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ANTONI GAUDÍ

MARIA LYNCH
XICO CHAVES
LEONORA WEISSMANN
ARTE E EDUCAÇÃO
DIRETORA
Liege Gonzalez Jung
CONSELHO
EDITORIAL
Agnaldo Farias
Artur Lescher
Guilherme Bueno
Marcelo Campos Capa e Sumário: Basílica de La
Vanda Klabin Sagrada Família, 1882-1926. Foto:
© Pep Daudé / Junta
PRODUÇÃO Constructora del Templo de la
André Fabro Sagrada Família.
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Arruda Arte & Cultura
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Capitel da coluna de 8
Doe ou patrocine quinas da Basílica da Sagrada
pelas leis de incentivo Família. © Basílica de la
Rouanet, ISS ou ICMS/RJ Sagrada Família.
MARIA
LYNCH 12

XICO CHAVES 20

08 De arte a z ANTONI
GAUDÍ
30
40 Livros
46 Coluna
meio
do

RESENHAS 42

LEONORA
WEISSMANN
44

ALTO
FALANTE
48
DE ARTE A Z
Notas do circuito de arte

ANISH KAPOOR PROTESTA ANTI-


TRUMP E CONVOCA OUTROS
ARTISTAS
O midiático artista britânico-indiano
Anish Kapoor reformulou uma imagem
de parte de uma performance seminal do
artista alemão Joseph Beuys com a frase
renomeada, “Eu gosto da América e a
América não gosta de mim”, como um
protesto contra os horrores que se
desenrolam na América de Donald
Trump. Ele está convidando outros
artistas para se juntar a ele no protesto e
criar as suas próprias versões do cartaz.

MOVIMENTO RETRATO RARO AMOR, FAMA E


CARAVAGGESCO DE DALI TRAGÉDIA
Em Paris Vai a leilão Em Londres
O Museu do Louvre vai A casa de leilões Bonhams Em março, o Tate Modern
acolher as obras de Valentin está oferecendo uma das abre “A Exposição EY: Picasso
de Boulogne na exposição obras mais controversas de 1932 – Amor, Fama, Tragédia”.
“Beyond Caravaggio”. Por Salvador Dalí para seu próximo Como anunciado no título, a
meio dessas obras, os leilão em Londres. O retrato exposição se concentrará no
visitantes descobrirão como de 1925 da irmã do artista, ano de 1932, com uma viagem
Valentin se inspirou no intitulado “Figura de perfil” (La mês a mês durante o ano pivô
realismo dramático de Hermana Ana María), tem uma na vida de Picasso e seu
Caravaggio, no claro-escuro e estimativa de £ 800 mil - 1,2 mi. trabalho. Conhecido como seu
nos temas (tabernas, Essa é uma pintura notável e “ano de maravilhas”, 1932 foi
concertos, mártires, santos), rara pois há poucas obras um ano de inovação e reflexão
mas os mudou dando uma deste período fora de para Picasso, que acabava de
sensibilidade cromática coleções públicas. A sessão completar 50 anos em
neoveneziana com acontece em 2/3. outubro de 1931.
grandiosidade e melancolia.
8
1ª BIENALSUR PRÉ- GIRO NA CENA
SELECIONA ARTISTAS
BRASILEIROS
Modelo inédito de Bienal

A coordenação da BIENALSUR divulgou a


lista dos projetos pré-selecionados para
sua 1ª Edição. Trinta e seis artistas e cinco
curadores brasileiros estão entre os 377
projetos escolhidos. A Bienal
Willys de Castro
Internacional de Arte Contemporânea da em Nova York
América do Sul acontecerá de setembro a A galeria Luhring Augustine abre a
dezembro de 2017, simultaneamente em primeira individual do artista
mais de 30 cidades, de 12 países, de mineiro nos Estados Unidos. “Willys
diversos continentes. Os curadores de Castro” é feita em parceria com
selecionados são Tobi Maier, Guillerme as galerias Almeida & Dale e Marília
Giufrida e Jessica Varrichio, Juliana Razuk de São Paulo. A mostra reúne
Gontijo e Raphael Fonseca. Na lista de 15 obras que cobrem os primeiros
artistas estão nomes como Alex anos do artista, das pinturas aos
Flemming, Eduardo Srur, Estela Sokol, famosos “Objetos Ativos”, pelos
Regina Silveira, Rochelle Costi, Shirley quais Willys de Castro se destaca
Paes Leme, entre outros. como um dos mais inovadores
artistas brasileiros.
Até 11/3.

Em protesto
“Consideramos a ‘Greve de
Arte’ como uma tática entre
Arte e loucura
outras para combater a no MAR
O Museu de Arte do Rio (MAR),
normalização do Trumpismo — apresenta “Lugares do delírio” com
uma mistura tóxica de cerca de 150 obras — entre
supremacia branca, misoginia, instalações, mapas, performances,
pinturas e objetos — de diversos
xenofobia, militarismo e regra artistas, como Cildo Meireles, Laura
oligárquica”. Lima, Anna Maria Maiolino, Arthur
Bispo do Rosário, e outros. Trata-se
de uma reflexão política e ética sobre
Richard Serra e um grupo de loucura e arte. “A arte e a loucura
artistas em ato de protesto no têm em comum a força de
dia da posse do Presidente do transformação da realidade e isso
Estados Unidos Donald Trump. está representado na exposição”,
explica a curadora Tania Rivera.
GIRO NA CENA
FRANÇA GANHA NOVO
CENTRO DE ARTE
Castelo, Centro de Artes e Natureza e
Festival Internacional de Jardins. O
“Domain of Chaumont-sur-Loire” (entre
Blois e Tours, a 185 km de Paris) é um
Amália Giacomini lugar único por sua maneira de explorar os
estreia na vínculos entre arte, natureza e patrimônio.
Galeria Lume As exposições e instalações ali
organizadas farão do Domain o primeiro
Com curadoria de Paulo Kassab, a
mostra traz 14 trabalhos, entre painéis
Centro focado inteiramente na relação
e instalações, que remetem a entre criação artística e a invenção
modelos geométricos construídos no paisagística. Inauguração em 20/4.
espaço da galeria. Imagens e objetos
sobrepostos de modo a suscitar a
revelação de novos espaços em
ambientes já conhecidos. Redesenhar
o mundo ao redor para então
redescobri-lo. É esse o pano de fundo
de “Entreaberto”, primeira individual
da artista paulistana Amalia
Giacomini na Galeria Lume, que passa
a representá-la a partir deste ano.

Vem aí Bienal
Whitney 2017
A formação do eu e o lugar do
indivíduo em uma sociedade
turbulenta estão entre os temas-chave
refletidos no trabalho dos artistas
selecionados para a Bienal Whitney
2017. A exposição inclui 63 artistas,
desde emergentes até bem
estabelecidos, individuais e coletivos
que trabalham com pintura, escultura,
VISTO Post nas redes sociais dos
artistas Gustavo e Otávio
Pandolfo, mais conhecidos
desenho, instalação, cinema e vídeo,
fotografia, ativismo, performance, POR AÍ como “Osgemeos”. A
mensagem vai de encontro com
música e design de videogames. A
Bienal de 2017 é o 78º evento do as ações tomadas nos últimos
Museu Whitney em Nova York, em dias pela Prefeitura de São
uma série contínua de exposições Paulo que consistem em limpar
anuais e bienais, iniciada por Gertrude as pichações e os grafites na
Vanderbilt Whitney, em 1932. grande capital.

10 DE ARTE A Z
MARIA LYNCH
Máquina Devir
(Ao meu amor)
POR BERNARDO MOSQUEIRA conhecemos nossos limites, mas
também nossas possibilidades de
Escrevo esse texto com o meu corpo.
transcender na imanência.
Você experimenta o espaço onde
está e lê estes parágrafos com o seu É potente e positivo complexificarmos
corpo. O corpo é a dimensão dos nossa relação com o corpo. Podemos
encontros que tecem e atravessam nos inspirar em suas dobras, poros,
nossa existência. Está no corpo a plasticidades, impermanências,
nossa relação com os astros e seus marcas, delícias e potências para
movimentos, com a natureza e seus desenvolver nossas próprias formas
elementos, com as pessoas, a técnica de vivê-lo. Nosso corpo, de
e a cultura, com as palavras e com o substâncias e densidades tão diversas
que não cabe nelas. O que pensamos e mutantes, pode ser sempre melhor
é pensado com o corpo, o que experimentado - ainda antes de
expressamos é expresso com o interpretado.
corpo. Essa é a nossa máquina de O corpo é onde podemos ser. Nossas
encontrar, sentir, experimentar, liberdades, desejos e potências se
descobrir, desejar, imaginar, é onde realizam transbordando, apesar das

14 ALTO RELEVO
brechas da repressão histórica e
individual que nele carregamos. O
corpo é ainda onde podemos ser
diferentes: estrutura criadora de
maneiras de existir. A presente
exposição, "Máquina Devir", individual
da artista carioca Maria Lynch, surge
justamente do entendimento de que
é nutrindo o corpo com experiências O corpo é onde
"alegres" que ampliamos nossas
capacidades de sentir e, com isso,
podemos ser. Nossas
nossas potências de agir. liberdades, desejos e
Mesmo sendo mais reconhecida por potências se realizam
suas pinturas com o uso ostensivo de transbordando, apesar
cores vibrantes e contrastadas, das brechas da
criando especial relação entre figuras
e fundos, Maria desenvolve também
repressão histórica e
diversas instalações, objetos, individual que nele
performances, vídeos e fotografias. carregamos.
Comemorando 15 anos do início de
sua produção como artista, Lynch,
que desde 2013 estuda e trabalha fora
do país, retornou à sua cidade natal
para lançar um livro retrospectivo e
promover a mostra "Máquina Devir",
que ocupa integralmente os espaços
expositivos do Oi Futuro Ipanema
com um trabalho que alcança uma
radicalidade relacional inédita em sua
produção.
Nessa mostra, o público é convidado
a aproveitar individualmente um
percurso dividido em nove ambientes
lúdicos, oníricos e, por vezes,
perturbadores, que oferecem
propostas para experimentar o corpo
e suas potências. A cada três minutos,
um sinal sonoro indica quando se
deve passar para o próximo ambiente.

À esquerda e acima: Vista da exposição “Máquina Devir” no Oi Futuro. Todas as fotos: Paulo Jabur.
Logo de início, um grande acervo de
fantasias e maquiagens é utilizado por
dois profissionais para caracterizar o
participante de uma forma incomum.
Os ambientes não são filmados, para
que o participante possa aproveitar
os espaços com total liberdade. Nas
salas, desde uma sensual
apresentação ao vivo de "pole dance",
com doses de bebidas alcóolicas, até Almeja-se neste
um ambiente saturado de brinquedos trabalho justamente a
infantis e eróticos, de um banquete
de guloseimas até um mergulho em
transgressão ética dos
uma piscina de balas. Se em alguns espíritos livres, uma
momentos o participante puder terapia para perder a
perceber profundamente a sensação si mesmo na
de infância, é por ter se permitido
conectar ao lúdico - e não mais ao
experiência de criação
fantástico, que é tristemente uma de um novo corpo a
prática mais característica do adulto. cada momento.

16 MARIA LYNCH
À esquerda: Maria Lynch e dançarinos de pole dance. Acima: Sala “O que você mais gosta de fazer?”.

Almeja-se neste trabalho justamente a nomeadas a partir de conceitos


transgressão ética dos espíritos livres, oriundos do campo filosófico. Títulos
uma terapia para perder a si mesmo na utilizados pela artista nos últimos anos
experiência de criação de um novo - como "Rizoma", "Além Homem",
corpo a cada momento. Em uma das "Transvaloração", "Caos", "Vontade de
salas, o participante encontra uma Potência", etc. - mostram seu interesse
instalação que apresenta, projetando particular nos filósofos da diferença,
nas quatro paredes, sequências de como Baruch Spinoza (1632-1677),
pequenos trechos de vídeos que Friedrich Nietzsche (1844-1900) e
mostram as mais diversas formas de Gilles Deleuze (1925-1995), de quem
dançar. Em outro ambiente ainda, articulou dois importantes conceitos
depara-se com dois atores vestidos de para nomear essa mostra.
palhaço e gorila interpretando um Nas palavras de Maria Lynch: "Usei a
texto composto por Maria Lynch palavra 'devir', pois, para mim, ela
como uma dramatização de suas representa a possibilidade de
referências acadêmicas. transformação, um processo que no
É por ter iniciado seus estudos na presente transborda o limiar entre o
Faculdade de Filosofia que suas obras eu e aquilo que o cerca. O uso de
são recorrentemente construídas e 'máquina', por sua vez, foi uma

17
A artista Maria Lynch na piscina de balas.

brincadeira, pois quando Deleuze experiência transformadora para a


criou a expressão 'máquina de guerra' obtenção de prazer, liberdade,
ele se referia a um corpo sem limite coragem e alegria, onde se pode tudo,
que pode tudo. Então, juntei os dois fora temer.
para fazer alusão à relação humana
com a dimensão da potência, do
acontecimento, do devir."
Essa exposição de Maria Lynch Maria Lynch • Máquina Devir •
permite que o participante possa se Oi Futuro Ipanema • Rio de
carnavalizar corajosamente, viver Janeiro • 14/1 a 19/3.
crises em suas crenças, encontrar
brechas, penetrá-las, transformar-se
nelas, desfazê-las. Neste trabalho,
sem medo, é possível deixar de lado a
seriedade para poder ser capaz de Bernardo Mosqueira é curador
e escritor, um dos fundadores
criar novos sistemas de valores a e gestores do Solar dos
partir das experiências do corpo. Em Abacaxis (Rio de Janeiro) e
resumo, "Máquina Devir" é uma diretor do Prêmio FOCO
Bradesco ArtRio.

18
XICO CHAVES
POÉTICA EXPANDIDA
Série A volta da tribo extinta. Todas as imagens de obras: Xico Chaves.
Todas imagens do artista: Foto: Marcelo Magalhães.

ENTRE PINTURAS, POEMAS VISUAIS E OBJETOS, O ARTISTA


XICO CHAVES FALA A DASARTES SOBRE SUA CARREIRA,
DIRETO DO SEU ATELIÊ NO RIO DE JANEIRO

POR LAÍS SANTANA de tantos anos, considero a criação


artística uma atividade só, onde as
outras expressões coexistem
A multiplicidade é uma característica simultaneamente. Creio que todas elas
genuína em seus trabalhos, você têm a mesma origem, portanto, se
transita com sutileza por diversos desdobram e expandem quase
suportes: são pinturas, poesias instantaneamente. Há momentos em
visuais, performances, intervenções que a palavra ou a escrita se
públicas, objetos, fotografias, vídeos, manifestam em primeiro plano e há
música, carnaval, dentre outros. Qual momentos em que se apresentam em
a origem dessa multiplicidade? forma de pintura, desenho, objeto,
intervenção, performances, fotografia,
Embora meu processo criativo tenha musicalidade, poema visual e atitudes
sido classificado como múltiplo depois que não são classificáveis. Só sei que
22 ATELIÊ DO ARTISTA
fazem parte de uma mesma galáxia
poética em movimento permanente
que vivo de forma integral. Desde que
comecei a criar, ainda na infância,
como todos nós, acredito ser minha
vida mesmo, não uma profissão ou
opção.

Sua primeira obra de arte?

Não me lembro de quando foi minha


primeira obra consciente. Sou um Sou um arquivista e a
arquivista e a cada dia que revejo o cada dia que revejo o
que acumulei ao longo do tempo, acho
que começou em um ponto diferente. que acumulei ao longo
São muitas origens, mas a gênese é do tempo, acho que
uma só: a ação sobre a realidade e a começou em um ponto
memória é infinita.
diferente. São muitas
Assim como Ferreira Gullar, você é origens, mas a gênese
um poeta que se tornou artista visual?
A poesia concreta o influenciou?
é uma só: a ação sobre
Como você vê o manifesto a realidade e a
neoconcreto? memória é infinita.

À esquerda: Xico Chaves em seu ateliê. Foto Nelson Ricardo Martins. Acima: Eu Você e Livro de Pedra.
Não sei se a poesia me conduziu às artes visuais.
Talvez seja até o contrário, mas como têm a
mesma origem são a mesma coisa.

Em sentido horário: Série infinitos, 1992. Série Nova Matéria, 1987 e Rio, poema gráfico retirado do livro
Trincheira de espelhos (1982).

Não sei se a poesia me conduziu às


artes visuais. Talvez seja até o
contrário, mas como têm a mesma
origem são a mesma coisa. Descobri a
poesia concreta antes de conhecê-la,
assim como a poesia moderna, a
antipoesia, o poema gráfico. Escrevia
sonetos na adolescência e desenhava
no chão e nas paredes com cacos de
telha, tinta com água e outros materiais,
criava objetos com sucatas, pedras,
madeira, pólvora... não via nada demais
nisso. Quando conheci as experiências
vanguardistas, identifiquei-me, mas
sem negar a importância das linguagens
anteriores. O manifesto neoconcreto
24 CHICO CHAVES
Série Marés, 2008.

e suas consequências romperam com Estamos livres, enfim, dos controles


a formalidade das regras que estéticos e conceituais.
direcionavam as artes visuais
convencionais, libertaram-nos para a Você participou da famosa exposição
tridimensionalidade contemporânea, a "Como vai você, Geração 80?", com
incorporação de todo tipo de material, curadoria do Marcus Lontra, que
o corpo e a diversidade de propôs uma ocupação do prédio
pensamento e expressão. De forma neoclássico do Parque
similar, isso aconteceu na poesia, com Lage, em 1984. Dentre os artistas, você
o poema-processo, em que a palavra foi o único poeta. Por quê?
passa a ser um elemento a mais na
construção da poesia e são inseridas Participei com uma pintura em que
imagens, fotogramas, composições utilizava minerais e pigmentos naturais,
gráficas... hoje são incluídas predominantemente minério de ferro
tecnologias digitais e muitos outros e carvão vegetal. A obra propunha
materiais na poesia contemporânea. diversas leituras, vista a diversas
25
distâncias e as cores eram percebidas
por meio da projeção de luz sobre a
tela onde se revelavam pela refração,
difração e reflexão de luz. Não fui eu
que me classifiquei como poeta, foi a
curadoria. Geração 80 foi associada à
transvanguarda, à explosão de cores
e grandes formatos, ao prazer de
pintar, etc. Minha proposta não estava
muito dentro desse recorte, assim
como outros artistas com obras mais
conceituais. Creio que foi bom não ser
classificado apenas como "artista
plástico". Pode ter sido até um
problema, mas continuei me sentindo
livre para dar prosseguimento às
praticas de arte contemporânea da
forma que concebi, em expansão para Creio que toda arte é
todas as direções. A favor e não contra. política por ter como
Sua produção artística é marcada, proposição a
dentre outros aspectos, por ações liberdade de
com ferrenhas críticas político-
sociais. Um bom exemplo é "Olho na expressão e
Justiça" (1992), intervenção pública, e autonomia de
performance, realizada na escultura
"A justiça", de Alfredo Ceschiatti, na pensamento.

À esquerda: Olho na justiça, 1992. Fotos: Arnaldo Lobato. Acima: Forças Ocultas.
Acima: Obra da série Joanna. À direita: Muito Falo, 2003, objeto da série Situações Arqueológicas.

Praça dos Três Poderes (DF), que mesmo inexistente. Prevalece aí a


resultou na sua prisão . Você acredita poética, o exercício da liberdade de
que a arte deve ter uma expressão do pensamento. "Olho na
responsabilidade política? Como você Justiça" adquiriu diversos significados
vê a relação arte-política? simultâneos. Até hoje encontro novas
relações nessa intervenção-
Já respondi muito sobre isso pois há performance, que continua atual, é
quem me considere um artista político, atemporal. Toca na questão do direito
o que não é verdade. Há proposições e da justiça, do inconsciente coletivo e
que adquirem maior projeção na mídia da realidade social. "Forças Ocultas" e
e elas ainda estigmatizam o artista. "Brasília Ibiúna 78" também. Mas a
Creio que toda arte é política por ter maior parte do meu trabalho não
como proposição a liberdade de apresenta uma proposição política tão
expressão e autonomia de evidente. A pintura com minerais e
pensamento. Há momentos que suas pigmentos naturais compreende
opiniões se manifestam de forma também uma revalorização das
simbólica e até mesmo panfletária, questões do meio-ambiente, mas não
obtendo um grande alcance. No é só isso, tem a relação do ser humano
entanto, uma das funções da arte é com a natureza, mas apresenta uma
expressar um mundo utópico e até força simbólica e estética mais ampla.
28 ATELIÊ DO ARTISTA
Você desenvolveu uma profunda
pesquisa sobre pintura com pigmentos
minerais. Como se iniciou esse
processo?

A pintura com pigmentos naturais é


uma herança da minha família de
educadores, que formavam
professores e alunos de comunidades
pobres que não tinham recursos para
comprar tinta, papel e outros materiais
e suportes convencionais. Só percebi
que tinha uma função artística e não
apenas didática quando já pintava com No entanto, uma
tinta industrial e havia publicado meus das funções da
poemas, letras de música e poemas
visuais. A partir desse momento,
arte é expressar
concebi um projeto de pesquisa e um mundo
criação com minerais, terras, óxidos e
pigmentos naturais. Aprovei uma
utópico e até
pesquisa junto ao CNPq e aprofundei mesmo
o conhecimento técnico e conceitual
com esses materiais; fiz pesquisas
inexistente.
científicas e um mapeamento das
regiões e dos locais onde poderia
encontrar as cores e as matérias,
suportes e resinas adequadas. Venho
trabalhando há muitos anos nesse
projeto que me revela, a cada dia, uma
infinidade de aplicações e conteúdos.
É altamente sedutor ver e vivenciar os
resultados, sua extrema plasticidade,
versatilidade, multiplicidade e sua
associação com o mundo e sua
interminável poética universal.

Para mais informações, visite o site do


artista www.xicochaves.com.br.

Laís Denise Santana é pós-graduada em


Artes Visuais pela UNICAMP e
graduada em Artes Cênicas pela
UEL. Apaixonada por arte
contemporânea, atua no mercado de
arte carioca, desenvolve projetos de
curadoria e pesquisa as relações
entre arte, política e sociedade.

29
Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms.

DO CÉU À TERRA
ANTONI GAUDÍ
MOSTRA ITINERANTE DO ARQUITETO CATALÃO PASSA POR
SÃO PAULO COM MAIS DE 70 PEÇAS ORIUNDAS DO MUSEU
NACIONAL DE ARTE DA CATALUNHA E MUSEU DO TEMPLO
EXPIATÓRIO DA SAGRADA FAMÍLIA

POR RAIMON RAMIS

Vivemos momentos agitados, de futuro


pouco definido. De alguma forma, tudo
o que acreditávamos que era
definitivamente imóvel voltou a se
mover. Os limites permanecem
incertos e não acabamos de decifrar
qual será o futuro das coisas. A
tecnologia está removendo as
estruturas de conhecimento e,
obviamente, todo o sistema treme.
Às vezes, pensamos que algo é novo,
mas não é assim; se olharmos para trás,
percebemos que, a partir de meados
do século 19, têm havido uma série de
mudanças culturais, sociais,
econômicas e políticas que abalaram o
mundo mais de uma vez. Mas, acima de
tudo, nos obriga a rever o que já
conhecemos e acreditávamos que era
imutável.
Acima: Retrato de Antoni Gaudí em 1878 ao terminar seus estudos em arquitetura.
Nesses momentos de mudanças, as
ideias acontecem, se apoiam uma à É precisamente
outra. É difícil ver o que está nesses momentos
acontecendo, não há tempo para
assimilar as coisas, embora em que a arte se
suspeitamos que algo está mudando. manifesta como um
É precisamente nesses momentos em
que a arte se manifesta como um espaço de
espaço de confronto, de reivindicação confronto, de
do tradicional e visão do que está por
vir. De alguma forma, a arte se torna reivindicação do
universal quando é capaz de tradicional e visão
vislumbrar as mudanças que a
sociedade deve enfrentar. do que está por vir.
Gaudí viveu na virada dos séculos 19 e
20, uma época de grande agitação
cultural, social e ideológica. Sua visão
de mundo foi se trancar cada vez mais
com os princípios do catolicismo
32 CAPA
tradicional; contrariamente, sua
concepção arquitetônica foi se abrindo
aos postulados mais racionalistas que
revolucionaram a arquitetura e,
obviamente, o conceito de cidade, com
tudo o que isso comporta.
Essa luta entre a modernidade e a tradição
que se estabelece na mente de Gaudí é o
que explica os caprichos estilísticos do
arquiteto em suas obras. Desde o
barroquismo na fachada do nascimento da
Sagrada Família ao minimalismo
racionalista das escolas provisórias no
mesmo templo, hoje Basílica. Além disso,
seu gabinete com os preceitos religiosos
e sua espiritualidade marcam a criação de
sua linguagem arquitetônica.
Se olharmos para suas primeiras obras,
como a casa Milà ou as soluções para a
construção da Sagrada Família, o arquiteto
se retira, de uma arte a serviço da
ostentação e do luxo, para umas formas
mais eminentemente orgânicas, mas de
uma racionalidade esmagadora. Na mente

À esquerda: Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona. © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms. Acima:
Maquete da Casa Batlló, Coleção particular e Bellesguard, 1900-1909, Barcelona, © Peres Vive. Triangle postals.
Casa Vicens, 1883-1888, Barcelona © Casa Vicens Barcelona 2016. Foto: Pol Viladoms.
do arquiteto, seu princípio de que a seu princípio de que
natureza é a origem de tudo, e que isso
é uma criação de Deus, confronta com a natureza é a
as suas capacidades criativas, suas origem de tudo, e
soluções nascidas da abstração
geométrica, ou seja, a capacidade do que isso é uma
homem de reformular os princípios da criação de Deus,
natureza a partir do raciocínio
abstrato. E, claro, nessa racionalidade
confronta com as
ele sobrevive o princípio natural que suas capacidades
só sobrevive o necessário, o essencial
para a sobrevivência da espécie,
criativas, suas
aquilo que não tem utilidade morre. soluções nascidas da
Sua obra é uma reconstrução da
natureza, no sentido mais conceitual.
abstração
O naturalismo educado, maneirista, geométrica…
herdado do romantismo, não tem lugar
no último Gaudí. Sua concepção da
arquitetura se alinha mais na eficiência
das formas naturais do que na
recreação paisagista dos artistas do
final do século 19.
36 ANTONI GAUDÍ
À esquerda: Palau Güell, 1886-1888, Barcelona. Acima: El Capricho, 1883-1885, Comillas.
© Peres Vive. Triangle postals.
Janela da nave cenrtal da Basílica da Sagrada Família. Junta Constructora del Temple Expiatori de la Sagrada Familia.

38 CAPA
Maquete do conjunto da Basílica da Sagrada Família. Junta Constructora del Temple Expiatori de la Sagrada Familia.

É por essa eficiência da leitura que nos Gaudí: Barcelona, 1900 • Instituto
faz entender que Gaudí desenvolveu
soluções que coincidem com os Tomie Ohtake • São Paulo •
futuros postulados racionalistas que 19/11 a 5/2
surgiram quase ao mesmo momento
de sua morte.
Gaudí é o resultado de uma dupla Raimon Ramis é curador, fotógrafo
discussão, a técnica arquitetônica e de arquitetura e historiador em
sua eficiência, por um lado, e da arte pela Universidade de
Barcelona. Atualmente é gestor
ordenação espiritual da sociedade do cultural e diretor de Projetos da
outro; das contradições entre o céu e Fundação MediaBus no Chile.
a terra.

39
LIVROS lançamentos

O terceiro setor na gestão da Cultura: A perspectiva a partir


do Museu de Arte do Rio
Org. Carlos Gradim
Instituto Odeon

A publicação apresenta um relato da experiência do


Instituto Odeon à frente da gestão no museu, a partir
de discussões sobre gestão da cultura e o modelo de
gestão por organizações sociais trazidas por autores
convidados de diversos setores, como Claudinéli
Moreira Ramos, Allan Rocha de Souza, Vitor de
Azevedo Júnior, Cláudio Lins Vasconcelos, Erich
Bernat Castilhos, Pedro Paulo de Toledo Gangemi,
Luciane Gorgulho, Eder Campos, Bruno Pereira e
outros.

O museu como veículo de desenvolvimento crítico e social


Liliana Coutinho e Sara Antónia Matos
Documenta - 140 p. - R$ 60,00

Na contemporaneidade, os museus anseiam, cada vez


mais, chegar a novos públicos e marcar a diferença na
vida das pessoas. Além da actividade expositiva, a
instituição museológica procura agora gerar eventos
de todo o género (conferências, debates, workshops,
simpósios, visitas às reservas, lançamentos de
publicações, etc.). No âmbito desta nova dinâmica, esta
publicação dá conta do trabalho realizado durante três
anos e meio pelo Serviço Educativo no Atelier-Museu
Júlio Pomar e surge como o meio e o momento
oportunos para refletir sobre a função deste serviço
no domínio mais lato da ação do museu.

40
O artista como ele é
Julião Sarmento. Conversas com Pedro Faro e Sara A. Matos
Documenta - 168 p. - R$ 50, 00

O título insere-se na coleção Cadernos do Atelier-Museu


Júlio Pomar e dá seguimento ao projeto de entrevistas que
se iniciou com Júlio Pomar: O Artista Fala… [2014],
continuou com Rui Chafes: Sob a pele… [2015], surgindo
agora a propósito da exposição “Void”: Júlio Pomar & Julião
Sarmento.
As entrevistas são feitas por ocasião do programa de
exposições do Atelier-Museu que cruza a obra do pintor
com artistas convidados, mostrando novas relações
daquele com a contemporaneidade.
Esta publicação poderá servir para o leitor acompanhar e
desvendar alguns dos processos mais exigentes e
enigmáticos do mundo da arte, nomeadamente a criação
artística e a concepção de exposições.

Fotogramas - Ensaios sobre fotografia


Org. Margarida Medeiros
224 p. - R$ 70,00
A história da fotografia oscilou sempre entre o assumir do
valor documental da imagem, enquanto indexicalidade pura,
e a forma como diferentes épocas se pretenderam demarcar
dela, a partir do dispositivo da Arte mas também do jogo e
da experiência lúdica que a fotografia propicia desde o seu
início. Devido ao seu carácter de representação “pobre”
(Dominique Baqué 1996), mas, simultaneamente, face à
incontornável vizinhança que estabelecia com a pintura, foi
abordada simultaneamente como objeto industrial e como
forma de arte. A sua história e ontologia oscilaram assim entre
o formalismo oriundo da História da Arte e uma visão mais
populista que, ao pretender abranger toda a transversalidade
cultural da fotografia procurou também generalizar sobre a
sua natureza artística.
41
RESENHAS exposições

A luz que vela o corpo é a mesma


que revela a tela
Caixa Cultural • Rio de Janeiro •
15/1 a 12/3
POR POLLYANA QUINTELLA

Dizem as más línguas que falar de pintura Paloma Ariston, Ana Elisa Egreja, Pedro
contemporânea pode provocar calafrio, Valera e Rafael Carneiro, por exemplo, o
tontura e taquicardia. Entre o peso da texto recorre ao humor e às referências
tradição e certa destreza reivindicada, há cotidianas para discutir o problema da
quem prefira simplesmente recusá-la. Ou, beleza na pintura de maneira
por outro lado, assumi-la como gesto despretensiosa: "as imagens da câmera de
hercúleo, de coragem. Há ainda aqueles segurança de um museu e as fotos de perfil
outros que resistem ao drama desses dois do Tinder / a loja de decoração e a galeria
extremos, reconhecendo no pictorial não de arte". Assim, constrói-se um percurso
aquilo que nos exime ou nos salva; mas nos livre advertido pelo lirismo, buscando
impregna. Não à toa, “A luz que vela o contaminações e cruzamentos possíveis,
corpo é a mesma que revela a tela” é uma em que uma mesma obra poderia se
exposição de 36 pintores contemporâneos encaixar em mais de um tema. Não se sabe
brasileiros, e com pesquisas diversas, ainda se seria possível de outro modo: Bruno
em formação ou mais consolidadas, entre Miguel, que assina a curadoria, é, antes,
nomes como Dalton Paula, Thiago Martins artista. O que interessará, portanto, é o
de Melo, Camila Soato, Gisele Camargo, que vela e revela, o que encobre e
Alan Fontes, Marcelo Amorim e Vitor desnuda, operação da poesia que
Mizael. reorganiza o real, ou como a insistência da
Seu exercício poético já começa no longo velatura que acumula transparências para
título, anunciando a promessa não de um então fazer ver. Se a tradição conclamaria
mapeamento geracional - tentativa para a pintura o princípio de uma janela
perigosa -, mas de um olhar curatorial que para o mundo, aqui veremos outro
optará pelo estado de fabulação. As obras vocabulário arquitetônico, entre a quina, o
estão divididas em nove núcleos nada canto e a dobra. Polifonia que nos
usuais, agrupadas mais pelo contraste do informará que a pintura segue. E seu
que pela afinidade. Os textos que as horizonte é vasto.
acompanham estão estruturados em versos
Pollyana Quintella é poeta,
(como poemas) que constroem certa crítica e curadora. Coeditora da
atmosfera para a leitura das obras. Em "O revista USINA e pesquisadora
belo e não", núcleo em que participam da Casa França-Brasil.

42
Autorretrato com filhos e mameluca.

LEONORA WEISSMANN
SELECIONADA PELO CONSELHO EDITORIAL DASARTES, A
ARTISTA MINEIRA É A PRIMEIRA VENCEDORA DO CONCURSO
GARIMPO. A VOTAÇÃO CONTINUA EM DASARTES.COM.BR

POR ELISA MAIA testemunho visual ao retratar quatro


"Autorretratos no Novo Mundo" foi o casais brasileiros - mameluca e
trabalho que Leonora Weissmann mestiço, africanos, índios tupis e
começou em 2007, em diálogo com as índios tapuias - e classificá-los em
célebres pinturas de Albert Eckhout, estágios civilizatórios. No estágio
pintor que veio ao Brasil na comitiva mais inferior desse mapeamento
trazida por Maurício de Nassau etnográfico estavam os tapuias que,
durante a ocupação holandesa. praticantes do canibalismo ou
Seguindo sua tarefa de documentar a antropofagia, personificavam o
paisagem e a vida no "novo mundo", extremo da alteridade ocidental
Eckhout deixou um valioso cristã, o arquétipo do "outro
44 GARIMPO
selvagem". Assim, no retrato da índia
tapuia, uma mulher quase nua carrega
nas costas um cesto com membros
humanos decepados e aos seus pés
um cachorro lambe do chão o sangue
que escorre ainda fresco. O contraste
em relação à índia tupi, "mais
aculturada" que a tapuia, é bem
marcado, uma vez que ela é retratada Leonora faz uso de
mais vestida, carregando um cesto uma técnica vigorosa
com utensílios, mandioca e farinha em para se retratar como
uma paisagem que exibe um campo uma jovem artista
cultivado.
contemporânea,
Leonora parte dos retratos femininos
incluindo em suas
de Eckhout para se colocar no lugar
dessas mulheres - "aproveitando o
imagens objetos como
tom classificatório do bestiário uma bola de piscina,
humano proposto pelas pinturas, que um colete salva-vidas
falam mais da dominação holandesa ou um Snoopy de
no Brasil do que do próprio Brasil, me pelúcia.
autorretrato, incluindo meu universo
como mulher, mãe e artista." Seus
autorretratos, pinturas exuberantes,
incluem pequenas "janelas" nas quais
a artista reproduz as famosas pinturas
de Eckhout, sobrepondo diferentes
significados, estereótipos e tempos.
Assim, em diálogo com essas
mulheres que carregam utensílios
típicos de um Brasil colonial, Leonora
faz uso de uma técnica vigorosa para
se retratar como uma jovem artista
Autorretrato com Theo e a gruta.

contemporânea, incluindo em suas


imagens objetos como uma bola de
piscina, um colete salva-vidas ou um
Snoopy de pelúcia. Essa apropriação
é também um gesto de
desapropriação, de des-
hierarquização e desconstrução do
esquema taxonômico imposto aos
habitantes daqui pelo olhar do
homem europeu - "um misto de ficção

45
e realidade que, de uma forma ou de paisagens. Se as pinturas de Leonora
outra, influenciou na formação da não deixam de ser descrições
imagem da mulher na história minuciosas da superfície de um
brasileira", conta. mundo recortado, as descrições de
O conjunto do trabalho engloba os Emygdio não deixam em certo sentido
quatro grandes autorretratos, outros de se aproximar de pinturas,
conjuntos de pinturas menores e propondo novas visualidades que se
textos que abrem janelas para fora da
própria pintura, como "Céu de Cajus" Elisa Maia é formada em direito
e "Deslocamento". Os textos são do e letras e mestre em literatura,
biólogo Luis Emygdio Filho sobre as cultura e contemporaneidade.
Interessa-se especialmente
pinturas de Eckhout - descrições pelas relações entre literatura e
científicas sobre as figuras e as artes visuais.

Autorretratos no Novo Mundo. Fotos: Cortesia da artista.

46 GARIMPO
COLUNA DO MEIO
Quem e onde no meio da arte
Fotos: Paulo Jabur

Max Perlingeiro, Gabriela Moraes e Leonel Kaz, Laura Monteiro e


Luiz Antonio de Almeida Braga Ascânio MMM

Abraham Palatnik
CCBB
Rio de Janeiro

Ângelo Venosa e Abraham Palatnik Iole de Freitas e Abraham Palatnik

Cabelo, Felipe Scovino, Anita Schwartz e


Ricardo Rego Vandinha Klabin e Guilherme Vergara
Fotos: Paulo Jabur

Juliana Blau, Maria Lynch, Anita Adriana Barreto, Ângelo Venosa e


Schwartz e Alberto Saraiva Renata Lima

Maria Lynch
Oi Futuro Ipanema
Rio de Janeiro

Neville d'Almeida e Cesar Oiticica Filho Maria Lynch e Alexandre Murucci

Beto Silva e Alberto Saraiva Rodrigo Andrade, Maria Lynch e Lucas Lins
Fotos: Denise Andrade
Fernanda Resston, Nazareno e Afonso Tostes Fernanda Resstom, Gustavo Carneiro e Viviane Neto

Amalia Giacomini
Galeria Lume
São Paulo
Paulo Kassab Jr, Amalia Giacomini e
Renata Castro e Silva e Alexandre Roesler Felipe Hegg

Carlos Eduardo Sobral e Felipe Hegg Raul Mourão e Afonso Tostes

Fotos: Leda Abuhab

Helio Seibel, Tuneu e Myra Arnaud


Babenco Danielle Bretas e Brigitte Kammerer

Tuneu + Coletiva
Galeria Raquel Arnaud
São Paulo

Cintia Rocha e Yannick Bourguignon Denise Berni e Silvia Segall

Raquel Arnaud, Myra Arnaud Babenco


Teresa Carraro e Roberto Bertani e Lu Rodrigues
ALTO FALANTE
Por Alexandre Sá

Pequenas considerações
sobre ensino e sistema de arte

Cresci ouvindo que arte era algo distante e exótico. Ao longo de alguns anos de trabalho,
essa afirmação se repetiu algumas vezes; vinda inclusive de setores e regiões bastantes
respeitadas do saber. Vinda de agentes com os quais eu tive que lidar, trabalhar para, ou
mesmo, ministrar palestras. Arte como trabalho, sempre foi algo pouco compreensível. No
caso brasileiro, é perceptível que as Artes Visuais ainda não conseguiram estabelecer um
elo constante com a cultura, caso não seja amparada por um sistema muito específico de
espetáculo, lojas de museus, pequenos souvenires, objetos decorativos e entretenimento.
Mas tal área não é isso também? Será que haveria ainda algum purismo no que se refere às
exposições e seus pseudópodos? Será que não é parte do devir capital um conjunto de
adereços que são imprescindíveis para a manutenção e a rota de um sistema de circulação
de capital que envolve uma maquinaria muito específica, negociações precisas e
paradoxalmente longínquas, inserções de marcas, patrocinadores, projetos e tudo o mais?
Sim. Obviamente. Aqui e em qualquer lugar do mundo. Talvez ainda nos falte dois elementos
muito simples: certa dobra inevitável deste aparelho para que ele acredite de fato no seu
potencial transformador, político e ético; além de um investimento mais potente na
formação de um público que se daria por meio de um conjunto de ações educativas em
longo prazo que, por sua vez, apesar de pensarem inevitavelmente no lucro, ainda seriam
capazes de compreender certa missão que lhe atravessa e é, por mais clichê que pareça,
determinante para a constituição de uma cidade, de um Estado e de um país.
Se os investidores se tornassem capazes de compreender que é decididamente possível
uma fratura em sua ferocidade natural para a abertura de um campo semântico, simbólico,
comunitário e poético que pode ser atravessado por um eixo educativo e que tal
aproximação não precisa soar necessariamente ingênua, outro rumo poderia vir a surgir
naquilo que compreendemos como cultura e, provavelmente, não viesse a nos envergonhar
de maneira tamanha (diante de sua precarização constante).
Por certo, no momento atual em que nos encontramos, tal proposta pode ainda parecer
mais estúpida, já que estamos tendo nossa dignidade sendo solapada de maneira contínua.
Mas seria de todo impossível? A aproximação mais lúcida entre investimento, exposição e
ensino seria algo inviável em um país como o nosso, mesmo que ainda não tenhamos tido
tempo de compreender e ultrapassar nossa herança histórica de saques, violência,
dominação, silêncio, coronelismo e conforto; ou, melhor dizendo, de certo gozo no
sofrimento em si, desde que resguardado o pseudoprazer de uma vantagem por cima de
qualquer outro que seja (um outro-cultural histórico)? É óbvio que toda a falta de estrutura
e manutenção, do mau-humor no atendimento, do descompromisso ou das figuras de poder
que exercitam cotidianamente o mal de subjugar um outro são elementos que existem em

50
qualquer lugar do mundo; mas talvez ainda nos reste algum tempo de verificar se a nossa
particularidade em relação a todos esses assuntos não tem sido extremamente perversa.
Dois exemplos parecem surgir aqui vindos de um estrangeiro muito próximo: em algum ano
que já não lembro mais, visitava uma exposição no Beaubourg com obras de Ad Reinhardt.
A cena era simples. Uma turma pequena de crianças com seus seis ou sete anos e uma
mediadora. Não havia um caminhão despejando escolas municipais a todo tempo na entrada
da exposição provocando uma gritaria insuportável. Não havia grupos de animadores de
auditório com suas pseudoperformances recheadas de algum histrionismo. Não havia nada
além da mediadora, as crianças e Ad Reinhardt. Conversavam animadamente sobre o que
viam, como sentiam, sobre alguma lembrança eventual. Havia algo de sagrado nada católico
naquelas pequenas falas compromissadas com aquele azul sem profundidade e um tipo de
relação muito íntima e respeitosa entre eles e entre todos nós visitantes. Tudo silencioso,
educado e sem escândalo. Nós não éramos um número. Ou, caso fôssemos, a cena era
construída de maneira digna.
Na mesma viagem milagrosa e de pouquíssima grana, trabalhei acompanhando projetos de
uma escola técnica de arte no Sul da França. Sim, todos tinham tudo à disposição e a escola
possuía uma estrutura que revelava a compreensão histórica da importância de tal prática
para a comunidade, para a região, para o turismo, para o espetáculo, para a realimentação
do sistema e tudo o mais. Nada era ingênuo. Em alguns momentos, os alunos organizavam
uma exposição para seus professores e alguns curadores. Era um ato solene. Eventualmente
cruel, pois, afinal, espíritos sem luz existem em qualquer lugar do mundo (da mesma maneira
que em qualquer cama); mas a relação de respeito mútuo e de tentativa de
operacionalização de fazer o melhor e, sim, (pasmem!) dizer o melhor, era memorável. Dos
dois lados. Sim, eram inevitavelmente dois lados amparados por algum tempo de estudo a
mais, mas havia um desejo de encontro. O algoz estava dentro de cada um e todos sabiam
disso. E mesmo que também, nesse caso, o desejo fosse semblante, algo de educação se
dava ali. Talvez algo que todos tenham trazido de casa. Com todos os seus flancos. Com
todos os seus buracos. Com todas as suas lágrimas e perversidades íntimas.
Paro agora. Releio o texto. As duas cenas anteriores parecem imbecis por sua certeza.
Obviamente, existem muitos outros exemplos tão ou muito mais potentes que esses em
lugares inimagináveis do Brasil e do mundo. Surgiram aqui como uma lembrança muito clara
e como um exemplo de trabalho que vivi e carrego na memória. E talvez me desenhe agora
alguma vergonha em virtude de ter sido deliciosamente e militarmente preparado para e
por um tipo de cultura que economicamente e geologicamente nunca fui capaz de viver por
inteiro. Por outro lado, acho que são imagens relevantes porque explicitam a possibilidade
de driblar a lógica produtiva perversa que atravessa a formação em diversos níveis aqui,
neste tal lugar que chamo de país.

…estamos tendo a nossa dignidade sendo solapada de


maneira contínua.

51
…o sucateamento da educação é um projeto bem estruturado que
vem acompanhado de um desejo de retrocesso político…

Por certo, o sucateamento da educação e da pesquisa científica que vivemos é um projeto


bem estruturado que vem acompanhado de um desejo de retrocesso político, econômico e
moral erigido pelas velhas e já conhecidas elites. Por outro lado, talvez ainda nos caiba
alguma responsabilidade diante do cenário que se descortina e da lassidão estabelecida
como regra. E como esse assunto todo parece clichê, nada mais justo que terminar o texto
sem terminá-lo, apenas levantando algumas questões (que podem ser continuadas pelos
senhores) que talvez desaguem em outro texto nosso a ser construído na prática:
- Quais pesquisas existem sobre o escoamento e o aproveitamento dos discentes pelo
mercado de trabalho nos cursos de Artes Visuais/História da Arte no Brasil?
- Qual a última exposição que você visitou no Brasil que conseguiu produzir um catálogo
denso e que, em certo sentido, fosse capaz de construir teoria a partir daquilo que era
exposto, ou o seu contrário?
- Nomes de curadores-pensadores para além de uma mera assinatura e uma boa sessão de
fotos?
- Por qual razão o ensino da arte (a licenciatura) ainda é vista como um campo menor das
outras áreas?
- Seu professor de licenciatura já entrou em sala de aula - pública, de preferência? Procure
saber.
- Exemplos de relações híbridas entre escola de arte e sistema de arte que, de fato,
acreditem no potencial do trabalho, que estabeleçam diálogos justos e jamais façam uso de
um dinâmica perversa de poder?
- Sua escola de arte o obriga a ficar horas falando sobre todos os conceitos que atravessam
o trabalho?
- Nomes de museus com setores de arte-educação/mediação que hoje consigam de fato
promover e provocar um programa de pensamento, reflexão e resultados?
- Conhece algum amigo que passou a vida inteira ganhando bolsa de pesquisa e jamais
devolveu (nem que seja uma migalhinha) para a comunidade?
- Já escreveu um artigo que só foi lido por seus pares?
- Exemplos de museus e espaços culturais com bancos confortáveis para corpos cansados
e pessoas de idade?
- Sabe o que está acontecendo na UERJ?
- Onde estão suas panelas?

Alexandre Sá é pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes


pela UFF; Doutor e mestre em Artes Visuais pela UFRJ; Diretor
do Instituto de Artes da UERJ; Coordenador do curso de Artes
Visuais da Unigranrio; Professor do Programa de Pós-graduação
em Artes da UERJ; Editor-chefe da revista "Concinnitas";
Professor da Casa França-Brasil; artista; curador; crítico de arte.

52 ALTO FALANTE
Lançada em 2008, a Dasartes é a
primeira revista de artes visuais do
Brasil desde os anos 1990. Em 2015,
passou a ser digital, disponível
mensalmente em seu aplicativo para
tablets e celulares e no site
dasartes.com.br, o portal de artes
visuais mais visitado do Brasil.

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