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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

EXPRESSÕES DE FALA EM O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ: uma análise


léxico-semântica

FURTADO, Clécia Maria Nóbrega Marinho

JOÃO PESSOA, PB

MAIO – 2006
FURTADO, Clécia Maria Nóbrega Marinho

EXPRESSÕES DE FALA EM O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ: uma análise


léxico-semântica

JOÃO PESSOA, PB

MAIO – 2006
CLÉCIA MARIA NÓBREGA MARINHO FURTADO

EXPRESSÕES DE FALA EM O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ: uma análise

léxico-semântica

Dissertação apresentada ao Programa do Curso

de Pós-Graduação em Letras, Área de

Concentração Lingüística e Língua Portuguesa,

da Universidade Federal da Paraíba, em

cumprimento às exigências para a obtenção do

Grau de Mestre em Língua Portuguesa e

Lingüística.

ORIENTADORA: PROFª. DRA. MARIA DAS NEVES ALCÂNTARA DE PONTES

JOÃO PESSOA – PB

2006
TERMO DE APROVAÇÃO

CLÉCIA MARIA NÓBREGA MARINHO FURTADO

EXPRESSÕES DE FALA EM O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ: uma análise

léxico-semântica

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Língua
Portuguesa e Lingüística no Curso de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração
Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade Federal da Paraíba.

BANCA EXAMINADORA

Profª. Dra. Maria das Neves Alcântara de Pontes (UFPB)


Orientadora

Profª Dra. Sônia van Dijck de Lima (UFPB)


Membro

Profª Dra. Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca (UFPB)


Membro

Profª Dra.Ivone Tavares de Lucena (UFPB)


Suplente

João Pessoa, 29 de maio de 2006


DEDICATÓRIA

Às minhas glórias: meu esposo,


Nonato, e meus filhos, Shaka, Ariadne
e Axell.
AGRADECIMENTOS

• Ao meu pai, João Marinho de Araújo, e à minha mãe, Maria Daura N. Marinho, pela
minha existência.
• À Universidade Federal da Paraíba por nos permitir a oportunidade.
• À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
da Paraíba pelo apoio no decorrer do Curso.
• À professora Drª Maria das Neves Alcântara de Pontes pela segurança e precisão na
orientação.
• À professora Drª Mônica Nóbrega.
• À professora Drª Marianne Cavalcante.
• À professora Drª Evangelina Faria.
• À professora Drª Maria Cristina Assis P. Fonseca.
• Ao professor Raimundo Nonato O. Furtado (CCHT / CEFET-PB) o incentivo e a
presteza com que dirimiu as dúvidas no campo das Ciências Sociais.
• À professora Maria do Socorro Burity Dialectaquiz (CLCT / CEFET-PB) pelo
estímulo e o compartilhar de conhecimentos na área da Lexicologia / Etno-
Sociolingüística durante esta investigação.
• À professora Maria Salete F. de Carvalho (CLCT / CEFET-PB) que sempre se
mostrou disponível para colaborar durante o período de estudos.
• À professora Elida de Oliveira Barros Pessoa (CLC / CEFET-PB).
• A Beatriz Alves de Sousa, Coordenadora da Biblioteca do CEFET-PB.
• A Petter KrometseK  Biblioteca / CEFET-PB.
• A todos os meus familiares que acreditaram em mim.
RESUMO

O presente trabalho trata de um estudo lingüístico em O Quinze, de Rachel de


Queiroz, primeira obra de sua autoria, publicada em 1930. Consiste numa pesquisa das
expressões de fala contidas na obra em foco, respaldada nos pressupostos teóricos voltados
para a Lexicologia, a Semântica, a Cultura Regional, bem como para teorias que se coadunam
em torno desta temática, dentre elas, a Hipótese Sapir-Whorf, a Teoria dos Campos Lexicais,
além de outras, que se fizeram necessárias ao estudo lexicológico, notadamente a cultura com
reflexo na língua. Seus limites estão definidos nos registros de fala, que, submetidos à análise
léxico-semântica, sob a perspectiva geo-etno-lingüística, convalidam a inter-relação língua-
cultura-sociedade. Sendo assim, o conteúdo de feição literária e os processos a ele inerentes
não se constituem objeto de estudo, apenas, suporte a nossa análise.

Palavras-Chave: 1. Lexicologia. 2. Sociedade. 3. Cultura.


ABSTRACT

The present work tries a linguistic study in O Quinze, of Rachel de Queiroz, first work of its
authorship, published in 1930. It consists of a research of the expressions of contained speech
in the work in focus, backed us theoretical budgets come back for the Lexicology, to
Semantic, the Regional Culture, as well like for theories that they are combined around this
thematic, among them, the Hypothesis Sapir-Whorf, the Theory of the Lexical Fields, beyond
other, that were done necessary to the study lexicological, in special the culture with
consequence. His limits are definite in the records of speech, that, submitted to of the analysis
lexicon-semantic, under the perspective geo-etno-linguistic, it validate to inter-relation
language-culture-society. Being like this, the content of literary feature and the trials to him
inherent are not constituted object of study, barely, support to our analysis.

Keywords: 1. Lexicology. 2. Society. 3. Culture.


SUMÁRIO

Introdução 01

1. Da Lexicologia 03

1.1 Uma trajetória necessária 03

1.2 O Léxico 06

1.3 Os campos semânticos 07

2. Da hipótese Sapir-Whorf 10

2.1 Noções preliminares 10

2.2 Caracterização 12

3. Da Cultura e do Léxico Regional 14

3.1 Cultura: um percurso conceitual 14

3.2 Léxico Regional 18

4. Da Autora e da Obra 22

5. Descrição e análise do Corpus de O QUINZE, de Rachel de Queiroz 25

5. 1 Expressividade : o cenário da seca nas metáforas e comparações 25

5.2 Aspectos de estratificação Social 38

5.3 Religiosidade/Misticismo 48

5. 4 Valores e costumes 66

5.5 Termos e expressões regionais / populares 77

Considerações finais 97

Referências bibliográficas 98
“A fala não se esgota na mensagem que engendra,
ela pode fazer ouvir muito além do que foi dito”.
(Barthes, 1978)
INTRODUÇÃO

A língua humana, que em um determinado período psíquico e social do homem surge


para atender às necessidades comunicativas inerentes a este, é, hoje, considerada ponto de
partida da ação cognitiva, social e cultural das comunidades humanas.
A interface língua, sociedade e cultura tem sido objeto de investigação de pesquisas no
campo da Lingüística, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, entre outras áreas do
conhecimento. Por vezes, a língua é considerada instrumento de comunicação da realidade
física e cultural do povo que a criou e a usa; em outras, formadora da visão de mundo em
virtude das influências que sofre por parte destas realidades.
Neste trabalho, voltamo-nos para o universo lingüístico de O Quinze em seus aspectos
léxico-semânticos centralizados nos elementos reveladores dos aspectos socioculturais de uma
estrutura definida nos limites do sertão cearense situado no quadro de seca de 1915. Para
tanto, partimos de três hipóteses:1) é possível se realizarem estudos lexicológicos sobre O
Quinze, a partir de teorias lingüísticas e sociológicas; 2) aspectos extra-lingüísticos são
identificáveis no léxico dessa obra; 3) existem expressões de fala registradas no léxico da obra
selecionada, que nos permitem proceder a uma análise léxico-semântica em que se configure
a inter-relação língua, sociedade e cultura. Para testá-las, perfilamos as especificidades, que
entendemos possibilitarem uma análise dessa natureza sob uma perspectiva geo-etno-
sociolingüística, a saber: 1) identificar as estruturas lingüísticas que determinam a construção
do léxico em O Quinze; 2) considerar palavras e estruturas expressionais constituintes desse
léxico, que convalidem as teorias em torno da inter-relação língua, sociedade e cultura; 3)
detectar neste léxico aspectos que possam impulsionar novos estudos não só nessa, mas
também em outras obras de Rachel de Queiroz.
É realidade que a presença de recursos da modalidade falada da língua vem sendo
verificada em textos escritos, tanto em prosa, quanto em verso. Nesse sentido, Rachel de
Queiroz, a nosso ver, é uma genialidade no tocante à arte da mutação da linguagem oral /
popular em escrita. Sua maneira peculiar de lidar com as palavras, nesse processo, confere-lhe
um estilo fluente, também singular, e de rica expressividade.
Tais razões, bem como o fato de a obra em tela apresentar material relevante para a
realização de uma análise léxico-semântica, sob a perspectiva destacada, justificam a escolha
de O Quinze, de Rachel de Queiroz, para subsidiar o corpus desta investigação. Ressalte-se
que para a elaboração deste, serviu de elemento fonte a 70ª edição de O Quinze, São Paulo:
Siciliano, 2001.
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O material analisado, quando de sua seleção, seguiu a ordem de ocorrência, entretanto,


apenas parte dele foi utilizada, contemplando-se aleatoriamente, para efeito de análise,
algumas das expressões.
Para subsidiarem a nossa análise, recorremos a pressupostos teóricos que tratam da
interface língua-sociedade-cultura, entre eles, a Hipótese Sapir-Whorf, bem como às teorias
que fundamentam a Lexicologia, a Antropologia, a Semântica, a Sociolingüística e a
Etnolingüística.
O trabalho apresenta-se dividido em cinco capítulos: o primeiro, o segundo e o terceiro
constam dos fundamentos teóricos; o quarto versa sobre Rachel de Queiroz e a obra em
estudo; e o quinto comporta a descrição e análise do corpus, que se encontra assim
segmentado: expressividade: o cenário da seca nas metáforas e comparações; aspectos de
estratificação social; valores e costumes; religiosidade / misticismo; termos e expressões
regionais / populares.
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1. DA LEXICOLOGIA

1.1 Uma trajetória necessária

A Lingüística, em virtude da complexidade do seu objeto de estudo, subdivide-se,


cabendo a cada uma de suas ramificações a análise, a descrição e a explicação dos diferentes
aspectos da língua, bem como das suas relações com outras instituições humanas e sociais.
Em meio aos múltiplos ramos da Lingüística situa-se a Lexicologia, que estuda o
léxico/vocabulário de uma língua e tem por objeto a “palavra”, ocupando-se, pois, do
relacionamento deste com outros subsistemas da língua, sobretudo, no que se refere a sua
estrutura interna, nas suas relações e inter-relações. Estuda, ainda, as “palavras” de uma
língua em todos os seus aspectos, podendo incluir a Etimologia, a formação de palavras, a
morfologia, a fonologia e a sintaxe, e mantém uma relação especial com a Semântica –
ciência das significações.
Em síntese, a Lexicologia tem como objeto a morfologia e a semântica estrutural. Este
segundo aspecto compreende o estudo das unidades lexicais e de seus equivalentes, em três
níveis: o da “langue”, o da “norma” e o da “parole”.
No nível da “langue” – universo desta análise – as unidades lexicais se configuram
como unidades funcionais. É nesse nível que se dá a sistematicidade dessas unidades. No
nível da “norma”, situa-se o que é socialmente estabelecido por uma dada comunidade e por
ela usado, independentemente, de ser ou não funcional ou distintivo; e no nível da “parole”, o
que é inerente ao discurso concreto, a designação ou a relação com o extralingüístico.
Considerando o domínio da Lexicologia, bem como o grau de interatividade entre a
Lexicologia e a Semântica, o lexicólogo Mário Vilela (1994, p. 10) infere: “entendemos e
analisamos a lexicologia como semântica lexical”.
O estudo lexicológico, relativamente recente, tem raízes na gramática e na filologia
tradicionais e remonta até mesmo à Antigüidade. Gregos e romanos já especulavam sobre a
origem da palavra e faziam, ainda, relevantes observações no tocante ao seu emprego e
sentido, a exemplo de Demócrito, que observou o fato de uma mesma palavra poder ter mais
de um sentido e, inversamente, poder haver mais de uma palavra para exprimir uma única
idéia; e de Aristóteles, a quem devemos a primeira definição de palavra como unidade
significativa da fala e a observação de que algumas delas, mesmo isoladas, mantinham o seu
significado, enquanto outras constituíam-se palavras funcionais. A nosso ver, esse filósofo
referia-se ao inventário aberto da língua, constituído por elementos de significação externa, e
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ao fechado, cujos elementos – palavras funcionais ou instrumentos gramaticais –


promovem o funcionamento da língua.
Com o advento dos postulados de Ferdinand de Saussure, na virada do Séc. XIX para
o Séc. XX, as idéias sobre os estudos dos fenômenos lingüísticos foram reavaliadas e novas
posições foram assumidas pelos estudiosos da linguagem em relação a estes.
No âmbito de sua doutrina, nas palavras de Jean Dubois (1973, p. 373), Saussure
“considerava o vocabulário como um nível completamente sistemático” e afirmava que “o
sentido de uma palavra é puramente negativo, porque a palavra está integrada num sistema de
relações e sua única realidade significante provém das delimitações que lhe impõe a
existência desse sistema”, portanto, podem ser estudadas numa estrutura conformada nos
eixos paradigmático – onde se verificam as relações virtuais existentes entre as diversas
unidades da língua, que pertencem a uma mesma classe morfossintática e/ ou semântica – e
sintagmático – onde se verificam as relações entre duas ou mais unidades, que aparecem na
fala. Desta forma, a Lexicologia que se prenunciou na Antigüidade veio a firmar-se com o
estatuto científico da Lingüística moderna, principalmente, no que diz respeito à
sistematização da língua por meio do vocabulário, conforme afirmava Saussure.
Conseqüentemente, com a introdução da disciplina Lingüística nos cursos de Letras, em busca
da restauração do significado através da teoria dos campos lexicais, já chamados por Saussure
de campos associativos, à Lexicologia é conferido o estatuto de ciência. Desta feita, passa a
aplicar métodos e técnicas de análise e descrição oriundos das mais diferentes correntes da
Lingüística moderna: parte do método fonológico estrutural, aplica o chamado “estruturalismo
clássico”, considera algumas propostas do gerativismo-transformacional e chega, finalmente,
às atuais teorias relativas à linguagem humana, à semiótica e à semiologia.
O reconhecimento científico da Lexicologia provocou grandes discussões, sem
consenso entre os pesquisadores, pois um expressivo número destes considerava-lhe o objeto
de estudo assistemático. Era fundamental distinguirem-se as unidades significativas
constituintes do léxico e considerá-lo não, apenas, o conjunto dos vocábulos do falante de
uma língua, mas também, numa perspectiva cognitivo-representativa, a materialização da
experiência interiorizada no saber da comunidade lingüística desse falante por meio das
palavras, portanto, um elemento móvel com possibilidade infinita de expansão.
Sobre as unidades de significação, André Martinet (1975) entende que os menores
segmentos do discurso aos quais se podem atribuir um sentido são os monemas, distinguindo-
os em lexemas, monemas que se situam no léxico, e morfemas, os que se situam na gramática;
denomina, ainda, de sintagma toda combinação de monemas. Para ele, cada língua tem o seu
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próprio modo de articulação, que se manifesta tanto na maneira como os monemas se


combinam na elaboração do enunciado, quanto na imensurável possibilidade de escolhas de
que dispõem as pessoas na elaboração do discurso.
Como podemos observar, o referido teórico adota uma posição diversa da dos gregos,
mencionada anteriormente. Contudo, ao tratar da conceituação da palavra, ele (1975, p. 120)
comenta:

Para a compreensão dos fundamentos da estrutura lingüística, é o sintagma


que deve reter a atenção, de preferência ao tipo particular de sintagma
autônomo caracterizado pela inseparabilidade dos elementos constituintes e
reunido, na rubrica de “palavra”, aos monemas que não entram em tais
sintagmas.

Posição mais radical em relação ao conceito de palavra é adotada por Leonard


Bloomfield que, nas palavras de Tereza Biderman (1978, p.78), “identifica a palavra com uma
forma livre mínima e a opõe ao sintagma ‘forma livre não-mínima’”. Na visão mecanicista da
linguagem de Bloomfield e seus seguidores, a citar, Ch. HocKett e Z. Harris, a significação de
um enunciado só poderia ser estabelecida pela psicologia – materialismo behaviorista – e
pelas ciências ditas exatas. Hockett fixa a palavra entre os morfemas e as formas livres; Harris
a considera irrelevante e vê no morfema o elemento de base da análise lingüística e no
discurso, não mais que uma seqüência de morfemas suscetíveis a várias substituições.
Sendo assim, os valores e as oposições semânticas não eram passíveis de estudo.
O lingüista Bernard Pottier (1968;1974) chama de morfema a unidade mínima de
significação, distribuindo-o em lexemas, os morfemas de base conceitual pertencentes ao
léxico, e gramemas, os indicadores de função pertencentes à estrutura interna da língua, isto é,
os gramaticais. Reconhece, ainda, as unidades formal e funcional da língua. A primeira
relaciona a união de elementos e constitui-se de lexemas e gramemas ou, apenas, de
gramemas. Essa “unidade mínima construída” é denominada por ele de palavra, cuja
definição e reconhecimento devem-se verificar conforme uma seqüência combinatória em
cada língua. A segunda, chamada de lexia, é uma “unidade lexical memorizada” caracterizada
pela relação entre o elemento e a classe. Pottier a define como “unidade de comportamento”
resultante de hábitos associativos, e propõe que nela se reconheça a unidade lexical,
classificada por ele em simples, composta, complexa e textual.
Compreendemos, portanto, que o lingüista francês admite teoricamente ser o lexema,
nas estruturas, o determinatum da palavra.
Mário Vilela (1994, p. 10), por seu turno, atribui à palavra a definição dada por Pottier
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à lexia e a considera unidade básica da Lexicologia. Trabalha com a noção de lexema, de


referência objetiva, como elemento principal do léxico e de morfema, de referência lingüística
interna.
Oportuno se faz registrar a opinião da professora Biderman (1978, p. 85) que,
corroborando com as idéias whorfianas acerca do relativismo lingüístico, argumenta: “Se cada
língua recorta a realidade diferentemente e molda essa realidade em categorias lingüísticas e
mentais que lhe são exclusivas, então o conceito de palavra não pode ter um valor absoluto.”
Ainda comentando sobre o conceito de palavra, ela afirma que entre os morfemas e sintagmas
se delineiam os contornos formais desta.
Ao compararem-se essas ponderações sobre o assunto “palavra”, observamos que
diversos são os pontos de vista. No intuito de definir e delimitar a unidade básica da língua –
a “palavra” –, inúmeros critérios foram adotados pelos lingüistas, que lhe atribuíram
denominações várias – morfema, lexema, sintagma, lexia, palavra léxica –, sem, contudo,
deixarem de usá-la, visto ser o seu conceito no universo lingüístico o que lhes interessa, pois
sem ele seus estudos se tornariam inexeqüíveis.
Modernamente, os lexicólogos reconhecem na palavra uma unidade de significação,
cujos componentes fonéticos, articulados e inseparáveis, podem ser substituídos nos níveis
sintagmático e frasal. Neste trabalho, utilizaremos os termos palavra ou vocábulo como
unidade significativa lexical.

1. 2 O léxico

A língua, fora do uso, constitui um sistema autônomo e imanente, que se explica pela
descrição de um conjunto de elementos e de regras combinatórias, nos níveis fonológico,
morfológico e sintático; na dimensão do uso, compreende um conjunto de traços antropo-
sócio-cultural-ideológicos, que a caracterizam em face de outras. Assim, é no uso que a língua
se faz unidade lingüística, ou seja, “idioma” de uma nação, e expressa o pensar e o agir de um
grupo humano configurados no seu léxico.
Compreendendo o léxico um conjunto de todas as palavras de uma língua, Mário
Vilela (1994, p. 14) afirma ser “nele que se refletem mais clara e imediatamente todas as
mudanças ou inovações políticas, econômicas, sociais, culturais ou científicas.”
Desta forma, o léxico não encerra um todo de nomenclaturas, mas sim o espaço aberto
à efemeridade do mundo e das coisas, à história e ao devir, sendo, então, os membros de uma
sociedade os transformadores e/ou perpetuadores da semântica dos vocábulos que constituem
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o léxico da sua língua.


Em outros termos, à medida que os usuários de uma língua atribuem conotações
particulares aos lexemas – unidades léxicas de significação externa – nos atos de fala, podem
agir sobre a estrutura lexical, modificando os campos de significação das palavras. Assim, o
universo semântico se estrutura em torno dos pólos opostos indivíduo e sociedade. Essa
tensão em movimento, comentada por Birderman (1978, p. 139), dá origem ao Léxico, que
garante a sobrevivência da língua de uma determinada sociedade.
Toda língua viva tem mecanismos de ampliação lexical, que se dá mediante processos:
de criação dentro da própria língua, do qual resultam as inovações formais e conceptuais; e de
adoção e adaptação de um termo estrangeiro, determinado por fins de natureza cultural,
estética e funcional.
Nenhum indivíduo domina o léxico total da língua que lhe serve de expressão. O
sistema lexical armazena-se na memória do falante, de forma ordenada, por meio de alguns
processos mnemônicos, dos quais citamos o modelo binário de oposição: homem x mulher,
casado x solteiro, ruim x bom, etc.; e, em relação às associações, os campos onomasiológicos
e semasiológicos.
Em virtude do caráter polissêmico das palavras, o léxico é o subsistema da língua que
oferece mais complexidade em termos de descrição.
Visando ao estabelecimento de princípios organizacionais do vocabulário, vários
trabalhos lingüísticos foram efetivados, dentre eles a teoria dos campos lexicais.

1. 3 Os campos semânticos

A idéia de campo lexical tem raízes na Antigüidade. Pautados nessa idéia, nos séculos
XIX e XX, surgem trabalhos que orientariam a Semântica Estrutural. Neste último, na década
de 70, E. Coseriu destaca que nessa linha de pesquisa, até aquele momento, o precursor mais
antigo e, também, o mais moderno, graças ao conteúdo do seu trabalho, era K. W. L. Heyse
(1856), que em sua obra póstuma System der Sprachwissenschaft (Berlim, 1856) apresenta
uma análise do campo léxico alemão Schall. Na opinião de E. Coseriu, conforme registra
Horst Geckeler (1976, p. 101), trata-se de uma “análisis de contenido casi perfectamente
estrutural, se bien realizado com outros objetivos”.
Se a Heyse coube o início dos trabalhos nessa direção, a G. Ipsen (1924), a primeira
formulação explícita da idéia de campo, denominado por ele “campo semântico”. Em Ipsen,
evidencia-se a imagem do mosaico lingüístico. Essa imagem, amplamente discutida e
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criticada na doutrina do campo, foi utilizada por Jost Trier (1931), a quem devemos a
definição de campo, bem como todo o significativo progresso dos estudos léxicos.
Para Trier, o vocabulário de uma língua constitui uma totalidade semanticamente
estruturada em campos léxicos: campo da Arte, da Sabedoria, entre tantos, com possibilidades
de encontrarem-se numa relação de coordenação ou subordinação. Sobre as idéias de Trier, o
semanticista Stephen Ulmann (1964, p. 510 – 1) comenta:

Trier elaborou a sua concepção dos campos como sectores estreitamente


entrelaçados do vocabulário, no qual uma esfera particular está dividida,
classificada e organizada de tal modo que cada elemento contribui para
delimitar os seus vizinhos e é por eles delimitados.

Desta forma, as palavras ao constituírem uma cadeia de significações, que se


delimitam entre si, produzem realidades lingüísticas vivas consideradas a partir do contexto.
Geckeler (1976, p. 123) afirma que, nas palavras de Trier, “Campos son las realidades
lingüísticas vivas situadas entre lãs palavras individuales y el conjunto del vocabulario, que,
em cuanto totalidades parcialses, tienen como característica comum com la palabra el
articularse y, com el vocabulário, el organizarse”.
A origem dessa teoria pode estar na doutrina lingüística de Wilhelm Von Humboldt,
em que uma língua deveria ser concebida como um todo orgânico, distinta das demais e a
exprimir a originalidade do povo que a falasse. Vista assim, a língua revela a maneira singular
com que uma nação realiza o discurso.
Some-se a isso a influência de Saussure no que se refere às noções de sistema, de valor
e de paradigma e, ainda, de solidariedade entre as palavras.
Quanto às suas bases filosóficas, encontramo-las nos princípios de Cassirer em torno
da influência da língua sobre o pensamento.
Várias são as designações e conceitos para o estudo do léxico a partir da noção de
Campos, tais como: campo semântico, campo lexical, campo associativo, campo nocional;
adotados mediante o ponto de vista de análise e interesse dos seus propositores.
W. Porsig (1934) é outro estudioso a se debruçar sobre teoria dos campos, da qual
destaca o fato de os lexemas variarem, de forma exorbitante, conforme sua liberdade
combinatória, pois podem ser combinados com sintagmas ou com outros lexemas. O mérito
de Porsig está na estruturação do campo lexical determinada tanto pelas relações
paradigmáticas de sentido quanto pelas relações sintagmáticas.
Assim, as diferentes idéias de Porsig e Trier não se conflitam, complementam-se.
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O pensamento de Trier acerca dos campos tem continuidade nos trabalhos


desenvolvidos por Leo Weisgerber, que, ao retomá-lo, a partir da década de 50, o coloca
numa teoria lingüística de doutrina e métodos mais precisos e de terminologia mais clara
fundamentado na idéia humboldtiana de ser a linguagem uma criação contínua de existência
condicionada à manifestação do espírito humano, ou seja, à cadeia de interpretações que
vincula os seres humanos.
Para Weisgerber (1963), os campos lingüísticos comportam os campos lexicais e os
campos sintáticos; e a relevância da idéia de campos está em constituir-se conceito
metodológico, matriz da investigação aplicada ao conteúdo lingüístico e, simultaneamente,
portal para uma visão lingüística de mundo. Ele considera, ainda segundo Geckeler (1976, p.
127), que “la tarea fundamental de la lexicologia aplicada al contenido está em señalar la
exisatência y la estrutura de los campos léxicos existentes em uma lengua”.
Ao trabalhar, teórica e praticamente, na estruturação dos campos léxicos, Weisgerber
distingue campos unidimensionais e campos pluridimensionais, adiantando-se, assim, a Trier.
No entanto, suas teorias estão tão ligadas as deste que, em relação a campos léxicos, se passou
a falar em concepção Trier-Weisgerber.
Importantes também, nos anos 50, são os estudos do lingüista Georges Matoré, que se
distinguem dos de Trier pela ênfase dada aos critérios sociais. Este estudioso introduz os
conceitos de palavras-testemunhas, definidas, de acordo com transcrição de Stephen Ullmann
(1964, p. 527, n.1 e n.2.), como “elementos particularmente importantes em função dos quais
se hierarquiza e se coordena a estrutura lexicológica” e de palavra-chave, “unidade
lexicológica que exprime uma sociedade... um ser, um sentimento, uma idéia, vivos na
medida em que a sociedade neles reconhece o seu ideal”.
Para Matoré, citado, ainda, por Maria das Neves A. de Pontes (2002, p. 54), “a palavra
analisa e objetiva o pensamento individual, tendo um valor coletivo: há uma sociabilidade
própria da língua”. Fica evidenciado, então, que um campo semântico reflete a experiência de
uma sociedade – crenças, valores, costumes, o pensar, o agir, perspectivas – cristalizando-a,
perpetuando-a e transmitindo-a até que novas experiências estimulem a refeitura do campo,
explicando, em termos, a relação língua – sociedade – cultura.
Nesse sentido, partindo de proposições distintas e desenvolvendo-se por considerável
tempo de forma independente, a Teoria dos Campos e a Teoria do Relativismo lingüístico – a
Hipótese Sapir-Whorf – se encontram. Para melhor esclarecer esse encontro, no capítulo a
seguir, abordaremos de forma mais detalhada o pensamento de Edward Sapir e Benjamim L.
Whorf.
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2. DA HIPÓTESE SAPIR-WHORF

2.1 Noções preliminares

Linguagem é toda forma de expressão do homem por meio de signos; constituindo-se,


assim, no mais importante elemento na vida dos indivíduos e das sociedades.
A língua, por sua vez, é uma dessas formas de expressão, com que os membros de
uma sociedade compartilham suas experiências, práticas, pensamentos. É nesse intercâmbio
de vivências diversas que a língua encerra um conjunto de traços antropo-sócio-cultural-
ideológicos configurados no seu sistema lexical, que a singularizam em face de outras e,
conseqüentemente, promovem, ao mesmo tempo, a unicidade de uma comunidade lingüística,
comportando também as diferenças de uso de cada indivíduo.
Enquanto a linguagem é habilidade biologicamente determinada dos seres humanos, a
língua – conjunto de signos e de regras combinatórias, revestido de significados
convencionados socialmente – implica exposição do indivíduo, ainda nos primeiros anos de
vida, a um ambiente lingüístico natural. Essa exposição é essencial para o desenvolvimento
pleno da faculdade de linguagem.
Por isso, podemos dizer que linguagem e língua são fenômenos que caracterizam o
homem um ser de interação sociocultural.
Acerca desses fenômenos, sob a influência das teorias sociológicas de J. A Herder e de
W. Von Humboldt, no que tange ao caráter de compartilhamento dos sistemas lingüísticos
usados pelas sociedades, Louis Ferdinand de Saussure (1988, p. 17) afirma:

Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de


diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela
pertence, além disso, ao domínio individual e ao domínio social; não se
deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos pois não se sabe
como inferir sua unidade.

[A língua] é somente uma parte determinada, essencial dela [da linguagem],


indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de
linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo
social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.

Assim, para ele, a linguagem é a faculdade natural, que permite ao homem construir
uma língua – social no sentido de ser um sistema convencional adquirido socialmente, e não
sugerindo interação social sob seus aspectos mais gerais.
De acordo, ainda, com as dicotomias saussurianas (1988, p. 22), a língua “é exterior ao
11

indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em
virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade”– o que
assinala a submissão do indivíduo à língua no processo comunicativo –; a fala é ação
individualizada “de vontade e inteligência”, que comporta os traços físico-psicológicos de
cada falante e os condicionamentos determinados pelo canal e pelo contexto real do ato de
comunicação, ou seja, a língua encerra um sistema estável com possibilidade de ser abstraído
das múltiplas variações verificáveis da fala.
Ao tratar dos elementos internos e externos da língua, entretanto, Saussure (1988, p.
29) infere: “Os costumes duma nação têm repercussão na língua e, por outro lado, é em
grande parte a língua que constitui a Nação”, apontando, já, para as relações socioculturais da
língua. Mas pesquisas dessa ordem desenvolveram-se somente a posteriori, uma vez que seu
interesse voltava-se para a autonomia da Lingüística em relação às demais Ciências Sociais.
Foi no seio da Lingüística norte-americana que tais pesquisas foram desenvolvidas,
cuja obra inaugural nesta área é A linguagem, de E. Sapir (1921), construto teórico para
numerosas investigações, principalmente, a partir dos anos cinqüenta.
Adotando o método etnográfico de Franz de Boas, alguns lingüistas, entre eles Sapir,
realizam pesquisas em tribos de línguas ameríndias, distinguindo, pois, o Estruturalismo
norte-americano do europeu, cujo objeto de investigação eram línguas de tradição escrita.
Acerca deste método, Valéria Chiavegatto (1999, p. 36) comenta:

[...] a análise das línguas funcionando nas sociedades e culturas observadas


atendia à necessidade de que as culturas fossem enfocadas não de um ponto
de vista externo, mas de uma perspectiva interna, em que fatos lingüísticos
passam a ser considerados à luz das significações que assumem nas
sociedades.

Temos, assim, nas palavras da autora, o procedimento que respaldou o


desenvolvimento de investigações que tivessem como objeto a interface língua, sociedade e
cultura; esta entendida como o conjunto de hábitos, costumes, ritos sociais, formas de
produção de artefatos, maneiras de ver o mundo, formas de expressão, estratégias de interação
conversacional instituídas pelo grupo, enfim, o pensar e o agir de uma sociedade, considerada
uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam coletivamente e transmitem sua tradição
viva, de geração em geração, principalmente, por meio de signos vocais.
A partir dessa peculiaridade da língua, de representar a cultura, imperativos
questionamentos foram levantados sobre as relações entre formas de pensamento e
organização das línguas, trazendo à luz, entre outras proposições, a Hipótese Sapir-Whorf.
12

2. 2 Caracterização

A Hipótese Sapir-Whorf está ligada à Antropologia norte-americana e remonta ao


determinismo lingüístico de Humboldt, para quem a linguagem determina o pensamento, e ao
relativismo lingüístico de Herder, que afirma não haver limites para a diversidade estrutural
das línguas, por isso, esta Hipótese, segundo Lyons (1987, p. 275), “é marcada pela ênfase no
valor positivo da diversidade lingüística e cultural”.
Os fundamentos desta Hipótese espelham-se nos estudos de Boas, em que se
ressaltam não só a importância dos estudos lingüísticos para a Etnologia, mas também o
papel que exerce a cultura no que se refere à linguagem. Os seus postulados são resultado de
pesquisas concretas realizadas por Sapir e Whorf entre membros de tribos de línguas
ameríndias.
Nessa Hipótese, a conceptualização da cultura revela-se na Gramática e na Semântica
das línguas. Sendo assim, é no sistema lingüístico que se manifestam os dados da realidade
que caracterizam essa língua, bem como a cultura a ela associada.
Segundo Sapir (1969, p. 205), “[...] a língua não existe isolada de uma cultura, isto é,
de um conjunto socialmente herdado de práticas e crenças que determinam a trama de nossas
vidas”.
Cotejando os estudos realizados sobre a Hipótese, encontramos que Whorf retoma os
estudos de seu mestre Sapir, no entanto, em alguns aspectos, diferencia-se dele já que os
postulados de Whorf refletem mais fortemente as idéias humboldtianas.
Segundo Whorf, conforme Pontes (2002, p. 65), “[...] o mundo exterior não é mais do
que um caos sem a intervenção do sistema lingüístico”.
Por sua vez, Sapir entende que a língua tem o seu princípio no mundo social e só
depois age na forma pela qual a sociedade conhece o mundo, e, apenas, o léxico de uma
língua deve ser o organizador da experiência do povo.
Para o discípulo de Sapir, a gramática é o fio condutor da modelagem do pensamento.
Em seus termos, conforme John Carrol (1973, p. 57):

[...] o sistema lingüístico de fundo (em outros termos, a gramática) de cada


língua não é um mero instrumento de reprodução para exprimir idéias, mas
ao contrário, é ele próprio o modelador de idéias, o programa e o guia para
a atividade mental do indivíduo, para a sua análise de impressões, para a
sua síntese do seu estoque mental em transição.

Com referência, ainda, ao Relativismo lingüístico, Bidermam (1978, p. 80), assim, se


13

expressa: “Cada língua traduz o mundo e a realidade social segundo o seu próprio modelo,
refletindo uma cosmovisão que lhe é própria, expressa nas suas categorias gramaticais e
lexicais”.
Sendo assim, apesar de Sapir e de Whorf terem seguido correntes diferentes, no que
tange à inter-relação língua–sociedade–cultura, podemos observar que suas determinantes
proporcionaram à Hipótese uma visão abrangente e integradora que pode sustentar as
investigações direcionadas à inter-relação língua–sociedade–cultura, bem como contribuir
para os estudos sociolingüísticos, psicolingüísticos, além de outros.
Considerando a natureza desta investigação, neste ponto, urge uma melhor
compreensão de cultura e léxico regional, ao que nos dedicaremos no próximo capítulo.
14

3. DA CULTURA E DO LÉXICO REGIONAL

3.1 Cultura: um percurso conceitual

A noção moderna de cultura, em sentido amplo, remete aos modos de vida e de


pensamento. Essa idéia, bem acatada em dias atuais – apesar das divergências – motivou
acirradas polêmicas desde o seu surgimento no século XVIII, no contexto do processo de
industrialização e de desenvolvimento urbano, em que se destacavam a França, a Inglaterra e
a Alemanha.
O conceito de cultura, nas palavras de John Thompson (1995, p. 165), “possui uma
longa história, e o sentido que ele tem hoje é, em certa medida, um produto dessa história”.
O termo “cultura”, no século XIX, era empregado numa relação sinonímica ou
contrastante com a palavra “civilização” que, já no século XVIII, foi reconhecida nos
vocabulários francês e inglês para “descrever um processo progressivo de desenvolvimento
humano, um movimento em direção ao refinamento e à ordem, por oposição à barbárie e à
selvageria”(THOMPSON, 1995, p. 166). Subjacente a esse novo sentido existia o pensamento
iluminista europeu, que acreditava na essência progressista da Modernidade. Sempre grafada
no singular, refletindo a idéia de universalismo e humanismo dos filósofos, a cultura é, para
os iluministas, conforme palavras do Denys Cuche (2002, p. 21), “a soma dos saberes
acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua
história”; e o progresso, para eles, emerge da cultura. Ainda com esse autor, “se o movimento
iluminista nasceu na Inglaterra, ele encontrou sua língua e seu vocabulário na França”.
Enquanto na França e na Inglaterra essa duas palavras – cultura e civilização –,
progressivamente, eram usadas em referência a um processo geral mediante o qual o homem
torna-se “culto” ou “civilizado”, na Alemanha, tais palavras tinham significados
contrastantes: “Kultur”, com valor positivo, estava associada a elementos que expressavam a
individualidade e a criatividade das pessoas, a saber: produtos intelectuais, artísticos e
espirituais; e “Zivilisation”, com valor negativo, à polidez e ao refinamento das maneiras.
Tal contraste, tema para o sociólogo-historiador Norbert Elias (1990), estava
intimamente ligado à questão da estratificação social dos primeiros anos da Europa moderna.
Em terras germânicas, o francês era o idioma da aristocracia e da nobreza cortesã, portanto, o
seu uso era símbolo de status entre as classes superiores. Em contraponto, de língua alemã,
um inexpressivo número de intelectuais – oficiais da corte e nobres “ruralistas” – que,
concebendo suas próprias atividades em termos de realização intelectual e artística, criticava
15

naqueles a inoperância neste sentido e o desprendimento de energias na imitação dos modos


dos franceses – uma espécie de alienação. Em outros termos, a intelligentsia alemã expressa
na palavra Kultur a peculiaridade de sua posição em relação às classes superiores, às quais
não tinha acesso”.
Nesse sentido, outra diferença significativa se impõe. Desta feita, entre a intelligentsia
alemã e um emergente grupo de intelectuais franceses, entre eles Diderot e Voltaire: estes
foram acolhidos pela sociedade cortesã parisiense, aqueles, excluídos da corte alemã.
Foi, enfim, no campo da Kultur – da ciência, da arte, da filosofia – que a intelligenstia
alemã buscou sua realização e encontrou sua altivez, revestindo-se de um sentimento
nacionalista.
Ainda em fins do século XVIII e limiar do século XIX, Johann Gottfried Herder, no
trabalho História Universal, aponta para a diversidade de “culturas”, chamando a atenção para
as características peculiares aos diferentes grupos, nações e períodos – relação de
descontinuidade –, sem, contudo, descartar a possibilidade de comunicação entre os povos. É
nele que encontramos “uma das primeiras formulações importantes da noção de expressões
culturalmente variáveis da vida humana nas artes e costumes de um povo” (SCHELLING,
V.,1990, p. 22).
Dessa posição, decorre o entendimento do termo “civilização” como negação de
processos internos, e sua conseqüente formulação como “evolução” externa de
desenvolvimento, tornando evidente que o tratamento dado à cultura pressupõe as condições e
valores internos de uma determinada sociedade, em seus processos; ao passo que o termo
“civilização” adquire o valor de desenvolvimento de uma dada cultura em relação à outra.
Isto posto, leva-nos a compreender que a diferença entre a soma de valores culturais
de uma sociedade X e a soma de valores culturais de uma sociedade Y estabelece o grau de
civilização.
As idéias de Herder constituem uma reação do pensamento romântico ao
universalismo uniformizante do Iluminismo francês. Nesse sentido, Herder “pode ser
considerado, com justiça, precursor do conceito relativista de ‘cultura’” CUCHE, 2002, p.
28).
Estavam, então, esboçadas as duas concepções de cultura – universalista e
particularista – que seriam incorporadas à disciplina emergente, no final do século XIX : a
Antropologia, voltada para a explicação dos costumes, práticas e crenças de outras sociedades
que não as européias.
A questão que se impunha era, na opinião de Cuche (2002, p. 33), “ Como pensar a
16

especificidade humana na diversidade dos povos e dos ‘costumes’?”


A resposta estará colocada na forma de uma antropologia descritiva (etnologia). Nesse
universo, destaca-se Edward Tylor, apontando a cultura como expressão do todo da vida em
sociedade, dos seres humanos, cuja aquisição não se dá por hereditariedade biológica, mas por
aquisição social inconsciente. Na elaboração de seu conceito de cultura, ele, conforme Cuche
(2002, p. 35), afirma:

Cultura e Civilização, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são um


conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o
direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelos
homens enquanto membros da sociedade.

Partindo desse conceito, Franz Boas buscou o estudo das “culturas” em contraponto a
Tylor, que valorava a singularidade: “Cultura”. Boas recusa-se a adotar o princípio de que
poderia haver leis universais que explicassem o funcionamento das sociedades e das culturas
humanas, bem como a evolução destas culturas. Para realização de suas pesquisas construiu o
modelo metodológico indutivo e intensivo de campo, passando pelo aprendizado da língua da
comunidade objeto de estudo, visto ser nas conversas “espontâneas” que estão elementos de
valor cultural.

Disso, podemos apreender que cultura é o somatório dos processos de uma


determinada comunidade; e, como tal, não pode ser objeto de verificação analógica – de
equivalência –, ou seja, “A cultura abrange todas as manifestações de hábitos sociais de uma
comunidade, as reações do indivíduo quando afetado pelos hábitos do grupo no qual vive e os
produtos de atividades humanas quando determinadas por esses hábitos”, de acordo com o
Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (1987, p. 290 ), doravante DCS.

Essa concepção boasiana de cultura motivou uma série de pesquisas sob perspectivas
diversas – os “culturalismos” –, de forma que ela é vista como um conjunto organizado de
elementos interdependentes – linguagem, costumes, crenças intuições, entre outros ─; e tanto
sua organização quanto seu conteúdo são importantes.

A elaboração do conceito antropológico de cultura, entretanto, não significa a


supressão da complexidade que o termo comporta, principalmente, pelo fato de todo sistema
cultural revelar-se num processo histórico, logo, nascer de relações estabelecidas entre
civilizações, nações, classes e grupos sociais. Tais relações, por natureza também complexas,
17

são sempre marcadas pela desigualdade; são relações de dominação e subordinação, tanto em
termos político-econômicos, quanto intelectuais e morais.

Essa estrutura hierarquizada da sociedade, por sua vez, produz a hierarquia cultural,
em cuja ordenação encontram-se inseridas a cultura erudita – das classes dominantes, dos
intelectuais – e a cultura popular – das classes subalternas, dos não-intelectuais –,
mantenedoras das tipologias culturais.

Nesse sentido, A. Gramsci, citado por Schelling (1990, p. 36), entende que a
dinamicidade das relações entre os dois estratos sociais – dominantes e subordinados – altera
não só a natureza destes, mas também dos indivíduos em si mesmos e da própria estrutura
social objetiva. Desta forma, a fusão cultura erudita e práticas sociais gera uma parte
importante dos aspectos da vida social, que constitui objeto de estudo da Antropologia: a
“filosofia espontânea” do povo, que, segundo ele, é permeada pela composição de elementos
oriundos de três importantes “áreas” da vida social: “da linguagem, da religião popular e do
folclore.”

É válido ressaltar que esta visão de cultura não é única, bem como não nos autoriza a
ver uma alienação, necessária, da cultura popular em relação à cultura erudita; em seus
processos evolutivos, mesmo que em diferentes graus, uma e outra não se devem
desconsiderar. Ao contrário, essa concepção de cultura, aparentemente polarizante, consolida
o conceito de práxis como elemento transformador das condições e ações coletivas.

Na verdade, a noção de cultura popular, graças ao caráter polissêmico dos termos que
a compõem, carrega originalmente uma ambigüidade semântica, que dificulta sensivelmente
as discussões em torno dela. Não há unanimidade, por parte dos autores que a usam, na
definição de “cultura” e / ou “popular”. Por vezes, a noção de cultura popular é assimilada à
noção de folclore, portanto, significa “tradição”; em outras, são noções distintas, e a cultura
adquire a conotação de elemento transformador. Estão, ainda, comportados na cultura popular
o teatro, enquanto manifestação de valor positivo da história de um povo, e as tradições
regionais – no nosso caso, brasileiros.

Em termos de sociedade brasileira, a cultura popular funciona como reação ao


imperceptível no que concerne às estratégias de dominação. Por isso, a cultura popular
adquire uma identificação própria, uma autonomia; porém, conforme nos lembra Cuche
18

(2002, p. 149): “as culturas populares são por definição culturas de grupos sociais
subalternos”.

Nosso interesse, entretanto, não é analisar crítica e especialmente essa engrenagem


social – gênese da cultura popular – mas sim a natureza organizacional de elementos
lingüísticos e suas relações com o mundo social, cujos limites, neste trabalho, estão colocados
na região Nordeste, especificamente, no sertão cearense contextualizado em O Quinze. Sendo
assim, adotamos cultura na perspectiva antropológica, em seus aspectos inerentes ao popular,
no nosso caso, regional /popular.

3. 2 Léxico regional

A língua é geralmente considerada unidade, totalidade. Todavia, na sua concretude é


um compósito de incomensuráveis variações.
Essas variações, que se prestam à análise nos níveis fonético-fonológico, morfológico,
sintático e semântico, relacionam-se diretamente com a maneira pela qual os indivíduos de
um dado grupo social estruturam o pensamento e articulam a linguagem conforme o sistema
de vida e cultura em que vivem.
Com efeito, são variações lingüísticas geradas sob a influência de fatores de natureza
geográfica, sociocultural, histórica, além de outros, que, apesar de proporcionarem expressiva
mutabilidade à língua, não comprometem o funcionamento desta, enquanto instrumento de
comunicação e interação social.
Dentre os diversos tratamentos dispensados à questão da variabilidade na língua, Dino
Preti (1997, p. 24 – 25) destaca dois paradigmas para o estudo da questão: um horizontal e
outro vertical. O primeiro comporta os elementos lingüísticos construcionais similares,
denominados por ele variedades “geográficas ou diatópicas”, responsáveis pelos
regionalismos provenientes de falares locais; movem à “oposição fundamental linguagem
urbana / linguagem rural”. Tais variações manifestam-se numa linguagem hipoteticamente
comum do ponto de vista geográfico, já que as variedades do segundo paradigma,
“socioculturais ou diastráticas”, exercem papel determinante de nivelamento.
Vale salientar que a extensão, maior ou menor, do território não determina o grau de
dinamicidade da língua, visto ser-lhe este atributo inerente quando de sua realização.
As variações “socioculturais’’, por sua vez, são influenciáveis por fatores diretamente
ligados ao falante ou ao grupo em que este se insere, ou à situação, podendo, ainda, ligarem-
19

se aos dois em um só tempo.


Na lista das influências devidas à identidade sociocultural do falante e,
contingencialmente, do ouvinte, são geralmente colocadas, dentre outras, as variáveis idade,
sexo, raça ou cultura, profissão, posição social, classe econômica, grau de escolaridade, local
de residência dentro da comunidade, lazer, religião e até a própria ociosidade, que se podem
fixar em qualquer ponto do vetor geográfico no interior de uma comunidade. Ligadas a estas
influências, no mínimo, duas variedades lingüísticas são referenciadas: culta e popular; nem
sempre tão claramente distintas no nível lexical quanto o são as conduzidas pelas influências
geográficas.
A respeito destas variedades lingüísticas ─ culta e popular ─, de características
flutuantes com inclinação à modificação, podemos pensar com Preti (1997, p.35):

Em geral, o dialeto culto, [...] se prende mais às regras da gramática


tradicionalmente considerada, normativa, veiculada pela escola, aos
exemplos da linguagem escrita, literária, muito mais conservadora, ao passo
que o dialeto social popular é mais aberto às transformações da linguagem
oral do povo.

Quanto às variedades “situacionais”, estas dizem respeito, apenas, às circunstâncias


mediante as quais os atos de fala se realizam, bem como às relações que unem falante e
ouvinte durante o processo interativo; são responsáveis pelos registros ou níveis de fala
“formal e coloquial (ou informal)”, o que pressupõe adequação do uso lingüístico à situação
em que se encontram envolvidos os interlocutores.
A influência de todos esses fatores de diversidade, em geral, age de forma ínfima na
morfossintaxe, significativa na fonologia e acentuadamente no vocabulário. Medida em que o
acervo lexical de uma comunidade lingüística revela as idiossincrasias formadoras da étnica
dessa comunidade, renovando-se e alterando-se proporcionalmente à atuação de fatores
extralingüísticos – histórico, cultural e geográfico – sobre ele.
Nessa perspectiva, o português em sua variante brasileira é um complexo de
heterogeneidade, em que são constatados, nomeadamente no nível lexical, “selos” regionais,
para o que há de se ressaltar a contribuição de alguns fatores, tais como: o distanciamento
entre as regiões, e até o isolamento de algumas delas, graças aos extensos limites territoriais
brasileiros e à conseqüente ocupação não só por nossos nativos, mas também por povos de
diversos pontos da Europa, da África escravizada e hispano-americanos; o intenso fluxo
migratório dentro do nosso país, que também terminou por demarcar espaços físicos com
características político-econômicas locais adequadas ao convívio social, criando, assim,
20

modos de vidas próprios – as culturas regionais –; e, ainda, a própria norma, a tradição


continuada e reiterada nos hábitos lingüísticos dessas comunidades. Assim, das relações do
homem com o meio e atendendo as suas necessidades de comunicação e interação fluiram
saberes lingüísticos e não-lingüísticos peculiares a cada região cultural, que configurados nos
falares das respectivas populações constituem o denominado léxico regional.
Este tipo de léxico é, pois, o que estabelece as diferenças entre os falares da região
Sul, Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste.
Para que se conheça visão de mundo, sistema de valores e práticas socioculturais e
ideologia de cada um desses grupos sócio-lingüístico-culturais, deve-se considerar como
objeto de estudo esta parte do léxico da língua portuguesa, o regional. Embora trata-se de um
vocabulário não extenso, se observado em realidades distintas, é em suas unidades
contextualizadas que se evidenciam as singularidades de tais grupos.
Em termos de Nordeste, os estudos voltados para o léxico amparados na Dialectologia,
Sociolingüística e Etnolingüística têm-se presentificado, principalmente, em dicionários,
glossários e vocabulários regionais / populares elaborados não só por especialistas –
lexicógrafos e lingüistas –, mas também por profissionais de outras áreas do conhecimento,
além de curiosos, que categorizam termos e expressões como específicos de determinada
localidade ( Cf. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. In PONTES e MELLER, 2003, p. 31-
34, v.1. Dicionário lingüístico-literário de termos e expressões regionais / populares (Norte /
Nordeste)).
Interessa observar, no entanto, a mobilidade desse vocabulário regional, que, em
virtude do contato humano, pode transitar de uma para outra região, ou mesmo dentro dela,
considerando-se os Estados. Nesse possível movimento, a associação expressão e conteúdo
pode-se conservar em relação a um referente comum aos espaços geográficos em questão, ou,
inversamente, o referente comum pode adquirir expressão e conteúdo diversos, como
também expressões diversas e conservar o mesmo conteúdo. A título de exemplo, tomemos a
fraseologia ganhar o bredo, usada na acepção de fugir, tanto no Maranhão quanto no Ceará
(Cf. NASCENTES Antenor, 1986, p. 38); carapanã e muriçoca, termos usados,
respectivamente, no Norte e Nordeste, simbolizando o mesmo referente: uma espécie de
mosquito (Cf. PONTES e MELLER, 2003, p. 460, v.2).
Fatos dessa natureza ilustram a dinamicidade léxico-semântica da língua gerada pelos
membros de uma determinada comunidade, nos atos comunicativos, que se concretizam,
principalmente, na modalidade falada de uso da língua, implicando, desta forma,
expressividade e criatividade dos falantes, ou seja, competência lingüística.
21

Sobre a modalidade falada da língua, Biderman (1978, p. 161 ) infere que

É da essência da linguagem oral buscar o máximo de expressividade: assim


os usuários da língua [...] inventam novos matizes metafórico e metonímicos
para palavras velhas, ou inventam novas formas que eles julgam
corresponder melhor àquilo que pretendem dizer. (grifo nosso)

Somado a isso, a linguagem falada comporta mecanismos expressivos não-lingüísticos


como entonação, timbre da voz, gestos, reações fisionômicas e emocionais dos interlocutores
in preasentia, bem como o contexto físico e social destes, que, em tese, lhes é parcialmente
similar, abrangendo, assim, nos termos de Mattoso Câmara (1986, p. 14), “a comunicação
lingüística em sua totalidade”.
A linguagem falada, enquanto instrumento primeiro e fundamental de comunicação e
interação, é espontânea, afetiva, natural, enfim, utilitária por excelência. Em vista disso,
expressa mais freqüentemente a variedade lingüística popular, que, conforme mencionamos,
pode atingir qualquer ponto do vetor horizontal, onde se alocam as variedades geográficas.
Desta forma, o exame do léxico regional consubstancia-se ao do léxico popular.
É nossa pretensão o estudo da linguagem regional / popular em seu aspecto léxico-
semântico, no entanto, em virtude do espaço desta seção, enviamos a caracterização específica
da linguagem falada para o momento da análise, passando, então, a algumas considerações
sobre a autora e a obra em tela por considerarmos imprescindíveis à contextualização de
nosso estudo.
22

4. DA AUTORA E DA OBRA

Fortaleza, aos 17 de novembro de 1910, torna-se a cidade natal de Rachel, que nascia
no seio da família Queiroz, tendo como filiação o Juiz de Direito da cidade Quixadá Dr.
Daniel de Queiroz e Dona Clotilde Franklin de Queiroz.
Com uma vida marcada por idas e vindas, a família transfere-se para Fortaleza, onde o
pai assume o cargo de promotor. De lá, em 1917, seguem para o Rio de Janeiro, em fuga às
conseqüências da seca de 1915, que, posteriormente, em 1930, faz-se presente na obra de
estréia e consagração de Rachel de Queiroz como escritora no mundo literário.
Este evento, todavia, antecede-se a uma história que registra a inserção de Rachel, aos
16 anos de idade, época em que já havia concluído o Curso Normal, na página literária
Jazzband do jornal anticlerical O Ceará. Sob o pseudônimo de Rita Queluz, escrevia crônicas,
poemas, artigos. Era, ainda, responsável pela seleção dos colaboradores. No ano de vinte e
sete, publica, neste jornal, sob forma de folhetim, os sete capítulos da narrativa “A história de
um nome”.
Logo após, com dezoito anos, escreve O Quinze, que no Rio de Janeiro é analisado por
Tristão de Athayde e Agripino Guedes, e destes recebe críticas positivas. Pouco depois, o
romance é premiado pela Fundação Graça Aranha.
Este legado literário, de fundo social e econômico, chega ao público leitor por meio de
uma linguagem com a qual este se identifica, graças a sua natureza simples, objetiva e direta,
permeada por um vocabulário que, em grande parte, é de uso do povo. Isso, porém, longe de
revelar desconhecimento, por parte da aurora, do uso padrão da língua portuguesa, denota a
sua habilidade para usar recursos que a torna mais expressiva. São exatamente essa
habilidade, bem como o convívio com a realidade sertaneja os responsáveis pelo fato de a
escritora conseguir representar uma realidade que, embora subjetivada, não se distancia da
realidade concreta ao longo de quase todo o século XX.
Assim, esta narrativa de Rachel – além de outras – sintoniza-se com o espírito da
produção de 30: valorização do universo regional, a linguagem, conforme já dissemos,
simples e objetiva, e a visão paternalista de sociedade, inseparável de uma pré-consciência do
desenvolvimento.
Em O Quinze, dois planos estruturam a narrativa: o social, em que os efeitos da seca
sobre os sertanejos são explicitados; e o individual, baseado nas experiências da jovem
normalista, Conceição, que vivendo em Fortaleza, sociedade patriarcal conservadora, procura
23

definir uma identidade, e, por isso, rejeita o amor de Vicente, proprietário rural, compassivo
em relação à miséria que o cerca, porém, sem poderes para extingui-la.
Quando dos 70 anos de lançamento da obra, em entrevista cedida ao Jornal O Povo,
Rachel de Queiroz expõe seu ponto de vista sobre alguns aspectos de O Quinze e o fazer
literário. Dela retiramos trechos, que neste espaço estão assim considerados:

[...] na época eu não sabia como se fazia romance. Comecei a escrever, a


história foi saindo, eu não mostrava a ninguém. Mas depois comecei a
mostrar umas partes pra mamãe [...]. E para surpresa minha o negócio
estourou. Um tema difícil, seca, né? E eu não tratei daquela forma trágica do
Rodolfo Teófilo, aqueles esqueletos ambulantes, aquela coisa, o realismo
romântico, delirante que tinha imperado até então. [...] Eu era muito
metida... Em real, sempre achei que a precocidade não é uma virtude, porque
se a gente tivesse esperado mais um pouco tinha saído melhor. Escrever é
uma vocação. Algumas pessoas têm jeito pra escrever. Eu vivia no coração
da seca, no sertão do Ceará. Na seca de 15 eu era muito pequena, tinha
quatro anos. Mas a seca de 19 eu assisti, tinha nove anos. [...] Depois assisti
a pequenas secas. Era um tema que tava ali na mão. No começo você é
tímido, fica repetindo tipos que você já conhece, situações, mas depois
começa a inventar, toma mais segurança no ofício. O ambiente literário
brasileiro da época era muito menor. E eu dei sorte porque os críticos
gostaram muito. Minha preocupação sempre foi com uma singeleza sem
literatice.

Quanto à personagem Conceição, Rachel, alegando não saber, na época, dar um trato
pessoal às personagens, compara as condições de mocinha de interior criada pela avó, amiga
dos caboclos e madrinha dos filhos dos moradores a sua condição pessoal. E diz que, em dias
atuais, Conceição teria mais complexidade psicológica, seria menos linear.
Quando indagada sobre a adoção, por parte da escritora, da corrente regionalista, a
partir de O Quinze, assim responde:

Eu acho que o gênero não tem importância. O que tem importância é o autor.
Os bons escritores regionais, que foram poucos, deram força e dignidade ao
estilo. Mas eu creio que o tema e até a forma literária, tudo depende de
talento. Quando comecei não tinha idéia de romance social não. As
temáticas deliberadas nunca me interessaram. Sempre fugi disso.

Rachel revela-se, ainda, inimiga dos textos que escreve, uma eterna insatisfeita, que
sempre está pronta para modificá-los, para fazer tudo diferente, especialmente, quanto à forma
literária: “Ainda mexi em O Quinze, mas da 3ª edição em diante não me deixaram mais
mexer. Acho que os diálogos foram melhorados, cortei as excrescências, troquei uma palavra
por outra, melhorei um verbo...”
Independentemente de tais palavras, a sensibilidade e expressividade lingüística
singularizam a obra de Rachel de Queiroz, que se tornou referência nacional, e, extrapolando
24

os limites territoriais brasileiros, chegou à França, aos Estados Unidos , à Alemanha, a


Portugal, ao Japão e a Tóquio.
No seu percurso literário, a escritora deixou-nos uma extensa obra: romances,
crônicas, teatro, literatura infato-juvenil, livro didático. Dentre o acervo, relacionamos os
romances: O Quinze, João Miguel, Caminho de pedra, As três Marias, Dôra, Doralina, O galo
de ouro, Memorial de Maria Moura.
Mas não só a vida literária conferiu-lhe honras. O Prêmio Graça Aranha abriu
passagem para tantos outros, até o dia 6 de novembro de 2003, data em que Rachel passou a
receber homenagens póstumas, pela sua ausência física, pois sua imortalidade tinha-se
anunciado em 4 de novembro de 1977, quando na Academia Brasileira de Letras ela era a
primeira mulher a ocupar Cadeira – Nº 5.
Isto posto, no capítulo que se segue, efetivaremos a descrição e análise do corpus de O
Quinze, de Rachel de Queiroz.
25

5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS DE O QUINZE, de Rachel de Queiroz

O corpus constitui-se de termos e expressões regionais e populares presentes em O


Quinze, de Rachel de Queiroz, pertinentes às personagens e ao narrador, a serem analisados
sob um prisma sócio-lingüístico-cultural.
Para efeito de realização da análise, as ocorrências foram, assim, segmentadas:
expressividade lingüística: o cenário da seca refletido nas metáforas e comparações; aspectos
de estratificação social; religiosidade / misticismo; valores e costumes; e termos e expressões
regionais / populares.

5. 1 Expressividade : o cenário da seca nas metáforas e comparações

Toda língua apresenta duas faces, uma intelectiva e outra afetiva. Nesta, manifesta-se a
subjetividade: a expressividade da língua, que consiste nos mecanismos disponibilizados por
esta aos seus usuários, mediante os quais estes expressam – escrita ou verbalmente – estados
emotivos e julgamentos de valor, estimulando, assim, em seus leitores ou ouvintes uma reação
de natureza semelhantemente afetiva.
Essa afetividade, por vezes, é inerente ao próprio significado do vocábulo empregado,
em outras, é produto do uso particular deste, e só é verificável dentro do enunciado, levando-
se em conta o contexto. Neste sentido, certas palavras evocam formas de vida, de atividade,
sentimentos, emoções, idéias, pensamentos, meios socioculturais, em suma, todos os
fenômenos da vida, revelando a incomensurável variabilidade semântica dos vocábulos. Aqui,
é preciso destacarem-se as associações, incessantemente, estimuladas pela não separação
absoluta entre as idéias, e entre os pensamentos, das quais procedem as chamadas figuras de
linguagem, cujo emprego é a fonte mais relevante de expressividade da língua,
independentemente, de serem figuras de palavras, de pensamento ou de construção.
É importante lembrar que, em se tratando de figuras de linguagem, em alguns casos,
embora a força expressiva esteja adensada em um vocábulo, especificamente, sua apreensão
está condicionada à relação sintático-semântica desse vocábulo com outros.
Considerando tais aspectos de expressividade lingüística, além de outros que se nos
apresentem necessários, analisaremos as metáforas e comparações contextualizadas em O
Quinze, observando, principalmente, o efeito evocativo destas no que concerne ao cenário da
seca nelas configurado.
26

A comparação consiste na identificação de dois seres ─ animados ou inanimados ─ ou


fatos, a partir de um aspecto que lhes é comum. Fundamenta-se, pois, no princípio da
similaridade, da analogia. Se completa, explicita quatro componentes: “Chico Bento olhou
dolorosamente a mulher [...]. A pele, empretecida como uma casca, pregueava nos braços e
nos peitos, que o casaco e a camisa rasgada descobriam” (O Quinze, p. 63, linha 25), em que a
pele é o termo comparado; a casca, o comparante, o termo irreal, imaginário, metafórico; o
análogo, o ponto de similaridade entre o comparado e o comparante, é empretecida, que, por
ser um adjetivo, tem na comparação o seu intensificador; e o termo comparativo, o nexo, é
como, substituível por outros ou expressões de igual valor.
A explicitude de todos esses elementos, entretanto, não constitui obrigatoriedade no
estabelecimento da comparação. O análogo, por exemplo, pode deixar-se apreender pelo leitor
ou ouvinte: A pele era como uma casca. Quando o termo implícito é o elemento comparativo,
chamamos a construção comparativa de metáfora: A pele era uma casca. Neste sentido, Rocha
Lima (2000, p. 501) diz que a metáfora “consiste na transferência de um termo para uma
esfera de significação que não é a sua, em virtude de uma comparação implícita”, e, ainda,
sobre a comparação, este autor observa (2000, p. 507) que a “a sua inferioridade expressiva
em face da metáfora reside em ser explícita, posta em pé com o socorro indispensável das
partículas como, qual, assim como, etc.” Sendo assim, uma e outra equivalem-se, trata-se
apenas de uma questão estrutural.
Muitas vezes, a metáfora reveste-se de um sentido, entre outros, personificador,
hiperbólico, simbólico e sinestésico, estimulando alguns estudiosos da linguagem a dar-lhe,
por razões que as julgamos de ordem didática, uma denominação específica, sem, contudo,
descaracterizá-la enquanto metáfora.
Dentre as figuras de linguagem, a metáfora sempre foi excelência. Acerca desta, da
Antigüidade à Contemporaneidade, muitas são as discussões, os trabalhos e as teorias; o
patrimônio é vasto, abrange o âmbito da Lingüística e de disciplinas afins, bem como de
outras áreas do conhecimento, que, por razão vária, a ela se voltam ─ são pensamentos
divergentes ou convergentes, em um ou outro aspecto, ao que se incluem as distinções
semânticas entre os termos metáfora / comparação, bem como suas classificações tipológicas,
definidas pela gramática tradicional. Foge, porém, ao escopo deste estudo problematizá-los.
Assim, procederemos à análise dos exemplos abaixo dispostos, extraídos da obra em
questão, com a noção de comparação acima exposta e de metáfora como figura de
substituição, fundamentadas no princípio da similaridade, da analogia, ao que se somam as
palavras de Nilce Sant’Anna (2000, p. 102):
27

Digamos apenas que as metáforas têm o poder de apresentar as idéias


concreta e sinteticamente, podendo não só intensificar como dissimular os
fatos. Na atribuição de juízos de valor ela se presta admiravelmente ao
exagero, quer na exaltação, quer na depreciação, e tem um papel importante
na expressão da ironia. A não ser na linguagem científica [...], ela está em
todos os usos da linguagem, com os mais variados graus de expressividade e
impacto. E mesmo as metáforas mais pobres, mais desgastadas, sempre
indicam que o falante tenta dar às suas palavras um mínimo de emoção e
vivacidade.

Exemplo 01:

FEITO GAZE REPUXADA

“O céu transparente que doía, vibrava, tremendo feito gaze repuxada.” (p. 13, linha
20)

Em O Quinze, narrador e personagens utilizam-se de recursos expressivos que evocam


o cenário da seca, elemento compósito da temática desta narrativa.
No exemplo ora destacado, o narrador de terceira pessoa estabelece uma comparação
entre dois elementos de natureza concreta, designativos de matéria: CÉU, o comparado, e
GAZE, o comparante, utilizando-se de um nexo característico da oralidade, FEITO.
A gaze é um tipo de tecido que, em virtude da não intensa incorporação dos fios de
seda ou de algodão, é fino e transparente e muito maleável. Essa maleabilidade excessiva faz
o tecido tremular facilmente ao vento e é responsável pela formação de suas dobras
intermitentes e sobrepostas, que lhe comprometem, nesses pontos, a transparência, sem,
todavia, alterarem-lhe a maleabilidade que lhes dá origem. Neste contexto, entretanto, o
vocábulo GAZE apresenta-se particularizado pelo adjetivo REPUXADA – lisa, estirada –, o
que lhe garante e intensifica-lhe a transparência, sem, também, alterar-lhe a maleabilidade.
O CÉU – materialização fotônica da luz solar no espaço – encontra especificação de
sentido no adjetivo TRANSPARENTE, que, em termos de grau, atinge sua máxima
intensidade na relação com a expressão fraseológica QUE DOÍA, tão usada na fala popular.
Essa transparência excessiva do céu que se nos apresenta visualmente perceptível significa a
ausência de nuvens densas – as dobras da gaze – e é proporcional à intensidade com que a luz
solar incide no espaço. Assim, diante de tanta luz, tanta claridade, tanta transparência, temos a
impressão de vê-lo tremeluzir com a mesma maleabilidade da gaze.
28

Essa imagem suscitada, cujos pontos análogos são a transparência, por excelência, e a
maleabilidade expressa em VIBRAVA, acentua a agressividade do ambiente / situação, à
medida que orienta para outras considerações do cenário da seca: o clima é semi-árido, seco; a
temperatura elevadíssima é, também, absorvida pelo vento; a chuva não cai – o céu
transparente, sem nuvens densas, “carregadas”, enquanto prenúncio de chuva –; e o ambiente
torna-se inóspito a todas as criaturas. Neste caso, podemos, ainda, estender o sentido de
transparente a toda a paisagem que, por conta da seca, se torna sem cor e sem vida.

Exemplo 02:

FAZIA AS VEZES DE SOMBRA

“O cavalo parou debaixo do pau-branco seco que fazia as vezes de sombra.”(p. 23,
linha 26)

A SOMBRA, enquanto “espaço sem luz, ou escurecido pela interposição de um corpo


opaco”, conforme registra Aurélio Buarque (1986, p. 1609), em algumas ocasiões, constitui-
se asilo e alívio aos que deles carecem. Instintivamente, ou não, homens e animais buscam-na
como atenuante do calor e / ou cansaço.
O PAU-BRANCO, ou louro-branco, é uma árvore (Auxemma oncocalyx) da família
das borigináceas, nativa do Brasil, comum no Ceará, segundo Antônio Houaiss ( 2004, p.
2152). Sua casca é adstringente. É uma planta forrageira, de folhas elípticas e flores brancas
aromáticas. Na zona rural do sertão, além de, naturalmente, adornarem a paisagem em
períodos de não estiagem, proporcionando a todos uma bela visão, estimulam naqueles que a
vê uma impressão acolhedora. É bastante hospitaleira graças à sombra que origina, por isso,
não raro, marcam presença nos “terreiros” das residências.
No exemplo destacado, a árvore apresenta-se desprovida de tais características, o que
se configura no adjetivo SECO. Assim, a comparação que ora se estabelece e tem como nexo
a expressão FAZIA AS VEZES DE – muito empregada na linguagem falada popular – está
fundamentada numa relação analógica de valoração opositiva entre as características do PAU-
BRANCO num período de não estiagem e no da seca referenciada na narrativa em estudo,
tendo como elementos análogos o abrigo e o alívio, ambos de natureza abstrata.
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Tal construção lingüística intensifica a depreciação da paisagem sertaneja, ao tempo


em que evoca as agruras vividas pela maioria das formas de vida daquela região
contextualizada em O Quinze.

Exemplo 03:

EMBRIAGUEZ DA FOME

“Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos


inconscientes, na derradeira embriaguez da fome.” (p. 70, linha 7)

O termo EMBRIAGUEZ, em si, traz uma carga semântica de valor negativo, de


depreciação. Designa o estado de uma pessoa que, pela ingestão de bebida alcoólica, perde a
capacidade de discernimento, portanto, priva-se do uso pleno da razão ─ fator primeiro de
distinção entre o homem e outras criaturas inferiores. A sua expressividade ganha relevo,
neste contexto, principalmente, na relação direta deste vocábulo com o elemento FOME, que,
contrariando a denotação do termo embriaguez, caracteriza-se pela carência de alimento no
organismo.
A palavra DERRADEIRA, por sua vez, tem acrescida ao seu sentido, de última, a
noção intensificada da ação da fome sobre as pessoas, cujo extremo efeito é o inebriamento,
que lhes compromete a motricidade ─ “conjunto de funções nervosas e musculares que
permite os movimentos voluntários ou automáticos do corpo”, segundo registra Houaiss
(2004, p. 1969). Desse modo, o vocábulo EMBRIAGUEZ extrapola os limites da degradação
psíquica ao perfilar, além desta, a degeneração da dignidade humana, que tem como primeiro
pilar de sustentação o pleno exercício das faculdades psíquica e orgânica, garantidas, na
maioria das vezes, pela satisfação das condições básicas sobrevivência: alimentação e
moradia, que, no contexto da obra, foram suprimidas de muitas pessoas, especificamente,
neste exemplo, de Chico Bento e família, tendo como razão, literalmente explicitada, o
“fenômeno” daquela seca.

Exemplo 04:
30

ERA TUDO DE UM CINZENTO DE BORRALHO

“O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um


cinzento de borralho. (p.20, linha 11)

Neste exemplo, de um lado da estrutura comparativa, os elementos contextuais –


várzeas, pastos, caatinga, marmeleiral – que formam o painel do ambiente geo-físico retratado
em O QUINZE encontram-se resumidos pela unidade lexical TUDO, cuja força expressiva
parece comportar, além destes, outros elementos não explicitados. Caracterizando TUDO, o
vocábulo CINZENTO, bem mais expressivo que cor de cinza, ou cinza, apresenta-se com seu
sentido intensificado pela anteposição da noção de indefinição contida em UM, que lhe
confere tom de mistério, bem como pelo elemento lingüístico DE, que lhe acrescenta uma
espécie de hiperbolização. Do outro lado, enquanto comparante, o termo BORRALHO,
designa a parte resultante da combustão de certas substâncias – neste caso, madeira,
vegetação, plantas – composta de cinzas com algumas brasas vivas, portanto, o resto, a parte
suja do processo, razão por que a cor cinza evoca desolação, tristeza.
Desse modo, a imagem construída é de um cenário, cujos elementos compósitos de
natureza geo-física apresentam-se sem vida – em condições climáticas normais, caracterizam-
se, entre outras formas, pela cor verde, símbolo de esperança e prosperidade – graças à ação
reflexa dos raios solares sobre aquele solo, onde a escassez de chuva só lhes aumenta a
intensidade da força devastadora, de sorte a vislumbrar-se um amontoado de cinzas mesclado
por algumas espécies vivas, que, embora se excetuem da mortalidade, sofrem também o
processo de degradação. Nesse sentido, essa imagem revela a fisionomia dos efeitos da seca
contextualizada nesta obra: a desolação, a fome e a falta de perspectiva de algumas pessoas.

Exemplo 05:

COMO ARESTAS DE PEDRA, ENRISTADAS CONTRA O CÉU

“[...] na terra desolada não havia sequer uma folha seca; e as árvores negras e
agressivas eram como arestas de pedra, enristadas contra o céu.” (p. 65, linha 1)

A comparação, neste caso, estabelece-se entre dois elementos da natureza: o


comparado ÁRVORE e o comparante ARESTAS DE PEDRAS.
31

Existem espécies de ÁRVORES que, pelo impacto da luz solar e a carência de água no
seu habitat, se desfolham, se desgalham, por isso, seus caules apresentam-se mais
pontiagudos, daí mostrarem-se AGRESSIVAS; suas cascas, de tão queimadas, ficam
escurecidas ─ NEGRAS; de tão ressecadas, tornam-se duras e ásperas, como pedras; mas, a
constituição genética destas permite-lhes a renovação, logo, esta fragilidade é aparente, em
essência, são resistentes a essa modalidade de agressão.
Semelhantemente, há pedras que, graças à erosão, se transformam em verdadeiras
ARESTAS  ângulos exteriores formados por dois planos que se cortam; quina , portanto,
pontiagudas, sem, contudo, se degenerarem totalmente. A sua relação com o termo
ENRISTADAS denota-lhe a feição agressiva. Sua cor é definida pela especificação do termo
comparado NEGRAS.
Tal construção remete à noção de reação da natureza contra a própria natureza: se às
árvores faltaram água, temperatura amena, ventos refrescantes, às pedras, excederam. De uma
forma e de outra faltou-lhes o viço da natureza, o que justifica esta comparação enquanto
representação daquele cenário.

Exemplo 06:

COMO UMA INTERROGAÇÃO LASTIMOSA

“Marchando ambos de par, junto da robustez desempenada de Vicente, o vulto


curvado do Chico Bento parecia mais corcunda e mais triste, como uma interrogação
lastimosa.” (p. 25, linha 18)

Neste exemplo, temos como comparante um recurso da língua escrita expressando o


estado físico e emocional da personagem diante do quadro em que se insere.
Enquanto sinal gráfico, a interrogação é corcunda (?), assemelha-se a um gancho, cuja
finalidade é colher algo; representa, na escrita, o que na fala de uma pessoa traduz busca de
informação, de respostas. Ao se avolumar no seu extremo superior e em seguida ir afinando,
liberando um ponto, tal uma gota de lágrima, a interrogação revela-se lastimosa, por nem
sempre seu emprego implicar obrigatoriedade de esclarecimento.
Do mesmo modo, a falta de perspectiva de Chico Bento diante das agruras e incertezas
por ele vividas reflete-se no seu físico e no seu emocional.
32

OCORRÊNCIAS

COMO FOGO

“[...] o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu,
sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.”
(p.12, linha 30)

COMO PAPEL QUEIMADO

“Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas do chão que
estalavam como papel queimado.” (p. 13, linha 20 )

COMO MEMBROS AMPUTADOS

“Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapo à


devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os
cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas
brancas.” (p. 13, linha 28 )

COMO ARESTAS DE PEDRA, ENRISTADAS CONTRA O CÉU

“[...] na terra desolada não havia sequer uma folha seca; e as árvores negras e
agressivas eram como arestas de pedra, enristadas contra o céu.” (p. 65, linha 1 )

COMO UM AFOGADO

“O sol poente, chamejante, rubro, desaparecia rapidamente como um afogado, no


horizonte próximo.” (p. 70, linha 2)

COMO UMA COBRA

“E na frente do alpendre, um gato faminto, esguio como uma cobra, miava


lamentosamente.” (p. 93, linha 26)
33

COMO UM POUSO QUE UMA ALMA CARIDOSA HOUVESSE ARMADO ALI


PARA OS RETIRANTES

“Na primeira noite, arrancharam-se numa tapera que apareceu junto da estrada, como
um pouso que uma alma caridosa houvesse armado ali para os retirantes.” (p. 37, linha 2)

COMO UM SOPRO DE MORTE

“E a morna correnteza que ventava passava silenciosa como um sopro de morte [...]”
(p. 64, linha 30)

COMO UM AGOURO

“Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz de
remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas desbotadas da velha blusa de
mescla.” (p. 21, linha 1)

COMO NUMA AGUDEZA DE DESESPERANÇA

“Saída a última rês, Chico Bento [...] atrás do lento caminhar do gado, que marchava à
toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de
desesperança.” (p. 20, linha 1)

COMO UMA INTERROGAÇÃO LASTIMOSA

“Marchando ambos de par, junto da robustez desempenada de Vicente, o vulto


curvado do Chico Bento parecia mais corcunda e mais triste, como uma interrogação
lastimosa.” (p. 25, linha 18 )

COMO A MORTE

“Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; [...] confundiu as duas imagens,
a real e a evocada, e seus olhos visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte...”
(p. 64, linha 12)
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COMO SE UM PARASITA INTERIOR LHES ABSORVESSE O SANGUE E LHES


DEVORASSE OS MÚSCULOS, DEIXANDO APENAS A DURA ARMAÇÃO DOS
OSSOS SOB O DISFARCE MISERÁVEL DO COURO PUÍDO E SUJO

“As reses secavam como se um parasita interior lhes absorvesse o sangue e lhes
devorasse os músculos, deixando apenas a dura armação dos ossos sob o disfarce miserável
do couro puído e sujo.” (p.118, linha 1)

COMO QUE VAZIOS INTERIORMENTE / PARECIAM SOAR COM UM


RETUMBO DE TAMBORES

“A chuva saraivava de flanco as reses magríssima [...].


E os pingos de água, batendo-lhes nos couros ressequidos, como que vazios
interiormente, pareciam soar com um retumbo de tambores.” (p. 133, linha 7)

PARECIAM TIRAR FOGO NOS SEIXOS DO CAMINHO

“Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada vermelha e


pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os cascos do animal pareciam
tirar fogo nos seixos do caminho.” (p. 13, linha 18)

FEITO UMA GAZE REPUXADA

“O céu transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada.” (p. 13,
linha 22)

FEITO UM BAFO DE FORNO

“[...] abria os lábios ressequidos, tentando respirar um pouco de ar fresco. Mas na boca
entreaberta entravam apenas lufadas de vento pesado e quente, que era feito um bafo de
forno.” (p. 116, linha 20)
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FEITO ANIMAL

“─ Que passagens! Tem de ir é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que
arranja nada! Deus só nasceu pros ricos!” (p. 31, linha 16)

FAZIA AS VEZES DE SOMBRA

“O cavalo parou debaixo do pau-branco seco que fazia as vezes de sombra.” (p. 23,
linha 26)

ERA TUDO DE UM CINZENTO DE BORRALHO

“O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de


borralho.” (p.20, linha 11)

FOLHAS EMPAPELADAS

“O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e
além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas. (p.20, linha 14)

DESCARNADA NUDEZ DAS LATAS RASPADAS

“Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo
dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas.” (p.46, linha 21)

FRIEZA MESQUINHA DAS NUVENS

“Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus
vê-la, lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens.” (p. 40, linha 19)

ERA UMA CONFUSÃO DESOLADA DE GALHOS SECOS

“E o chão, que em outro tempo a sombra cobria, era uma confusão desolada de galhos
secos, cuja agressividade ainda mais se acentuava pelos espinhos.” (p. 14, linha 2)
36

COMER CINZA ATÉ CAIR MORTO DE FOME

─ Ô sorte, meu Deus! Comer cinza até cair morto de fome!” (p. 20, linha 22)

ENGANANDO A FOME E ENGANANDO A LEMBRANÇA QUE LHE VINHA,


CONSTANTE E IMPERTINENTE, DA MENINADA CHORANDO

“Chico Bento [...] à toa, diante das bodegas, à frente das casas enganando a fome e
enganando a lembrança que lhe vinha, constante e impertinente, da meninada chorando [...].”
(p. 48, linha 25)

A LÍNGUA AINDA ORGULHOSA

“E a mão servil, acostumada a sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num


pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra
humilhante.” (p. 49, linha 4)

OLHAR FAMINTO

“Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e fofo
como um capucho...” (p. 49, linha 2 )

UM GOSTO AMARGO DE VIDA

“Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado. E antes de se
erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na boca um gosto amargo de
vida.” (p. 67, linha 19)

EMBRIAGUEZ DA FOME

“Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos inconscientes,
na derradeira embriaguez da fome.” (p. 70, linha 7)
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CASA [...] VIÚVA

“E a vista interior do vaqueiro mostrou-lhe a imagem da casa abandonada, fechada e


viúva, nas Aroeiras...” (p. 110, linha 30)

DE SECA

“Deixar tudo assim, morrendo de fome e de seca!” (p. 33, linha 23)

MÚSCULOS VADIOS

“Duramente Chico tabalhou todo o dia no serviço da barragem.


Só de longe em longe parava para tomar fôlego, sentindo o pobre peito cansado e os músculos
vadios.” (p.99, linha 24)

NOVEMBRO ENTROU, MAIS SECO E MAIS MISERÁVEL

“E novembro entrou, mais seco e mais miserável, afiando mais fina, talvez por ser o
mês de finados, a imensa foice da morte.” (p. 123, linha 10)
38

5. 2 Aspectos de estratificação social

Nas Ciências Sociais, de acordo com o DCS (1987, p. 421), a estratificação “indica o
processo ou a estrutura pelos quais as famílias se tornam diferenciadas umas das outras e são
dispostas em estratos graduados segundo os vários graus de prestígio e / ou propriedade e / ou
poder”.
Para o estudo da estratificação, um dos conceitos mais relevantes é o de classe, que, na
visão de Max Weber, citado por Allan G. Johnson (1997, p. 38), encerra “oportunidade de
vida”, ou a capacidade de as pessoas conseguirem a satisfação de seus desejos e necessidades
no mercado, a exemplo da compra de bens e serviços, da proteção de uns em relação aos
demais.
O cenário instituído em O Quinze é notadamente marcado pela distinção de classes
sociais, o que pode ser constatado, a título de exemplificação, no fragmento “Conceição [...]
voltou com um grosso volume encadernado que tinha na lombada, em letras de ouro, o nome
de seu finado avô, livre-pensador, maçom e herói do Paraguai” (p. 9, linha 6), em que a
expressão letras de ouro já anuncia o poder aquisitivo da família da personagem.
O referido poder, por conseguinte, garante-lhes a condição de latifundiários, bem
como o acesso a várias esferas sociais, ao que se incluem o conhecimento institucionalizado,
conforme atestam os termos destacados em “Todos os anos, nas férias da escola, Conceição
vinha passar uns meses com a avó [...] no Logradouro, a velha fazenda da família, perto do
Quixadá”. A posse desse bem remete para outra realidade: a das famílias dos moradores da
Fazenda ─ também estratificadas ─, que inseridas nesse continuum ─ estrutura social ─ não
desfrutam de iguais possibilidades e nem exercem poder sobre aquelas.
É nesse continuum instituído na obra em análise que desfilam as figuras do
latifundiário, do morador, do comerciante, do funcionário público, do profissional liberal, do
clérigo, entre outras.
Nosso propósito é analisar os aspectos léxico-semânticos do universo lingüístico desta
obra em que se configurem traços dessa estratificação social. Para tanto, partiremos dos
exemplos abaixo sumarizados.

Exemplo 01:

ENGOMADA, UMA TOALHA / UM BULE, SOB O ABAFADOR BORDADO


39

“Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez
vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
─ Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição?” ( p. 7, linha 15 )

A alimentação acompanha a vida do homem desde o nascimento, mantendo-o na sua


permanência fisiológica.
O ato de comer, que é orgânico, tornou-se social pela ação da inteligência humana.
Nossos hábitos alimentares, da escolha dos alimentos à ritualização, estão intimamente
ligados a um complexo cultural inflexível, porém, passível de ajustamentos, por isso, denotam
o estrato social em que se inserem as pessoas.
Em que pese o fato de o sagrado ser o alimento – o “pão” –, enquanto para uns, o ato
de comer sem a utilização de talheres e / ou de não se estar à mesa, traduz falta de “estilo”,
para outros, o contato dos alimentos com as mãos, conforme palavras de Câmara Cascudo
(2004, p. 415), “estabelece uma continuidade simpática, uma intercomunicação valorizada
que o metal isolará, fazendo dispersar-se sabores imponderáveis e reais”, e a mesa não passa
de um móvel que distorce a espontaneidade do ato. Em terras brasileiras, uma mesa “bem”
posta é sempre sinal de requinte, é prerrogativa dos abastados e bem situados socialmente.
No sertão cearense transfigurado em O Quinze, onde a seca provoca a escassez de
alimentação, e muitos vivem as agruras da fome, a mesa, quando existe nos lares daqueles que
não os perderam, certamente é apenas um objeto de carga semântica alterada.
É considerando esse contexto, que as expressões TOALHA ENGOMADA e BULE
SOB ABAFADOR BORDADO dão tom de requinte à refeição, à ceia, e denotam o nível
social da personagem Conceição, neta de Dona Inácia, latifundiária da região, conforme
caracterização anteriormente realizada, estabelecendo, assim, uma distinção entre o estrato em
que se insere essa família e aquele, que comporta os menos favorecidos socialmente, a
exemplo dos próprios moradores da fazenda, convalidando, então, a presença de traços de
estratificação social nos aspectos léxico-semânticos destes vocábulos.

Exemplo 02:

VAQUEIRO / MORADORES / PATROA

“Em casa do Major, o vaqueiro do Logradouro e mais os moradores que a seca não
escorraçara esperavam a patroa.” (p. 142, linha 6)
40

Neste exemplo, temos três elementos lingüísticos em que estão configurados


indicadores de estratificação, ainda, nos limites da fazenda Logradouro: o primeiro, PATROA
─ Dona Inácia ─, já apontada como detentora de poder econômico, agora, representa a figura
que protege e administra o patrimônio; o segundo, VAQUEIRO, figura central do ciclo
pastoril, é o indivíduo que, nas fazendas, “toma conta do gado”, cuja atividade determina-lhe
autonomia moral e decisão nos atos e atitudes; em geral, é ao vaqueiro que se confia a
propriedade; e o terceiro, MORADOR, aquele indivíduo que trabalha em fazenda, morando
nas terras do proprietário mediante algumas condições, entre elas, trabalhar alguns dias para
este como forma de pagamento.
Assim, temos o aparecimento de mais uma situação diferencial de estratificação, a
hierárquica, PATROA, VAQUEIRO e MORADOR, verificada no fazer cotidiano na fazenda.
A própria ordem distributiva dos três vocábulos, aqui, adotada: PATROA ─ VAQUEIRO ─
MORADOR já anuncia essa hierarquização.

Exemplo 03:

RETIRANTES / PÁLIO RICO DO BISPO

“[...] outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase

toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, atrás do pálio rico do bispo e da

longa teoria de frades [...]” (p. 122 linha 16 – 18)

Apresentam-se-nos, neste enunciado, termos que remetem a um tipo de estratificação,


em que estão envolvidos o RETIRANTE ─ o sertanejo que, molestado pela seca, se retira de
suas terras ou região onde mora, portanto, resultado de outro processo de estratificação ─ e a
instituição da Igreja Católica, ora representada pelo BISPO ─ eclesiástico que tem a plenitude
do sacerdócio e é responsável pela direção espiritual de uma diocese; hierarquicamente é
subordinado ao papa e, eventualmente, ao arcebispo, de quem se distingue pelos paramentos.
O vocábulo PÁLIO ─ sobrecéu portátil, ornamentado, sustentado por varas, embaixo
do qual, nas procissões, o padre caminha, conduzindo a custódia ─ encontra-se caracterizado
pelo adjetivo RICO, que denota o poder aquisitivo da Igreja, responsável pela inserção do
BISPO num estrato diferenciado daquele ocupado pelos RETIRANTES, que,
metonimicamente, se mostram descarnados.
41

Assim, os vocábulos, mais uma vez, traduzem uma situação de estratificação social,
que se contextualiza em O QUINZE.

Exemplo 04:

DEUS SÓ NASCEU PROS RICOS

“─ Como se foi Chico? Trouxe o dinheiro e as passagens?


─ Que passagens! Tem de ir é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que
arranja nada! Deus só nasceu pros ricos!” (p. 31, linha 15)

É comum ouvirem-se frases como Deus te pague (ou ajude)!, Deus há de conceder-me
esta graça!, Se Deus quiser... Em todas elas, Deus é protetor. Contrariando esta noção, nesta
fala conclusiva de Chico Bento “DEUS SÓ NASCEU PROS RICOS!”, Deus é alvo de uma
espécie de censura, pelo fato de proteger, apenas, uma parcela da humanidade ─ por sinal,
bem pequena ─, os RICOS.
Esta frase, no entanto, extrapola o sentido de censura e, principalmente, de desabafo
de um “deserdado da sorte”, passando, em verdade, a revelar, no contexto geral da obra,
estratos sociais diferenciados, isentos da ação divina e perceptíveis na materialização do
episódio configurado nos fragmentos “No trem, na estação de Quixadá, Conceição, auxiliada
por Vicente, ia acomodando Dona Inácia.” (p. 32, linha 1) e “À janela, a moça com a mão,
depois com o lenço, que vibrava como uma asa fugitiva, voando para longe” (p. 33, linha 1).
Enquanto Chico Bento e a família, a procura do sustento, tinham de se retirar em
marcha, como de fato acontece, por não disporem de dinheiro para as passagens e não
poderem mais ficar, Dona Inácia, convencida pela neta, em condições privilegiadas, viaja de
trem para Fortaleza, onde no seu conforto espera o fim da seca para voltar.
Desse modo, essa sentença conduz, ainda, à compreensão de que a seca, fenômeno
natural, portanto, não segmentário, verificado nos limites de um determinado espaço geo-
físico, é vivenciada em conformidade com cada um dos estratos da sociedade ali constituída.

Exemplo 05:

ANEL DE GRAU / AMARELO


42

“O dedo gordo do moço se espetou no ar, e o anel de grau relampejou amarelo, à


claridade da lâmpada.” (p. 148, linha 9)

A jóia é de uso universal e milenar. Embora não se tenha justificativa para a sua
utilidade nos diversos planos de sua valoração, esta atravessou séculos sem ter seu prestígio
abalado pelas diferentes interpretações.
Quando começou a ser usada, a jóia era defesa contra um ente malevolente, invisível e
perseguidor; era, assim, um amuleto. Essa interpretação, que resistiu a milênios,
progressivamente, vai-se modificando e à jóia passam-se a atribuir significações religiosas,
rituais, mágicas, políticas, sexuais. Destas, conservamos a dos anéis de grau, correspondentes
aos cursos universitários, que Bolonha impôs no século XIII. Tinham o valor de aliança: era o
símbolo do “casamento” do titulado com um papel social fundamentado em princípios
científicos. Nesse sentido, a palavra GRAU ─ do latim grădus, us ‘passo, posição, degrau (de
escala), ordem ─ , em si, traz a noção de nivelamento diferencial.
No contexto de O Quinze, ao significado de ANEL DE GRAU soma-se a noção de
valor material econômica contida no próprio termo e ratificada pelo elemento caracterizador
AMARELO, que figurativamente representa o metal mais precioso: ouro. Assim, as palavras
ANEL DE GRAU e AMARELO são representações da fragmentação social.

Exemplo 06:

MENINO / QUARTO DE CRIADA

“─ Para que esses luxos? Por que você não bota o menino no quarto de criada, com
Maria?” (p. 103, linha 18)

O vocábulo MENINO, que, em sentido restrito, nomeia a criança do sexo masculino,


neste contexto, além disso, é representação do afilhado de Conceição, filho do casal Chico
Bento e Cordulina, de quem aquela o adotou, logo, representação da camada social menos
favorecida.
A palavra QUARTO, designativo de lugar, é o compartimento dentro das residências,
onde as pessoas se recolhem para dormir. A especificidade que lhe é dada no enunciado  DE
CRIADA  orienta para o entendimento de que a fragmentação social manifesta-se, também,
no interior do domicílio.
43

A fala de Dona Inácia questiona o comportamento da neta, que pusera o filho adotivo
para dormir junto a si, e, ao mesmo tempo, sugere a permanência de uma estrutura social
fragmentada em camadas diferenciais, isenta da influência de gestos e atitudes pautados na
solidariedade.
44

OCORRÊNCIAS

UM CURRAL DE ARAME

“E, sem saber como, [...] foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de
gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo.” (p. 86, linha 7)

DOS SEUS HOMENS

“Dona Inácia se dirigiu afetuosamente a cada um dos seus homens [...]” (p. 142, linha
12)

EM LETRAS DE OURO

“Conceição [...] voltou com um grosso volume encadernado que tinha na lombada, em
letras de ouro, o nome de seu finado avô, livre-pensador, maçom e herói do Paraguai.” (p. 9,
linha 6)

QUARTINHO JUNTO DO DA CRIADA / A NEGRA VELHA

“─ Deixe que eu o leve para o Logradouro, para o meio dos outros...”


─ Não, Mãe Nácia, ele fica. Tem um quartinho junto do da criada, lá na casa das
Rodrigues. E a negra velha me ajuda com ele... Eu já quero tanto bem ao bichinho!” (p. 137,
linha 20 – 24)

CASA CAIADA, A MESA ENVERNIZADA, UMA ARCA DE COURO, UM


RELÓGIO DE PAREDE

“Chico Bento [...] olhou em redor, a casa caiada, a mesa envernizada, uma arca de
couro, um relógio de parede:
─ É, compadre, você está bem...” (p. 84, linha 15)
45

ESMOLINHA / UM NÍQUEL / FUGINDO DA PROMISCUIDADE E DO MAU


CHEIRO DO ACAMPAMENTO

“─ Dona, uma esmolinha...


Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da
promiscuidade e do mau cheiro do acampamento.” (p. 55, linha 22 - 25)

ENGOMADA, UMA TOALHA / UM BULE, SOB O ABAFADOR BORDADO

“Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez
vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia.
─ Você não vem tomar o seu café de leite, Conceição?” ( p. 7, linha 15 )

ANEL DE GRAU / AMARELO

“O dedo gordo do moço se espetou no ar, e o anel de grau relampejou amarelo, à


claridade da lâmpada.” (p. 148, linha 9)

MENINO / QUARTO DE CRIADA

“─ Para que esses luxos? Por que você não bota o menino no quarto de criada, com
Maria?” (p. 103, linha 18)

VAQUEIRO / MORADORES / PATROA

“Em casa do Major, o vaqueiro do Logradouro e mais os moradores que a seca não
escorraçara esperavam a patroa.” (p. 142, linha 6)

ENFATIOTADO, CAIXEIRO DA LOJA DO PAI / HOMEM DE SALÃO

“Às vezes também aparecia um irmão de Mariinha ─ o Clóvis ─, um moço alourado,


enfatiotado, caixeiro da loja do pai, com uns modos distintos de homem de salão [...].” (p.
133, linha 26)
46

DOUTOR / DENTISTA

“─ Sei lá, doutor! Os antigos diziam tolices como todo o mundo... Mas até logo; [...]
O dentista se descobriu e dobrou-se numa reverência [ a Conceição]” (p. 148, p. 15 –
16)

RETIRANTES / PÁLIO RICO DO BISPO

“[...] outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase

toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, atrás do pálio rico do bispo e da

longa teoria de frades [...]” (p. 122 linha 16 – 18)

A PRETA VELHA DA COZINHA

“Na solenidade do momento, ninguém se movia nem falava.


Só a Maria, a preta velha da cozinha, irrompeu pelo corredor [...]
─ O inverno! Senhor São José, o inverno! Benza-o Deus!” (p. 132, linha 13)

VICENTE / MORADORES

“─ E a Chiquinha? Vicente não dava serviço a todos os moradores? Por que ela veio?
─ Sei lá! Diz que só ouvia falar no que o governo dava... Veio com os filhos.” (p. 59,
linha 18)

SUA GROSSA CASCA DE MATUTO / A DELICADA SOFISTICAÇÃO DO


AMBIENTE DO OUTRO

“Recordava sua obscura irritação ao ouvir Paulo fazer referência a certas mulheres que
ele nunca vira, a meios em que nunca se aventurara, receando que sua grossa casca de matuto
destoasse demais, ou rudemente se chocasse com a delicada sofisticação do ambiente do
outro...” (p. 43, linha 14 – 15)
47

AUDITÓRIO ESMOLAMBADO

“Perto deles, o cego da viola cantava para seu auditório esmolambado; e a toada
dolorida chegava de mistura com o hálito doentio do Campo [...]” ( p. 107, linha 8)

DEUS SÓ NASCEU PROS RICOS

“─ Como se foi Chico? Trouxe o dinheiro e as passagens?


─ Que passagens! Tem de ir é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que
arranja nada! Deus só nasceu pros ricos!” (p. 31, linha 15)

SEUS CABOCLOS

“─ Que é dos jumentos? [...]


─ Minha madrinha não tem os seus caboclos pra carregarem a senhora? Por que se
havia de botar animal, tendo nós?” (p. 142, linha 30 )
48

5. 3 Religiosidade/ Misticismo

Cotejando os significados dos vocábulos religiosidade e misticismo, encontramos o


primeiro, de etimologia latina, compilado por Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar
(2004, p. 2.422), na acepção 2, como “tendência para os sentimentos religiosos, para as coisas
sagradas”; o segundo vocábulo, na acepção 4 (p. 1935), como “atitude mental, baseada mais
na intuição e no sentimento do que no conhecimento racional, que busca, em última instância,
a união íntima e direta do homem com a divindade”.

Considerando tais palavras, partimos do princípio de que o ser humano, em sua


essência, carrega uma predisposição à sobrenaturalidade, e a religião é o elo que integra o
homem numa relação que tem como extremidade a divindade, sendo a devoção uma
promoção espiritual.

Desta percepção devocional depende a variedade dos atributos divinos. Esta, fruto da
inteligência pessoal, é uma tradução do geral coletivo.

Qualificando o fenômeno religioso de interior, íntimo, Câmara Cascudo (2004, p. 545)


infere que “nada seria possível estudá-lo fora do depoimento dos fiéis [...]. Mas não há
religião sem ritual, sem atos litúrgicos, sem oblação dentro das exigências do cerimonial. A
transmissão é sempre material e é essa transmissão de homem a homem e de homem a Deus,
um objeto nitidamente etnográfico e, por conseqüência, passível de exame, pesquisa e
interpretação.” Este estudioso, no seu Dicionário do folclore brasileiro, citando João Hélio
Mendonça, registra, ainda:

No Brasil [...] folclore e religião caminham constantemente juntos. Um


catolicismo tradicional, rural, impregnado de conteúdos e expressões
populares existiu e existe no país. A unidade religiosa que se firmou aqui,
desde o início da colonização, condicionou e favoreceu o estabelecimento de
um catolicismo como expressão religiosa dominante, inteiramente
acomodada e penetrando, com seus valores, todos os setores da vida social.
É o catolicismo das festas cíclicas, das homenagens aos santos padroeiros
nas principais praças das cidades, dos folguedos, das rezas e das rezadoras,
das novenas coletivas, do pieguismo da piedade familiar, das romarias, das
devoções e de muitas outras práticas ou expressões religiosas que
identificam o nosso calendário folclórico com a própria religião.
49

Manifestações deste gênero, independentemente de serem de cunho religioso-popular


ou sincrético, são em número tão expressivo no Brasil que algumas delas tornam-se “eventos
especiais ou tipicamente regionais” conforme acrescenta Câmara Cascudo.
Estas afirmativas podem ser convalidadas na obra em foco, a partir da significação
atribuídas aos elementos lingüísticos pelos falantes nos exemplos por nós elencados,
aleatoriamente, uma vez que não optamos pela totalidade das ocorrências. Desta feita,
observando os aspectos léxico-semânticos, identificaremos elementos sócio-culturais voltados
para o par religiosidade / misticismo configurados nos componentes da oralidade, em O
Quinze, de Rachel de Queiroz.
Na obra em questão, o binômio religiosidade/misticismo manifesta-se, principalmente,
em torno das súplicas dos fiéis a São José pela carência de chuva, razão maior da angústia,
aflição e das incertezas da população do sertão nordestino, frente a uma realidade lardeada de
miséria e dor.
A incorporação dessa preocupação do sertanejo nordestino com a falta de chuva à
liturgia cristã é comentada por Cristina Pompa (2004, p. 69), que a situa em fins do Século
XVI e início do Século XVII, associando-a à empreitada catequética. Segundo ela,

Os padres [...] reconheceram em alguns rituais indígenas os sinais da


presença de Deus e deles se apoderaram: a confissão [...], a cura das doenças
[...]. Sobretudo, acabaram assumindo duas prerrogativas fundamentais dos
“feiticeiros”: a profecia [...] e a capacidade de fazer chover. O jesuíta
Francisco Pinto, evangelizador dos potiguaras do Rio Grande do Norte e
Ceará, [...] foi por eles chamado de Amanayara, “Senhor da Chuva”. Várias
cartas jesuíticas apresentam exemplos de chuvas milagrosas que abençoaram
as aldeias do sertão graças às rezas e penitências.
Assim, a maior preocupação dos povos do sertão, a falta de chuva, foi
logo incorporada à liturgia cristã [...] em que o padre era o intermediário
entre os índios e Deus na busca da salvação.

Das palavras de Cristina Pompa, podemos deduzir que qualquer santo poderia, pois,
ser referenciado, mas, culturalmente, o eleito pelos povos daquelas terras foi São José.
Analisaremos, então, observando os aspectos léxico-semânticos, as expressões
lingüísticas componentes da oralidade, em que se configuram traços de religiosidade /
misticismo, no contexto de O Quinze, a partir dos exemplos que se seguem.

Exemplo 01:
50

SÃO JOSÉ

“Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:


─ Tenho fé em São José que ainda chove!” ( p. 7, linha 11)

São José, o carpinteiro, São José, o esposo de Maria, São José, o pai de Jesus.

Segundo a tradição cristã católica, São José é o “arquiteto” da Sagrada Família, é o


esposo abnegado da Virgem Maria e o pai adotivo do Menino Jesus, cumprindo fielmente
suas tarefas em relação a estes, sendo, por isso, o patrono dos lares católicos e defensor dos
que trabalham. Acredita-se que os que nele professam fé têm garantidos o trabalho e o pão de
cada dia, mas, para tanto, o fiel deve resignar-se a uma vida moderada, despir-se do desejo
impetuoso de riqueza e de poder social.

Tais aspectos parecem explicar a crença em São José obreiro de bons casamentos, para
quem a ele recorre em súplicas com esse fim. Popularmente, o título de “santo casamenteiro”
foi proferido a Santo Antônio, mas é sabido, também, que a este importa atender ao pedido, e
não, a qualidade da união por ele promovida, ao passo que São José só promove uniões
matrimoniais perfeitas, de harmonia, de tranqüilidade, de fartura, de prosperidade, sob a
proteção divina.

Como autor e inspirador de todo conhecimento útil, a São José foi incumbida a tarefa
de proteger, defender e amparar, benevolentemente, os que a ele recorressem, em todas as
necessidades.

Padroeiro de 171 paróquias e denominador de 12 de municípios brasileiros1, SÃO


JOSÉ é, ainda, referência para a previsão do inverno na região Nordeste, particularmente, no
sertão, em virtude de seu dia votivo, 19 de março, por indicação da Igreja Latina, coincidir
com as vésperas do solstício2. Neste período, costuma-se fazer novena em súplicas ao Santo.
É comum, em meio aos sertanejos nordestinos, olhares fixos no firmamento, catando ao
menos uma nuvem que se apresente escurecida ─ “carregada”, “amojada”, “pesada”, no falar

1
Este cômputo deve ser considerado até o ano de 1947, segundo Câmara Cascudo
2
Chama-se de solstício às posições em que a Terra se encontra em 22 de dezembro e 22 de junho. Por exemplo,
dizemos que dia 22 de dezembro é solstício de verão no hemisfério sul e solstício de inverno no hemisfério
norte. Em 21 de março e 23 de setembro a Terra se encontra em posições tais que ambos os hemisférios são
igualmente iluminados, marcando assim o início das 'meias estações', outono e primavera.
51

regional ─ pela água condensada que comporta e, movida pela força da esperança daqueles
olhares, não resista ao seu peso, dissolvendo-se em águas abençoadas e enviadas por São José
para molhar aquele solo seco, garantindo, assim, o sustento do homem e do animal. Se chove
pelo SÃO JOSÉ, é praticamente certo que o inverno virá. SÃO JOSÉ seco, nublado,
chuviscando ou molhado oferece ao agricultor subsídio, pela sua experiência, para uma
avaliação meteorológica e, conseqüentemente, das condições de sobrevivência naquela região.

Exemplo 02:

MEDALHINHA

“Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, Dona Inácia
concluiu: Dignai-vos ouvir nossas súplica, ó castíssimo esposo da Virgem Maria [...]. Amém.”
( p.7, linha 1 )

Na nossa língua, identificamos medalha como uma peça produzida em metal de tipo
vário, geralmente, de forma circular ou ovalada, criada para celebrar um grande evento, nela
impresso, ou, ainda, honorificar alguma ilustre personagem, cuja imagem nela vem gravada.
No contexto da obra em estudo, de maneira análoga, a peça representa um objeto de
fé, de devoção religiosa, cuja efígie personifica-se quando dos atos de reverência cristã ─
benzer e beijar – praticados por D. Inácia.
Católica fervorosa, temente a Deus, D. Inácia nutre por São José um sentimento de
esperança, de confiança, identificados em suas preces, e de carinho, de afeto, simbolizados no
vocábulo MEDALHINHA, por meio do emprego do sufixo -INHO (A), que, na dinamicidade
da língua falada, se reveste, neste contexto, não somente da noção primeira de grau, de
pequenez, definida pela gramática tradicional, mas também de uma carga semântica que
transmite a nós leitores uma visão imaginativa da afetividade daquela senhora proprietária
rural em relação a São José. Nestes termos, a MEDALHINHA é relíquia, em que se
configuram devoção, fé, ser devotado, respeito, zelo e afeto.

Exemplo 03:

NOVENA
52

“Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição [...] interpelou-a:


─ E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta
novena...” ( p. 7, linha 10)

Nesta fala de Conceição ─ neta que D. Inácia criara desde quando, por morte, àquela
lhe faltara a mãe ─, encontramos refletidas, mais uma vez, a confissão e as práticas religiosas
de sua avó-mãe. Desta feita, no vocábulo NOVENA.
A religião, enquanto realidade psíquica, tem tradução relativizada pelo ambiente
cultural. No Nordeste, as novenas “tiradas” coletivamente encontram sentido nas festas do
santo padroeiro, ocasião em que as orações são acompanhadas de cânticos e foguetes, que
explodem em louvor ao patrono, nas reverências aos santos, cujo dia votivo deve coincidir
com o último dia da novena. Já as “tiradas” individualmente ganham sentido na oblação em
contrapartida a uma graça alcançada ─ o popular ato de “pagar promessa” ─ nas preces ao
santo devotado, para que se seja agraciado e, ainda, como penitência.
Em articulação com o signo lingüístico tanta, elemento semanticamente quantificador,
o vocábulo NOVENA, em termos temporais, norteia-nos para a imensurabilidade das súplicas
de D. Inácia para a chuva cair. No entanto, o enunciado como um todo revela muito mais,
visto que Conceição questiona não apenas o valor positivo do excesso de oração, mas
também, a eficácia desta em si. Vale ressaltar, ainda, que este questionamento parece não
traduzir repulsa tácita, por parte dela, aos princípios dogmáticos do catolicismo, conforme
pode atestar a carga semântica do termo “domingo”em “- E você sem largar esse livro! Até
em hora de missa! A moça fechou o livro, rindo: - Lá vem Mãe Nácia com Briga! Não é
domingo? Estou descansando.” (p. 123, linha 26), por meio do qual Conceição, tendo
negligenciado um mandamento da Igreja, reafirma-os ao concebê-lo como o Sétimo dia, o dia
em Deus descansou da sua tarefa de Criador do universo, e que todo católico, a sua
semelhança, deve guardá-lo.

Exemplo 04:

REZADEIRA

“Quando o pai chegou trazendo consigo uma negra rezadeira, Josias [...] sibilava, mal
podendo com a respiração estertorosa.” (p. 54, linha 31)
53

Ressalte-se a figura da REZADEIRA já nos primeiros povoados do sertão nordestino.


Proferindo rezas ─ orações voltadas aos espíritos superiores com a finalidade de se obterem
proteção e auxílio na cura de doenças ─, ela percorre as vilas em socorro dos que nela vêem
um intermediário entre si e as coisas da sobrenaturalidade, vista como força controladora das
formas materiais, psíquicas ou não.
Cada situação requer uma tipologia específica de reza, em que se encontram
envolvidos Deus, homem, plantas, animais, além de outros elementos. Mas a REZADEIRA se
sobressai, no contexto sertanejo, como elemento humano cujos “poderes de cura” se
manisfestam por meio do benzimento: à medida que reza, sobre a cabeça do ser acometido de
um mal, faz cruzes com ramos verdes, que murcham ao absorverem o “espírito” causador
daquele mal.
Os ramos encontram tradição na Igreja Católica: na entrada de Jerusalém, iniciando a
Semana Santa, com ramos, em sinal de alegria e fé, Jesus foi acolhido pelos cristãos como Rei
humilde e servidor, por isso, revivendo esta celebração, no Domingo de Ramos, os fiéis levam
à igreja ramos, que são bentos e guardados por aqueles como símbolo da fé em Jesus, que
protege, escuta as preces dos que por ele clamam, cura os males do corpo e da alma.
Modernamente, costuma-se levar para as bênçãos sacerdotais ramos medicamentosos, que
são, posteriormente, usados na prevenção e cura dos males.
Movida pela fé na servidão do Senhor, a rezadeira, com ramos e orações, cura, entre
outros males, quebranto, mau olhado, “vento caído”, além de dor de cabeça, ferimento, dor de
garganta, dor de estômago, fazendo com que a sua essencialidade místico-religiosa passe,
também, a responder à carência e ausência de assistência especializada ─ médica ─, em áreas
geo-politicamente isoladas. Tais atributos conferem popularidade à rezadeira nestes ambientes
sociais, onde esta atende a pobres e abastados.
Em geral, ela é uma mulher experiente, de idade. É comum, diante de seu
desaparecimento, suas obrigações e práticas serem assumidas por uma filha, que apresente
semelhantes características.
Personagem secundária em O Quinze, a REZADEIRA se faz presente quando Chico
Bento e família já sofriam as dores da difícil retirada das terras secas dos arredores do
Quixadá rumo ao “Ceará”, de onde partiriam para o Amazonas, recôndito de glórias e
alegrias, sonhado confiadamente por Chico Bento, para ele e sua família: mulher, filhos e uma
cunhada, que, não suportando as agruras da migração, ficara numa localidade denominada
Castro, “ ─ [...] mode ajudar na cozinha e vender na Estação”.
54

Cansados, famintos, continuaram a caminhada. O pequeno Josias, às escondidas,


comera um pedaço de raiz seca de “manipeba”, retirado por ele de uma roça abandonada.
Arrancharam-se numa casa velha de farinha. Faltava-lhes o alimento, pois, quando da parada
anterior, o pouco que carregavam consigo, Chico Bento, em atitude cristã, havia dividido com
outros retirantes, evitando que estes se alimentassem da carne deteriorada de uma rês doente
que, ali, haviam encontrado.
Na casa de farinha, Josias gemia com fortes dores na barriga. O que, antes, lhe
aliviara a primeira dor da fome, agora, ceifava-lhe a vida. A mãe, Cordulina, fizera-o beber
um chá de “sene” seca que carregava em uma lata. O único recurso não surtiu o efeito
desejado. O pequeno, com o ventre excessivamente inchado, agonizava. Restava-lhes recorrer
aos “poderes de cura” da REZADEIRA, que encontrou a criança praticamente sem vida; “por
via das dúvidas, começou a rodar em torno do menino, benzeu-o com um ramo murcho tirado
do seio chocalhante de medalhas, resmungando rezas: “─ Donde vens, Pedro e Paulo? Venho
de Roma. O que há de novo em Roma, Pedro e Paulo?...” (p.55, linha 11)
Nesta reza, os elementos invocados são próprios da confissão católica, embora essa
prática de misticismo-religioso não esteja diretamente ligada à Igreja Católica. Aqui, é válido
lembrar a variedade de manifestações místico-religiosas e o sincretismo, mencionados
anteriormente, que ora se configuram nos aspectos léxico-semânticos do vocábulo analisado.

Exemplo 05:

ROSÁRIO

“A mão trêmula da velha tateou o bolso da saia, procurando o rosário. [...]


─ Que é que tem, Mãe Nácia? Esqueceu-se de alguma coisa?
─ Não... quero só rezar um bocadinho para ver se sossego este coração...”(p. 35, linha
7)

O ROSÁRIO, enquanto oração, é uma das expressões vivas e práticas de devoção e


amizade à Virgem Maria, em meio ao riquíssimo acervo místico do cristianismo. Quando de
suas aparições aos pastorezinhos, em Fátima, Portugal, ela pediu-lhes que o rezassem
diariamente.
O escorrer (-rio) das ave-marias (das rosas-: metáfora dos louvores à “Maria, Cheia de
Graça”, Maria, Mãe de Deus, Maria, Mãe dos Homens, Maria, Rainha dos Céus) traça-lhe um
55

perfil mariano, no entanto, o Rosário é uma oração cristológica, já que seus elementos
condensam a profundidade dos mistérios de Cristo3 ─ gozosos, dolorosos, gloriosos. Cada um
corresponde a um terço da totalidade do Rosário de Maria. Em cada um, medita-se e / ou
contempla-se uma etapa da vida de Jesus Cristo.
Nos mistérios gozosos ─ da anunciação à presença de Jesus no Templo, junto com os
doutores ─, cada mistério é introduzido pela oração que o próprio Cristo prescreveu, o pai-
nosso, ao que se seguem dez ave-marias, que se intercalam com um episódio da vida do Rei
de Nazaré, culminando com o glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, que, em si, é toda a
expressão dos mistérios de Cristo.
Os demais mistérios são recitados com essa mesma metodologia : nos dolorosos,
medita-se e / ou contempla-se a agonia de Jesus no Horto das Oliveiras a Sua morte na cruz;
nos gloriosos, da ressurreição de Jesus à coroação de Maria no Céu.
Assim, em cada rosa- configura-se a presença do Filho na vida Maria, e desta na vida
do Filho, cujos mistérios fluem à entoação da oração em louvor da Mãe: Ave-Maria.
O momento de recitação do Rosário é volitivo de acordo com cada orante, entretanto,
parece superior o critério do tempo litúrgico: no advento, os gozosos; na quaresma, os
dolorosos; no tempo pascal, os gloriosos.
No contexto da obra em foco, o vocábulo ROSÁRIO é objeto místico
instrumentalizador da oração em louvor à Virgem Maria ─ o Rosário de Maria. Compõe-se da
sucessão de cinco dezenas de contas (rosas), de proporções variadas, representantes da oração
ave-maria, com a intercalação de uma unidade de conta, correspondente ao padre-nosso, cuja
totalidade, em termos de oração, corresponde à terça parte do Rosário de Maria. Ao usá-lo, D.
Inácia, na verdade, orienta materialmente suas preces pela inquietação espiritual que a ela
aflige. Nesse sentido, o médico e Pe. João Mohana (1994, p.25), ao falar da psicologia do
terço, argumenta:

Afinal o terço é uma oração filial. Não é, portanto, motivo de estranheza o


fato de, ao saudar a Mãe, meditando os mistérios do Filho, sentirmos a
gostosura da brisa soprando o amor, pela janela que o terço abre na alma,
atirando o olhar materno bem dentro, no íntimo de todos nós. Se um filho
põe-se a pensar, com a Mãe, nos mistérios que a todos envolvem, é natural e
sobrenatural que esse louvor pensado, que esse louvor meditado, suscite

3
Em outubro de 2002, o Papa João Paulo II acrescentou ao Rosário os mistérios luminosos, que relembram os
momentos, particularmente luminosos da vida pública de Jesus: O Batismo de Jesus no Jordão, As bodas de
Caná, O anúncio do Reino de Deus, A transfiguração e A instituição da Eucaristia. (Cf. Revista oficial da
Associação Milícia da Imaculada, nºs 281 – janeiro / fevereiro, 2003 – e 282 – março, 2003).
56

bem-estar, nascido não apenas da ternura do embalo, como também da


intimidade da fé.

Exemplo 06:

PROCISSÃO

“[...] outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta
quase toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, atrás do pálio rico do
bispo e da longa teoria de frades a entoarem em belas vozes a canção em louvor do
santo:”
Cheio de amor, cheio de amor!
as chagas trazes
do Redentor!” (p. 122, linha 16)

No sertão nordestino, dentre as várias manifestações de religiosidade, a procissão


constitui lugar-comum aos que, por devoção, buscam a contrição com o sagrado.
É de particular significação a procissão realizada por ocasião da seca, a penitência, que
tem duração de nove dias: os devotos, portando imagens de santos, rezando, pedindo a São
José para chover, deixam seus lares e, em procissão com os beatos, caminham para lugares
sagrados ─ cruzeiros, pequenas capelas no mato, centros regionais de romarias ─, pontos de
renovação espiritual.
A seca ─ manifestação de um desequilíbrio cósmico ─ é para o sertanejo castigo
divino pela falta de devoção e pelos pecados cometidos. Neste contexto, a penitência é forma
horizontal terrena de restabelecimento da ordem espacial, temporal e social instituída pela
cultura popular. Os santos conduzidos em procissão ressacralizam o espaço profanado. Ao
término do evento, restabelecem-se as práticas cotidianas e as hierarquias sociais.
Essa tipologia de procissão distingue-se das promovidas pela Igreja Católica.
Enquanto aquelas são criação nativa, estas registram naturalidade institucional e, geralmente,
são realizadas em datas festivas alusivas aos santos, a exemplo da procissão contextualizada
em O Quinze, que tem em São Francisco o santo festejado.
Motivado pela convicção religiosa, o santo renunciou à riqueza e ao conforto que lhe
era de direito, graças a sua origem abastada, e, como pobre e peregrino, experimentou na
solidariedade com os humildes a Providência divina. Na sua fé, o amor de Deus revela-se pela
57

criação de todas as criaturas. Homem de grande fervor, São Francisco, também, nutria afeto
pelas criaturas inferiores e irracionais, que, no vale de Espoleto, na Itália, ouviram dele, entre
muitas, as seguintes palavras: “Passarinhos, meus irmãos, vocês devem sempre louvar o seu
Criador e amá-lo, porque lhes deu penas para vestir, asas para voar e tudo que vocês
precisam”, conforme o Novenário da Festa da Paróquia de São Francisco das Chagas, de
Canindé-Ceará (2002, p. 24).
Pela vida de pobreza e peregrinação, São Francisco é alvo de reverência e modelo a
ser seguido em terras sertanejas, onde a pobreza, a abstinência, a penitência e a migração
estabelecem identidade entre os flagelados da seca e ele.
Etimologicamente, o termo PROCISSÃO é marcado, dentre outras, pelas noções de
movimento, desprendimento, renúncia, abnegação, contidas em -ceder (do verbo latino cēdo,
cedis, cessi, cessum, cedĕre = vir , caminho, produzir seu efeito, ir-se embora, retirar-se, fazer
cessão de bens, renunciar à posse, diminuir, abrandar, cessar, perder a resistência).
Assim, em O Quinze, a noção de PROCISSÃO confunde-se com a prática religiosa de
São Francisco e dos flagelados, que a ele suplicam, em cânticos e orações, o abrandamento de
suas dores de pobreza e retiradas.
58

OCORRÊNCIAS

SÃO JOSÉ = na cultura regional, é o santo que atende às súplicas do nordestino pela
carência de chuva

“Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:


─ Tenho fé em São José que ainda chove!” ( p. 7, linha 11)

“─ [...] O compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordem pra, se não
chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral?” (p.11, linha 27)

“Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de São José, você abra as porteiras e
solte o gado.” (p. 21, linha 10)

“─ E, pelo que ouvi dizer, você ainda esperou uma semana... Hoje é 25...
─ Me esperancei que inda chovesse depois do São José... Mas qual!” (p. 24, linha 16)

“Só a Maria, a preta velha da cozinha, irrompeu pelo corredor, acocorou-se a um canto
e engulhando lágrimas e mastigando rezas, resmungava:
─ O inverno! Senhor São José, o inverno! Benza-o Deus!” (p. 132, linha 15)

MEDALHINHA = objeto de fé, de devoção católica

“Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, Dona Inácia
concluiu:Dignai-vos ouvir nossas súplica, ó castíssimo esposo da Virgem Maria [...].
Amém.”( p.7, linha 1 )

NOVENA = conjunto de orações e práticas litúrgicas, realizadas no período de nove dias


consecutivos

“Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição [...] interpelou-a:


─ E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta
novena...” (p. 7, linha 10)
59

LAGOA = na cultura regional, círculo luminoso ao redor da lua ou do sol, considerado pelo
sertanejo prenúncio de chuva, caracterizando uma profecia.

“[...] Conceição [...] pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. [...].


─ Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!...” (p. 8, linha 13)

ROSÁRIO = objeto místico composto da sucessão de cinco dezenas de contas, de proporções


variadas, representantes da oração Ave-Maria, com a intercalação de uma unidade de conta,
correspondente ao Padre-Nosso, cuja totalidade, em termos de oração, corresponde a terça
parte do Rosário de Maria; o mesmo que terço

“A mão trêmula da velha tateou o bolso da saia, procurando o rosário. [...]


─ Que é que tem, Mãe Nácia? Esqueceu-se de alguma coisa?
─ Não... quero só rezar um bocadinho para ver se sossego este coração...” (p. 35, linha
7)

“Maciamente, num passo resvalado de sombra, Dona Inácia entrou, de volta da


igreja, com seu rosário de grandes contas pretas pendurado no braço.” (p. 123, linha 19)

“Enfim caiu a primeira chuva de dezembro. Dona Inácia, agarrada ao rosário, de mãos
postas, suplicava a todos os santos que aquilo fosse ‘um bom começo’”. (p. 132, linha 2)

MEXIA AS CONTAS DO ROSÁRIO = rezava com o rosário, passando cada conta deste
objeto místico, em busca da contrição com Maria, Mãe de Jesus

“[...] no quarto vizinho a avó, insone como sempre, mexia as contas do rosário, [...]”
(p.9, linha 12)

SANTOS = imagens de pessoas que, pelo mérito dos pensamentos e práticas cristãs, foram
canonizados pela Igreja Católica, produzidas, especialmente em vulto, de materiais diversos.

“Dona Inácia fazia questão de trazer os santos junto a si, com medo de que no carro de
bagagens algum irreverente se sentasse em cima.” (p. 32, linha 5 )
60

“[...] e outubro chegou, com São Francisco [imagem] e sua procissão sem fim [...]” (p.
122, linha 7)

QUADRO DO CORAÇÃO DE JESUS = imagem gráfica e emoldurada de Jesus, em que se


destaca o coração como representante do amor de Cristo pela humanidade. Nos lares
sertanejos, ocupam lugar de destaque em suas salas, que a exibem como símbolo da presença
desse amor naquela família.

“Vicente ergueu-se [...] reparando num retrato de Conceição, com ar pensativo, que
pendia da parede, junto ao quadro do Coração de Jesus [...]”. (p. 73, linha 10)

“A velha [...] foi ao quarto do Coração de Jesus, tirou do jarrinho que o enfeitava uma
rosa vermelha e mirrada ─ triste flor de verão ─ e meteu-a entre os dedos do menino, [...]” (p.
131, linha 21)

REZAR = fazer orações, preces

“─ Que é que tem, Mãe Nácia? Esqueceu-se de alguma coisa?


─ Não... quero só rezar um bocadinho para ver se sossego este coração...” (p. 35, linha
12)

REZADEIRA = mulher que cura diversos tipos de males, doenças, feitiços etc., por meio de
“orações fortes”; benzedeira; curandeira

“Quando o pai chegou trazendo consigo uma negra rezadeira, Josias [...] sibilava,
mal podendo com a respiração estertorosa.” (p. 54, linha 31)

DEUS = ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si; causa necessária e fim último de
tudo que existe

• Sei lá! Deus ajuda! = modo de expressar confiança no amparo divino, quando
não se tem controle da situação material de eventos futuros

“─ Chico, que é que se come amanhã?


61

─ Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados
roerem osso podre...” (p. 40, linha 26)

• quando Deus fosse servido = expressão que condiciona a obtenção de


alimentos à vontade de Deus

“O comer era quando Deus fosse servido.” (p. 62, linha 13)

• pelo amor de Deus! = apelo à sensibilidade cristã do ser humano, utilizando-


se do amor pregado por Cristo, como elo de fraternidade entre os homens

“[...] Chico Bento[...] suplicou de mãos juntas:


─ Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, [...]
um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos!” (p.
66, linha 24)

• Só Deus Nosso Senhor sabe... = expressão que denota a crença em que a


concretude de alguns eventos humanos encontra explicação, somente, no poder
da ação divina

“─ [...] Como foi que um bichinho destes agüentou! [...]


O vaqueiro murmurou:
─ Só Deus Nosso Senhor sabe...” (p. 89, linha 31)

• quando Deus Nosso senhor é servido de tirar = a existência terrena


condicionada à vontade da Providência divina, e não à determinante humana.

“[...] Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o


dia, ou quando Deus Nosso senhor é servido de tirar.” (p.106, linha 4)

• Deus lhe pague! = rogo de recompensa divina para uma pessoa que realizou
uma benevolência a outrem, como forma de agradecimento, geralmente
proferida por um desprotegido, um mendigo
62

“─ Deus lhe pague! Nossa Senhora lhe proteja! E tenha sempre


caridade com o pobre do meu filhinho!” (p. 113, linha 9)

“Depois [...] limpou os beiços nos molambos do braço:


─ Deus lhe pague, doninha...” (p.129, linha 6)

“─ Deus lhe pague, minha Madrinha, Deus lhe Pague! Nossa Senhora
lhe dê tudo quanto deseja!” (p. 141, linha 6)

• Santa Mãe de Deus! = construção lingüística que, referenciando a origem


materna de Deus, expressa uma censura a uma atitude considerada marginal
aos ensinamentos cristãos

“Dona Inácia levou as mãos ao rosto, [...]:


─ Santa Mãe de Deus! Tem gente para tudo, neste mundo!” (p. 129,
linha 26)

• Ter fé nos poderes de Deus e esperar = expressão em que a fé em Deus Pai


Todo Poderoso significa certeza da realização de algo desejado
“─ Botaram uma raminha verde pra ela?
─ Rama verde de onde? [...]
─ E o que é que se faz?
─ É esperar... Ter fé nos poderes de Deus e esperar... Pode ser que
Nossa Senhora ajude...” (p. 119, linha 16)

• Benza-o Deus! = expressão que denota admiração por um agraciamento


divino, revelando, fundamentalmente, uma forma de agradecimento

“Na solenidade do momento, [...]


Só a Maria, a preta velha da cozinha, irrompeu pelo corredor, acocorou-
se a um canto e engulhando lágrimas e mastigando rezas, resmungava:
─ O inverno! Senhor São José, o inverno! Benza-o Deus!” (p. 132,
linha 15 )
63

BENZEU-O = fez o sinal da cruz, acompanhado de oração com fórmula específica, sobre a
cabeça da criança

“[...] benzeu-o com um ramo murcho tirado do seio chocalhante de medalhas,


resmungando rezas:
─ Donde vens, Pedro e Paulo? Venho de Roma. O que há de novo em Roma, Pedro e
Paulo?...” (p.55, linha 9)

MILAGRE = evento extraordinário não explicável pela racionalidade das leis naturais

“Só talvez por um milagre iam agüentando tanta fome, tanta sede, tanto sol.” (p. 62,
linha 11)

“Conceição [...] horrorizou-se:


─ Virgem Maria! Como foi que um bichinho destes agüentou! Só milagre!” (p. 89,
linha 29)

“Conceição perguntou:
─ Morre, Doutor?
─ Não sei... [...] tenha esperança... Pode ser... Há tanto milagre no mundo! (p. 104,
linha 27)

IGREJA = edifício sede-oficial onde os fiéis católicos se reúnem para cultuar Deus; templo;
casa de Deus

“─ [...] Mas é que no Quixadá eu estava mais perto do meu canto, de minha igreja...”
(p. 60, linha 9 )

MADRINHA = nas práticas religiosas, mulher que conduz uma pessoa para receber o
primeiro sacramento instituído pela da Igreja Católica, o batismo, ou ainda, o segundo, a
crisma, que consiste na ratificação da graça do primeiro, com o compromisso implícito de, na
ausência dos pais, provê-la do necessário.
64

“─ É este o meu afilhado?


─ Cadê a bênção da madrinha, Manuel? Não é Manuel o nome dele?” (p.89, linha 18)

PROCISSÃO = marcha de caráter religioso, encabeçada por sacerdotes e outros clérigos, ou


por sectários ─ beatos ─, que seguem expondo imagens de santos, a quem, em louvor, entoam
cânticos, orações e preces

“[...] outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase
toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, atrás do pálio rico do bispo e da
longa teoria de frades a entoarem em belas vozes a canção em louvor do santo:

Cheio de amor, cheio de amor!


as chagas trazes
do Redentor!” (p. 122, linha 15)

ANDOR = padiola ornamentada em que, nas procissões, se transporta imagens de sacras; o


mesmo que charola na linguagem popular

“E no andor, hirto,... São Francisco passeou por toda a cidade, com os olhos de louça
fitos no céu, sem parecer cuidar da infinita miséria que o cercava e implorava sua graça, sem
nem ao menos ensaiar um gesto de bênção, porque suas mãos, onde os pregos de Nosso
Senhor deixaram a marca, ocupavam-se em segurar um crucifixo preto e um grande ramo de
rosas.” (p. 123, linha 1)

MISSA = na Igreja Católica, celebração do sacrifício do corpo e sangue de Jesus Cristo,


rezada pelo pároco em domingos e dias santificados, da qual os fiéis devem participar em
cumprimento ao primeiro mandamento da Santa Igreja ─ ouvir missa inteira em festas e
guardas

“─ Já de volta, Mãe Nácia?


─ E você sem largar esse livro! Até em hora de missa!
─ Lá vem Mãe Nácia com briga! Não é domingo? Estou descansando.” (p. 123, linha
25)
65

PADRE = homem a quem já foram conferidas as ordens sacerdotais, cabendo-lhe, portanto, a


missão de orientar, disciplinar a conduta dos fiéis, que, como tais, devem-lhe obediência

“─ E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia
romance que o padre mandava...” (p. 124, linha 4)

TERÇO = o mesmo que rosário, enquanto instrumento material de recitação da terça parte da
oração Rosário de Maria

“Dona Inácia foi saindo da sala, para guardar o manual e o terço: [...]” (p. 125, linha 2)

CARIDADE = ato por meio do qual se beneficia o próximo, por isso, dotado de virtude
teologal que conduz ao amor a Deus e ao nosso semelhante

“─ Eu queria lhe pedir outra caridade...” (p. 129, linha 14)

É MAIS UM ANJO NO CÉU = é mais uma criança morta, cujo batismo apagou a marca do
pecado original, por isso, na sua inocência angelical, vai morar no céu, concebido como
morada de Deus, dos anjos e bem-aventurados, recompensa divina para os que nele acreditam
e vivem segundo seus mandamentos e sua Igreja

“─ Pobrezinho! deixou de sofrer! E é mais um anjo no céu...” (p. 131, linha 25)
66

5. 4 Valores e costumes

A palavra valor transita por vários campos do conhecimento e, de acordo com seus
respectivos objetos, atribuem-lhe conceitos diferenciados.
Para efeito de elucidação, aqui, consideraremos valor à semelhança de F. Znaniecki,
citado no DCS (1987, p. 1288), que diz

Por valor social entendemos qualquer dado que tenha conteúdo empírico
acessível aos membros de algum grupo social e um significado em relação
ao qual é ou pode vir a ser objeto de atividade... Por atitude entendemos um
processo de consciência que determina a atividade real no mundo social ... A
atitude é, assim, o equivalente individual do valor social; a atividade, seja lá
em que forma, é o vínculo entre eles... A causa de um valor ou de uma
atitude nunca é uma atitude ou valor isolado, mas sempre uma combinação
de uma atitude e um valor.

Como conjunto de traços culturais, ideológicos ou institucionais, os valores definem-


se em nível de sistema ou internamente, em nível de grupos menores, além de outros, da
família, de tradição, da vida rural, da vida urbana, de espiritualistas.
Sendo assim, os valores culturais distinguem-se dos gostos e preferências pessoais.
Estas são regidas, unicamente, pela vontade do próprio indivíduo. Já os valores culturais são
exteriores ao indivíduo, enquanto partícipe de uma sociedade. Eles existem porque são
importantes para um determinado complexo cultural e, como tal, são acessíveis ao indivíduo.
O respeito aos mais idosos, por exemplo, é um valor; sua categoria como parte da cultura não
se deixa afetar pelo grau de importância variável que uma ou outra pessoa possa lhe conferir.
Ademais, em virtude das relações internas e internacionais dos povos, um mesmo valor,
salvaguardadas as adaptações, pode fazer parte de mais de uma cultura.
Como parte de qualquer cultura, os valores encontram relevância na influência que
exercem no modo de as pessoas realizarem suas escolhas e de os sistemas sociais se
desenvolverem e se modificarem, o que implica ética e consenso.
É oportuno lembrar que apesar de algum grau de consenso em torno de alguns valores
ser, possivelmente, inerente à própria idéia de sistema social, este consenso é sempre parcial,
principalmente, em sistemas maiores e mais complexos, a exemplo da sociedade.
Por seu turno, as práticas sociais de natureza não-ética, aceitas por uma sociedade ou
subgrupos desta como tradição e aprendidas pelo indivíduo como hábitos, constituem o que
chamamos de costumes.
Analisaremos formas e estruturas lingüísticas reveladoras de valores e costumes do
67

universo antropo-sócio-cultural de O Quinze, a partir dos exemplos que se seguem.

Exemplo 01:

UM MOÇO BRANCO ANDAR SE SUJANDO COM NEGRA

“─ [...] Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com
negra?” (p. 60, linha 24)

Na essência de seu radical, a palavra SUJANDO concentra a idéia de resto, de borra,


de imundície, de grosseiro, em suma, remete à noção de vilipêndio.
Assim, a estrutura verbal que ora se apresenta marcada pela noção de uma ação reflexa
e contínua, em que a palavra SUJANDO é a base de significação, na sua relação com os
vocábulos MOÇO BRANCO e NEGRA, mostra-se reveladora de uma atitude cultural, de teor
preconceituoso, fruto de um julgamento de valor baseado na crença estereotipada da
inferioridade da raça negra, em que se podem incluir, dentre outros campos, o da inteligência,
do caráter moral, da motivação, das habilidades. Conforme Alann Johnson (1997, p. 180), “O
preconceito é uma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou
categoria social. Como atitude, combina crenças e juízos de valor com predisposições
emocionais positivas ou negativas”. Destarte, ANDAR SE SUJANDO revela um valor
sociocultural.
Essa atitude cultural denota-se, ainda, no emprego do vocábulo NEGRA, como
substantivo, em referência à personagem Zefa, “Zefa [filha] do Zé Bernardo”. A ausência do
termo moça, designativo de pessoa do sexo feminino, à medida que sugere a “coisificação” do
elemento humano, intensifica a idéia de aviltamento por parte da personagem Conceição em
relação àquela.

Exemplo 02:

QUEM COMEU A CARNE TEM DE ROER OS OSSOS


68

“─ E se a rama faltar, então, se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar
meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos...” (p. 12,
linha 10)

A carne é a parte macia, musculosa, mais suculenta, portanto, mais digerível do corpo
do homem e do animal; o osso, ao contrário, é a mais dura, menos digerível.
Neste adágio  proferido por Vicente, em censura a “Dona Maroca da Aroeiras”, que,
considerando vãos os gastos excedentes com o gado, em razão da seca, ordenou que os
soltassem , a palavra CARNE, ao tempo em que é metonímia de todas as substâncias
imprescindíveis à manutenção da vida, metaforiza o trabalho, o esforço e a dedicação
necessários à conservação e ao funcionamento da fazenda e, por conseguinte, a garantia do
alimento para o corpo e para a alma de seu proprietário.
O vocábulo OSSOS, por sua vez, representa as dificuldades, as agruras, os obstáculos
que Vicente tem de enfrentar, em face da seca, para garantir àqueles a permanência da vida.
Considerando-se a obrigatoriedade do fato expresso em ROER  triturar vagarosa e
continuadamente  indicada pelo elemento lingüístico DE, o adágio em questão, bastante
freqüente na linguagem popular, é expressão de valor cultural, com teor moral-religioso e
aponta para a responsabilidade e a fidelidade que devem marcar as relações sociais e pessoais;
enquanto valor cultural, influenciou no posicionamento de Vicente.

Exemplo 03:

ALMOFADA / TROCANDO BILROS

“[...] E a conversa continuou a correr animada, enquanto a velha, que mandara trazer
a almofada para o alpendre, trabalhava, trocando bilros.” (p. 16, linha 19)

Tal como foi empregada, neste contexto, a palavra ALMOFADA significa um tipo de
saco de tecido de algodão, de dimensões variadas, que, após ser enchido com capuchos de
algodão, capim ou palha, tem suas extremidades fechadas e presta-se ao fabrico de rendas e
bicos, cujos modelos se definem a partir do cartão ou pique, furado ou desenhado, colocado
em cima da almofada, com a função de guia.
Cada modelo é denominado de acordo com a sugestão marcada no próprio cartão:
69

pingo de chuva, flor de café, abacaxi; a variabilidade de modelos é bastante expressiva, e,


estes, muitas vezes, são motivo de segredo da família que os elaborou.
Os tipos de renda tecidos em terras brasileira contam uma longa viagem: da França, de
Flandres e da Itália  conceituados centros já em meados do séc. XV  a Portugal, de onde
aqui chegaram no séc. XVII e, com ajustamentos, assumiram nossa “fisionomia” cultural.
Apreciada por todas as camadas sociais, as rendas continuam sendo tecidas ao
entrelaçar de BILROS  espécie de fuso feito de madeira, com um caroço de macaúba numa
das extremidade; na outra, enrola-se a linha para a feitura da renda na almofada  pelas mãos
habilidosas de nossas rendeiras, profissionais ou não.
Essa prática continuada caracteriza-se um costume, principalmente, no Ceará, em
Alagoas, no Rio Grande do Norte e em Santa Catarina e, neste contexto, configura-se em
ALMOFADA e TROCANDO BILROS, significando fazendo renda de almofada ou renda de
bilro.

Exemplo 04:

TORCEU A SUA NATUREZA

“─ E para que você [Conceição] torceu a sua natureza? Porque não se casa?” (p.
124, linha 29)

A Mãe Natureza é feminina! Todo dia, num processo contínuo, renova-se, recicla-se,
no seu papel procriador.
Ao empregar o termo TORCEU, significando alterar, modificar, e complementar-lhe o
sentido com A SUA NATUREZA, enquanto constituição orgânica, a locutora  Dona Inácia,
avó de Conceição  questiona a neta, estabelecendo um paralelismo entre as duas naturezas,
apontando o que deve ser feito pela natureza humana nos moldes da MÃE NATUREZA, e,
assim, deixando situar-se na sua linguagem um valor ético de cunho místico, baseado na
gênese e na funcionalidade do Universo.
Esse dever fazer da natureza humana feminina, em seu papel procriador, reflete-se na
imediata indagação em que ele aparece condicionado a uma atitude ético-sociocultural: de
casar-se.
Assim, nesta fala de Dona Inácia, estão circunscritos valores socioculturais que
orientam para a compressão de que à mulher cabe casar para depois procriar e, socialmente,
70

cumprir o seu papel de mãe, esposa e dona de casa, em suma, formar uma outra instituição
social da qual ela é o esteio emocional.

Exemplo 05:

‘SER GENTE’

“[...] a pobre senhora [...] ficou chorando pelo filho tão bonito, tão forte, que não se
envergonha da diferença que fazia do irmão doutor e teimava em não querer ‘ser gente’...” (p. 17,
linha 27 )

Uma das características socioculturais da população sertaneja nordestina é atribuir


valores às pessoas de acordo com o seu status. Uma vez estabelecida esta relação, fixam-se,
automaticamente, na linguagem os referenciais que as caracterizam.
Nesse sentido, considerando-se o contexto, ‘SER GENTE’ passa, então, a significar o
elemento que por meio do estudo destaca-se daqueles que não o realizam, de sorte que, em
determinadas famílias, ser professora normalista, médico, padre, advogado, dentista
circunscreve-se em O Quinze como paradigma social baseado no valor da relação título-
status.

Exemplo 06:

‘IGNOMÍNIA’ / ‘DEGREDO’ / UM EMPREGO PÚBLICO NA CAPITAL

“[...] achando a vida do sertão uma ‘ignomínia’, um ‘degredo’, e tendo como única
ambição um emprego público na Capital” (p. 18, linha 9)

O verbo achar, neste contexto, já preanuncia julgamento de valor por parte da


personagem Paulo  bacharel que vivia em Fortaleza , que o faz baseado em outro
julgamento refletido no termo ‘IGNOMÍNIA’, grande desonra imposta por um julgamento
público, o que se reafirma em ‘DEGREDO’, afastamento compulsório de um contexto social:
a Nação.
71

O serviço público está sempre presente, tanto em procedimentos bem definidos da


União, dos estados, dos municípios, dos territórios, quanto nas ações dos poderes
governamentais do Estado  Executivo, Legislativo e Judiciário, tripartição característica dos
regimes republicanos  que editam leis, em torno das quais dirimem dúvidas e, ainda, tornam
efetivo o cumprimento daquelas que se dizem baixadas em nome do interesse do cidadão, da
coletividade e da preservação do próprio país.
Como diz Belmiro Siqueira, no Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio
Vargas (1987, p. 1111), “O Estado moderno, direta ou indiretamente, é forçado a intervir em
todos os setores da vida da nação; não porque o queira, mas porque os grupos sociais assim
exigem [...] ‘mesmo quando temem que o faça demasiadamente’ ”, o que, sociocuturalmente,
confere ao servidor público um nível de importância.
A ambição de várias categorias profissionais é, assim, tornarem-se parte do corpo
funcional de uma das frações do organizado, assim como o é para Paulo, pois vislumbram no
serviço público um status, como profissional e cidadão, que tem a garantia de um bom salário,
portanto, de poder aquisitivo diferenciado e que se mantém por uma aposentadoria.
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OCORRÊNCIAS

QUEM COMEU A CARNE TEM DE ROER OS OSSOS

“─ E se a rama faltar, então, se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar meus
cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos...” (p. 12, linha 10)

SEM HOMEM QUE ME SUSTENTASSE

“─ A gente viúva... Sem homem que me sustentasse... Diziam que aqui o governo
andava dando comida aos pobres... Vim experimentar...” (p. 56, linha 13)

NÃO É UMA NEGRA; É UMA CABOCLINHA CLARA

“─ Mas, minha filha, isso acontece com todos... Homem branco, no sertão ─ sempre
saem essas histórias... Além disso não é uma negra; é uma caboclinha clara...” (p. 60, linha
27)

‘SER GENTE’

“[...] a pobre senhora [...] ficou chorando pelo filho tão bonito, tão forte, que não se
envergonha da diferença que fazia do irmão doutor e teimava em não querer ‘ser
gente’...” (p. 17, linha 27 )

UM EMPREGO PÚBLICO NA CAPITAL

“[...] achando a vida do sertão uma ‘ignomínia’, um ‘degredo’, e tendo como única
ambição um emprego público na Capital” (p. 18, linha 9)

BRANCO LEVA SOL, FICA CORADO; PRETO FICA CINZENTO

“A velha interveio:
─ [...] Branco leva sol, fica corado; preto fica cinzento...” (p. 15, linha 5)
73

OS CHINELOS VERMELHOS DE IR À MISSA

“Mocinha, de vestido engomado, também levava sua trouxa debaixo do braço, e na


mão, os chinelos vermelhos de ir à missa.” (p. 36, linha 3)

DOUTOR PROMOTOR

“─ É o seu doutor promotor de Santa Ana... Almoça e janta libelo... Que o ordenado
só dá pro fraque da sessão...” (p. 18, linha 22)

SUPERIOR NO MEIO DAS OUTRAS

“[...] Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava
entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita.” (p. 44,
linha 19)

MOÇO BRANCO NÃO É PRA BICO DE CABRA QUE NEM NÓS

“─ O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra bico
de cabra que nem nós...” (p. 57, linha 15)

UM MOÇO BRANCO ANDAR SE SUJANDO COM NEGRA

“─ [...] Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com
negra?” (p. 60, linha 24)

MULHER LÁ É GENTE PRA ANDAR NO MATO!

“─ Mulher lá é gente pra andar no mato!” (p. 117, linha 5)

ANDAR DE CADEIRINHA

“─ Que é dos jumentos? Vocês não sabem que eu só gosto de andar de cadeirinha
levada por jumento?” (p. 142, linha 28)
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A GENTE É MORRENDO E APRENDENDO

“─ Pois eu acho uma falta de vergonha! E o Vicente, todo santinho, é pior do que os
outros! A gente é morrendo e aprendendo!” (p. 61, linha 2)

NO MUNDO VALE QUEM TEM...


“No céu entra quem merece
No mundo vale quem tem...”
(p. 107, linha 11 – 16)

MULHER QUE NÃO CASA É UM ALEIJÃO

“Conceição [...] dizia alegremente que nascera solteirona.


Ouvindo isso a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um
aleijão...” (p. 10, linha 8)

MOÇA SÓ LIA ROMANCE QUE O PADRE MANDAVA

“─ E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia
romance que o padre mandava...” (p. 124, linha 4)

TORCEU A SUA NATUREZA

“─ E para que você [Conceição] torceu a sua natureza? Porque não se casa?” (p. 124,
linha 29)

O POBRE MORRENDO DE PRECISÃO

“─ [...] Mas, criatura de Deus, [...] Acha pouco o que está no trato?
─ Ora, mamãe, o pobre morrendo de precisão!” (p. 26, linha 6)

MUNGUNZÁ

“Vicente parou de machucar o mungunzá.” (p. 26, linha 6)


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NÃO TEM PENA DE DAR TEUS FILHOS, QUE NEM GATO OU CACHORRO

“─ E tu não tem pena de dar teus filhos, que nem gato ou cachorro?” (p.101, linha 9)

UMA MOÇA BRANCA, TÃO BEM PRONTA, CHORAR MODE RETIRANTE

“─ Tem gente pra tudo, neste mundo! Uma moça branca, tão bem pronta, chorar mode
retirante!...” (p.114, linha 10)

ALMOFADA / TROCANDO BILROS

“[...] E a conversa continuou a correr animada, enquanto a velha, que mandara trazer a
almofada para o alpendre, trabalhava, trocando bilros.” (p. 16, linha 19)

A NATUREZA DA GENTE [...] DÁ PRA TUDO

“─ A natureza da gente é que nem borracha... Havendo precisão, que jeito? Dá pra
tudo... ” (p. 96, linha 29)

QUERMESSE

“Já fazia tempo que não havia em Quixadá, quermesse de Natal tão animada.” (p. 146
linha 4)

FAZER DE VICENTE UM DOUTOR

“[...] já agora a velha senhora se conformava em não fazer de Vicente um doutor, e


trazia-o ciumentamente preso a si [...]” (p. 17, linha 29)

VIVER SÉRIA

“─ Pense bem, Mocinha. Cuide em viver séria, volte par a sua terra. Tenho uma pena
de ver uma afilhada minha feita mulher da vida!” (p. 141, linha 8)
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ABÊNÇÃO

“─ A bênção, Madrin’Nácia!” ( p. 139, linha 18)

AFILHADO

“─ Então é como um defuntinho que minha mulher recebeu, também porque era
afilhado. [...].” (p. 104, linha 21)

RAPADURA

“Voltou mais tarde, sem a rede, trazendo uma rapadura e um litro de farinha [...]” (p.
47, linha 17)

MANTA DE CARNE DE BODE, SECA

“O vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode, seca, e um saco
cheio de farinha, [...]” (p. 37, linha 4)

MOÇA QUE PEGA A ESCOLHER MUITO ACABA NA PEÇA

“─ Moça que pega a escolher muito acaba na peça...” (p. 125, linha 3)

A AGULHA E O FIO BRANCO / OS DESENHOS

“Os dedos mexiam rápido a agulha e o fio branco, entrançando os desenhos


caprichosos da varanda de rede.” (p. 71, linha 3)

VOU FAZER DELE UM HOMEM

“─ Ah! Esse é meu, não dou mais. Vou fazer dele um homem!” (p. 108, linha 12)
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5. 5 Termos e expressões regionais/populares

Em O Quinze, fluem na fala do narrador e, principalmente, na das personagens termos


e expressões populares, que, por vezes, determinados matizes dão-lhes a fisionomia de
brasileirismos e regionalismos. Refletem o modo de vida do nordestino, particularmente, do
sertão cearense vislumbrado no quadro da seca de 1915 e, nesta seção, analisar-se-ão, em seus
aspectos léxico-semânticos, como elementos da língua falada.
Essa modalidade de uso evidencia-se, dentre outras marcas, pela presença de formas
contractas ou mesmo a omissão nas construções frasais, que se apresentam com rupturas,
inacabadas, pela ausência do emprego do relativo cujo, pela restrição de tempos verbais;
caracteriza-se, ainda, por um vocabulário relativamente pequeno, cujas palavras componentes,
na sua maioria, são de teor concreto e amplamente empregadas em diversos sentidos.
Ressalte-se que muitas destas palavras são comuns aos níveis culto e popular, no entanto, a
diferença que se estabelece está em seus empregos mais precisos e conscientes no nível culto.
Para a categorização desse léxico, fundamentamo-nos em dicionários gerais e
específicos, relacionados nas referências bibliográficas.

Exemplo 01:

MANDACARU

“─ Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no açude, trato do que é


meu! Aquela velha é doida! Mal empregado tanto gado bom!” (p.12, linha 4)

Termo do campo semântico da botânica, o MANDACARU, conhecido, também, como


cardeiro pelos nordestinos, é uma das plantas mais características do Nordeste.
Como planta de caule com seção estelar e ramos verticais atinge a altura de três a
cinco metros, sendo a espécie mais alta das cactáceas e na base pode oferecer madeira. As
folhas lhe são ausentes; os espinhos castanhos ou pretos lhes cobrem as ramificações; suas
flores longas, com tubo escamoso de coloração embranquiçada, cujos ramos têm de quatro a
cinco ângulos, abrem-se à noite. É sabido que se o mandacaru florescer na seca, vai chover no
sertão; e, assim, cantou-o Luiz Gonzaga, interpretando “O xote da menina”.
Quanto ao seu fruto, este é uma baga, de coloração avermelhada, grande e comestível.
Comumente, alimenta o gado na seca, mas, a ele, neste mesmo período, recorrem aqueles
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sertanejos, cuja fome não têm como saciar. E, assim, este símbolo lingüístico evoca aspectos
da realidade nordestina.
Ademais, destaque-se do MANDACARU sua propriedade medicinal: a polpa do caule
é cárdio-tônica e ajuda no combate, entre outros males, à bronquite, ao reumatismo, a úlceras
e tumores ganglionários; é cicatrizante e vermífugo; combinado com outras plantas, combate
cálculos renais.

Exemplo 02:

BOCA DE ...

“Os olhos do vaqueiro luziram:


 Por isso é que ele me disse que tinha cedido cinqüenta passagens ao Matias
Paroara!...
─ Boca de ceder! Cedeu, mas foi mão pra lá, mão pra cá...” (p. 30, linha 26)

A expressão tem valor exclamativo. É usada na linguagem sertaneja / popular para


manifestar discordância, por parte do interlocutor, em ralação ao que foi dito. Segue-se a ela,
como conclusão da estrutura frasal, a enunciação da razão da discordância.
Na Parte II, Seção 3)  De Sertão Alegre (1928): Linguagem Popular, do seu
Adagiário brasileiro (1982, p. 325), Leonardo Mota registra a expressão, em que a interjeição
“ora” insere-se como elemento constituinte: “Ora, boca de ...”; citando como exemplo:
“Chegaram vinte soldados. Ora, boca de vinte! Chegaram quarenta.”

Exemplo 03:

GANHAR O MUNDO

“Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um
gancho?” (p. 27, linha 24)

A expressão, que tem como equivalentes “ganhar o oco do mundo” e “ganhar a lapa
do mundo”, significa ir embora sem destino certo.
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A ela, neste contexto, acrescenta-se o motivo da retirada: “atrás [a procura] de um


gancho” – meio de vida, emprego de pouca importância  perdido em conseqüência da
carência de chuva.
Tal expressão, assim, em sua relação com os demais constituintes frasais evoca a
imagem de pessoas, que, mesmo diante de uma qualificada calamidade, insistem na busca de
um mecanismo honesto de sobrevivência: o trabalho.

Exemplo 04:

EM TEMPO DE

"─ Ô Mocinha! vê se tu dás um pirão de peixe a este menino que anda em tempo de
me comer os peitos!” (p. 31, linha 10)

A expressão constitui uma locução de uso freqüente no Nordeste, com mais de uma
ocorrência no decorrer da obra, significando “em risco de”, “a ponto de”. Neste contexto,
remete à noção de insaciabilidade da fome da criança, cuja mãe parece entender que saciar a
fome implica encher o estômago, deixá-lo “pesado”, e não satisfazer às necessidades
orgânicas de natureza alimentar pela qualidade dos nutrientes ingeridos, que, em se
considerando o contexto geral da narrativa, parecem bem reduzidos em seu leite.

Exemplo 05:

DAR DADO

“─ Quanto você quer por isso? [...]


─ Pelas reses me dê, alto e mal, quarenta mil-réis por cabeça... É mesmo que lhe
dar dado...” (p. 24, linha 31 )

Expressão em que o termo DADO, significando verdadeiramente, realmente, reitera o


sentido da ação contida no verbo dar  entregar a outrem algo de que se tem a posse, sem
obtenção de lucro; doação.
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Analogamente, DAR DADO relaciona-se com a ação de vender algo por um preço que
não gera lucro. Essa prática justifica-se, no contexto, pela noção avaliativa de teor
compensatório contida em ALTO E MAL: elevado, em se considerando a escassez de
dinheiro conseqüente da seca; e mal, pelo fato de os animais valerem mais, levando-se em
conta a relação mercado – produto – qualidade = valor. Desta forma, vender as rezes pelo
preço proposto encerra uma atitude de doação, reiterada pela expressão DADO DADO,
elemento constituinte do membro comparativo.
Esta forma de reiteração encontra equivalente na expressão dicionarizada “de mão
beijada”, significando gratuitamente.

Exemplo 06:

ESPRITADO

“─ Mãe, tou com fome de novo...


─ Vai dormir, dianho! Parece que tá espritado! Soca um quarto de rapadura no bucho
e ainda fala em fome! Vai dormir!” (p. 47, linha 28)

O termo ESPRITADO, que nos dicionários gerais aparece como regionalismo,


constitui-se elemento freqüentemente na fala de pessoas sem ou com pouca instrução.
Significa raivoso, enfurecido ou, ainda, conforme Dicionário de Expressões Populares de
Tomé Cabral, louco, alucinado. Estes sentidos estão associados à noção de demônio como
espírito do mal, provocador de alterações psíquicas e comportamentais. Eufemicamente, o
demônio é chamado, entre outros, “dianho”, “capiroto”, “diango”.
No contexto em análise, a inquietação do garoto, em decorrência da fome, é vista pela
mãe  talvez por não ter solução para a questão  como uma ação do “dianho”, já que o
menino alimentara-se com um pedaço de rapadura, cujos componentes nutricionais não foram
suficientes para que as papilas gustativas, sob controle do cérebro, dessem sinal de
saciabilidade.
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OCORRÊNCIAS

VERÃOZÃO = verão intenso, sem previsão de chuva; “verão seguro”

“Vicente lastimou-se:
─ Inda por cima do verãozão, diabo de tanto carrapato... Dá vontade é de deixar
morrer logo!” (p. 11, linha 25)

MANDACARU = da família das cactáceas, conhecido, também, como cardeiro pelos


nordestinos, é uma das plantas, mais características do Nordeste.

“─ Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no açude, trato do que é


meu! Aquela velha é doida! Mal empregado tanto gado bom!” (p.12, linha 4)

JUAZEIRO = é uma árvore alta e copada, característica da caatinga nordestina; sua casca
rica em saponina, serve de sabão e dentifrício. Garante ao gado alimento e sombra, não
perdendo as folhas no período de seca.

“Só aquele velho juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na


desolação cor de cinza da paisagem.” (p. 39, linha, 5)

RAMA = a babugem que brota com as primeiras chuvas, ficando como pastagem que, depois
destas, continua alimentando o gado

“A rama já faltava de todo e o jeito era recorrer ao trato comprado. “ (p. 72, linha 19)

PÉ DE PAU = qualquer árvore


“─ Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipóia...” (p. 27, linha 20)

MANIPEBA = variedade de mandioca

“Ele contou a história da manipeba.” (p. 54, linha 1)


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TERÇADOS = facão grande, com três riscos na folha

“Reses magras [...] devoravam confiadamente os rebentões que a ponta dos terçados
espalhava pelo chão.” (p. 11, linha 2)

GARROTES = bezerros acima de um ano de idade

“Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se.”


(p. 19, linha 10 )

QUARTAU = no Nordeste, cavalo castrado, de montaria

“Vicente montou: [...]


Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido [...]” (p.12, linha 26)

BOIOTE = novilho ou boi de ano; garrote logo depois de castrado

“─ Quantas reses você tem para negócio?


─ Um boiote, uma vaca solteira e um garrote. “ (p. 24, linha 23)

TURINO = bovino de raça holandesa; pode ainda ser o bovino gordo e bem desenvolvido

“─ A vaca e o boiote são filhos do turino velho.” (p. 25, linha 12)”

RACEADA = mestiça de animal comum com outro de boa raça

“─ Nas suas reses há alguma raceada?” (p 25, linha 11)

CAPOEIRO (capoeira ou veado capoeira) = veado de grande porte

“─Tem mais a minha roupa [...]. É toda de couro de capoeiro, sem um rasgo que seja...
“ (p. 24, linha 25)
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CHOUTO ( ou choto ) = trote ligeiro, com as especificações alto e baixo

“Lentamente o balançava o chouto largo do cavalo.” (p. 25, linha 25)

BABAU = jumento

“Pensava na troca. Umas reses tão famosas! Por um babau velho e cinqüenta mil-
réis de volta! O que é a gente estar na desgraça...” (p.25, linha 29)

CABRESTO = corda com que se prendem e conduzem a cavalgadura, pela cabeça e sem
freio

“O dono apeou, com a mesma indolência desajeitada, tirou o cabresto debaixo da capa
da sela e amarrou o animal no tronco. (p. 24, linha 1)

COICEIRA = que costuma dar coice (pancada para trás com os pés)

“Era nova, coiceira, e ainda carnuda.” (p. 29, linha 6)

PISADURA = esfolamento ou ferida no dorso do animal, provocada pela sela ou pela


cangalha

“Chico Bento recebeu-a, examinou-lhe as manchas do pêlo, para ver se era sinal ou
pisadura mal sarada.” (p. 29, linha 10)

GADÃO = rebanho de bovinos gordos e vistosos

“─ Gadão bom... famoso... Conheço muito. Fez bem, meu filho . Escapa!” (p. 26, linha
11)

ESBUGALHADOS = fora das órbitas, estufados

“A marrã se esticava mais, querendo morrer, com os olhos sanguinolentos girando,


esbugalhados.” (p. 22, linha 17)
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ENTANGUIDA (ou intanguida) = inteiriçada, sem ação, tolhida pelo frio

“Quando Vicente foi chegando em casa,... a família toda cercava uma ovelha... que
toda entanguida, tremia, com as pernas duras e os olhos vidrados:
─ Salsa, não foi?” (p. 22, linha 7)

MOURÃO = pau grosso, que colocados nas laterais das porteiras do curral, servr de esteio
à cancela ou aos varões

“Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava


dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral.” (p. 19, linha 6)

BATEU OS PAUS NA PORTEIRA = fechou a porteira

“Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira [...].” (p. 19, linha 20)

LATADA = cobertura improvisada, feita geralmente com palhas de coqueiro e sustentação

de paus em forquilhas; serve de alpendre nas casas pobres sertanejas

“Na latada, coberta de folhas secas, o cachorro cochilava no mormaço.” (p. 20, linha
26)

CARITÓ = prateleira pequena, embutida na parede da sala ou dos quartos de dormir das
casas sertanejas, servindo para guardar pequenos objetos

“Foi direto ao caritó da sala da frente, e tirou [...] uma carta dobrada.” (p. 21, linha 3)

PISCA! [...] PISCA! = interjeição com a qual se açula cães; o mesmo que “Isca! Isca!”

“Lá fora, um menino fazia o cachorro ganir, cutucando-o com uma varinha. E gritava
entre risadas:
─ Diabo ruim! Pisca! Limpa-Trilho! Pisca!” (p. 21, linha 26)
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ABANQUE-SE ( ou abolete-se) = sente-se ou acomode-se

“ Vicente [...] via-o chegar. E respondendo a saudação tartamudeada do caboclo:


─ Boa tarde, compadre. Abanque-se!” (p. 24, linha 6)

DAR DADO = dar quase gratuitamente

“─ Quanto você quer por isso?


─ Pelas reses me dê, alto e mal, quarenta mil-réis por cabeça... É mesmo que
lhe dar dado...” (p. 24, linha 32)

ESTORRICADA = seca demasiadamente, torrando ou quase queimando

“Depois olhou um garrotinho magro que, bem pertinho, mastigava sem ânimo uma
vergôntea estorricada.” (p. 20, linha 16)

FAZER O NEGÓCIO NO ESCURO = negociar sem ver o produto negociado

“─ Pois vamos ver os burros. Você não há de querer fazer o negócio no escuro...” (p.
25, linha 13 – 14)

COM ESCURO = à noite

“Chico Bento saiu já com escuro.” (p. 25 , linha 24)

DORMIR NO TEMPO = dormir ao relento

“E com umas noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo...” (p. 27,
linha 22)

MAGOTE = grande quantidade

“─ [...] veja que ir por terra, com esse magote de meninos, é uma morte!” (p. 30, linha
2)
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TROUXA = porção de roupas ou de qualquer coisa, que, de forma desordenada, se


embrulha num pano ou se coloca em um saco.

“─ Ele já está fazendo a trouxa. Diz que vai pro Ceará e de lá embora pro Norte...” (
p. 12, linha 17)

GANHAR O MUNDO = ir embora sem destino certo

“Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um
gancho?” (p. 27, linha 23 )

LEGUME = para os sertanejos, qualquer tipo de cereal

“Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar
morrendo de fome, enquanto a seca durasse.” (p.26, linha 15)

MUNGUZÁ = espécie de comida feita de milho seco cozido em grãos, com leite de gado ou
de coco. Além deste tipo de preparo, no Ceará, há mais dois: no caldo de carne de gado ou de
criação; em todos eles pode-se incluir o feijão

“Vicente parou de machucar o munguzá [...]”(p. 26, linha 6)

MANTA DE CARNE = grande porção de carne, compreendendo quase todo o comprimento


do corpo do animal; geralmente usa-se a expressão em relação a carne bovina

“O vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode, seca, e um
saco cheio de farinha, com quartos de rapadura dentro.” (p. 37, linha 4)

PIA = excessivamente salgado; comida extremamente salgada

“Pondo na boca o primeiro pedaço, Chico Bento cuspiu:


─ Ih! sal puro! Mesmo que pia! ” (p. 37, linha 11)
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QUANDO ACABA = depois

“─ Desgraçado! Quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres...


Não ajuda nem a morrer!” (p. 30, linha 15)

MATAVA O BICHO = tomava um aperitivo de aguardente

“Lá na loja do Zacarias, enquanto matava o bicho, o vaqueiro desabafou a raiva [...] ”
(p. 30, linha 13)

ATRASADO = próximo passado

“─ Domingo atrasado as meninas cansaram de esperar por você!” (p.15, linha 16 )

MAÇADA = importunação, amolação

“─ Pois, no outro domingo, venho buscá-la. [...]


─ Você? Qual! é uma maçada muito grande para quem vive tão ocupado...”(p.15,
linha 24)

TROÇAR = zombar, gracejar

“Vicente que talvez por não ter estudado não perdia ocasião de troçar dos doutores,
[...]” (p. 18, linha 21)

DE CARREIRA = apressadamente; rapidamente; ligeiramente

“─ Não sei se posso nem ir ver vocês, de carreira....” (p. 32, linha)

RATUÍNO = pessoa reles, sem valor

“─ Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que é um ratuíno... Anda vendendo as


passagens a quem der mais...” (p. 30, linha 20)
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BOCA DE = expressão de valor exclamativo; é usada na linguagem sertaneja / popular para


manifestar discordância, por parte do interlocutor, em ralação ao que foi dito. Segue-se a ela,
como conclusão da estrutura frasal, a enunciação da razão da discordância.

“─ Boca de ceder! Cedeu, mas foi mão pra lá, mão pra cá... “ (p. 30, linha 25)

CAMBADA = grupo de pessoas da mesma categoria

“Chico Bento cuspiu com o ardor do mata-bicho:


─ Cambada ladrona!” (p. 30,linha 29)

EM TEMPO DE = em risco de; a ponto de; na iminência de

"─ Ô Mocinha! vê se tu dás um pirão de peixe a este menino que anda em tempo de
me comer os peitos!” (p. 31, linha 11)

TOMA = abusa da bebida alcoólica

“─ Mas, Chico, pra que é que você toma, quando vai no Quixadá? Toda vez que
vem de lá é nesse jeito! (p.31, linha 22)

LEVE DIREITO = leve da forma como foi dado; com cuidado

“─ Adeus Vicente. [...] Dê uma abraço muito grande em tia Idalina.


─ Cadê o abraço?
Ela riu-se e abraçou-o:
─ Tome! Leve direito!...” (p. 32, linha 13)

FIM DE MUNDO = lugar muito distante, ermo

“Conceição [...] lembrou até a perspectiva alarmante de um assalto, ali, naquele fim
de mundo, quando a miséria da seca enlouquecesse as criaturas...” (p. 34, linha 9)
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BOTOU O LUXO DE BANDA = deixou de lado a faceirice, a afetação, o melindre

“─Chico Bento troçava:


─ Hein, minha comadre! Botou o luxo de banda...” (p. 38, linha 16)

TAQUINHO = pedacinho

“Os meninos choramingavam, pedindo de comer.


─ Mãe, eu queria comer... me dá um taquinho de rapadura!” (p. 39, linha 13)

BOTAR SENTIDO = prestar atenção; fiscalizar

“─ Carecia mesmo dormir alguém no alpendre para botar sentido...” (p. 45, linha 22)

JEITO = solução
“O vaqueiro saiu com a rede, resoluto:
─ Vou ali naquela bodega, ver se dou um jeito...” (p. 47, linha 16)

AINDA POR CIMA = além disso

“─ Tá aqui. O homem disse que a rede estava velha, só deu isso, e ainda por cima
se fazendo de compadecido...” (p. 47 linha 21)

ESPRITADO = louco; alucinado pela ação do espírito do demônio

“─ Mãe, tou com fome de novo...


─ Vai dormir, dianho! Parece que tá espritado! Soca um quarto de rapadura no
bucho e ainda fala em fome! Vai dormir! “(p. 47, linha 30)

ABESTADO = abobalhado; abestalhado; atoleimado

“─ Que foi, Josias? Você anda abestado, ou isso é ruindade? Que foi que andou
fazendo? ” (p. 53, linha 13)
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DOS DIABOS = expressão intensificadora do termo duro

“Ele ergueu-se, limpou uma cama na terra, deitou-se de novo.


─ Ah! minha rede! Ô chão duro dos diabos! E que fome!” (p. 48, linha 7)

TOMOU O CHORO ( ou engoliu o choro) = suspendeu o choro bruscamente

“[...] o menino tomou o choro, e ficou quase um minuto, roxo e duro, o rosto num
esgar de desespero. (p. 50, linha 18)

TORNOU = voltou a si
“─ Duca! Duca!
Afinal o pequeno tornou; e Chico Bento tangeu a burra.” (p. 50, linha 23)

MODE = por conta de; por causa de

“─ Ele mesmo só ficou porque carecia dele lá, mode o gado. Mas toda semana vai
no Quixadá...” (p. 56, linha 33)

MUNDOS E FUNDOS = vantagens inacreditáveis

“Me convidou para abrir uma bodega, que me dava mundos e fundos, garantia de
um tudo.” (p. 84, linha 6)

MUNDIÇA = plebe, ralé, gente imunda; o refugo social

“─ Botei pra fora. Aquilo era uma mundiça. Não dava interesse; só sabia
quebrar louça e namorar...” (p. 69, linha 20)

BONDADE = sem orgulho; sem vaidade

“─ Qual nada! Seu Vicente é pessoa muito divertida... É naquela labuta, mas sempre
tirando prosa com um, com outro... É um moço muito sem bondade... Dizedor de prosa como
ele só!...” (p. 57, linha 5)
91

CALCANHAR-DO-JUDAS = lugar remoto, de difícil acesso; equivale popularmente a


“cu-do-judas”, “caixa-prego”, “baixa da égua”, “onde o cão perdeu as esporas”, “inferno da
pedra”

“─ [...] Então você preferia ter ficado perto daquelas velhas, suas primas, lá no
calcanhar-do-judas, do que junto de sua filha? (p. 60, linha 3)

ZOEIRA = barulheira, zumbido

“─ Chico, eu não posso mais... Acho até que vou morrer. Dá-me aquela zoeira na
cabeça! (p. 63, linha 21)

ANCHA = cheia de si; vaidosa

“─ E até aquela filha do Zé Bernardo, só porque sempre ele passa lá e diz alguma
palavrinha a ela, anda toda ancha, se fazendo de boa...” (p. 57, linha 11)

TRIPAS = vísceras do animal

“─ Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se
tripas é até demais!...” (p. 67, linha 6)

CONSERTAR = preparar, colocando-as no avesso, limpando-as para serem cozidas

“─ Pois, meu filho, vá até aquela casa ver se arranja um tiquinho de água mode
consertar e lavar...[“as tripas”]” (p. 67, linha 2)

PARTIDA = lote ou certa quantidade de coisa da mesma natureza

“Viera por causa de uma partida de caroço que encomendara para o gado, e nada de ir,
e ele nos maiores apertos.” (p. 72, linha 19)
92

MEDONHO = muito grande; extraordinário; excessivo


“─ E o seu gado?
─ Vai-se salvando... Mas dá um trabalho medonho!” (p. 72, linha 27)

A VELA DE LIBRA = acolher regiamente

“─ Aquilo é uma doida, uma vagabunda. Danou-se para vir pro Ceará porque ouviu
dizer que estavam tratando retirante a vela de libra.” (p. 76, linha 15)

É MINHAS MÃOS E MEUS PÉS = por ser muito eficiente e prestativo, é meu apoio

“─ O Zé Bernardo, sim! Cabra de vergonha, bom de verdade! É minhas mãos e meus


pés. De dia e de noite, como se tudo fosse dele.” (p. 76, limha 23)

RETIRANTE = sertanejo que se evade de suas terras ou da região em que mora, acossado
pela seca

“Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante...”
(p. 81, linha 3)

CACEI = procurei cuidadosamente

“─ Quando de manhã cacei o menino, não teve quem desse notícia.” (p. 82, linha 4)

ENDIREITOU = dirigiu-se diretamente

“No modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para
a casa apontada,[...]” (p. 81, linha 10)

BANDAS = lado, “terras”

“─ Eu sou filho natural de Iguatu, mas faz muito tempo que morava pras bandas do
Quixadá.” (p. 82, linha 24)
93

ADEUS =saudação de boas-vindas

“─ Entre, compadre! Essa é a comadre? Adeus, comadre, entre também! Cadê meu
afilhado?” (p.83, linha 6)

SEM MAIS PRA QUÊ (“sem que nem pra que”, “sem que nem mais”) = sem motivo
plausível; sem razão justa

“─ Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele gadão todinho, sem
mais pra quê! (p. 83, linha 26)

OBRA = aproximadamente, cerca de

“─ Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana...”
(p. 83, linha 28)

CAPRICHO = opinião firmada; opinião que não admite transigência

“─ [...] Para mim, isso agora já é um capricho...” (p. 94, linha 19)

TOMEI A PEITO = decidi enfrentar com determinação e entusiasmo

“─ Tomei a peito e vou ao fim... Se salvar tudo, lucro muito, se nada... paciência...” (p.
94, linha 20)

DURA = orgulhosa, por se achar, superior e intransigente

“─ [...] O que eu fiz foi um esforço enorme para ir à cidade, só para a ver, chego lá,
acho Dona Conceição toda dura, sem querer saber de ninguém... e ainda por cima, fui
eu?!... “ (p. 135, linha 26)

DE VEZ = definitivamente

“─ Foi de vez, comadre? Agora não leva mais!” (p.102, linha 8)


94

DURO E SECO = atento e ansioso, pois o assunto dizia respeito a sua vida

“Duro e seco na sua cadeira, Chico Bento ouvia.” (p.97, 12)

UM NADA = pouca coisa, quase nada

“Bastava que Chico Bento demorasse um nada, para que ela andasse aflita [...].”
(p.100, linha 20)

DESTINO = intenção, vontade

“─ Chico, a comadre Conceição, hoje, cansou de me pedir o Duquinha. Anda com


um destino de criar uma criança.” (p. 101, linha 4)

PEGOU NUMA CHORADEIRA = começou a chorar incessantemente

“─ Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desmaiou e pegou numa


choradeira todo dia, com medo de perder o resto...” (p. 106, linha 1)

AO DEPOIS ( adispos, dispois, adespois) = corruptela de depois

“─ Eu queria primeiro que a senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me
arranjasse umas passagenzinhas pro vapor.” (p. 106, linha 3)

NOVE-HORAS = implicância, rabugice

“─ Que voltar! Só falei no sol por brincadeira... Você é tão cheio de nove-horas,
parece um velho! “ (p. 116, linha 10)

EMPALHE = perda de tempo; demora inútil

“─ Olhe sua perguntadeira, se você quer mesmo ir, vá-se vestir. Não se ponha depois
com empalhe...” (p. 115, linha 19)
95

CABRITO = garoto atrevido, teimoso

“─ Duquinha! Ande para casa! Seu cabrito! Se cair na cacimba, morre! Eu já não
disse?!” (p. 125, linha 21)

DE-COMER (“dicumê”, “de-cumê”, “decomer”) = alimento, em referência ao almoço e


jantar

“─Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca...” (p.40, linha5)

PASSAMENTO = desmaio, síncope

“─ Eu é que estou com uma fraqueza, em tempo de dar um passamento... ainda não
botei um bocado na boca, hoje...” (p. 128, linha 25)

METEU OS PÉS DA REDE = levantou-se impetuosamente

“─ Chuva? Possível?!
Meteu os pés da rede, correu ao alpendre [...]”

A BEM DIZER = quase; por assim dizer (expressão de sentido amplo)

“Mocinha chegou animada, a bem dizer risonha [...]” (p. 49, linha 17)

AOS EMBOLÉUS = ao léu, sem destino, desarvorado (somente na expressão destacada o


termo é conhecido)

“─ Não sei como não morri, por aí, aos emboléus, sofrendo tudo quanto é precisão...”
(p. 140, linha 16)

O QUÊ = expressão indicadora ou negação

“Tem o quê! Vazante, só pra verão curto... Aquilo carece do salzinho da chuva mode
dar alguma coisa... Nem que agoe como aguar...” (p. 119, linha 12)
96

PUXA A = herdar certas características de alguém

“─ Que esperança! Vá pensando! Puxa ao pai e a mais ninguém!” (p. 146, linha 26)

COM MAIS VERAS = com mais razões (o termo vera, nesta acepção, só é usado
acompanhado por “com mais”)

“─ Ah! Foi assim? Como você não tinha dito nada, nem ela... pois com mais veras,
pode agora pensar na Marinha...” (p. 135, linha 30)

POR ACOLÁ = muito intumescido

“─ [...] o gado faz dó! Está com o focinho por acolá, só de bater na babugem... e eu
preciso estar vendo e cuidando...” (p. 137, linha 3)

A BEM DIZER = quase; por assim dizer (expressão de sentido amplo)

“Mocinha chegou animada, a bem dizer risonha [...]” (p. 49, linha 17)

SE NÃO É DA MINHA CONTA = forma de alguém desculpar-se por está intervindo em


um assunto que não lhe diz respeito

“─ De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?” (p. 39, linha 26)

PENCA = certa quantidade, molho

“─ Juro até por esta penca de cruzes...” (p. 115, linha 8)


97

Considerações finais

Após a conclusão do estudo proposto, constatamos que as teorias representadas foram


convalidadas.
Para efeito de elucidação da análise, e alertas para o aspecto afetivo da língua,
primeiramente, buscamos dentre os elementos lingüísticos selecionados aqueles que, em
virtude de seus valores lexicais e semânticos, evocassem nas metáforas e comparações o
cenário da seca. Nesse sentido, observamos que tais elementos remetem a uma situação de
desolação: espaço geo-físico, pessoas e animais se mostram desfigurados pela ação da seca.
Na investigação dos aspectos de estratificação social, os vocábulos analisados revelam
uma sociedade estratificada, tanto pelo poder aquisitivo, quanto por estratificação
hierarquizada.
Os valores e costumes foram identificados, e alguns deles, enquanto tal, fundamentam
esta estrutura estratificada daquela sociedade, situando-a dentro do contexto maior do País.
Esses valores abrangem o campo ético-místico-religioso e se manifestam nos elementos
lingüísticos denotadores de práticas e rituais, quer em descrição do narrador, quer efetivados
por personagens, bem como em suas falas mais espontâneas.
No que se refere aos termos e expressões, estes compõem um léxico regional / popular
caracterizador dos aspectos socioculturais da região Nordeste, particularmente, do sertão
cearense contextualizado na obra num quadro de degradação, cujos efeitos refletem-se de
forma diferenciada entre as camadas sociais, fato verificado pela análise léxico-semântica,
então, realizada.
Assim, os objetivos propostos foram atingidos, sem que isso signifique o esgotamento
temático em relação à obra, cabendo, pois, a outros pesquisadores o aprofundamento do
mesmo.
98

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