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“O Circuito” (peça em dez quadros)

Personagens:
Laura
Mauro
Jorge (narrador 1)
Nancy (narrador 2)
Pai de Mauro
Pai de Laura
Enfermeira
Médico
Policial
Homem

(As cenas não são conduzidas de maneira cronológica/ Deve-se abusar dos
tempos e pausas/ Tirando os personagens de Laura, Mauro e Homem, todos os
outros podem ser interpretados por dois ou mais atores/ Jorge e Nancy podem ser
chamados apenas de narradores ou compreendidos como "consciência" ou
"instinto" das outras personagens, porém devem ser “desconcertantemente
patéticos”/ os black-outs devem ser respeitados para uma melhor condução da
estória).

(Foco)
Homem - “Que aconteceria se um demônio te dissesse um dia: esta vida, tal como
a vives atualmente, será necessário que revivas ainda uma vez, e uma quantidade
inumerável de vezes. É preciso que cada dor e cada alegria, cada pensamento e
cada suspiro voltem a ti, tudo isso na mesma sequência e na mesma ordem, e
também esse raio de luar por entre as árvores, e este instante e eu mesmo”.
(luz desce)

Primeiro Quadro

(Sobe a luz/ Mauro sentado toma seu chá calmamente, mas compenetrado/ tem
um ar triste/ fuma charmosamente/ entra Jorge ao fundo, meio palestrante meio
confuso)

Jorge- De qualquer maneira, uma história, baseada ou não em fatos reais, não
necessita de explicação, simplesmente pode acontecer, existir! (muda o tom mais
compenetrado).

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Este é Mauro, professor de Literatura numa faculdade conceituada de São
Paulo, respeitado, querido, e completamente sozinho...(pausa) mas ele não se
sente mal com isso, muito pelo contrário, se sente muito forte. Mauro, aos seus
trinta anos, gosta de se sentar num canto e ficar revivendo momentos do passado.
É um homem que revive o passado mais do que vive o presente.(pausa) Mauro
tem amigos fiéis, é claro que estes se contam nos dedos...dizem por ai que se
leva vinte anos, vinte longos anos para se firmar uma amizade, mas apenas dois
minutos para perdê-la... (num crescente de loucura)
Se perde uma amizade por vários motivos: por uma intriga, uma discórdia de
pensamento, por política, por drogas, por muita convivência, por burrice, por
tesão, por instinto, por gozo, por porra, por merda, por buceta, por bucetas, por
xolas, por picas, por pipocas...

Nancy- (entrando na mesma sintonia que Jorge) Por um carro, por uma praia, por
um roubo, por um isqueiro - meu deus o que se rouba de isqueiros! - (enfática) por
amor, por mulher...

Jorge-(contemplativo) Por mulher...

Nancy- ...o amor salva, o amor ferra!

(pausa, personagens entreolham-se/ entra Laura apressada, de beleza angelical).

Nancy- Esta é Laura, linda por si só, depressiva e teimosa como uma mula.
Procura na vida um sentido para si, única e exclusivamente...egoísta...mas quem
não é?

Jorge- O eterno retorno de sentimentos e experiências...


(os dois personagens ficam em cena e acompanham durante a peça todos
diálogos de Laura e Mauro/ Laura molhada da chuva/ olhar tímido/ ansiosa).

Laura- Estou atrasada...desculpe, mas está caindo uma chuva, fiquei presa no
trânsito.

Mauro-(escondendo a ansiedade) Imagina, só está alguns minutos atrasada.

Laura- Mas você nunca se atrasa. Sempre tão pontual. Isso é muito charmoso
num homem, dá um ar de responsabilidade.

Mauro- Senta.

Laura- Obrigada!

Mauro- Eu tomei a liberdade de pedir para você chá, torradas e geléia de


framboesa.

Laura- (tímida) Que ótimo! (pausa)Você conhece tudo que eu gosto.

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Mauro - Eu te conheço há três anos!

Laura- Não é por isso.

Mauro-(esperando por algo) Por que então?

Laura- Não sei. (silêncio/ os dois se olham) A gente se vê cada vez menos...

Jorge- (comentando no ouvido de Mauro) Até parece que você não reparou o
quanto ela está linda! Não é uma criança, cara...é uma mulher...e linda!(pausa)
Mas uma coisa você percebeu, o cheiro, o cheiro da pele dela que você conhece
tão bem e adora. Para de fingir, rapaz! Porra, não vê que escondendo seus
sentimentos vai acabar tendo um câncer!

Mauro- (rápido) Você está muito bonita!

Laura- Você sempre diz isso.

Mauro- É sério.

Nancy- (fazendo pouco caso) Ele não tem nem nunca vai ter coragem, e mesmo
que ele tivesse...

Laura- E a sua esposa?

Mauro- (hesitando, mas falando) Está indo embora hoje.

Laura- Por quê?

Mauro- Eu não posso ter um filho Laura. Não hoje. Não com o meu salário de
merda!

Laura- Você é ótimo no que faz, todos te adoram!

Mauro- Eu não posso sustentar um filho e o que ela mais quer é ser mãe. Toda
mulher quer ser mãe, é o instinto.

Laura- Eu não quero.

Mauro- Você é muito nova...

Laura- Aquele dia...

Mauro- Não quero mais tocar nesse assunto.

Jorge- Que charme! O olhar dela te mata!

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Nancy- A maneira como ele fuma, o cheiro misturado de tabaco com perfume, que
é amargo, mas que ela adora!

Mauro- Foi bem nas provas?

Laura- (sem ouvir) Eu preciso ir. Tenho um compromisso.

Mauro- O que você tem?

Nancy- Está sentindo que está esquecendo algo. Sabe aquela sensação de ter
esquecido algo quando já se está na estrada?

Jorge- Sei.

Laura - Acho que eu estou com medo de ir embora. (ri)


(tempo)

Jorge- (para Mauro) E você vai se calar de uma vez. Idiota, vai se arrepender
daqui uns vinte anos.

Mauro - Está passando um filme do Godard...você gostaria? (tempo) Você tem


mesmo um compromisso?

Laura - E a chuva?

Mauro- É aqui perto, a gente pega um táxi.

Nancy- Desde quando ela resiste a um convite seu?

Jorge- Mesmo que fosse ir para a Praça da Sé, dar milho para as pombas! (para
platéia) Mas não vai rolar nada, vão assistir ao filme do Godard e ele vai para
casa, pensando nos lábios dela.

Nancy- Nos olhos dele.


(corte /os dois a frente sentados assistindo ao filme/ tempo).

Jorge- O que está acontecendo com ele? Por que o olhar baixo?

Nancy- Ele está estranho, deve estar pensando na esposa.

Jorge- Ex- esposa. O que ele está fazendo?

(Mauro coloca a mão na perna de Laura)

Jorge- Eu não acredito!

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Laura- O que você está fazendo?

Mauro- Eu...eu não sei...

Laura- Pára.

Mauro-(tomando coragem/ cochichando) Você está linda hoje, e não diga que eu
sempre digo isso, por que eu nunca disse dessa maneira.

Laura- (Incisiva) Pára!

(Mauro quase que violentamente beija Laura/ dura trinta segundos/ eles param e
se olham/ Laura vira-lhe um tapa violento e sai correndo/ Mauro olha em direção a
platéia compenetrado/ quase chora/ Jorge e Nancy perplexos/ Luz baixa).

Segundo Quadro

(Laura em cima de um muro ou lugar alto/ compenetrada/ Mauro aproxima-se).

Mauro- (tranquilo) O que está fazendo garota?

Laura- Não se aproxima.


(tempo)
Mauro- Menina, para com essa brincadeira.

Laura- Não estou brincando. (ameaça pular).

Mauro - Não faz isso com a tua vida, deve ter uma saída?

Laura- (segura) Ópio! Você tem ópio?

Mauro- O quê?

Laura- É uma outra saída!

Mauro- Está vendo, você tem senso de humor, quem tem senso de humor não se
mata!

Laura- Essa vida é uma piada!

Mauro- Quem disse que o lado de lá também não é?

Laura- Mas o de lá eu não conheço, quem não arrisca não petisca!

Mauro- Deixa pra hora certa, provavelmente quando você for um pouco mais
velha.

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Laura- (desviando de assunto completamente) Você já se apaixonou?

Mauro- Quê?

Laura- Se apaixonou por alguém?

Mauro- Não, nunca. Amor acaba em dor, cedo ou tarde.

Laura- E como você faz pra não se apaixonar?

Mauro- (pensa) Só me envolvo com mulheres que gostam mais de mim do que eu
delas, assim está tudo sob controle.

Laura- Como faço para saber isso?

Mauro - O quê?

Laura- (irônica) Você é surdo?

Mauro- (bravo) Não.

Laura- Então, como faço?

Mauro- (quase um deboche) Não se envolva com pessoas que te enfeitiçam.

Laura- Mas se eu...

Mauro- Olha garota, se você quer conversar, a gente conversa, mas desce daí
primeiro, antes que você caia.

Laura- (ameaçadora e com deboche) Ou pule!

Mauro- Ou seja presa!

Laura- Presa? Por que quê uma pessoa não pode escolher se quer ou não viver?

Mauro- Você faz perguntas demais.

Laura- Você tem alguma explicação?

Mauro- O problema não é você se matar, o problema é que se você se mata as


pessoas vão ver seu corpo todo detonado, estirado no chão, sem vida. O que elas
não querem ver é a falta de vida, lembrar que elas também vão morrer, entende?
Por isso você vai presa, por jogar na cara das pessoas a verdade triste dessa
vida, a cara da morte!

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Laura- Você sabia que a maioria dos suicídios acontecem durante o crepúsculo,
entre seis e sete, porque é o único momento que não é dia nem noite.

Mauro- Só que agora são três da manhã. Vamos lá, menina! Desce! (ela fita-o
pela primeira vez / pausa) Por favor.

Laura- Meu nome é Laura.

Mauro- Desce daí, Laura, vai!

Laura- Qual o seu?

Mauro- Mauro.

Laura- Quantos anos você tem?

Mauro- Quase trinta.

Laura- Eu tenho dezoito.

Mauro- Por isso.

Laura- O que você faz?

Mauro- Sou professor de Literatura aqui na faculdade. Vamos, desce daí!


(Laura começa a descer/ Mauro ajuda)

Laura- É que essas festas daqui são tão entediantes...

Mauro- Você estuda aqui?

Laura- Estou começando comunicação.

Mauro- Ah!

Laura- Você vai ser meu professor?

Mauro- Pode ser.

Jorge- Que paciência. É um homem de ouro!

Laura- Você é legal...

Mauro- Você também, por incrível que pareça. (risos)

Laura- (olhando o relógio) Vixe! Tenho que ir Mauro, a gente se vê!

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Mauro- Espera ai. (Laura sai / luz desce com Mauro olhando na direção de Laura).

Terçeiro Quadro

(luz sobe/ Mauro sentado numa cadeira muito nervoso/ mão esquerda
machucada/ ele fuma um cigarro com muita ansiedade/ entra enfermeira).

Enfermeira- (chata de tão simpática) Aqui é proibido fumar, mas eu posso abrir
uma exceção se você tomar essas três pílulas.

(Enfermeira coloca as pílulas em cima de uma mesinha, junto com um copo de


água/ em sequência: uma azul, uma amarela e uma vermelha/ Mauro dirige-se à
mesinha e pega as pílulas).

Enfermeira- Em sequência: primeiro a azul, depois a amarela e finalmente a


vermelha.

Mauro- Pra quê isso?

Enfermeira- O azul é um relaxante muscular, o amarelo uma espécie de


analgésico e o vermelho um calmante devido ao seu nervosismo.

Mauro- Não é tudo a mesma coisa?

Enfermeira- (sem ouvir) Está uma bela manhã de sol!

Mauro- (confuso) A senhora não me respondeu.

Enfermeira- Acalme-se, Mauro, tudo vai acabar bem.

Mauro- (nervoso) Eu não preciso de tratamento, eu preciso de descanso, só isso.


(pausa) Não ver ninguém, ficar sozinho.

Enfermeira- Mas é para isso que você está aqui...para descansar.

Jorge-(interferindo) Mentira, eles estão com medo que você faça uma besteira.

Mauro- (para si) Estão é com medo que eu faça uma besteira...

Jorge- (irônico) Acho que eles pensam que você pode tentar se matar.

Mauro- ...estão achando o que? Que eu vou me matar? De qualquer forma, isso é
problema meu!

Jorge- Não, não, é problema deles, querem salvar você!

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Enfermeira- Muito bem, eu vou te fazer algumas perguntas. O que você vê neste
desenho? (desenho abstrato/ apenas riscos).

Mauro- Apenas riscos.

Enfermeira- Muito bom, e esse aqui? (caricatura de mulher nua).

Mauro- (nervoso) Uns peitões e uma bela xola!

Enfermeira- (sempre sorridente) Muito bom!

Mauro- (perdendo o controle) Chega dessa palhaçada! Eu quero ir embora daqui.

Enfermeira- (paciente) Se acalme, já estamos quase terminando. O que passava


na cabeça do senhor no momento em que se atirou por aquela vidraça no
restaurante?

Mauro- Que vidraça?

Enfermeira- Segundos depois de ter dado um soco num espelho.

Mauro- Espelho?

Enfermeira- O espelho que fez com que o senhor tomasse vinte e cinco pontos na
mão esquerda.
(atônito, Mauro olha para a mão esquerda visivelmente machucada)

Enfermeira- E quem é essa tal de Laura por quem o senhor tanto gritava?

Mauro- Laura? (mentindo) Eu não conheço nenhuma Laura.

Jorge- Deixa de ser idiota! Acha que eles não vão ligar o seu nome ao da garota
da faculdade?

Enfermeira- Deixe-me ver; mas o senhor tinha uma aluna chamada Laura, não
tinha?

Jorge- Não falei!

Mauro - (depois de pensar) Tinha.

Enfermeira- E são muito amigos?

Mauro- Isto está parecendo um interrogatório!

Enfermeira- O senhor está muito atormentado, mas é compreensível, deverá ficar


aqui algumas semanas.

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Mauro- Eu não posso ficar aqui, eu tenho minhas aulas, minha vida!

Enfermeira- Suas aulas? (Enfermeira ri bestialmente/ depois pára e toma um ar


sombrio) Você está num dia cinza, não está? Apesar do sol estar brilhando, e o
céu completamente azul e sem nuvens, tudo para você está cinza e frio, não é?

Mauro- (assustado) Do que a senhora está falando?

Enfermeira- Lembre de um dia terrível na sua vida...

Mauro- Para quê?

Enfermeira- Apenas lembre.

Mauro- O dia da morte de minha mãe.

Enfermeira- Diga outro


.
Mauro- Quando minha esposa foi embora de casa. (toca uma campainha
ensurdecedora)

Jorge- (como um apresentador bonachão de TV) Mentira! Essa não vale, conta
outra, uma de verdade, porque a enfermeira não vai cair nessa!

Enfermeira- Viu, os dias cinzas se repetem, sempre! (pausa) Que aconteceria se


um demônio te dissesse um dia: esta vida, será necessário que revivas ainda uma
vez, e uma quantidade inumerável de vezes. É preciso que cada dor e cada
alegria, cada pensamento e cada suspiro voltem a ti, e tudo isso na mesma
sequência e na mesma ordem, e também esse raio de luar por entre ás árvores, e
este instante e eu mesmo...
(os dois se encaram num silêncio mortal)

Enfermeira- (quebrando o silêncio) Agora, por obséquio, vamos falar um pouco


dessa Laura...
(luz baixa)

Quarto Quadro

(telefone toca/ luz sobe/ Mauro deitado dormindo/ desperta).

Mauro- Alô! Laura, (assustado) aconteceu alguma coisa?

Laura- (triste) Eu terminei tudo com ele, eu não aguentava mais.

Mauro- O quê?

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Laura- A gente não tem nada a ver um com o outro.

Mauro- (tomando consciência) Laura, são duas da manhã!

Laura- Eu sei que te acordei, desculpe, mas eu preciso falar com você.

Mauro- Mas você...

Laura- Eu posso ir até ai, estou me sentindo mal, acho que fui injusta.

Mauro- Você não pode se sentir mal amanhã cedo?

Laura- Por favor, eu prometo que não vou me demorar.

Mauro- (quase cedendo) Mas são duas da manhã.

Laura- Por favor, Mauro.

Mauro- Tá, tá bom. Vem logo, beijo, tchau!

Laura- Beijo, tchau!

Jorge- (que olhava a cena o tempo todo) Ela enche o saco, é mimada, infantil,
frustrada, depressiva, mas é exatamente isso que ele gosta nela. Viu só como ele
amolece mesmo quando ela não tem embasamento nenhum para conseguir o que
quer?

Nancy- Eu definitivamente não concordo com essa relação...

(campainha toca/ entra Laura)

Laura- Oi, desculpa te acordar.

Mauro - Não tem problema. (sarcástico) Então, você partiu o coração do pobre
rapaz?

Laura- Não brinque com isso, ele ficou mal.

Mauro- Ele vai sobreviver, a gente sempre sobrevive.

Laura- (rápida) Nem sempre. E quando o amor é o mais importante?

Mauro- O amor não pode ser o mais importante.

Laura- Mas ás vezes é...acha que todo mundo é capaz de pensar igual a você?

Mauro- Você não veio até aqui para ouvir minha opinião sobre o amor, porque

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você a conhece muito bem. Apenas diga o que quer dizer.

Laura- Eu não sei o que vim dizer.(tempo/ falando baixo) Sua mulher está ai?

Mauro- Não, está na casa dela.

Laura- Eu quero poder contar com você, é meu único amigo...

Nancy- É incrível como ela pega ele de jeito!

Mauro- Eu fiz um chá de maçã, e tem torradas e geléia.

Laura- Geléia do que?

Mauro - Framboesa, acho.

Laura -Eu adoro geléia de framboesa, você acertou em cheio. Faz quanto tempo
desde aquele dia na ponte?

Mauro- Dois anos.

Laura (por um instante se emociona) Eu estou tão sozinha. Não consigo me


envolver com ninguém, sabe, eu enjoou fácil de todos os caras que saio, o que eu
tenho de errado?

Mauro- Nada.

Laura- E você, casado... e infeliz!

Mauro- (irritado) Você não veio aqui para falar de mim, porque se for, pode ir
embora.

Laura- Desculpa.

Mauro- (mais irritado) Eu estou muito feliz e amo minha mulher!

Laura- Desculpa.

Mauro- (ainda mais irritado) Eu não sei da onde você tira essas suas idéias
malucas, mas eu quero que você pare agora mesmo com esses seus...
(interrompido)

Laura- Eu não paro de pensar em você.


(silêncio constrangedor)

Jorge- (quebrando o silêncio) Ah não! Agora ela jogou baixo! (para platéia) Se tem
uma coisa que um homem não pode ouvir de uma mulher atraente, é que ela não

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para de pensar nele, ou que ela tem saudades dele...ou ainda, que ela não pode
viver sem ele. Não importa se ele é ou não é apaixonado por ela, isso é o de
menos, acreditem...

Nancy- (para Jorge) Você é patético...

Jorge- É, eu sei.

(Mauro e Laura vão se olhando e se aproximando até se beijarem/ um beijo


comprido e delicado)

Jorge- Agora lascou-se!

Nancy- Culpa nossa!

Jorge- Nossa não, culpa da natureza, do universo, de Deus, sei lá...culpa do


instinto...nossa não.

Nancy- Eles são tão diferentes...esse é o perigo.

(luz baixa com os dois observando o casal)

Quinto Quadro

(luz sobe/ Laura dorme profundamente/ Mauro em pé a observa com rancor/ ela
desperta)

Laura- Está cedo. Volta pra cá!

Mauro- Eu não consigo dormir. (anda de um lado para o outro).

Laura- Pelo menos deita, descansa o corpo.

Mauro- Eu estou me sentindo um lixo.

Laura- Não é culpa sua.

Mauro- É sim, se eu não fosse tão estúpido, tão irresponsável. Noventa e seis por
cento de chance de não acontecer, mas acontece comigo...

Laura- Quer que eu faça um café?

Mauro- Que horas vai ser?

Laura- Você sabe, às dez.

Mauro - Você quer que eu te leve?

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Laura- Quero ir sozinha. (pausa)

Mauro- Posso te pegar quando acabar?

Laura- (categórica) Não! (pausa) Eu sou adulta o suficiente, você tem que parar
de agir como se eu fosse mais burra ou menos experiente do que você. Já
aconteceu, e a gente tem que enfrentar isso, nós não temos condições e acabou,
fim de papo!(tempo)

Mauro- Eu não quero!

Laura- O quê?

Mauro- (depois de um tempo) Você não vai tirar, eu não quero. A gente se vira,
foda-se! Você não vai tirar.

Laura- Você está louco? (cada vez mais nervosa) Você é casado! Ama a puta da
sua esposa, é ou não é? Ganha uma salário de merda, e é um puta de um
covarde!

Mauro- Eu não a amo.

Laura- Mas também não me ama, ama?

Mauro- (depois de pensar) Não.

Laura- Repete.

Mauro- Não.

Laura- Mais alto!

Mauro-(grita) Não, porra!

Laura- (extremamente nervosa) Então me explica, porque eu não devo tirar essa
criança de dentro de mim?

Mauro- Eu não sei. Só me sinto mal de pensar nisso. Eu não posso, não é correto,
não pra mim. Você não vai tirar!

Laura- Sai da minha frente.

Mauro- Pensa um pouco.

Laura- (enlouquecida) Você é um idiota. Um idiota de não amar ninguém, a não


ser você mesmo, um idiota de achar que eu vou amar mais este feto dentro de

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mim do que a mim mesma, e um idiota de me fazer sentir como uma cadela
prenha. Sai da minha frente!

Mauro- Você está louca. Você sempre foi louca, e eu um estúpido de não
perceber naquele dia da ponte. (pausa) Você não pode estar falando sério.

Laura- Sai da minha frente.


(sai correndo de cena).

Mauro- Laura volta aqui! Volta aqui! (fica parado como se estivesse congelado).

Nancy- (amena) Como entender a mente humana, se cada uma possui um


universo próprio, e uma língua que é incompreensível à outra. Eles falavam
línguas totalmente diferentes, nenhum dos dois estava errado, apenas não
compreendiam o valor de cada coisa da mesma maneira...o que para um é
pequeno, para o outro é gigantesco...e vice-versa.

Jorge- Bem, faremos então agora uma breve sinopse da vida dos dois
pombinhos.

Nancy- Avisamos que as cenas a seguir são de conteúdo muito forte


principalmente para aqueles que consideram o amor imutável, para aqueles que
acham que a vida tem algum sentido lógico conhecido, e principalmente para
aqueles que pagam impostos para serem amados por Jesus Cristo.

Jorge- O programa é recomendado para toda e qualquer pessoa que sabe que o
maior pecado da nossa existência é a culpa de passar a vida sem nunca ter vivido,
e isso inclui aquele porre no Natal.

Nancy- Laura é uma menina feliz, está agora com vinte anos de idade e se
identifica muito com seu pai, o escritor de um jornal conhecido, muito conhecido
de São Paulo. Se orgulha do seu pai ter sido um subversivo nos anos setenta, que
até teve que fugir para o Chile durante a repressão. Hoje, com as mudanças dos
tempos, ele escreve roteiros mais do que originais para um reality show conhecido
da televisão.

Jorge- Mauro teve uma infância difícil ao lado de cinco irmãos mais velhos que
praticavam jiu-jitsu e completamente viciados numa droga pior que a heroína: o
açaí com banana e mel. Seus irmãos eram atiçados pelo pai, a importunar a vida
do pobre Maurinho, só porque o coitadinho era interessado pelas artes e pela
literatura. Mas o mundo dá voltas, e Mauro tornou-se respeitado...enquanto que
seus irmãos tiveram uma vida indesejada...com dinheiro talvez, mas indesejada...
(corte)
Mauro- Eu vou estudar literatura.

Pai- (sério e emocionado como se ouvisse uma noticia de doença) O quê?

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Mauro- É isso mesmo.

Pai- Quando você decidiu?

Mauro- Há muito tempo.

Pai- E não tem um tratamento?

Mauro- Eu não quero isso.

Pai- A quimioterapia deve ajudar.

Mauro- Pára pai.

Pai- Dane-se se cair os cabelos.

Mauro- Pai, pára!

Pai- E a cartilagem de tubarão? Eu entendo tua revolta, mas você tem que se
tratar, e eu vou estar ao teu lado até o fim....e que este fim esteja longe!

Mauro- Dá para o senhor parar?

Pai- Se você tivesse se prevenido como eu falei.

Mauro- É bom que isso tenha acontecido, assim o senhor presta atenção em mim.

Pai- (se desespera) Meu Deus do céu, um filho interessado nas artes e na
literatura, que desgraça! Me leva embora dessa vida meu pai, que eu não quero
viver para ver isso!

Jorge- E Deus atendeu as suas preces e o levou sete meses depois...o caso é
que Mauro nunca perdoou a ignorância e alienação do pai...no enterro carregou o
caixão com uma frieza de iceberg, enquanto os outros irmãos choravam como
menininhas...
(corte)
Laura- Eu queria falar com você.

Pai 2- (concentrado escrevendo) E no jantar do grupo eles revelam que são


dotados de pouca humildade e inteligência...

Laura- (tentando chamar atenção) Você sempre me escutou.

Pai 2- ...o lutador machão faz uma poesia para a paulista peituda, uma poesia que
eu mesmo hei de escrever, e poesia para as mulheres frágeis e confinadas a
ficarem sem sexo durante três meses é como um vale refeição...

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Laura- Eu não acredito nisso!(nervosa).

Pai- E a questão que não quer calar, quem fica com um milhão?

Laura- Pai eu estou grávida! (silêncio; pai sem reação).

(tempo)

Nancy- ...e eles ficaram ali, estáticos. Laura esperava por alguma coisa, queria
um conselho, um abraço, uma bronca, o que fosse, mas nada acontecia....a mente
do seu pai estava tomada pelo mal da tela plana, o mal que ganha com a
intimidade das pessoas. Finalmente, depois de exatos 47 minutos, o pai indagou
de maneira lenta e quase inconsciente.

Pai 2- Quem é o pai?

Laura- Um amigo, um grande amigo.

Pai 2- E você gosta dele?

Laura- (Hesitando) Eu o amo!

Pai 2- E ele? (pausa)

Laura- Eu não sei.

Pai 2- Só tem uma coisa a fazer se você não tem certeza, você sabe o que é?

Laura- O quê?

Pai 2- Você deve conversar sério com ele, e dizer com toda a sinceridade do
mundo que você deve fazer o certo. (pausa) E o certo é mandá-lo para o paredão
e deixar o povo decidir pelo amor de vocês, assim se ele não sair é porque o povo
simpatiza com ele, e isso quer dizer que ele presta e você terá um aliado forte lá
dentro! (Laura se afasta como quem se afasta de um bicho até sair de cena).
Talvez vocês pudessem transar debaixo dos cobertores para que isso dê mais
ibope, sexo sempre dá ibope...agora filhinha, diz uma coisa para o papai, esse seu
novo amor...não é aquele fazendeiro caipira, nem o lutador, né? Não é, tá escrito
na sua cara que não, é do artista plástico, não é, conta para o papai, é do artista
plástico...(pai diz todo o texto de maneira enlouquecida, mas discreta/ luz baixa).

Sexto Quadro

(sobe luz; Laura de frente para um médico).

Medico- E qual é o seu nome?

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Laura- Laura.

Médico- Profissão?

Laura- Estudante, e o senhor?

Médico- (distraído) O quê?

Laura- Seu nome?

Médico- Me chamam de pescador.

Laura- (se ofendendo) É grosseiro!

Médico- Tem razão, mas é o que eu faço....eu pesco! Me chama de Lucas, Pedro
ou Mateus, está bem assim?

Laura- Como é que acontece?

Médico- O quê?

Laura- Como funciona?

Médico- Existem várias maneiras, está é muito simples, você toma aquela pílula
vermelha, espera um tempo...você vai passar um pouco mal, e depois põe pra
fora.

Laura- Põe para fora de que maneira?

Médico- (depois de pausa) De todas! Mas no seu caso não vai ser tão ruim, está
no começo. Você veio sozinha?

Laura- (nervosa) É claro!

Médico- Calma, este é um momento que você tem que ficar calma. Está pronta?

Laura- (hesitando) Estou.

Médico- Tome a pílula e se deite na cama, eu volto daqui a pouco. Detalhe, você
vai ficar trancada no quarto.

(Laura caminha até a mesinha discretamente e toma a pílula/ depois vai até a
cama e deita; luz baixa com transição de tempo, quando sobe Laura passa mal/
luz baixa e sobe novamente mais umas duas ou três vezes e a cada vez que isso
acontece ela parece pior; na quarta vez Laura está aos berros/ é assistida por
Jorge e Nancy, que parecem tensos como se assistissem a um filme de terror;
Jorge faz comentários toda vez que Laura pára os berros e apenas respira)

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Jorge- (emocionado e cúmplice) A pobre menina. O pescador esqueceu de dizer a
ela, talvez propositalmente, que quanto mais a dor aumenta, mais ela vai se
confundindo e sentindo um chamado de socorro. É como se o feto reclamasse,
quisesse justiça e por isso a dor...e é isso que oitenta por cento das meninas
passam quando entram nesta sala...é a dor do que não foi, e do que nunca
será...a dor da "criancisse", e da inconsequência...não que eu seja contra ou a
favor, não é isso de que tratamos aqui, mas que pura e simplesmente, Laura, esta
menina apresentada para todos nós, não poderia passar por isso. Ela,
exclusivamente ela e não outra, não poderia passar por isso.

(Cessam os gritos; Laura abraça o médico que carinhosamente faz carinho nos
seus cabelos enquanto fala de maneira sóbria)

Medico- Esta vida, tal como a vives atualmente, será necessário que revivas
ainda uma vez, e uma quantidade inumerável de vezes. É preciso que cada dor e
cada alegria, cada pensamento e cada suspiro voltem a ti.(luz baixa)

Sétimo Quadro

(luz sobe/ foco/ policial dando entrevista)

Policial- (patético, ignorante e sínico/ como se desse uma entrevista) Sim, eu


trabalho com suicídios desde 1996. Um caso interessante aconteceu há uns anos
atrás quando um rapaz estudante, acho que de odontologia...bem, esse estudante
botou na cabeça que tinha que se matar, dizia que era um azarado, que tudo dava
errado, que o pai dizia que ele não fazia nada direito, acho que isso mexeu com o
rapaz...acredito que ele precisava provar que era capaz de alguma coisa, queria
provar que podia fazer algo direito, então decidiu se matar. O safado foi até a
ponte mais alta, e amarrou uma corda com três nós, muito forte; não contente,
antes de se jogar da ponte, mandou goela abaixo um vidro de veneno para rato, e
ainda colocou um “38” na cintura se caso o impensável acontecesse. (pausa) Que
nada, rapaz! Você acredita que o elemento usou uma corda muito frágil, que não
aguentou o peso, e ele foi parar dentro do rio...ai você pensa: tudo bem, tem o
veneno...tem nada! O imbecil bebeu tanta água quando caiu no rio que acabou
vomitando o veneno...ai vinha o plano C, que também foi uma furada, porque a
arma tava velha e entrou água na pólvora...é um fracassado, nem se matar
conseguiu. Na delegacia, o pai chorava igual a uma criança, dizia que sabia que o
guri não ia conseguir...humano sabe, coitado do pai...bateu no garoto...fez direito,
fez direito, deu uma lição...a moral? A moral deve ser: sempre tire sarro de quem é
diferente de você! (risos) Estou brincando, a moral é: se você é um azarado,
assuma isso e viva a vida, deve ter alguma vantagem, vai e descobre, porra! (luz
baixa).

Oitavo Quadro

(luz baixa e sobe no momento em que Laura dá um tapa na cara de Mauro no

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inicio da peça /Laura corre para fora de cena)

Jorge- (depois de algum tempo observando) E ele ficou lá...sentado...olhando o


nada...jogado às traças, (poético) sua vontade era de correr, ir de encontro à ela,
dizer o que realmente sentia, falar sobre seu medo de amar, mas também falar
sobre seu amor por ela...mas não...ficou lá...parado, sem reação, como se uma
força medonha fizesse de sua inteligência - porque sim ele é muito inteligente
-...era como se uma força o transformasse num covarde. E ele enfim não seguiu
seus instintos...(para Mauro) covarde!

Nancy- Convicto de que o amor é finito, de que o ser humano não passa de
estômago e sexo, Mauro ficou sentado na frente daquela tela imensa por mais de
uma hora e meia. Na sua frente, Godard se manifestava na sua maneira mais
sarcástica, e Mauro não pensava em nada, queria esquecer, mas não esquecia...

Jorge- (num impulso de raiva) Covarde!

Nancy- De repente, lhe passou um pensamento estranho que incomodou, por um


segundo lhe bateu a idéia de que aquele momento no cinema, num momento só
dele com Godard,( num crescente de emoção) lhe bateu a idéia de que ele jamais
esqueceria aquele momento...nem quando estivesse com 117 anos...e ele jamais
saberia o que teria acontecido se tivesse chegado nela de qualquer maneira e
dito: porra, eu te amo!

Jorge- Pois ele não disse...e se tivesse dito, tudo poderia ter sido muito diferente!
(Mauro neste momento continua sentado, mas cada vez mais incomodado, como
que querendo vomitar).

Nancy- (continuando cada vez mais explosiva e emocionada) Eu te amo, porra!


Mas eu tenho medo, porque eu sei que, eu sei que...tudo acaba, e vai acabar,
provavelmente ou não, mas...que merda, o ser humano não se agüenta, mas
então porque é que eu fico lembrando do seu cheiro...e se eu não viesse aqui e
não dissesse tudo que tá entalado, eu iria passar a porra da minha vida sempre
pensando o que teria acontecido se eu dissesse...mas ao mesmo tempo
eu....eu...porra...(chorando) por que é que a gente chora? Por quê?

(silêncio constrangedor/ Jorge e Nancy esperam por uma reação de Mauro/ a


reação não vem)

Jorge- (depois de algum tempo) Estancou! (nervoso como um professor grosso)


Estancou, porra! (apontando Mauro) Estancou essa lata de sardinha, não se
mexe! É um enlatado. Uma porra de um enlatado.( começa a mexer em Mauro
que não reage).
Reage! (gritando, cada vez mais selvagem) Reage, seu merda! Faz alguma coisa,
não seja mais um que não segue o seu desejo, porra! (desesperado/ chorando
como uma criança) Reage! Reage, porra! Não estanca seu filho da puta, não vira
mais um enlatado.

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Nancy- (que assistia tudo jogada no chão, levanta-se furiosa) Reage, porra!
Reage...não vê que vai perdê-la pra sempre? Reage! (Jorge não larga do corpo de
Mauro, que mais parece um boneco agora, segura-o pelas costas, enquanto
Nancy esmurra seu estômago / os dois cada vez mais violentos).

Nancy e Jorge-- Reage! Reage, porra! Reage! Faça alguma coisa por você!
Reage!
(continuam batendo e bestando em Mauro de forma cada vez mais violenta/ luz
vai baixando/ blackout)

Nono Quadro

(sobe luz/ Laura está parada diante de um telefone público, ela acaba de desligar/
pára em frente ao público e limpa com muita calma as lágrimas que restavam no
seu rosto/ ao fundo entra um homem, usando um casaco grande ou um sobretudo/
ele pára e a observa por um tempo)

Homem- (sombrio) Psiu, tudo bem moça?

(Laura toma um susto, não sabendo que estava sendo vigiada)

Homem- (continua sombrio) Calma, não precisa se assustar.

Laura- (assustada) Não estou assustada.

Homem- Não? Isso é bom, dá para perceber que você é uma garota corajosa,
andando a essa hora da noite sozinha.

Laura- O que você quer?

Homem- Você estuda? Eu estudo, sou formado em odontologia, dentista sabe?

Laura- (precisa) Eu tenho que ir. (tentando sair/ homem bloqueia sua passagem)

Homem- Eu sinto que você é uma pessoa sozinha. Eu sei disso porque eu
também sou sozinho...acho que um solitário conhece outro, você não acha?
(homem cada vez mais toma posição de um psicótico).

Laura- (categórica) Eu não sou sozinha!

Homem- É sim, está escrito na tua testa.


.
Laura- Eu preciso ir embora. (tentando sair novamente/ homem a segura pelo
braço com força).

Homem- Você já quis se matar? Já quis acabar com tudo? Abandonar essa merda

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dessa vida?

Laura- Já! Mas descobri que é uma grande besteira. Pelo menos pra mim.

Homem - Eu uma vez tentei me matar...

Laura- Você está me machucando.

Homem- Mas eu falhei, sabia? (emocinando-se) Eu falhei em tudo na minha vida.

Laura- (mais forte) Você está me machucando.(interrompida).

Homem- (violento) Cala a boca! (puxa uma faca).

Laura- (perdendo o medo e tornando-se irônica) Se você quer acabar com uma
vida. acaba com a sua, não com a minha.

Homem- Cala a boca! O meu pai, a culpa é do meu pai.

Laura- Seja lá quem for seu pai, a culpa não é dele, por que você não assume
logo a culpa? Uma culpa que é só sua...tem sempre uma saída...

Homem- (gritando violento) Eu não sou um fracassado, a culpa é dele.

Laura- E você vai descontar em mim?

Homem- (sem compreender) O quê?

Laura- Qual a minha parcela de culpa nisso, hein? Vai descontar em mim que não
tenho culpa de nada? Daqui a pouco vai dizer que eu sou linda, e vai querer me
estuprar.

Homem- (sem ouvi-la/ insinuante) Você é muito bonita...sabe quanto tempo que
eu não trepo?

Laura- Eu sabia! Olha você não está sendo nada original como um estuprador
psicótico, por que não tenta ser dentista?

Homem (perdendo o controle de tanta raiva) Eu já sou dentista! (chorando) Eu já


sou dentista!

Laura- Não se ofenda amigo, mas eu não estou nem ai para você...aquele que
não enfrenta seus medos de maneira racional, não merece pena. Homem
covarde, homem morto!

Homem- (largando-a) Nem de te estuprar eu sou capaz... eu sou gay. (pausa/ os


dois começam a rir).

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Você rindo de um homem que quase te mata?

Laura (ainda rindo) A vida é uma piada!

Homem- Sabia que uma vez eu tentei me matar, e falhei feio. Meu pai me deu
uma surra, disse que eu era um incompetente até pra isso, acho que é verdade.

Laura - Eu preciso ir. (indo embora).

Homem- Antes, você pode me dar um cigarro?

Laura- Não.

Homem- Por que? Depois de tudo que eu não fiz com você? (risos).

Laura- Não, é que eu não fumo!

Homem- (mudando para um tom sombrio novamente) Como não?

Laura- Eu não fumo.

(Homem avança nela novamente com muito mais crueldade).

Homem- Como não sua puta? Depois de tudo que a gente conversou, você me
apunhala desse jeito?

Laura- (desesperada) Pára com isso!

Homem- Não minta pra mim!

Laura- Eu não estou mentindo, eu não fumo.

Homem (cada vez mais nervoso) Não minta, pára, pára de mentir!

Laura- Está bem, eu fumo, mas não tenho cigarros aqui comigo.

Homem- Não, você não fuma, não fuma, não fuma...(homem sem dó apunhala
Laura várias vezes na barriga/ no primeiro instante ela grita, depois cai no chão
gemendo e morre/ homem sai correndo).
(Jorge entra).

Jorge- (nostálgico) E este foi o fim de Laura...é claro que contamos este fato da
nossa estória de um jeito mais ameno, mais didático, mais sarcástico...até sendo
engraçado...mas foi exatamente assim que aconteceu, um homem a abordou
enquanto ela ia pra casa, papeou muito com ela dizendo o quanto era um estorvo,
e ela o ouviu, pois tinha uma paciência de ouro. Depois de algum tempo ela
resolveu ir embora, e foi neste momento que ele se sentiu abandonado

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novamente. O cigarro talvez tenha sido apenas um escape, mas é inevitável
pensar que talvez ela não tivesse morrido se fumasse, ela que de certo modo
cuidava de sua saúde, não fumando, encontrou a morte... (luz baixa)

Décimo Quadro- O Fim.

Nancy- (narrativa) Mauro foi pra casa, e durante todo o percurso não parava de
pensar no quanto tinha vacilado. Chegando em casa, a primeira coisa que notou
foi que tinha uma mensagem na secretária eletrônica. Era de Laura, que ligara
minutos antes da tragédia. Mauro ouviu atentamente a mensagem e pela primeira
vez, em muitos anos, chorou sem se controlar. Ele ouviu a mensagem contadas
136 vezes enquanto entornava uma garrafa de uísque Red Label...

Jorge- (narrativo) Depois saiu gritando pela rua o nome da amada, durante uma
hora e dezesseis minutos. Algumas vezes, os gritos eram acompanhados de sutis
vomitadas pela calçada, e de olhares assustados de alguns indivíduos da cidade...

Nancy- Em seguida, caiu na sarjeta em algum lugar da Avenida Paulista e por lá


dormiu umas duas horas...acordou chorando e resolveu beber mais, comprou uma
garrafa de catuaba gelada e decidiu ir andando até o aeroporto internacional de
Guarulhos...

Jorge- Durante o trajeto, Mauro Marreco pintou o caneco, bateu num mendigo,
surrou um padreco...

Nancy- Caiu num bueiro na 23 de Maio...todo molhado, criou um galo...

Jorge- entrou noutro boteco, mexeu com uma donzela, lembrou de Laura, e
enfim...se atirou por uma vidraça...

(barulho ensurdecedor de vidro quebrando/ Black out/ Luz sobe com Mauro
estirado no chão coberto de cacos de vidro/ entra voz de Laura ou Laura em
pessoa).

Laura- Mauro, sou eu, estou ligando para dizer que você é uma pessoa muito
especial e que eu nunca vou te esquecer. Eu espero que a gente não perca
contato só porque não dá certo. Eu quero te dizer que eu estou feliz de certa
forma, porque eu percebi hoje que você gosta de mim...estava escrito nos seus
olhos, nos seus toques...e quando você me beijou...(pausa) olha, desculpe o tapa,
foi um choque, uma mistura de alegria e raiva...mas passou...(linha desliga/liga
novamente).
Você é como uma estrela Mauro, uma estrela cuja luz demora muito tempo pra
chegar até meus olhos, e quando chega, é uma luz de um tempo que já passou,
de uma vida que já mudou...eu estou sempre atrasada...sempre vejo aquilo que já
foi. Lembro de uma frase do Nietzsche que você usou numa aula, que dizia...como
é mesmo? Esta vida, como a vivemos, será necessário que revivamos uma vez, e
uma quantidade inumerável de vezes, é preciso que cada dor e cada alegria, cada

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pensamento e cada suspiro voltem a nós, e tudo isso na mesma sequência e na
mesma ordem, e também essa aranha, esse raio de luar por entre as árvores, este
instante e eu mesma.(tempo) A gente se encontra, afinal, estamos pra sempre
num mesmo circuito...

(luz baixa com Jorge e Nancy levantando Mauro pelos braços e o levando
machucado e inconsciente para fora de cena/ Fim)

Ralph Maizza Fevereiro de 2004

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