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A DEGOLA

de Paula Chagas

CENA I

(Um homem com cerca de trinta anos e uma mulher com cerca de quarenta estão
em uma sala confortável, repleta de estantes com livros).

Mulher- Eu não tenho um revólver... e não sei falar inglês!

(Silêncio. Olham-se. Silêncio).

Mulher- Você não vai falar nada?

(Silêncio).

Homem- Porque o inglês agora?!

Mulher- Quer dizer que o revólver você entende?

(Silêncio).

Homem- Responde!

Mulher- Ué, é tão claro, são sinônimos!

(Silêncio).

Homem- Revólver e silêncio são sinônimos?

Mulher- Silêncio? Que silêncio?

Homem- Ah! Você entendeu!

Mulher- Tá. Você quer saber porque revólver e inglês são sinônimos?

Homem- (Irônico).É. Exatamente nisso que eu estou SUPER interessado!

(Silêncio).

Homem- (Desistindo). Olha, você fala ou não fala o que você quiser, tá bom? Eu

aprendi há muito tempo que não adianta discutir com você. OK?

(Silêncio).

Mulher- Então você não quer mais ouvir a minha explicação?

Homem- Que explicação?

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Mulher- Que explicação que pode ser? Do sinônimo!

(Homem dá de ombros).

Mulher- É porque hoje em dia para você conseguir alguma coisa de fato tem que

ter um revólver ou saber falar inglês, sem isso não se vai a lugar nenhum nesse mundo

de meu deus.

Homem- Tem outras alternativas para se conseguir algo.

Mulher- Quais?

Homem- Seqüestrar um avião, por exemplo.

Mulher- (Ri a contra gosto). OK. Então, revólver, inglês e seqüestro de aviões são

sinônimos.

Homem- Isso.

(Olham-se).

Mulher- (Mudando de assunto com a maior desfaçatez). E você?

Homem- (Irritado e incrédulo). Eu o que?

Mulher- O inglês, o revólver... Quando eu te conheci, revólver você tinha, com

certeza, tinha!

Homem- Como você pode saber? Eu, naquela época podia seqüestrar aviões.

Afinal, são...

Mulher- Sinônimos...

Homem- É. Exatamente.

Mulher- Difícil...

Homem- Mais fácil era ter um revólver?

(Silêncio).

Mulher- Mais provável...

Homem- Eu optei pelo inglês!

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Mulher- Muito bem, muito bem! Com o inglês na ponta da língua é mais fácil

adquirir um revólver ou seqüestrar um avião, bom começo.

(Silêncio).

Mulher- Para que você me chamou aqui?

Homem- Eu te chamei aqui?

Mulher- Você sabia que eu viria. Que eu teria que vir!

Homem- Digamos que eu desconfiava que isso pudesse acontecer...

Mulher- E aí?

Homem- E aí o que?

Mulher- Você não está com medo?

Homem- Medo de que?

Mulher- Sei lá!

Homem- Medo de você?

Mulher- De mim exatamente não...

Homem- Mas do que você pode fazer comigo?

(Mulher não responde. Chega perto dele, muito perto, perigosamente perto.

Olham-se, ele está progressivamente mais nervoso. Homem afasta-se e pega um cigarro

em cima de uma mesa).

Mulher- Você fuma agora?

Homem- Só de vez em quando!

Mulher- Sei. Só quando fica nervoso?

Homem- Não. Eu não estou nervoso. Professor. Sabe como é, sala de professor. A

gente sempre acaba fumando muito.

Mulher- Você virou professor?

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Homem- Maiá...Eu já tenho mais idade do que você tinha quando eu te conheci.

E por aqui não tem nada do que sempre mediou a nossa relação.

Mulher- E daí?

Homem- E daí que sem subterfúgios, ok?

Mulher- Tem certeza?

Homem- Certeza do que?

Mulher- Certeza de que aqui não tem nada do que mediava a nossa relação?

Homem- Você não vai começar a querer foder a minha cabeça, certo? Há muito

tempo deixei de ser aquele moleque que você manipulava!

Mulher-Eu te manipulava, tem certeza?

Homem-(Sarcástico. Readquirindo o controle da situação). Certamente não tanto

quanto você gostaria. (Estão novamente perigosamente perto. Ela parece gostar e

esperar algo mais. Ele se afasta).

Homem- Eu preparei umas coisinhas caso você realmente aparecesse. Coisinhas

que eu lembro bem que você gostava!

Mulher- É?

Homem-É! (Vai até um bar que há em um canto da sala. Traz uma garrafa de

Whisky , cigarros e põe uma música. Vai até ela, lhe dá a garrafa e senta. Fica fumando

seu cigarro e bebendo. Mulher vai até ele. Passa seu corpo por cima dele e pega um

cigarro em cima da mesa. Olham-se muito de perto. Ele levanta e anda pela sala. Ela

passa por ele, tem movimentos lascivos. Vai até o som e troca a música. Ele estremece.

Ela vai até ele. Ele vai até o som e deixa a música alta, muito alta. Ela vai até ele

novamente. Ficam perto, perigosamente perto. Black out).

CENA II

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(Homem com vinte e dois anos e mulher com vinte e nove estão em uma sala

fechada, toda preta, onde só há uma mesa, uma cadeira e uma janela totalmente

vedada).

Mulher- Tá bom. OK! Você vai para algum lugar, obviamente, e eu não tenho

nada a ver com isso. Eu também não tenho um revólver e não sei falar inglês, então,

acho que não posso te ajudar muito fora daqui!

Homem- Que bom que você acha isso. É quase um milagre você não achar que

pode dar um jeito em tu-do!

(Silêncio).

Homem- Então posso ir agora?

Mulher- Não.

Homem- Por-que não?

Mulher- Por-que eu não que-ro!

Homem- Vo-cê não man-da na mi-nha vi-da!

Mulher- Vo-cê não tem uma vi-da sem mim!

Homem- Te-nho, sem-pre ti-ve e vou com-ti-nuar te-ndo!

Mulher- Não vai, se eu não dei-xar!

(Clima tenso. Ele parece extremamente incomodado e com medo).

Homem- Isso é uma ameaça?!

Mulher- Não. É uma constatação!

Homem- Sua mulherzinha recalcada, cheia de palavras no lugar de sentimentos!

Mulher- Piegas!

Homem- Vai, continua mostrando que eu tenho razão. Vai!

(Chega muito perto dela. Fala em seu ouvido).

Homem- Vai, Maiá!

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(Ela parece se arrepiar toda. Fecha os olhos. Ficam muito perto. Ele se afasta).

Homem- Continua sua lenga lenga didático-pedagógica. Hoje eu estou a fim de te

escutar! (Senta-se e encara-a firmemente).

Mulher- Você sempre esteve! E para provar que está tudo bem e para comemorar

esse alegre e ma-ra-vi-lho-so dia ensolarado (Olha para a janela que está fechada). Olha

só o que eu trouxe. (Dirige-se para uma sacola que está em um canto da sala. Traz uma

garrafa de whisky, cigarros e um rádio).

Homem- Uau! (Olha para a porta, parece não acreditar no que vê). E aí? Isso não

vai dar bode, não? (Enquanto ele fala, ela acende dois cigarros. Dá um para ele. Bebe no

gargalo e passa a garrafa para ele também. Faz tudo com gestos lascivos e

propositadamente excessivos).

Homem- Sua maluca! E se essa porta...

Mulher- Palavras proibidas: porta, fuga, fim, tchau e tudo que for desse mesmo

universo semântico!

Homem- Universo semântico. Lá vem você.

Mulher- Lá venho eu com meu universo semântico embalado para festinha! (Fala

isso em seu ouvido. Sempre com os gestos excessivos. Vai até o rádio e coloca uma

música parecida com a que fechou a cena I).

Homem- Uau! (Olha para a porta). Eles não vão ouvir isso mesmo?

Mulher- E se ouvirem? Esqueceu quem eu sou por aqui?

Homem- Esqueci. Você pode me contar? Vou até sentar para escutar você

melhor. Hoje eu estou a fim de te escutar mesmo, sabia?

Mulher- Sem-pre es-te-ve!

Homem- Não, não. É que eu não tinha mais o que fazer por aqui, sabe?

Mulher- (Sentida). Cínico!

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Homem- Eu só aprendi um pouquinho com você, tia...

Mulher- Que ridículo!

(Silêncio).

Homem- Sabe? Eu não tinha melhor paisagem por essas bandas. Pôster de gostosa

na parede nunca foi meu tesão. Sabe? Nunca gostei de bater uma punhetinha olhando

para essas vagabundas na parede! Nunca gostei de revista de mulher pelada.

Mulher- Ah! Não? E porque acharam um monte delas quando fizeram aquela

famosa revista nos (parece pensar na palavra exata a dizer) quartinhos de vocês, hein?

Homem- Quartinhos? Quartinho? Fala a palavra certa: cela!

(Silêncio).

Homem- (Retomando o assunto). Bom, sabe como é... Moleque tem que entrar

na onda, né? Aquela coisa toda. Então eu fazia que nem todo mundo. Mas sempre preferi

a coisa ao vivo, saca? (Fala de novo na sua orelha). Então, era melhor ouvir sua lenga

lenga e poder pensar assim em algo mais concreto à noite, entendeu? Apesar da sua

lenga lenga você é o que tem de melhor por essas bandas!

Mulher- Você não me atinge com essa sua lenga-lenga!

Homem- Por mim está tudo ok! Estou indo mesmo!

Mulher- Você que pensa!

Homem- O que você quer?

Mulher- Não sei! Não pensei em nada por enquanto!

Homem- Já sei... Quer aquela comidinha, quer?

Mulher- Qual aquela?

Homem- Aquela que você aguarda a sua vidinha inteira. Aquela que você sonha a

sua vidinha inteira! Aquela! Sabe? Hein?

Mulher- (Ri). É? E você acha que você é o meu príncipe encantado?

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Homem- Não. O príncipe encantado deve ser esse aí que botou essa aliança aí no

seu dedo!

Mulher- Eu não uso aliança!

Homem- Não?

Mulher- Não!

Homem- Tá, vou fingir que não vi você tirá-la uma centena de vezes antes das

nossas aulinhas...

(Silêncio).

Mulher- Tão imaginativo, o mocinho...

Homem- Tá. Eu estou indo e não vou mais cair no seu joguinho, não preciso mais

disso! Enfim, se não tem a tal da aliança bem que queria! Queria que eu sei! Queria

aliança, queria príncipe encantado misturado com...

Mulher- Aliche!

Homem- (Sem parecer tê-la ouvido).Boliche, filme no vídeo...

Mulher- Hoje é DVD, meu bem!

Homem- Para mim tanto faz. Por essas bandas quando muito tem é televisão e

sem cabo! Você não quer um príncipe encantado. Quer um sapo louco, verde, azul,

vermelho. De qualquer cor. E sabe que sou euzinho aqui. Mas agora não dá mais. Bé!!!!!

A campainha tocou. Bye, bye!

Mulher- Quem soa a campainha aqui, sou eu! Quem decide o que você é ou deixa

de ser sou eu também!

Homem- É?

Mulher- É!

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Homem- Tá. Então vamos lá. Se eu não sou nem príncipe nem sapo o que eu sou,

então?

(Silêncio)

Homem- Vamos resolver logo tudo isso?

Mulher- Resolver o que?

Homem- Essa pendenga louca aqui! Vem cá, vem com o papai aqui, vem. (Bate

em seu próprio colo) senta aqui, senta, que ele resolve suas neuroses acadêmico-

emocionais, vem!

Mulher- Que ridículo!

Homem- Ótimo, se você me dispensou dessa parte eu fico aliviado!

Mulher- Fica?

Homem- Claro. Estou saindo, nem quero levar lá para fora essa encrenca, meu!

Mulher de trinta, sabe como é, casamento, filho, essa parada toda aí!

Mulher- (Afetada). Para sua informação eu não tenho trinta!

Homem- Sei, tem vinte e nove. Vin-te e no-ve!

Mulher- (Incomodada). Como você sabe a minha idade?

Homem- Eu sei de tudo!

Mulher- Quem sabe de tudo aqui sou eu! Essa é a minha função aqui!

Homem- Sua função é saber de tudo? Então você me parece bem incompetente!

Mulher- Agora chega!

Homem- Ui! Tudo isso por causa da idade, hein? Desencana, você até que está

com tudo em cima para sua idade, viu? Para mim está mais do que bom! Bom, apesar

que sabe como é que é, né? Eu não sou muito exigente mesmo, vai ver que meus

critérios não são dos melhores...

(Tira a garrafa da mão dele e desliga o som).

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Homem- Nossa, acabou a nossa festinha particular, tia?

Mulher- Quem disse que era particular?

Homem- (Um tanto preocupado). E não era?

Mulher- Nada aqui é particular. Nada. Não é nem nunca foi.

(Mulher olha para o alto. Homem parece não entender).

Homem- O que é?

Mulher- O que você acha?

Homem- (Titubeando). Não!

Mulher- (Com olhar de triunfo). Não o que?

Homem- Não pode ser. Não fala que é verdade... (Sobe na cadeira e parece

querer vasculhar cada pedacinho do teto). Você está brincando, não tem nada por aqui.

Mulher- Você acha mesmo?

Homem- Sua...sua...(Chega perto dela e aperta seu braço com força).

Mulher- Me sol-ta.

Homem- (Soltando-a). É. Não vale a pena mesmo. Eu estou indo. Ho-je.

Mulher- Hoje?

Homem- Amanhã. Tanto faz. O que importa é que eu estou indo embora daqui e

indo para longe de você!

(Silêncio).

Mulher- Mas não se engane, não, viu, mocinho, você vai me levar para onde for.

Olha só que engraçado, eu vou de contrabando com você para o resto da sua vida!

Homem- Credo! Sem essa! Você não me ensinou nada, não.

Mulher- Ah! Não? Tem certeza?

Homem- Absoluta. Você não me ensinou nada, não. Eu que aprendi!

(Silêncio. Ela parece um tanto desarmada).

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Homem- Abre a porra dessa porta. Estou de saco cheio de olhar para a sua cara.

De sa-co chei-o!

Mulher- Não!

Homem- E seu eu gritar, espernear! Sei lá... (Parece pensar um minuto). Quebrar

a porra dessa garrafa!

Mulher- Tem certeza? Talvez você não possa beber nunca mais algo desse

quilate!

(Homem olha para o rótulo. Ri. Fica mais calmo).

Homem- É. Você não vale eu quebrar uma jóia rara dessa. (Dá um grande gole). É

como beber ouro. (Senta. Coloca a mesma música que fechou a cena I).

Homem- Hum! (Levanta-se). Vem cá, vem tia, vamos aproveitar esses momentos

finais!

Mulher- Espera. (Vai até o som e deixa a música alta).

(Homem a tira para dançar. Dançam apaixonadamente. A música vai subindo de

volume. Black out).

CENA III

(Mulher com vinte e cinco anos e homem com dezoito estão na mesma sala da

cena anterior. As três cenas são feitas pelos mesmos atores).

Mulher- Eu não tenho um revólver e não sei falar inglês!

(Silêncio).

Homem- E eu estou de saco cheio!

Mulher- Grande novidade!

Homem- Como você pode saber?

Mulher- Saber o que?

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Homem- O que é ou deixa de ser novidade comigo?

Mulher- Vocês são todos iguais!

Homem- Isso não é muito pedagógico, é?

Mulher-Não e daí?

Homem-(Agradavelmente surpreso). Sei lá, você não é o que chamam de... de...

Mulher-Educadora?

Homem-É. Isso aí.

Mulher-Sou.

Homem-E?

Mulher-E? O que?

Homem-E você pode falar assim comigo?

Mulher-E você pode falar assim comigo?

Homem- (Rindo). Até onde eu sei, eu posso fazer o que eu quiser. Vocês é que

têm que se virar com isso!

Mulher- Ah! Quer dizer que você acha que é fácil assim?

Homem- Fácil?

Mulher- É!

Homem- (Olha para os lados). Você está vendo alguma coisa fácil por aqui, tia?

Mulher- Para mim ou para você?

Homem- Para você é que não é, né? Está aqui por que quer!

Mulher- Como eu posso ver alguma coisa que não é para mim? Como é que eu

posso ver alguma coisa que é para você?

Homem- Você quer me confundir? Vocês também são todas iguais. Por isso a

gente que somos todos iguais acabamos aqui dentro, tia!

Mulher- Deve ser bom, né?

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Homem- O que?

Mulher- Ah! Deve ser bom assim ter alguém para culpar por tudo o que acontece

com a gente. Nossa, deve ser bom demais!

Homem- Você está tirando uma onda com a minha cara?

Mulher- Tirar onda com a cara. Eu adoro anotar essas expressões sem sentido que

vocês proferem! (Pega um caderno de anotações. Ele fica bravo e o arranca da sua

mão).

Homem- Ó! Eu não sou nenhum bicho de laboratório não, viu? Não sou mesmo! E

não vou admitir que você fique me tratando que nem um, viu?

Mulher- (Rindo). Muito bem! Dignidade já!

Homem- Que que é isso aí?

Mulher- Nada não. Só um slogan.

Homem- Sei!

(Ela tira um cigarro e começa a fumar).

Homem- Ei! Que putaria é essa?

Mulher- Onde você ta vendo alguma putaria por aqui?

Homem- Você está fumando!

Mulher- Estou!

Homem- Mas pode fumar aqui dentro?

Mulher- Você não!

Homem- Como assim?

Mulher- Ué! A privilegiada aqui sou eu, não é isso que você está falando desde a

hora que começamos a conversar?

Homem- Quem está conversando aqui?

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Mulher- Então, nem conversando a gente está! Eu estou falando sozinha, não é?

Então pronto! Eu falo sozinha, eu fumo sozinha e você é só um... um....

Homem- Um o que, ô?

Mulher- Um...

Homem- Um o que?

Mulher- Um a mais. Sei lá... mais um aí nas estatísticas, mais um desvalido de

meu deus que justifica sua vida nas minhas costas, que quer que eu morra. Que me

odeia, que quer se vingar, etc.. etc.. etc...

Homem- Arranja um cigarro aí para mim?

Mulher- Você não fuma!

Homem- Como é que você sabe o que eu faço ou deixo de fazer?

Mulher- A minha profissão é saber coisas de vocês. Tudo de preferência.

Homem- Então, dona sabe tudo de preferência! Eu resolvi nesse momento

começar a fumar do careta aí!

Mulher- Mas acontece que esse careta aqui que EU estou fumando é meu! E eu

não vou dar nenhum para você!

Homem- Porque? Para não me viciar?!

Mulher- Sinceramente? Não estou nem aí com esse papo! Problema seu! Todo

seu! Só que o privilégio de fumar do careta aqui dentro é meu! E eu não quero dividir

meu privilégio com ninguém! Muito menos com você, que eu nem conheço e que já me

odeia!

Homem- E eu lá te odeio, dona!

Mulher- Odeia!

Homem- Como é que eu vou te odiar, Dona! Nunca nem te vi!

Mulher- Não, mas nem precisa!

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Homem- IH! Que papo mais sem pé nem cabeça!

Mulher- E desde quando papo tem que ter pé ou ter cabeça?! Hein ô?!

(Silêncio).

Homem- Eu não te odeio, não, falou?

Mulher- Não?

Homem- Não!

Mulher- Tem certeza?

Homem- O, mas que saco! Já falei que eu não te odeio, eu nem te conheço!

Mulher- Mas conhece um monte da minha laia, diz a verdade, vai!

Homem- Da sua laia! Você é meio maluca, não é não?

Mulher- Você acha?

Homem- (Olhando fixamente para ela). Isso é um teste?

Mulher- Teste de que?

Homem- Sei lá!

Mulher- Mas desconfia?

Homem- É claro. Tem esse monte de teste psicológico nesses lugares hoje em

dia!

Mulher- É?

Homem- É você que devia saber disso!

Mulher- Eu devia é?

Homem- Ih! Meu Deus do céu! Eu sou um fodido mesmo, viu?

Mulher- Porque essa apreciação tão negativa de você mesmo? Eu poderia saber,

seu moço?

Homem- Tá bom! Tá bom!

Mulher- Tá bom o que, ô?

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Homem- Me disseram que aqui era um lugar bem esquisito, sabe? Que se por um

lado era mais confortável, por outro vocês viviam querendo foder a nossa cabeça!

Mulher- É? E quem te disse isso, posso saber?

Homem- Não. Não pode, não!

Mulher- Então, tá!

Homem- Mas para mim cadeia é tudo igual!

Mulher- É mesmo?

Homem- É!

Mulher- Então não há com que se preocupar, você já sabe tudo o que vai

acontecer aqui, não é mesmo?

Homem- Deus me livre se puder ser pior do que o que eu já passei!

Mulher- Está com medo? Quer que eu te acalme?

Homem- Cala a boca!

Mulher- Olha como você fala comigo!

Homem- Quer que eu fique com medo para você acalmar, fala a verdade!

Mulher- Pretensioso! Muito pretensioso o mocinho!

Homem- E você, então!

Mulher- Eu, pretensiosa? Porque você acha isso?

Homem- Fica aí com esse joguinho como se fosse me seduzir com esse jeitinho

de quem não quer nada! Não falam aí que tem um tal de psicólogo, o cara que inventou

essa baboseira toda e que na verdade era um puta dum sacana que só dizia que tudo era

sexo!

Mulher- Olha só! Você estudava psicologia antes de vir para cá, hein?

Homem- Quer dizer, então que isso é verdade?

Mulher- Verdade? Depende do que você chama de verdade, né?

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Homem- Ih! Lá vem você de novo com papo furado! É verdade ou não?

Mulher- Já sei. Nosso primeiro tópico de estudo vai ser esse!

Homem- Esse qual?

Mulher- Psicologia! Vamos estudar psicologia juntos!

(Silêncio).

Mulher- O que foi, não gostou da minha idéia?

(Silêncio).

Mulher- A gente vai estudar junto várias coisas. É para isso que eu estou aqui.

Você vai ter que ficar comigo um bom tempo, então é bom a gente saber mais o que

cada um de nós gosta!

(Silêncio).

Mulher- Hei! Se você não gostou a gente pode mudar o tópico!

(Silêncio).

Mulher- OK! A hora que você quiser falar, você fala. Enquanto isso eu que não

vou ficar aqui perdendo o meu tempo, falando sozinha! (Pega mais um cigarro, acende,

tira uma garrafa de whisky e um walk man de dentro da sua bolsa. Ele fica com cara de

curioso, mas nada diz. Passa um tempo em que eles alternam olhares com evasivas dela,

que parece entretida com a música que escuta, com a bebida e com o cigarro. Uma hora

ele parece não agüentar de curiosidade).

Homem- Vem cá, você está mesmo bebendo isso aí, hein?

(Silêncio).

Homem- Os cara não falam nada? Isso é tipo uma pegadinha? Caralho! É só

comigo que essas paradas esquisita acontecem! (Grita para ela). Oh! O que que você ta

ouvindo aí?

Mulher- O que?

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Homem- (Gritando). O que que você está ouvindo?

Mulher- (Tirando um dos fones do ouvido). Quer ver o que é? (Fala isso

oferecendo um dos fones para ele. Ele fica com cara de quem não está ligando e anda

pela sala. Ela fica ouvindo a música, pega um livro para ler e continua fumando o

cigarro).

Homem- (Parecendo não acreditar no que vê). E essa aí ainda ganha para fazer

isso! Vê se pode!

Mulher- (Tirando um dos fones do ouvido). Vocês está falando comigo?

Homem- Não. Com a câmera ali na frente!

Mulher- (Assustada). Com o que?

Homem- Ah! Ficou com medo, é? Quer dizer que tem uma câmera por aqui?

Mulher- Não quer dizer nada. Não me enche! (Volta à pose anterior, mas com um

traço de preocupação).

Homem- Nem disfarçar você sabe direito! (Continua procurando a tal da câmera,

mas não acha nada. Senta-se novamente. Ficam um momento em silêncio. Ele a cutuca).

Mulher- O que é?

Homem- O que você está ouvindo aí, hein?

Mulher- Ah! Agora quer saber, é?

Homem- É! E não enche!

Mulher- (Cedendo). Pega aqui um dos fones.

Homem- (Pondo fone no ouvido). Pô. Você é esquisita mesmo, hein? Você engana

os caras aí que é psicóloga, sei lá, socióloga, sei lá essas chatice aí, hein?

Mulher- (Rindo). Porque você está falando isso?

Homem- Como é que você chama?

Mulher- Ah! Depois dessa música eu até mereço ter um nome?

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Homem- Ih! Não começa com as análise babaca não, hein?

Mulher- OK. OK. Meu nome é Maiá!

Homem- (Rindo). Estou falando que você é esquisita. Os cara aí sabe que você

tem esse nome riponga?

Mulher- (Rindo). Você acha que alguém contrata alguém sem saber o nome desse

alguém, ô Mané?

Homem- Ih! Ó a folga, hein?

Mulher- OK. Vamos deixar isso para lá. Pega o fone aí, eu sei que você gosta

dessa música!

Homem- Como é que você sabe?

Mulher- Ih! Agora você me pegou no pulo!

Homem- (Tenso). O que?

Mulher- Relaxa e ouve.

(A música é a mesma que fechou as cenas anteriores. Ela vai subindo de volume

até ficar alta, bem alta. Black out).

CENA IV

(Os dois atores das cenas anteriores começam a falar ainda no escuro).

Homem- Pronto. Voltamos da onde partimos!

Mulher- Pára de ser absurdo!

Homem- Ué, o que tem de absurdo por aqui? Agora é que está tudo no seu lugar

novamente.

Mulher- Marceley!

Homem- Não fala meu nome. Não fa-la esse nome ridículo!

(Luz acende. Mulher está amarrada a uma cadeira).

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Mulher- Para que isso?

Homem- Não sei. Foi você que veio até aqui. É você quem tem que me dizer para

que tudo isso!

(Silêncio).

Homem- Então, aqui não tem teatrinho, não! Vamos de verdade ao ponto. A

prisão sempre mediou a nossa relação, não é mesmo?

(Silêncio).

Homem- (Chegando bem perto dela). Hein?

Mulher- É! Você sabia muito bem que eu vinha! A culpa por eu estar aqui é sua e

você sabe disso! Desse jeito você só piora as coisas para você mesmo!

Homem- (Ele finge não escutar o que ela diz). Tem um escritor aí, pode deixar

que eu não vou citar o nome. Eu lembro de uma professora minha, será que era você?

Ora, ora, devia ser, eu nunca tive outra! Então, ela me dizia sempre: sem citação, se

não a fala soa pedante! Então, sem nomes... Ele dizia que uma relação quando se

estabelece não consegue mais fugir da forma como se originou. A nossa, então, só

funciona com a prisão no meio. Já que você veio até aqui, alguém precisa estar preso.

Como era sempre eu e nunca funcionou direito, quem sabe agora com você presa, as

coisas não melhorem!

Mulher- O que tem aqui para melhorar?

Homem- Sei lá. Agora para piorar é que não tem!

Mulher- Não seja ingênuo, isso não combina com você!

Homem- (Rindo). Tia, você não sabe, não faz a mais vaga idéia do que combina

ou deixa de combinar comigo!

Mulher- Tá, então. Vamos jogar o joguinho aí que você preparou!

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Homem- Você quer que agradeça o tratamento privilegiado que você me deu

como minha e-du-ca-do-ra?

Mulher- Eu não quero nada.

Homem- Sei. Quer que eu te desamarre e só!

Mulher- Não.

Homem- Que mais você quer?

Mulher- Por mim está ótimo!

Homem- Pára de inverter tudo. EU te pus aí, porque eu quis. Eu te tiro daí se eu

quiser e você fica nervosa e triste e apreensiva e com medo!

Mulher- É?

Homem- É!

Mulher- Tem certeza?

Homem- Tenho!

Mulher- (Fazendo uma cara de medo escrachadamente caricata). Então, tá bom!

Essa cara de medo é o suficiente para você?

Homem- Cala a boca!

Mulher- Porque não cala você? Sou eu que estou aqui amarrada!

(Homem fuma um cigarro. Volta até ela).

Homem- Sabe o que eu sempre odiei em você?

(Silêncio).

Homem- A forma como você passa incólume pela vida. Pula para o lado de lá e

volta para o lado de cá. Experimenta tudo, não se vicia em nada. Engravida, aborta com

toda a assepsia que o dinheiro pode comprar. Bebe, tem ressaca, passa, volta à tona.

Entra na cadeia e sai pela porta da frente. Entra na favela por anos e nunca vê sangue.

Você é uma falácia. Fa-lá-ci-a como essas palavras sem sentido que você tanto preza!

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Mulher- Bom tiro, bem na mosca. Essa sou eu. Euzinha da silva. A falácia do ano!

E você?

Homem- Eu? Eu não saio por aí querendo ensinar coisas para os desvalidos de

meu deus.

Mulher- Não. O seu papel é outro... É o do próprio desvalido. Bem mais

confortável, não? Nem precisa agir. Nem precisa fazer nada. É só ser!

(Silêncio).

Homem- Cala a boca, cala a boca, cala a boca!

Mulher- Não interessa, não interessa!

Homem- O que que não interessa?

Mulher- Nada interessa, nada. Você não pode se salvar, não pode se soltar, nunca

vai estar livre, nun-ca!

Homem- Era essa a idéia do grande e inovador sistema prisional juvenil que o

prodígio sentado aí na minha frente ia implantar na nova sociedade brasileira? Um

sistema que nos algema com amarras invisíveis para sempre?

Mulher- O problema é que não sabíamos das contra indicações!

Homem- É? E qual eram?

(Mulher não fala nada, mas olha para si mesma, amarrada à cadeira).

Homem- Mas se foi exatamente para isso que você veio até aqui!

Mulher- Para isso o que? Para ser amarrada?

Homem- Você entendeu!

Mulher- Você e sua mania de dizer que eu entendo tudo!

Homem- Cala a boca. Você entendeu muito bem!

(Silêncio).

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(Homem começa a vasculhar a bolsa dela. Joga coisas no chão. Olha para o teto.

Vasculha a sala. Vai até ela, passa por seu corpo, como se procurasse algo).

Homem- Onde?

Mulher- Onde o que?

Homem- Você sabe!

Mulher- Sei o que?

Homem- Sabe porque eu não quebro a sua cara?

Mulher- Porque eu ia gostar?

Homem- Porque deve ser o que você espera de mim!

Mulher- Não se preocupe, você nunca correspondeu às nossas expectativas!

Sempre se insurgindo contra tudo. Olha no que deu! Eu aqui depois de tantos anos graças

aos seus atos!

Homem- Falou, finalmente falou.

Mulher- O que?

Homem- Nossas!

Mulher- Minhas, nossas, amém!

Homem- Blá, blá, blá!

(Silêncio. Vai até ela, e a desamarra, lentamente, o tempo todo parece querer

tocá-la, mas não o faz).

Mulher- E agora?

Homem- Vai.

Mulher- Você sabe que...

Homem- Sei, que você vai continuar aqui, sei que você, de algum jeito filmou

tudo isso. Aliás, tenho a nítida sensação de que sempre, esses anos todos, sou filmado,

vigiado e catalogado 24 horas por dia. Tenho certeza de que como grande prodígio do

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A DEGOLA

sistema inovador de vocês serei para sempre sua cobaia! E assim eu não quero e não vou

continuar vivendo. Vai, a deixa é sua agora! Vamos acabar logo com essa lenga lenga!

Mulher- Então, para que você...

Homem- Para que eu fiz isso?

(Mulher vai até o som, coloca a mesma música que fechou as outras cenas e o

chama).

Mulher- Vem!

(Dançam por alguns momentos. Ele se afasta).

Homem- Chega!

Mulher- Quem determina a hora de parar ou de continuar tudo por aqui sou!

Homem- Como sempre!

Mulher- E todo sempre...

Homem- Amém.

Mulher- (Insinuando-se para ele).Você sabe que ainda tem uma chance...

Homem- (Passando a mão nela, ficando muito próximo. Dando a idéia de que vai

comê-la. Após um instante a afasta bruscamente. Ela cai no chão).

Mulher- (Levantando com ódio no olhar). Quem diz chega agora sou eu!

Homem- Vai! Agora quem age segundo minha vontade é você. Vai!

Mulher- Seu grande idiota! (Abraça-o. Beija-o na boca. Ele não corresponde.

Solta-o. Vai até a o centro do palco e faz um gesto como para degolar alguém no seu

próprio pescoço. Imediatamente entram quatro homens fortes vestidos de preto. Pegam

o homem e o levam para fora. Por um instante os olhares da mulher e do homem se

cruzam. Ele sorri com escárnio. Ela fica, olha-se no espelho. Deixa uma lágrima escorrer.

Apruma-se e sai).

FIM

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A DEGOLA

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