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não conduzem a perder de vista o que é próprio do homem e com ele
a questão de sua destinação? Herdando estas suspeitas, gostaria de
manter-me aqui sobre o fio estreito desta questão: se o homem é
inteiramente carne animal, o que garante sua diferença e onde se
decide sua destinação ?
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Poderia acontecer, de fato, que a hostilidade contínua de
Deleuze à dialética hegeliana (tanto em seu livro sobre Bergson
como naquele sobre Nietzsche), sua hostilidade constante contra o
papel atribuído ao « negativo » pela dialética, o conduziu a criar o
impasse sobre negativo em geral, e com ele sobre a dimensão
necessariamente ambígua da memória – ao mesmo tempo positiva e
negativa, ativa e passiva, fonte de liberdade (ou de promessa) e de
patologia (ou de sofrimento).
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capaz de questionar (o único capaz de se perguntar : « o que é
isto... ? ». Essa compreensão parece fazê-lo sair para sempre da
animalidade. Enquanto que os animais emitem e recebem sinais, isto
é, significações atômicas encadeadas umas as outras segundo
modalidades programadas antecipadamente (pelos programas
genéticos ou programas congelados pela aprendizagem), o humano é
aquele que tem como missão religar sozinho e por si mesmo os
signos os quais herdou vindo ao mundo, o que faz dele o único ser
falante. Entendendo o acoplamento dos signos uns com os outros,
ele é também aquele que tem como tarefa dizer o que os distingue, o
que os separa ou o que os opõem : « isto não é correto », « o céu
não é mais azul », « eu não sou você » etc. O « ser » é algo mediante
o qual se entendem os recortes e os vínculos .
E é a razão pela qual Aristóteles interpreta, em De
interpretatione, (2, 16 a 27 seq.) como em De Anima (G 6, 430 a), o
logos como produção de símbolos (ou sumbolon: aquilo que articula
duas coisas juntas ou os acorda), de sínteses (ou sunthesis : o que
separa e distingue). Para todos estes textos, eu os remeto aos
comentários de Heidegger, Os conceitos fundamentais da
metafísica§ 72.
Só o homem afirma e nega (só o homem tem a palavra), pois,
só o homem entende de separar e religar o que a ele acontece. Para
dizer em termos de Nietzsche: o homem que afirma e nega se ocupa
de separar e de reunir, isto é, de organizar o fluxo caótico daquilo
que a acontece com ele. Pelo « fluxo », cabe aqui compreender o
que Nietzsche interpreta como o « rio » heracliano (« fluxo » e
« rio » se diz em alemão com o mesmo termo Fluß). No léxico de
Nietzsche, o fluxo designa aquilo que nos advém, o advir como tal
(em alemão : Das Geschehen), advir que é ao mesmo tempo
absolutamente fluente (desprovido de toda estabilidade), caótico e
contraditório (desprovido de ordem e de coerência) e, enfim
desmesurado ou supersaturado (desprovido de qualquer medida).
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fluxo tudo aquilo que a ele falta, organizando-o : a saber –
estabilidade, ordem, coerência, medida e organização, e nisso
projetando no fluxo ficções necessárias à sua organização (duração,
identidade, estabilidade, delimitação etc). Tal é a virtude, o sentido,
fundamentalmente organizador de todo organismo.
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permite os recortes e os laços sobre os quais ele tem a
responsabilidade. Longe de fazer sair o homem da animalidade, o
entendimento do ser seria então, e contrariamente, o que confirma
seu enraizamento na vida, na carne e a animalidade. Nietzsche não
queria dizer outra coisa ao aproximar, em detrimento à toda história
da metafísica, o juízo, o princípio lógico de identidade à assimilação
orgânica, ocupada, segundo ele, em afirmar, tanto na digestão como
na percepção, uma identidade do semelhante.
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(gleichmachen). O tornar - idêntico é a mesma coisa que a
incorporação da matéria apropriada na ameba ».
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em sua própria memória, aquilo que lhe acontece, toda carne é
corajosa – a coragem sendo definida por Zaratustra como a
capacidade a apreender as possibilidades do fluxo.
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A terceira definição deriva das duas primeiras. Porque ele é « o
mais contraditório », o homem é também o animal « o mais
sofredor », aquele que sofre mais possibilidades estrangeiras e
contraditórias que nele se comprimem. O homem, definido agora
« em oposição ao animal » parece susceptível de se elevar a
determinações até então inéditas ; « O homem, o mais sábio será o
mais rico em contradições », « aquele que terá a maior diversidade
de pulsões », « o homem [...] no qual se comprimem todas as
potências formadoras » - [...] o mais criador enquanto o mais
sofrido » (respectivamente FP 1884 26[119], 27[59] e 26[243).
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Para dizer de modo diferente, se a hipertrofia da memória é de
fato aquilo que abriu a carne humana, mais que qualquer outra, ao
excesso de fluxo, ela é também aquilo que a levou a se fechar. Ora, é
precisamente sobre este ponto difícil, sobre o estatuto ambíguo da
memória humana, segundo Nietzsche, que gostaria de discutir a
interpretação de Deleuze. O texto central se encontra no começo da
segunda dissertação da Genealogia da moral, intitulada « Culpa, má
consciência e coisas afins», em que justamente o homem é
redefinido como o animal que promete.
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com o fato de que o animal, diz ele, é necessariamente esquecedor.
Memorizando o passado em seu corpo (Nietzsche disse diversas
vezes, em importantes fragmentos, que a memória é o critério do
orgânico), ele esquece esse passado ou (se prefere) o recalca no
mundo de sua carne graças ao aparelho de recalcamento que é a
consciência animal. Se seu corpo carrega sempre a memória de um
passado, sua consciência em compensação se isola deliberadamente
do passado para se tornar disponível ao presente. O esquecimento
animal é aquilo que o permite « fechar temporariamente as portas e
as janelas da consciência », aquilo que o permite se tornar presente
ou atento ao mundo tal como ele se dá agora : « sem esquecimento
não poderia ter [...] presente ». Mas é isso também o que fecha a
consciência animal no presente vivido. Se seu corpo carrega sua
própria memória vivida (somática) e a memória de sua espécie
(genética), a consciência do animal permanece fechada na atenção
do presente vivido.
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até a consciência, a hipertrofia da memória tem, então, aumentado a
individuação tornando possível um indivíduo livre, soberano e
mestre de si mesmo : um indivíduo capaz de responder de si.
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humana era solidária de um processo patológico.
A ambigüidade do processo é tão produnda que a hipertrofia da
memória, que tornou contudo possível a incorporação do mais
longínquo passado e a maior responsabilidade diante do futuro, é
também o que ameaça sem trégua o humano de ser fechar à
totalidade do fluxo. Os dois grandes fenômenos que melhor o
ilustrarão são a história da metafísica por um lado e a do
cristianismo por outro, formando ambos aquilo que Nietzsche chama
« a época do niilismo ».
A história da metafísica em primeiro lugar se funda
inteiramente sobre o ódio do passado como passado, isto é sobre o
ódio da passagem: aberta ao passado e através dele à passagem do
fluxo, a consciência humana sofreu tanto da passagem – da
destruição e da morte que carrega sempre consigo –, que a ela
tornou-se finalmente metafisica : seu sofrimento do fluxo tornou-se
ódio e seu ódio levou-a a inventar, contra o devir, a esfera ficticia do
sempre-presente (« O ser » ou « a substância » compreendidos como
permanentes e opostas ao mundo do devir). A história do
cristianismo, por sua vez, testemunga do mesmo ressentimento
contra o fluxo embora sob uma forma diferente. Com são Paulo, e
diferentemente do metafísico, não é o devir como tal que é negado
em proveito de um mundo intemporal, é o devir (é o que são Paulo
chama o « novo éon ») que é encarregado de anular ou de destruir
(katargein) todo o passado e com ele o sofrimento e a morte próprias
ao « antigo éon » (Corintios, XV, 24-26).
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Todo problema vem, pois, do estatuto eminentemente
patológico da memória humana. Toda memória, porque ela implica
sempre sofrer da irrupção do outro ou do estranegrio em si
(« passio » ou « pathos » como dizia Virchow) é por essência
patológica ou patética. Mas, a memória propriamente humana é uma
das patologias as mais graves que surgiu sobre a terra, pois que
implica um sofrimento infligido a si mesmo e por si mesmo, um
sofrimento de si para si, que conduz a sofrer, não somente do outro,
porém, de si mesmo como de uma doença. Do mesmo modo, a
animal humano é o animal doente por excelência : o animal que se
inflige a si mesmo os mais terríveis sofrimentos, o sofrimento de sua
(má) consciência e sua imensa memória.
Apoiando-se nestes aspectos indiscutivelmente patológicos da
memória, Deleuze acreditou poder opor a memória ativa do homem
soberano e responsável à memória passiva do homem em estado de
sofrimento e sua má consciência. Era perder de vista aquilo que
justamente Nietzsche havia enfatizado : a solidariedade de fundo
entre a parte ativa e espontânea do homem e sua parte passiva ou
patológica. Assim aparece nessas linhas de Nietzsche e a filosofia
em que Deleuze retoma, suavizando-a, a oposição katiana entre
atividade e passividade : a memória do animal que promete, afirma
ele, não é « a memória da sensibilidade, mas da vontade. Ela não é
memória dos traços, mas das palavras [...] Somente o homem (dessa
memória) é ativo ». (p. 153-154).
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O que Deleuze não vê, herdeiro nisto da segunda Critica de
Kant, é que só o animal o mais sofrido, ou o mais patologicamente
afetado pelo excesso de fluxo, pode tornar-se o mais prometedor e o
mais soberano: o mais apto a organizar o fluxo de maneira própria e
singular, organizando sua memória. Em vez disto, Kant acredita
poder sustentar, e Deleuze fica prisioneiro do mesmo dualismo, que
a livre vontade é necessariamente indene da sensibilidade, ele
mesma rejeitada do lado da parte passiva e patológica da
subjetividade. A oposição kantiana entre as duas partes da
subjetividade torna-se, na leitura deleuziana de Nietzsche, a
oposição entre dois tipos de homem, ativo ou reativo, que não tem
aparentemente nada em comum.
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O erro das teorias clássicas é por a memória do lado do vivido,
acreditar que o passado se produziria mediante uma duplicação (ou
uma re-presentação) do presente pela consciência ; em síntese : de
manter que a consciência do sujeito que produz o passado ou que o
passado é na consciência. Bergson demonstra o inverso: a
possibilidade mesmo de uma meória psicológica atesta que não é o
passado que está « na » consciência, contudo, é a consciência que
deve ir no passado para se lembrar dele, sem o que ela permaneceria
sempre fechada no presente e não poderia se lembrar de nada. A
memória psicológica tem, pois, como condição uma memória « em
si » (não psicológica) do passado, um passado que se conserva em si
mesmo, sem ajuda de nenhum cérebro, nenhum vivente, nem de
nenhuma psiquê – conservação em si do passado que Deleuze chama
também « memória-mundo » ou « memória ontológica » e q ue
Bergson chama « a duração ». A medida desta memória ontológica,
que Deleuze interpreta como a coexistência em si de todo o
« virtual », a memória psicológica e suas afecções aparecem
necessariamente como secundárias e tardias: a memória ontológica
recebe tão-somente « pouco a pouco uma encarnação, uma
psicologização » (Bergsonisme, p.52), o passado não necessitando
nem da carne nem da alma para se conservar e se organizar em uma
« memória » em camadas e níveis claramente diferenciados.
Citemos, a este respeito, o texto exemplar de Deleuze : « a duração é
a diferença consigo mesmo; a memória é a coexistência dos graus da
diferença ; o elã vital é a diferenciação da diferença ». (« La
conception de la différence chez Bergson », L’île deserte, p.61).
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sobre as quais Deleuze infelizmente não se pronunciou (pelo menos
segundo meu conhecimento) :
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que nele se comprimem. (Nascimento da tragédia « Ensaio de
autocrítica » § 5) que retoma o § 4 do Nascimento da a tragédia :
« a arqui-unidade como eterno sofrimento e contradição ».
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refleti-lo em se olhando. Eis porque Dioniso quer uma noiva »).
Trata-se, antes, do fato de que a consciência sofre as contradições do
fluxo (é a dimensão passiva ou patológica de Ariadne e de sua
« Lamentação »), ao mesmo tempo esforçando-se em organizá-los
pelos seus próprios artifícios nas dobras de sua carne, de sua
memória (e trata-se aqui de sua dimensão ativa e inventiva). Aqui,
como na sua leitura da Genealogia da Moral, Deleuze não vê que o
movimento ativo e afirmativo da diferença requer a atitude passiva,
e mesmo patológica, sofrendo do fluxo e de suas contradições.
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a da formação, da cultura ou da educação (Bildung, Züchtung ou
Erziehung) que tem tão-só, segundo ele, o sentido de garantir a
incorporação a mais vasta possível das possibilidades do fluxo na
memória do animal humano. Enquanto que ao ler Deleuze, parece
que o movimento da diferença se passa ao largo de toda política da
memória (o passado se auto-organiza por ele mesmo e o movimento
da diferença jorrando espontaneamente do passado como sua mais
íntima tendência), para Nietzsche, ao contrário, o primeiro combate
político a traçar consiste em educar a espécie, isto é, inicialmente
transmitir-lhe uma memória a altura das contradições do fluxo. Só
isto permite garantir a diferença e a individuação, uma e outra
estando sempre ameaçadas tanto do lado do fluxo, pelo caos, quanto
do lado da espécie humana, pela fechamento ao fluxo e pela perda
da individuação que ela engendra, produzindo aquilo que Nietzsche
chama o « nivelamento » da espécie.
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do ensino da literatura no sentido estrito (em proveito das ciências
da comunicação) e com ela de uma relação própria, singular e
individuante com a língua comum.
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por uma luta cuja cena principal é a educação em geral e a educação
da memória em particular. A análise nietzschiana dos amores (e do
desamor) entre a carne e o fluxo conduz, a este respeito, a fazer da
educação a primeira questão ou, se preferimos, a lançar os
fundamentos de uma filosofia primeira da educação. Ao contrário,
cabe se perguntar se um pensamento da diferença que cria um
impasse sobre suas condições carnais as mais originárias – como
Deleuze parece fazer aqui, atribuindo a duração ou ao virtual uma
tendência à diferença independente dos efeitos indesejáveis psico-
patológicos que afetam as carnes – não corre o risco de participar da
secundarização, por toda a filosofia contemporânea, da questão, no
entanto, eminentemente política, da educação.
Tradução :
Paulo Germano Albuquerque e Daniel Lins
(O presente texto, não ainda revisado, será publicado em maio de
2006, segundo autorização oficializada pela própria autora).
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