Koch identificou o bacilo tuberculoso
de
.
6ÒÍ Georges Canguilhem
:§ Escritos sobre a medicina
61
taya tanto a exclusã o social quanto a consumpçã o orgâ nica.
vamente física ou fisiológica. Não há pior ilus
-
Durante muito tempo, estava se doente por se ter sido curado
de uma tal doença , uma vez que se percebia em torno de si uma
ão de subjetivida ¬
de profissional, por parte dos médicos, do que sua
confianç
fundamentos estritamente objetivos de seus conselhos e a nos
suspeita de nocividade remanente. Embora controlada por gestos
terapê uticos , desprezando ou esquecendo autoju
meio de testes de laborató rio, a cura nã o se realizava na reinte ¬ te a rela ção ativa, positiva ou negativa , que
stificadamen
não pode deixar de
-
gra çã o à exist ência , devido mais à ang ústia da segrega çã o do
se estabelecer entre médico e doente. Essa rela
que à redu ção das capacidades vitais . Essa forma de cura que se ção era conside¬
rada , na idade positivista da medicina , como um
poderia dizer patológica , mais rara nos dias de hoje no caso da resíduo arcai¬
co de magia ou de fetichismo. A réà tualizaçã o
-
tuberculose, tornou se frequente no caso do câ ncer, em razã o deve ser creditada à psicaná lise, e muitos estudo
dessa relação
s foram
de uma semelhante rea çã o de angústia diante da idéia que a en ¬ de modo a ser ú til retornar a isso. 17 Mas pode parecer feitos
tourage da pessoa doente costuma fazer a respeito dessa doen ç a
que n ã o perdoa . Mas, ao lado dos doentes que não conseguem -
interrogarmo nos sobre o lugar que a atençã o
um m é dico particular a um doente particular
urgente
concedida por
-
assumir sua cura , comportar se como curados e decidir se a en¬
frentar uma vez mais, embora de modo diferente de outrora , o
- pode ainda pre ¬
tender ter, em um espa ço médico cada vez mais ocupado,
na es ¬
cala das nações ditas desenvolvidas, pelos equipam
questionamento da existência , há doentes que encontram em entos e re ¬
gulamentos sanitá rios e pela multiplica o
sua doença um bem ao seu alcance e que recusam a cura. Nessa çã programada das
“ m áquinas de curar ” . 18
resistência passiva à intervenção médica , o doente busca uma
espécie de compensação à sua condição diminuída , dominada. ***
No que concerne à relação terapê utica , ele garante para si a ini ¬ “ As coisas chegaram ao ponto em que meu
ciativa.16 cé rebro nã o po ¬
dia mais suportar as preocupações e os tormentos que lhe
esta ¬
. Essa revocação, sem originalidade, de configurações patoló ¬ vam sendo infligidos. Ele dizia: ‘Renuncio; mas se aqui
há al ¬
gicas nas quais n ã o é possível cogitar a cura no sentido tradicio¬ guém que insista na minha conservação, que ele me
alivie de
nal de final e recomeço, proíbe que se conceba a rela ção do mé ¬ um pedacinho do meu fardo, e continuaremos ainda por um
dico para com o doente como a de um técnico competente com tempo.’ Foi nesse momerito'que S' pulmao se apresentou ; apa ¬
um mecanismo perturbado. E, no entanto, a forma ção dos mé ¬ rentemente, ele n ã o tinha grande coisa a perder. Esses debates
dicos nas faculdades os prepara muito mal para que admitam entre o cé rebro e o pulmão, que se desenrolavam sem que eu o
que a cura não se determina por intervenções de ordem exclusi-
17Cf. .
J - P. Valabrega, LM relation thé rapeutique , malade et médecin, Paris, Fiam-
l óAqui não se trata do caso em que a complacência na situação de doença marion, 1962 .
18Les machines à gué rir ( aux origines de 1' hô pital modeme ) , por M. Foucault, B.
tem por finalidade retardar o retorno obrigatório do doente a uma atividade
profissional ao final de uma licença médica. -
Fortier, B. Barret Kriegel , A. Thalamy, F. Beguin, Paris, Institut de 1’ Envi
ronnement, 1976.
-
62 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina
•
63
soubesse, devem ter sido algo medonho," E ainda: “ Tenho hoje que doença e cura estão inscritas nos limites e
nos poderes das
com a tuberculose a mesma relação que uma criança com as regulações biológicas ? Mas as normalidades biológicas
só têm
saias de sua mãe às quais se agarra [...]. Busco assiduamente ex¬ como garantia seu acontecimento, a nã o ser que se
lhes d ê um
fundamento metafísico no qual nã o é proibido ver se apenas a
plicar a doença, pois, afinal, não fui eu que corri atrás dela. Por
vezes, tenho a impressã o de que meu cérebro e meus pulmões consagra ção do pr óprio acontecimento. É preciso -
que a vida
teriam concluído um pacto à minha revelia.” 19 Nem todos os seja um dado para que se possa acreditar sua possibilidad
e ne ¬
doentes, nem todos os tuberculosos, em particular, sã o Kafka. cessá ria .
Contudo, quem não reconhece nas confidências do autor do Os organismos dos seres vivos sã o capazes de alterações
Processo a verdade dessas situações de abandono, de origem psi ¬ de
estrutura ou de perturbações de funções que,
cossocial , geradoras do esgotamento orgâ nico propício à eclo¬ mesmo que não
são de uma doença infecciosa ? Mais certamente ainda, quando -
cheguem a destruí los, podem comprometer a execu
ção de ta ¬
refas impostas pela hereditariedade específica. Mas a tarefa
se trata de afecções relacionadas com o sistema neuroendócri - -
pecífica do homem revelou se como a invenção v. a
renovação
es ¬
no, desde a fadiga crónica até a úlcera gastroduodenal , e, de um de tarefas , cujo exercício requer ao mesmo tempo aprendiza
modo geral, das doenças consideradas de adapta ção. gem e iniciativa em um meio modificado pelos pró
¬
prios resulta ¬
Pelo fato de essas situa ções de afliçã o serem, com frequê n ¬ dos desse exercício. As doenças do homem nã o sã o somente
li¬
cia , manifestações de bloqueios no nível das estruturas sociais mitações de seu poder físico, são dramas de sua histó
ria. A vida
de comunica çã o, o estudo de seus remédios eventuais nã o de ¬ -
humana é uma existência , um ser aí para um devir nã o preor
denacio, na obsessão de seu fim. Portanto, o homem é aberto à -
correria apenas de disciplinas de ordem sociológica ? E qual é,
entã o, o tipo de sociedade provido de uma organiza ção sanitá ¬ doença n ã o por uma condenação ou por uma sina , mas por sua
ria que explore a informação mais sofisticada sobre a distribui¬ simples presença no mundo. Sob esse aspecto, a sa úde não
é de
ção e as correlações dos fatores de doenças que, algum dia , dis¬ modo algum uma exigência de ordem económica a ser valoriza
¬
pensará o médico da tarefa , talvez desesperada, de ter de sus ¬ da no enquadramento de uma legisla çã o , ela é a unidade espon
¬
tentar indivíduos em situação de aflição, em sua luta ansiosa t â nea das condições de exercício-4a vida . Esse exercício,
no
por uma cura aleatória ? qual se fundamentam todos os outros exercícios, funda
como
eles e conté m como eles o risco de insucesso, risco do qual ne ¬
E por que, enfim, empenhar-se em dissimular para as pessoas nhum status de vida socialmente normalizada pode preservar o
que é normal ficar doente , uma vez que se está vivo, que é nor ¬
-
mal curar se da doença , com ou sem o recurso da medicina , -
indivíduo. O seguro doença, inventado e institucionalizado
pelas sociedades industriais, encontra sua justificativa no pro
¬
jeto de propiciar ao homem, certo da compensação de deficits
econó micos eventuais, confiança e audá cia na aceitação de ta ¬
19Essas duas citações foram tomadas emprestado de K. Wagenbach, Kafka
refas que comportam sempre, em algum grau, um risco para a
- -
par lui inême , Paris, Seuil , 1968, p. 137 138.
64 Georges Cangutlhem Escritos sobre a medicina 65
-
Quando meu amigo Pierre Maxime Schuhl me pediu para
fazer uma conferência nestas reuniões da Aliança Israelita, acei¬
terior. [
tei de muito bom grado e com muito prazer. É uma honra para
Um dos ú ltimos textos de F. Scott Fitzgerald, La F êlure , co¬ mim. Lamento simplesmente ter posto esta condiçã o, da qual
meça com as seguintes palavras: “ Toda vida é, bem entendido, peço que me desculpem, que faz com que nos rc mamos em
um processo de demoliçã o...” Algumas linhas adiante, o autor j uma hora inteiramente insólita.
acrescenta: “ A marca de uma inteligência de primeiro plano é
Escolhi tratar de um problema pelo qual, eu lhes asseguro,
que ela é capaz de se fixar em duas idéias contraditórias, sem
senhores, nã o esgotei meu interesse, já que ele constitui uma
- -
por isso perder a possibilidade de funcionar. Dever se ia, por
exemplo, poder compreendei: que as coisas sã o sem esperança -
questã o para mim mesmo. Escolhi, contudo, falar lhes de um
assunto que nã o é preocupante pelo fato de ele me preocupar,
-
e, todavia , estar decidido a mud á las.” 27 mas que me preocupa porque o considero fundamentalmente
Aprender a curar é aprender a conhecer a contradição entre preocupante. Sob o título um tanto demasiado técnico “ O
a esperança de um dia e o fracasso, no final , sem dizer n ã o à es ¬
perança de um dia . Inteligê ncia ou simplicidade ?
problema das regula ções no orgatúsmo e na sociedade” , tra
-
ta se, no fundo, de nada menos do que um problema muito
-
antigo, sempre aberto, o das rela ções entre a vida do organis ¬
mo e a vida de uma sociedade. A assimila ção usual, ora cientí¬
fica , ora vulgar, da sociedade a um organismo é mais do que
uma met á fora ? Será que essa assimilaçã o recobre algum pa ¬
rentesco substancial ?
Essa assimilação permanente da sociedade ao organismo Aqui, cabe observar que sempre houve troca de bons e
maus
procedimentos entre a sociologia e a biologia. Só a
provém de uma tentação que é, em geral, duplicada com a ten¬ história , em
alguns casos, nos permite esclarecer a origem de alguns
ta ção inversa , a de assimilar o organismo a uma sociedade. concei¬
tos aos quais uma certa equivocidade em biologia e
em sociolo¬
-
; Um dos pensadores gregos pelos quais P. M. Schuhl se inte¬
ressou, em suas primeiras etapas da filosofia biológica, Alcmeão
gia dá uma aparê ncia de terem uma validade equival
um e no outro domínios, de significações e de usos.
ente, em
de Crotona, interpretava o desequilíbrio causado pela doença, Por exemplo, há um conceito fundamental em política e em
o dist ú rbio patológico, como uma sediçã o, ou seja , para explicar
economia, o conceito de crise. Ora, esse é um conceito de
p natureza da doença , ele transportava para o organismo um ori¬
gem mé dica , é o conceito de uma mudança advinda
jconceito de origem sociológica e política. no curso de
uma doença , anunciada por certos sintomas , e na qual se deci¬
dirá efetivamente a vida do paciente.
^ Quando os economistas liberais e os socialistas dos séculos
XVIII e XIX chamaram a atenção para o fenômeno social da di¬
vis ão do trabalho e seus efeitos, efeitos felizes para alguns, de¬
Eu lhes lembrarei que o termo constituição, que também faz
parte desses termos perfeitamente equívocos, é válido
tanto no
test á veis para outros, os fisiologistas acharam muito natural fa ¬ terreno biológico quanto no terreno social. Se buscar
lar de divisão do trabalho no que concerne às células, aos ór ¬ mos a pas¬
sagem de um terreno ao outro, do terreno biológico ao terreno
gãos ou aos aparelhos que compõem um corpo vivo. social, não a encontraremos, ponmms longe que nos remonte¬
mos. Esse termo sempre teve uma ambiguidade, cma equivoci¬
Na segunda metade do século XIX, no momento da difusão
dade, ele vale tanto para um domínio de explicação quanto
da teoria celular, Claude Bernard falava da “ vida social” das cé¬
para o outro.
lulas. Ele se perguntava se as células, em sociedade, têm a mes ¬
ma vida que elas teriam em liberdade, o que equivalia a formu ¬ Por conseguinte, lembro todos esses fatos apenas para mos¬
lar , por antecipação, o problema dos resultados de uma cultura trar que , quando se assimila a sociedade a um organismo, não
de células. Será que , quando liberada de todas as rela ções que é somente em funçã o de uma teoria sociológica bastante cur¬
manté m com as outras em um organismo, a célula se comporta ¬ ta , cujos dias foram rapidamente contados , no final do século
rá da mesma maneira que em sociedade ? XIX. Essa teoria é chamada organicismo. O fato de essa teoria
74 Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 75
É claro que o problema da assimila çã o da sociedade a um or¬ remédios. O efeito esperado desses rem édios é a restauração do
ganismo só interessa à medida que se espera dele alguma visã o organismo em seu estado de organismo são. Em suma , aqui, fica
robre a estrutura de uma sociedade, sobre seu funcionamento, claro para todo mundo qual é o ideal do organismo: é o próprio
poré m mais ainda sobre as reformas a serem operadas quando a -
organismo. Pode se hesitar sobre o diagnóstico e a terapê utica
sociedade em questão é afetada por dist úrbios graves. Em ou ¬ de uma afecção do fígado ou de um&doença dos olhos, mas nin¬
tros termos, o que domina a assimila ção do organismo a uma so¬ guém hesita sobre o que se deve esperar da terapêutica. De¬
ciedade é a idéia da medicação social, a idéia da terapê utica so¬ ve-se esperar do fígado que ele secrete a bile, e dos olhos que
cial, a id éia de remédios para os males sociais. eles tenham uma acuidade visual satisfatória . Em suma , na or¬
dem do organismo é comum ver todo mundo discutir, se assim
Ora , cabe observar que, sob a relação entre a sa úde e a doen ¬ posso dizer, sobre a natureza do mal, mas ningué m discute sobre
ça , portanto sob a rela çã o da reparação dos dist ú rbios orgâ nicos o ideal do bem.
ou sociais, as relações entre o mal e o remédio são radicalmente
diferentes no que concerne a um organismo e no que concerne Mas a existência das sociedades, .de suas desordens, de seus.
a uma sociedade. distú rbios faz aparecer uma relação completamente diferente
B , ' 76 Georges Canguilhem S Escritos sobre a medicina 77
a arbitrariedade da polícia são males sociais sobre os quais a i um todo, e ele só poder viver como um todo. Isso se tomou pos¬
atençã o coletiva incide (é claro, para os homens de boa -fé e de sível pela existência no organismo de um conjunto de dispositi¬
boa vontade ) , e sobre os quais o sentimento coletivo é fácil. vos ou de mecanismos de regulação, cujo efeito consiste preci¬
Em contrapartida, os mesmos homens que concordam sobre o samente na manutenção dessa integridade, na persistência do
mal se dividem quanto ao tema das reformas. O que parece re - ‘ organismo como todo. Essa idéia de regula ção orgânica é um
médio para uns, para outros aparece como um estado pior que j- conceito bastante recente. Mais adiante darei alguns exemplos
o mal, devido ao fato de que , precisamente, a vida de uma so¬ dos tipos principais de regula ção orgâ nica.
ciedade não é inerente a ela pró pria. f
i 1
W.
78 •
Georges Canguilhem Escritos sobre a medicina 79
Essa idéia , que começa com a fisiologia de Claude Bernard , Os estados estáveis do organismo sã o obtidos em todas as
apenas confirma uma velha intuição da medicina hipocrá tica,
ou seja, existe, pelo pró prio fato da vida do organismo, uma es ¬
partes do organismo conservando uniformes , quer dizer, pre
servadas de desvios muito importantes, aquém ou alé m das
- '
pécie de medicação natural ou de compensação natural das le- condições naturais de vida dessas partes, o que chamamos, a
: sões ou dos dist ú rbios aos quais o organismo pode estar exposto. partir de Claude Bernard , o meio interior. Tal como a noçã o
Essa velha id éia hipocrática da força curativa da natureza não de meio serve aos biólogos do final do século XVIII e do início
recebeu senão confirmações por parte da fisiologia moderna. do século XIX para explicar as modifica ções e as adapta ções
do organismo e das espécies , assim também essa noçã o de
Um organismo comporta , pelo simples fato de ser um organis
d mo, um sistema de mecanismos de correção e de compensação
- meio interior serve a Claude Bernard para explicar como, no
1 dos desvios ou dos danos sofridos , em relação ao mundo no qual interior do organismo, cada parte se encontra em rela ção com
todas as outras, pela intermedia çã o desse tipo de matriz líqui ¬
ência desses mecanismos de regulação lhe permite levar uma
•íf
-
iele vive, em relação ao seu meio, meio a respeito do qual a exis
da , composta de sais, água , produtos de secreçã o interna , cuja
existência relativamente independente. Para tomar um exem ¬ estabilidade se encontra sob a dependência de dois aparelhos
plo muito simples, citarei o que se chamava outrora os animais que , nos animais superiores, sã o a pedra angular de todas essas
de sangue frio e os animais de sangue quente , hoje chamados, opera ções: o sistema nervoso e o sistema das gl ândulas de se ¬
de modo mais científico, poiquilotermos e homeotermos. Nos creção interna ou glândulas endócrinas. Claude Bernard teve
animais de sangue frio, não há sistema de regulação de tempe ¬ a originalidade de mostrar a existência de um meio interior,
ratura , eles são escravos da temperatura do meio; quanto ao ho-
mas teve, alé m disso, a originalidade de mostrar que é o pró¬
meotcrmo, ele tem um sistema de regulação que lhe permite
prio organismo quem produz esse meio interior . Insisto, aqui,
compensar os desvios, manter uma temperatura constante , in ¬ sobre o fato de que a regulação do organismo é garantida por
dependentemente das solicitações do meio. aparelhos especiais que sã o o sistema nervoso e o sistema en -
dócríno. As regulações pelas quais Claude Bernard se interes ¬
O pró prio organismo, pelo simples fato de sua existê ncia , sara s ã o regula ções fisiológicas.^Porexemplo, a regula ção dos
resolve uma espécie d é contradição entre a estabilidade e a movimentos respiratórios sob o efeito da taxa de ácido carbó ¬
modificaçã o. A expressã o desse fato original requer termos nico que está contida no meio interior, ou então a regula çã o
cuja significação é ao mesmo tempo fisiológica e moral . Há , da elimina çã o da á gua e dos sais que anula a varia çã o de pres¬
em todo organismo, uma modera çã o congé nita , um controle sã o osmótica nos líquidos internos ; a termorregulaçã o, ou
congé nito, um equilíbrio congé nito. É a existê ncia dessa mo ¬ seja , a regula çã o do calor animal, ou ainda a regulaçã o dos
dera çã o, desse controle, desse equil íbrio que chamamos, em desvios da alimenta çã o azotada pela manutenção da lei do
termos cient íficos , n partir do í isiologista americano Cannon , equil íbrio azotado.
a “ homeostase ” .
80 Georges Canguilhem ft Escritos sobre a medicina 81
-
A essas pesquisas de Claude Bernard juntaram se pesquisas
de dois outros tipos: as que concernem ao desenvolvimento
l Dè fato, qual era a idéia antiga e pagã de sabedoria ?
embrionário e as que concernem à regeneraçã o. Passarei rapidamente sobre essa questão, para não cair sob o
golpe das críticas de meu amigo Schuhl. Direi que a idéia da sa ¬
Os embriologistas descobriram que, no ovo fecundado, a par
tir desse ovo fecundado, no decorrer da vida embrioná ria, exis ¬
- bedoria era essencialmente a id éia da medida, do controle e do
domínio na condução da vida. Era o que preservava o homem
te uma espécie de controle de uma totalidade sobre as partes do domínio da desmedida, tenta ção permanente de desvio, de
que faz com que, sejam quais forem as variações, se assim posso aberra ção e de desdém pelo limite.
dizer, de substâ ncia ovular, o ser vivo conserva ou manté m a in ¬
tegridade de uma forma específica e que se pode, por exémplo , É certo que, para muitos pensadores gregos, os mais impor¬
com a metade de um ovo ou, pelo contrá rio, com dois ovos liga ¬ tantes, a idéia do universo , a idéia do Tudo, eia a idé ia de un .
dos, obter um só indivíduo do qual todos os caracteres específi ¬ organismo sã o, ou seja , um organismo no qual todas as partes
cos sã o idênticos à queles que se obteria pelo desenvolvimento concordam umas com as outras, estão presentes umas nas ou ¬
de um ovo normal, salvo algumas diferenças quantitativas.
I
tras e no qual as rela ções funcionais entre essas partes permane
cem invariáveis. No interior desse Todo, no interior dessa or ¬
-
Aqui , a regula çã o do que chamamos os organizadores espe ¬ dem, que é ao mesmo tempo vida , cada ser, inclusive o homem,
cíficos se exerce de modo tal que, em relaçã o a esses danos que tem um lugar. Nesse lugar, ele deve trabalhar em coopera çã o
o ovo pode sofrer da parte dos elementos exteriores, a forma es ¬ com o conjunto dos outros seres; deve respeitar as relações fun¬
mantida.
-
pecífica a ser obtida encontra se constantemente preservada e cionais de sujeiçã o às exigências do Todo.
-
seu aparelho específico de auto regulação. Ao dizer “ o estado
,
-
social espontâ nea, quer dizer, não há auto regulaçã o social, de
que a sociedade nã o é um organismo e que, por conseguinte,
normal” , não quis dizer o ideal da vida humana. O ideal da vida seu estado normal é talvez a desordem e a crise, é a necessidade
humana nã o é nem a desordem nem a crise. Mas é precisamen¬ periódica do herói experimentada pelas sociedades.
te por isso que a regula ção suprema na vida social , que é a justi ¬
ça , mesmo que haja na sociedade instituições de justiça , não fi¬ Entre a sabedoria e o heroísmo há a impenetrabilidade.
gura sob a forma de um aparelho que seria produzido pela pró¬ Onde há sabedoria , nã o se precisa do heroísmo, e quando o he¬
pria sociedade. roísmo aparece, é porque nã o houve sabedoria. Em outros ter ¬
|
[e atenta. Eu me pergunto, precisamente, se a distinçã o e a opo
' |ção que ele faz entre a sabedoria e o heroísmo nã o vão ao en ¬
- çada. Neste momento, há o que Bergson chama “ o apelo ao he¬
rói ” , e o herói é aquele que, uma vez que os sá bios não resolve ¬
contro dessa idéia de que a justiça não pode ser uma instituiçã o ram o problema, não evitaram que o problema se apresentasse,
social, de que a justiça não é uma regulação inerente à socieda ¬ vai encontrar, vai inventar uma solução. Naturalmente, ele só
de, a justiça é outra coisa completamente diferente. J á em Pla ¬ pode inventar a solução em situa ções extremas, só pode inven¬
tão, a justiça nã o era inerente a uma parte do corpo social , era a
forma do todo. Se a justiça, que é a forma suprema da regulação
-
tá la no perigo.
da sociedade humana, não é congénita à própria sociedade, ela Essa é a razão pela qual acredito haver uma ligação essencial
n ã o é exercida por uma instituição situada no mesmo nível que entre a idéia de que a justiça não é um aparelho social e a idéia
as outras instituições. Talvez isso nos ajude a compreender um de que, até o momento, rierihumsTsociedade pode sobreviver
fato: não há sabedoria social tal como há sabedoria orgânica. senã o por meio das crises e graças a esses seres excepcionais que
se chamam her óis.
-
N ão é necessá rio tornar se clarividente pelo fato de se ter nas ¬
cido em uma certa espécie que tem olhos , que só pode mo¬ Nessas condições, caso eu não tenha lhes provado, caso nã o
-
ver se , só pode viver sob a condiçã o de se mover na luz (à dife ¬
rença de uma planta que vive crescendo na luz) . Uma vez que
-
tenha sido bem sucedido - e estou bem longe disso - nesse es¬
forço ao qual muito generosamente fazia alusão o presidente
temos olhos, vemos , mas não somos sá bios do mesmo modo dos senhores, se nã o consegui lhes provar (e, alé m do mais, nes ¬
como vemos com seus olhos. N ão há uma sabedoria social tal sas matérias não há provas) que a sociedade não é um organis ¬
como há uma sabedoria do corpo. Sá bio, é preciso tomar-se, e mo, que n ão se deve deixar dizer que ela pode assemelhar se a-
88 Georges Canguilhem