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MARIA LYNCH
XICO CHAVES
LEONORA WEISSMANN
ARTE E EDUCAÇÃO
DIRETORA
Liege Gonzalez Jung
CONSELHO
EDITORIAL
Agnaldo Farias
Artur Lescher
Guilherme Bueno
Marcelo Campos Capa e Sumário: Basílica de La
Vanda Klabin Sagrada Família, 1882-1926. Foto:
© Pep Daudé / Junta
PRODUÇÃO Constructora del Templo de la
André Fabro Sagrada Família.
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Arruda Arte & Cultura
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Capitel da coluna de 8
Doe ou patrocine quinas da Basílica da Sagrada
pelas leis de incentivo Família. © Basílica de la
Rouanet, ISS ou ICMS/RJ Sagrada Família.
MARIA
LYNCH 12
XICO CHAVES 20
08 De arte a z ANTONI
GAUDÍ
30
40 Livros
46 Coluna
meio
do
RESENHAS 42
LEONORA
WEISSMANN
44
ALTO
FALANTE
48
DE ARTE A Z
Notas do circuito de arte
Em protesto
“Consideramos a ‘Greve de
Arte’ como uma tática entre
Arte e loucura
outras para combater a no MAR
O Museu de Arte do Rio (MAR),
normalização do Trumpismo — apresenta “Lugares do delírio” com
uma mistura tóxica de cerca de 150 obras — entre
supremacia branca, misoginia, instalações, mapas, performances,
pinturas e objetos — de diversos
xenofobia, militarismo e regra artistas, como Cildo Meireles, Laura
oligárquica”. Lima, Anna Maria Maiolino, Arthur
Bispo do Rosário, e outros. Trata-se
de uma reflexão política e ética sobre
Richard Serra e um grupo de loucura e arte. “A arte e a loucura
artistas em ato de protesto no têm em comum a força de
dia da posse do Presidente do transformação da realidade e isso
Estados Unidos Donald Trump. está representado na exposição”,
explica a curadora Tania Rivera.
GIRO NA CENA
FRANÇA GANHA NOVO
CENTRO DE ARTE
Castelo, Centro de Artes e Natureza e
Festival Internacional de Jardins. O
“Domain of Chaumont-sur-Loire” (entre
Blois e Tours, a 185 km de Paris) é um
Amália Giacomini lugar único por sua maneira de explorar os
estreia na vínculos entre arte, natureza e patrimônio.
Galeria Lume As exposições e instalações ali
organizadas farão do Domain o primeiro
Com curadoria de Paulo Kassab, a
mostra traz 14 trabalhos, entre painéis
Centro focado inteiramente na relação
e instalações, que remetem a entre criação artística e a invenção
modelos geométricos construídos no paisagística. Inauguração em 20/4.
espaço da galeria. Imagens e objetos
sobrepostos de modo a suscitar a
revelação de novos espaços em
ambientes já conhecidos. Redesenhar
o mundo ao redor para então
redescobri-lo. É esse o pano de fundo
de “Entreaberto”, primeira individual
da artista paulistana Amalia
Giacomini na Galeria Lume, que passa
a representá-la a partir deste ano.
Vem aí Bienal
Whitney 2017
A formação do eu e o lugar do
indivíduo em uma sociedade
turbulenta estão entre os temas-chave
refletidos no trabalho dos artistas
selecionados para a Bienal Whitney
2017. A exposição inclui 63 artistas,
desde emergentes até bem
estabelecidos, individuais e coletivos
que trabalham com pintura, escultura,
VISTO Post nas redes sociais dos
artistas Gustavo e Otávio
Pandolfo, mais conhecidos
desenho, instalação, cinema e vídeo,
fotografia, ativismo, performance, POR AÍ como “Osgemeos”. A
mensagem vai de encontro com
música e design de videogames. A
Bienal de 2017 é o 78º evento do as ações tomadas nos últimos
Museu Whitney em Nova York, em dias pela Prefeitura de São
uma série contínua de exposições Paulo que consistem em limpar
anuais e bienais, iniciada por Gertrude as pichações e os grafites na
Vanderbilt Whitney, em 1932. grande capital.
10 DE ARTE A Z
MARIA LYNCH
Máquina Devir
(Ao meu amor)
POR BERNARDO MOSQUEIRA conhecemos nossos limites, mas
também nossas possibilidades de
Escrevo esse texto com o meu corpo.
transcender na imanência.
Você experimenta o espaço onde
está e lê estes parágrafos com o seu É potente e positivo complexificarmos
corpo. O corpo é a dimensão dos nossa relação com o corpo. Podemos
encontros que tecem e atravessam nos inspirar em suas dobras, poros,
nossa existência. Está no corpo a plasticidades, impermanências,
nossa relação com os astros e seus marcas, delícias e potências para
movimentos, com a natureza e seus desenvolver nossas próprias formas
elementos, com as pessoas, a técnica de vivê-lo. Nosso corpo, de
e a cultura, com as palavras e com o substâncias e densidades tão diversas
que não cabe nelas. O que pensamos e mutantes, pode ser sempre melhor
é pensado com o corpo, o que experimentado - ainda antes de
expressamos é expresso com o interpretado.
corpo. Essa é a nossa máquina de O corpo é onde podemos ser. Nossas
encontrar, sentir, experimentar, liberdades, desejos e potências se
descobrir, desejar, imaginar, é onde realizam transbordando, apesar das
14 ALTO RELEVO
brechas da repressão histórica e
individual que nele carregamos. O
corpo é ainda onde podemos ser
diferentes: estrutura criadora de
maneiras de existir. A presente
exposição, "Máquina Devir", individual
da artista carioca Maria Lynch, surge
justamente do entendimento de que
é nutrindo o corpo com experiências O corpo é onde
"alegres" que ampliamos nossas
capacidades de sentir e, com isso,
podemos ser. Nossas
nossas potências de agir. liberdades, desejos e
Mesmo sendo mais reconhecida por potências se realizam
suas pinturas com o uso ostensivo de transbordando, apesar
cores vibrantes e contrastadas, das brechas da
criando especial relação entre figuras
e fundos, Maria desenvolve também
repressão histórica e
diversas instalações, objetos, individual que nele
performances, vídeos e fotografias. carregamos.
Comemorando 15 anos do início de
sua produção como artista, Lynch,
que desde 2013 estuda e trabalha fora
do país, retornou à sua cidade natal
para lançar um livro retrospectivo e
promover a mostra "Máquina Devir",
que ocupa integralmente os espaços
expositivos do Oi Futuro Ipanema
com um trabalho que alcança uma
radicalidade relacional inédita em sua
produção.
Nessa mostra, o público é convidado
a aproveitar individualmente um
percurso dividido em nove ambientes
lúdicos, oníricos e, por vezes,
perturbadores, que oferecem
propostas para experimentar o corpo
e suas potências. A cada três minutos,
um sinal sonoro indica quando se
deve passar para o próximo ambiente.
À esquerda e acima: Vista da exposição “Máquina Devir” no Oi Futuro. Todas as fotos: Paulo Jabur.
Logo de início, um grande acervo de
fantasias e maquiagens é utilizado por
dois profissionais para caracterizar o
participante de uma forma incomum.
Os ambientes não são filmados, para
que o participante possa aproveitar
os espaços com total liberdade. Nas
salas, desde uma sensual
apresentação ao vivo de "pole dance",
com doses de bebidas alcóolicas, até Almeja-se neste
um ambiente saturado de brinquedos trabalho justamente a
infantis e eróticos, de um banquete
de guloseimas até um mergulho em
transgressão ética dos
uma piscina de balas. Se em alguns espíritos livres, uma
momentos o participante puder terapia para perder a
perceber profundamente a sensação si mesmo na
de infância, é por ter se permitido
conectar ao lúdico - e não mais ao
experiência de criação
fantástico, que é tristemente uma de um novo corpo a
prática mais característica do adulto. cada momento.
16 MARIA LYNCH
À esquerda: Maria Lynch e dançarinos de pole dance. Acima: Sala “O que você mais gosta de fazer?”.
17
A artista Maria Lynch na piscina de balas.
18
XICO CHAVES
POÉTICA EXPANDIDA
Série A volta da tribo extinta. Todas as imagens de obras: Xico Chaves.
Todas imagens do artista: Foto: Marcelo Magalhães.
À esquerda: Xico Chaves em seu ateliê. Foto Nelson Ricardo Martins. Acima: Eu Você e Livro de Pedra.
Não sei se a poesia me conduziu às artes visuais.
Talvez seja até o contrário, mas como têm a
mesma origem são a mesma coisa.
Em sentido horário: Série infinitos, 1992. Série Nova Matéria, 1987 e Rio, poema gráfico retirado do livro
Trincheira de espelhos (1982).
À esquerda: Olho na justiça, 1992. Fotos: Arnaldo Lobato. Acima: Forças Ocultas.
Acima: Obra da série Joanna. À direita: Muito Falo, 2003, objeto da série Situações Arqueológicas.
29
Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms.
DO CÉU À TERRA
ANTONI GAUDÍ
MOSTRA ITINERANTE DO ARQUITETO CATALÃO PASSA POR
SÃO PAULO COM MAIS DE 70 PEÇAS ORIUNDAS DO MUSEU
NACIONAL DE ARTE DA CATALUNHA E MUSEU DO TEMPLO
EXPIATÓRIO DA SAGRADA FAMÍLIA
À esquerda: Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona. © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms. Acima:
Maquete da Casa Batlló, Coleção particular e Bellesguard, 1900-1909, Barcelona, © Peres Vive. Triangle postals.
Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms.
do arquiteto, seu princípio de que a seu princípio de que
natureza é a origem de tudo, e que isso
é uma criação de Deus, confronta com a natureza é a
as suas capacidades criativas, suas origem de tudo, e
soluções nascidas da abstração
geométrica, ou seja, a capacidade do que isso é uma
homem de reformular os princípios da criação de Deus,
natureza a partir do raciocínio
abstrato. E, claro, nessa racionalidade
confronta com as
ele sobrevive o princípio natural que suas capacidades
só sobrevive o necessário, o essencial
para a sobrevivência da espécie,
criativas, suas
aquilo que não tem utilidade morre. soluções nascidas da
Sua obra é uma reconstrução da
natureza, no sentido mais conceitual.
abstração
O naturalismo educado, maneirista, geométrica…
herdado do romantismo, não tem lugar
no último Gaudí. Sua concepção da
arquitetura se alinha mais na eficiência
das formas naturais do que na
recreação paisagista dos artistas do
final do século 19.
36 ANTONI GAUDÍ
À esquerda: Palau Güell, 1886-1888, Barcelona. Acima: El Capricho, 1883-1885, Comillas.
© Peres Vive. Triangle postals.
Janela da nave cenrtal da Basílica da Sagrada Família. Junta Constructora del Temple Expiatori de la Sagrada Familia.
38 CAPA
Maquete do conjunto da Basílica da Sagrada Família. Junta Constructora del Temple Expiatori de la Sagrada Familia.
É por essa eficiência da leitura que nos Gaudí: Barcelona, 1900 • Instituto
faz entender que Gaudí desenvolveu
soluções que coincidem com os Tomie Ohtake • São Paulo •
futuros postulados racionalistas que 19/11 a 5/2
surgiram quase ao mesmo momento
de sua morte.
Gaudí é o resultado de uma dupla Raimon Ramis é curador, fotógrafo
discussão, a técnica arquitetônica e de arquitetura e historiador em
sua eficiência, por um lado, e da arte pela Universidade de
Barcelona. Atualmente é gestor
ordenação espiritual da sociedade do cultural e diretor de Projetos da
outro; das contradições entre o céu e Fundação MediaBus no Chile.
a terra.
39
LIVROS lançamentos
40
O artista como ele é
Julião Sarmento. Conversas com Pedro Faro e Sara A. Matos
Documenta - 168 p. - R$ 50, 00
Dizem as más línguas que falar de pintura Paloma Ariston, Ana Elisa Egreja, Pedro
contemporânea pode provocar calafrio, Valera e Rafael Carneiro, por exemplo, o
tontura e taquicardia. Entre o peso da texto recorre ao humor e às referências
tradição e certa destreza reivindicada, há cotidianas para discutir o problema da
quem prefira simplesmente recusá-la. Ou, beleza na pintura de maneira
por outro lado, assumi-la como gesto despretensiosa: "as imagens da câmera de
hercúleo, de coragem. Há ainda aqueles segurança de um museu e as fotos de perfil
outros que resistem ao drama desses dois do Tinder / a loja de decoração e a galeria
extremos, reconhecendo no pictorial não de arte". Assim, constrói-se um percurso
aquilo que nos exime ou nos salva; mas nos livre advertido pelo lirismo, buscando
impregna. Não à toa, “A luz que vela o contaminações e cruzamentos possíveis,
corpo é a mesma que revela a tela” é uma em que uma mesma obra poderia se
exposição de 36 pintores contemporâneos encaixar em mais de um tema. Não se sabe
brasileiros, e com pesquisas diversas, ainda se seria possível de outro modo: Bruno
em formação ou mais consolidadas, entre Miguel, que assina a curadoria, é, antes,
nomes como Dalton Paula, Thiago Martins artista. O que interessará, portanto, é o
de Melo, Camila Soato, Gisele Camargo, que vela e revela, o que encobre e
Alan Fontes, Marcelo Amorim e Vitor desnuda, operação da poesia que
Mizael. reorganiza o real, ou como a insistência da
Seu exercício poético já começa no longo velatura que acumula transparências para
título, anunciando a promessa não de um então fazer ver. Se a tradição conclamaria
mapeamento geracional - tentativa para a pintura o princípio de uma janela
perigosa -, mas de um olhar curatorial que para o mundo, aqui veremos outro
optará pelo estado de fabulação. As obras vocabulário arquitetônico, entre a quina, o
estão divididas em nove núcleos nada canto e a dobra. Polifonia que nos
usuais, agrupadas mais pelo contraste do informará que a pintura segue. E seu
que pela afinidade. Os textos que as horizonte é vasto.
acompanham estão estruturados em versos
Pollyana Quintella é poeta,
(como poemas) que constroem certa crítica e curadora. Coeditora da
atmosfera para a leitura das obras. Em "O revista USINA e pesquisadora
belo e não", núcleo em que participam da Casa França-Brasil.
42
Autorretrato com filhos e mameluca.
LEONORA WEISSMANN
SELECIONADA PELO CONSELHO EDITORIAL DASARTES, A
ARTISTA MINEIRA É A PRIMEIRA VENCEDORA DO CONCURSO
GARIMPO. A VOTAÇÃO CONTINUA EM DASARTES.COM.BR
45
e realidade que, de uma forma ou de paisagens. Se as pinturas de Leonora
outra, influenciou na formação da não deixam de ser descrições
imagem da mulher na história minuciosas da superfície de um
brasileira", conta. mundo recortado, as descrições de
O conjunto do trabalho engloba os Emygdio não deixam em certo sentido
quatro grandes autorretratos, outros de se aproximar de pinturas,
conjuntos de pinturas menores e propondo novas visualidades que se
textos que abrem janelas para fora da
própria pintura, como "Céu de Cajus" Elisa Maia é formada em direito
e "Deslocamento". Os textos são do e letras e mestre em literatura,
biólogo Luis Emygdio Filho sobre as cultura e contemporaneidade.
Interessa-se especialmente
pinturas de Eckhout - descrições pelas relações entre literatura e
científicas sobre as figuras e as artes visuais.
46 GARIMPO
COLUNA DO MEIO
Quem e onde no meio da arte
Fotos: Paulo Jabur
Abraham Palatnik
CCBB
Rio de Janeiro
Maria Lynch
Oi Futuro Ipanema
Rio de Janeiro
Beto Silva e Alberto Saraiva Rodrigo Andrade, Maria Lynch e Lucas Lins
Fotos: Denise Andrade
Fernanda Resston, Nazareno e Afonso Tostes Fernanda Resstom, Gustavo Carneiro e Viviane Neto
Amalia Giacomini
Galeria Lume
São Paulo
Paulo Kassab Jr, Amalia Giacomini e
Renata Castro e Silva e Alexandre Roesler Felipe Hegg
Tuneu + Coletiva
Galeria Raquel Arnaud
São Paulo
Pequenas considerações
sobre ensino e sistema de arte
Cresci ouvindo que arte era algo distante e exótico. Ao longo de alguns anos de trabalho,
essa afirmação se repetiu algumas vezes; vinda inclusive de setores e regiões bastantes
respeitadas do saber. Vinda de agentes com os quais eu tive que lidar, trabalhar para, ou
mesmo, ministrar palestras. Arte como trabalho, sempre foi algo pouco compreensível. No
caso brasileiro, é perceptível que as Artes Visuais ainda não conseguiram estabelecer um
elo constante com a cultura, caso não seja amparada por um sistema muito específico de
espetáculo, lojas de museus, pequenos souvenires, objetos decorativos e entretenimento.
Mas tal área não é isso também? Será que haveria ainda algum purismo no que se refere às
exposições e seus pseudópodos? Será que não é parte do devir capital um conjunto de
adereços que são imprescindíveis para a manutenção e a rota de um sistema de circulação
de capital que envolve uma maquinaria muito específica, negociações precisas e
paradoxalmente longínquas, inserções de marcas, patrocinadores, projetos e tudo o mais?
Sim. Obviamente. Aqui e em qualquer lugar do mundo. Talvez ainda nos falte dois elementos
muito simples: certa dobra inevitável deste aparelho para que ele acredite de fato no seu
potencial transformador, político e ético; além de um investimento mais potente na
formação de um público que se daria por meio de um conjunto de ações educativas em
longo prazo que, por sua vez, apesar de pensarem inevitavelmente no lucro, ainda seriam
capazes de compreender certa missão que lhe atravessa e é, por mais clichê que pareça,
determinante para a constituição de uma cidade, de um Estado e de um país.
Se os investidores se tornassem capazes de compreender que é decididamente possível
uma fratura em sua ferocidade natural para a abertura de um campo semântico, simbólico,
comunitário e poético que pode ser atravessado por um eixo educativo e que tal
aproximação não precisa soar necessariamente ingênua, outro rumo poderia vir a surgir
naquilo que compreendemos como cultura e, provavelmente, não viesse a nos envergonhar
de maneira tamanha (diante de sua precarização constante).
Por certo, no momento atual em que nos encontramos, tal proposta pode ainda parecer
mais estúpida, já que estamos tendo nossa dignidade sendo solapada de maneira contínua.
Mas seria de todo impossível? A aproximação mais lúcida entre investimento, exposição e
ensino seria algo inviável em um país como o nosso, mesmo que ainda não tenhamos tido
tempo de compreender e ultrapassar nossa herança histórica de saques, violência,
dominação, silêncio, coronelismo e conforto; ou, melhor dizendo, de certo gozo no
sofrimento em si, desde que resguardado o pseudoprazer de uma vantagem por cima de
qualquer outro que seja (um outro-cultural histórico)? É óbvio que toda a falta de estrutura
e manutenção, do mau-humor no atendimento, do descompromisso ou das figuras de poder
que exercitam cotidianamente o mal de subjugar um outro são elementos que existem em
50
qualquer lugar do mundo; mas talvez ainda nos reste algum tempo de verificar se a nossa
particularidade em relação a todos esses assuntos não tem sido extremamente perversa.
Dois exemplos parecem surgir aqui vindos de um estrangeiro muito próximo: em algum ano
que já não lembro mais, visitava uma exposição no Beaubourg com obras de Ad Reinhardt.
A cena era simples. Uma turma pequena de crianças com seus seis ou sete anos e uma
mediadora. Não havia um caminhão despejando escolas municipais a todo tempo na entrada
da exposição provocando uma gritaria insuportável. Não havia grupos de animadores de
auditório com suas pseudoperformances recheadas de algum histrionismo. Não havia nada
além da mediadora, as crianças e Ad Reinhardt. Conversavam animadamente sobre o que
viam, como sentiam, sobre alguma lembrança eventual. Havia algo de sagrado nada católico
naquelas pequenas falas compromissadas com aquele azul sem profundidade e um tipo de
relação muito íntima e respeitosa entre eles e entre todos nós visitantes. Tudo silencioso,
educado e sem escândalo. Nós não éramos um número. Ou, caso fôssemos, a cena era
construída de maneira digna.
Na mesma viagem milagrosa e de pouquíssima grana, trabalhei acompanhando projetos de
uma escola técnica de arte no Sul da França. Sim, todos tinham tudo à disposição e a escola
possuía uma estrutura que revelava a compreensão histórica da importância de tal prática
para a comunidade, para a região, para o turismo, para o espetáculo, para a realimentação
do sistema e tudo o mais. Nada era ingênuo. Em alguns momentos, os alunos organizavam
uma exposição para seus professores e alguns curadores. Era um ato solene. Eventualmente
cruel, pois, afinal, espíritos sem luz existem em qualquer lugar do mundo (da mesma maneira
que em qualquer cama); mas a relação de respeito mútuo e de tentativa de
operacionalização de fazer o melhor e, sim, (pasmem!) dizer o melhor, era memorável. Dos
dois lados. Sim, eram inevitavelmente dois lados amparados por algum tempo de estudo a
mais, mas havia um desejo de encontro. O algoz estava dentro de cada um e todos sabiam
disso. E mesmo que também, nesse caso, o desejo fosse semblante, algo de educação se
dava ali. Talvez algo que todos tenham trazido de casa. Com todos os seus flancos. Com
todos os seus buracos. Com todas as suas lágrimas e perversidades íntimas.
Paro agora. Releio o texto. As duas cenas anteriores parecem imbecis por sua certeza.
Obviamente, existem muitos outros exemplos tão ou muito mais potentes que esses em
lugares inimagináveis do Brasil e do mundo. Surgiram aqui como uma lembrança muito clara
e como um exemplo de trabalho que vivi e carrego na memória. E talvez me desenhe agora
alguma vergonha em virtude de ter sido deliciosamente e militarmente preparado para e
por um tipo de cultura que economicamente e geologicamente nunca fui capaz de viver por
inteiro. Por outro lado, acho que são imagens relevantes porque explicitam a possibilidade
de driblar a lógica produtiva perversa que atravessa a formação em diversos níveis aqui,
neste tal lugar que chamo de país.
51
…o sucateamento da educação é um projeto bem estruturado que
vem acompanhado de um desejo de retrocesso político…
52 ALTO FALANTE
Lançada em 2008, a Dasartes é a
primeira revista de artes visuais do
Brasil desde os anos 1990. Em 2015,
passou a ser digital, disponível
mensalmente em seu aplicativo para
tablets e celulares e no site
dasartes.com.br, o portal de artes
visuais mais visitado do Brasil.
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