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Terras incapturáveis:

notas para pensar autodemarcações indígenas1

Luísa Pontes Molina2


Universidade de Brasília

MOLINA, Luísa Pontes. Terras incapturáveis: notas para pensar autodemarcação


indígenas. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 5 (10): 39-58, agosto a
Resumo: Que tipo de encontro é produzido na conjugação entre, de um lado, as
Terras Indígenas (TIs) constituídas sob o regime estatal, e de outro os modos indí-
genas de entender a terra e de habitá-la? Partindo da ideia de que a terra é central
dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

para a condição de autodeterminação ontológica e política dos ameríndios, e de


que estes sabem melhor do que ninguém que as suas terras não se resumem às TIs,
o presente artigo apresenta uma proposta de abordagem das autodemarcações de
terra que questiona diretamente a redução da ação política desses povos à pressão
sobre o Estado-nação. Para isso, debate contribuições recentes – como a de Olivei-
ra Filho (2018) – e mobiliza tanto a descrição de experiências de autodemarcação
como a produção específica sobre retomadas de terra.

Palavras-chave: Terras Indígenas, autodemarcação, retomadas, demarcação de


terras.

1 Agradeço a leitura atenta e os comentários da professora Susana Viegas a este artigo – a partir dos quais pude
apresentar de maneira mais consistente e precisa os argumentos que venho desenvolvendo.
2 Doutoranda (PPGAS/DAN/UnB). lupontesmolina@gmail.com
Incapturable lands:
notes to think indigenous self-denominations

Abstract: in this text, I recover some ideas arising from the ontological turn in an-
thropology, especially, dialogue with authors like David Graeber, Eduardo Viveiros
de Castro and Mauro Almeida. Throughout the essay, in addition to weaving some
continuities and ruptures between them, I try to shed light on one question: does
the ontological bet on multiplicities necessarily depoliticize?

Keywords: Incomensurability; Ontologies; Native policies; Intensive difference.

Tierras inalcanzables:
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

notas para pensar autodemarcaciones indígenas

Resumen: en este texto, recupero algunas ideas derivadas del giro ontológico en
la antropología, especialmente, dialogo con autores como David Graeber, Eduardo
Viveiros de Castro y Mauro Almeida. A lo largo del ensayo, además de tejer algunas
continuidades y rupturas entre ellos, procuro lanzar luces sobre una cuestión: la
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

apuesta ontológica en las multiplicidades necesariamente despolitiza?

Palabras clave: Incomensurabilidad; Ontologías; Políticas nativas; Diferencia


intensiva.

40
E
mbora tenham ganhado maior visibilidade no debate público ou mesmo
na academia brasileira apenas recentemente, autodemarcações de Terras
Indígenas (TIs) marcam a história das políticas ameríndias na América
do Sul há pelo menos quatro décadas.3 Classificar determinadas iniciativas co-
mo “autodemarcações” (para fazer delas objeto de análise) demanda, contudo, o
cuidado de uma primeira análise criteriosa: tanto pelos problemas que uma de-
finição preliminar levanta (como o de quem detém a prerrogativa de definir em
extensão essas formas de ação politica ou mesmo os coletivos indígenas), como
pelo risco de estendê-la demais, esvaziando-a de sentido. Apresento, neste arti-
go, a síntese de uma proposta de abordagem para esse termo – desenvolvida em
maior extensão em minha dissertação de mestrado (Molina, 2017a). Ali, expus
um quadro geral com datas e locais de todos os casos de autodemarcação sobre
os quais obtive informação, e ainda tratei em maior detalhe de quatro deles: o
da TI Sawre Muybu dos Munduruku (PA); o da TI Alto Rio Purus dos Madijá e
Huni Kuin (AM); o da TI Kulina do Médio Juruá (AC) e da TI Wajãpi (AP).
Mencionarei esse último caso, ainda que brevemente, também neste artigo.
Além de chamar a atenção para o fato de que experiências desse tipo ocor-
reram em distintos momentos da história do país (contrariando as minhas pró-
prias suposições iniciais e, como veria mais tarde, algumas sugestões de autores
que trataram no tema), procurei olhar para as autodemarcações como expres-
sões da força criativa das políticas ameríndias: políticas que se fazem na terra, a
partir da terra e pela terra – políticas que são elas mesmas, quem sabe, criações
da terra (no sentido de Strathern,2009). E se é na terra que se constituem os co-
letivos, em seus modos próprios de produzir parentes, de fazer crescer e circular
alimento, de realizar rituais, de relacionar-se com os demais seres que ali habi-
tam etc. (terra esta que, como ainda comentarei, não se confunde ao solo ou ao
perímetro de uma área), a luta pela terra é sobretudo a luta pela vida e pela ga-
rantia da diferença – que tem na terra, antes, a sua condição. Recuperarei aqui,
portanto, o argumento de que não é apenas da garantia de sobrevivência numa
terra demarcada que se trata a luta – como se sobreviver bastasse e qualquer
terra servisse; é, antes, pela existência do coletivo como tal e a persistência de
seu modo de vida, indissociável da vida em sua terra, que lutam. Autode-
marcação como autodeterminação indígena: eis a potência dessa iniciativa.

Terra de viver
Em uma primeira mirada, experiências de autodemarcação referem-se ao
envolvimento direto de coletivos indígenas com uma determinada etapa do pro-
PONTES MOLINA, Luísa.
Terras incapturáveis

cesso de regularização fundiária4 de suas terras: a consolidação dos limites físi-


3 Há uma produção mais extensa sobre o assunto em outros países da Améria do Sul. Para o contexto venezuelano ver,
por exemplo: cf. Jiménez & Perozo (1994), Zent et. al. (2003), Medina (2003), Tabarez (2011), Zent et. al. (2011) e
Morales & Quispe (2014).
4 A regularização fundiária de terras indígenas, no momento em que este artigo é escrito, está como que suspenso.

Cumprindo compromissos de campanha, Jair Bolsonaro tem feito de tudo, desde o primeiro minuto de seu mandato
como presidente da República, para desmontar a politica indigenista (transferindo da Funai para o Ministério da
Agricultura a competência de demarcar TIs, entre outras medidas), legalizar o arrendamento dessas áreas e a exploração
mineral nelas – como parte de um projeto amplo e complexo, do qual não poderei tratar aqui, uma vez que demandaria,
por si só, uma discussão de fôlego, em um artigo próprio. Formalmente, as demarcações seguem o que está estipulado
no decreto n° 1775 de 8 de janeiro de 1996 – isto é, um processo em sete fases: (i) estudos de identificação – realizados
por um GT sob coordenação de um antropólogo, e cujo produto final é o Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação (RCID); (ii) aprovação do RCID pela Funai, que publica o seu resumo no Diário Oficial
da União (DOU); (iii) apresentação de contestações ao RCID (que devem ser dirigidas à Funai dentro do prazo de 90 41
dias após a publicação no DOU) e elaboração de pareceres acerca das contestações, pela Funai, dentro do prazo de
60 dias; (iv) deliberação por parte do ministro da Justiça – que pode expedir a portaria declaratória da área e
ordenar a sua demarcação ou determinar que se façam diligências no prazo de 90 dias, ou mesmo indeferir a
cos dessas áreas, pela abertura de picadas e fixação de placas de identificação.
No entanto, essas experiências estão longe de reduzirem-se à dimensão técnica
e a um momento pontual de um processo que, ele mesmo, não é apenas legal ou
administrativo, mas também político – como a literatura antropológica não can-
sa de frisar. Não está no envolvimento político e técnico dos índios, portanto, a
especificidade de uma autodemarcação. Em muitos outros processos de criação
de TIs, é mesmo a partir de uma reivindicação indígena que o procedimento
administrativo se inicia; em outros, há uma atuação também direta dos índios
na identificação dos limites da área. E parecem-me poucos, senão inexistentes,
casos em que a demarcação não se deu sem muita mobilização pelo pleno reco-
nhecimento dos direitos territoriais indígenas.
Lino Neves (2012) entende a autodemarcação como “a iniciativa contra-
hegemônica mais eficaz no sentido de questionar o papel centralizador do Esta-
do sobre as questões indígenas”; um mecanismo de pressão que tem como intui-
to promover alterações no processo de regularização fundiária como um todo
(:542). Para o autor, iniciativas desse tipo refletem a visão eminentemente “co-
letivista” da terra que funda a noção indígena de “terra de viver” – física, cultu-
ral e temporalmente contínua, de e para todos. Trata-se, portanto, de “uma vi-
são de terra muito diferente da visão que os brancos têm da ‘terra indígena’”,
conclui Neves (:530) – sem contudo aprofundar-se numa discussão sobre como
essa visão específica da terra (ou melhor, essa diferença de visões sobre um
mesmo ‘objeto’) permite entender a especificidade, com o perdão da redundân-
cia, da autodemarcação. Por fim, essas iniciativas se dão, ainda segundo o autor,
na etapa propriamente demarcatória do processo, a partir de convênios assina-
dos entre organizações indígenas e a Funai – distinguindo-se, assim, das “de-
marcações convencionais” (realizadas por empresas de engenharia e topografia)
e das “demarcações participativas”, como as que se deram no âmbito do Projeto
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Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal


(PPTAL) – cujo objetivo era acelerar a regularização de TIs na Amazônia Legal
(Mendes 2002:37).5
A meu ver, há dois problemas na descrição de Neves. Primeiro, a redução
da questão ao plano dos mecanismos de pressão (e a limitação da política à
pressão sobre o Estado), ou da busca por garantir, por conta própria, o reconhe-
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cimento de direitos – com o respectivo problema da redução da política à rei-


vindicação de direitos. Segundo, a restrição dos casos de autodemarcação àque-
les nos quais foram firmados convênios com a Funai. Discuti o primeiro pro-
blema com mais fôlego em outro lugar (Molina, 2017b), e o retomo brevemente
abaixo. Por ora, tratemos do segundo: talvez por se focar no caso da autodemar-
cação realizada pelos Kulina no Médio Juruá (ver também Merz 1997), Neves
tenha deixado em segundo plano a existência de casos que não se deram através
de convênios, como o dos Kulina e Kaxinawá do Alto Purus (que ele chega a ci-
tar como a primeira iniciativa desse tipo, mas apenas de passagem), por exem-
plo. De todo modo, depois da publicação da tese de Neves, diversas outras expe-
riências de autodemarcação foram realizadas por outras vias e em um contexto
de notável tensão na relação dos índios com a Funai.
Menos do que querer tirar o crédito do trabalho do autor, pretendo, com
essas observações, inserir mais um elemento na análise que proponho fazer
aqui, uma vez que a definição de autodemarcação que ora esboço não prescinde,

42 identificação; (v) demarcação física da área e reassentamento de ocupantes não-índios, quando for o caso43; (vi)
homologação da TI pelo presidente da República, por meio de decreto; (vii) registro da TI.
5 Para uma análise mais detalhada acerca das chamadas demarcações participativas, ver o capítulo 9 de Neves (idem),

Kasburg e Gramkow (1999) e Gramkow (2002).


mas parte da relação dessas iniciativas com o conjunto de normas, procedimen-
tos administrativos e agentes implicados na demarcação – isto é, com a regula-
rização fundiária de TIs, um processo e uma categoria que foram criados pelo
aparato estatal e pertencem ao seu rol de instrumentos para lidar com as áreas
habitadas por índios. Não poderia ser diferente: ainda que haja algo de particu-
lar nessas experiências, quando comparadas às demarcações ‘convencionais’, é
mesmo a partir da categoria e do processo jurídico-administrativo estatal que
ela se dá, é sobre esse aparato que ela se dobra. O que busco compreender, por-
tanto, é a natureza e a expressão dessa particularidade, para então poder refletir
sobre o que ela nos diz acerca dos múltiplos planos de relação que nela estão
implicados: entre os conceitos indígenas de terra e a figura da TI; entre os mo-
dos indígenas de fazer política e a burocracia estatal; entre as forças do aparelho
de Estado e da máquina de guerra indígena.
É fundamental ponderar, portanto, que há uma assimetria no próprio
centro desta questão: o ‘objeto’ dela – as TIs e aquilo que as consolida – perten-
cem a um regime de significação radicalmente distinto dos regimes indígenas.
Seguindo a trilha da discussão desenvolvida por Julia Miras (2015), vemos que
essa diferença se expressa, de partida, pelo imperativo de ordenação e domina-
ção do solo, intrínseca à própria conformação do Estado nacional, que age tanto
sobre as terras (cuja demarcação estabelece o domínio da terra pela União) co-
mo sobre os seus habitantes. A autora mostra que subjacente a esse imperativo,
há uma concepção de território como terra dividida, e uma operação de separa-
ção entre sujeitos habitantes e objetos habitados – o que, em última instância,
eclipsa a capacidade da terra de ser ao mesmo tempo ego e oikos (casa). Nesse
ponto Miras segue o argumento de Nodari (2007), de que a noção moderna de
propriedade se baseia na divisão entre sujeitos possuidores e objetos possuídos.
No caso da terra, essa separação se daria entre sujeitos que habitam e objetos
habitados: “algo exterior ao sujeito e não produzido na relação entre múltiplos
sujeitos” (Miras, 2015:22).
Para poder ser dividida, dimensionada, mensurada – podendo, então, tor-
nar-se uma abstração e ser dominada –, a terra é cindida, e tanto a sua própria
multiplicidade como a multiplicidade de seus “nativos” é obstruída, esvaziada
de seu caráter de processo e acontecimento, argumenta Miras (:22). Essas ope-
rações limitam a terra a uma forma, dão-lhe fronteiras, fixam seus habitantes,
controlam os seus fluxos, submetem-na a uma ordenação do solo e implicam
“uma territorialidade específica que envolve um tipo de relação com a terra (...)
[e] da imposição de relações de poder, da estratégia de domesticação da terra”
(:26). Assim, frisa a autora, ainda que a categoria de TI parta de um reconheci-
mento acerca da existência de territorialidades diversas, a sua criação se deu
PONTES MOLINA, Luísa.
Terras incapturáveis

(como a sua atualização se dá) como uma forma de o aparato jurídico-


administrativo estatal dar sentido aos modos indígenas de habitar, e também de
enquadrar esses povos sob o seu ordenamento, fazendo da terra dinâmica, e de
seus fluxos, território estático (:32). No entanto, é importante notar ainda que,
para Miras, apesar disso, a demarcação introduz uma possibilidade de reterrito-
rialização após as investidas coloniais que expulsaram os índios de suas terras –
isto é, como possibilidade, ou alternativa, para a construção de oikos (casa),
quando já se consumaram as expropriações e quando os conflitos já foram per-
didos (:37). Diz também a autora que mesmo com a imposição da sua forma, a
TI pode ainda abrigar em seus limites e sentidos outras "terras” e ontologias.
Para tal, é necessário investir em um processo de constituição de cada terra in- 43
dígena “que contemple os lugares do passado e do presente, mas que também
permita a eles [índios] um futuro”, possibilitando a emergência de novas territo-
rialidades (:33).

Uma passagem pela experiência wajãpi


A descrição que Dominique Gallois faz da demarcação da TI Wajãpi6 se
conecta notavelmente à discussão de Miras e ao que ainda argumentaremos,
acerca da tradução das terras indígenas em TIs. Apresentei também os casos das
TIs Alto Purus, Kulina do Médio Juruá e Sawré Muybu (dos povos Kaxinawá,
Kulina e Munduruku, respectivamente, sendo que a primeira é também kulina)
na pesquisa de mestrado supracitada, articulando o histórico da regularização
fundiária dessas áreas ao que os materiais analisados (processos da Funai, rela-
tos e cartas) permitiram ver a respeito dos efeitos da ação indígena sobre esses
processos e vice-versa. Considerando o limite de espaço deste artigo, resumirei a
exposição ao material wajãpi e a alguns aspectos de um processo que se esten-
deu por cerca de 20 anos.
. Localizada nos municípios de Laranjal do Jari e Pedra Branca do Ama-
pari, no estado do Amapá, essa TI teve os seus primeiros contornos traçados por
um antropólogo e retraçados por um sertanistas, ambos em 1976 – apenas três
anos depois do contato desse povo com a Funai (e menos de uma década depois
dos primeiros contatos com não-indígenas), num período marcado pelos impac-
tos da construção da rodovia Perimetral Norte (BR 210) e pela presença maciça
de garimpeiros nos domínios indígenas (Gallois, 2011:39). Mais cinco propostas
de área seriam apresentadas à Funai até o ano de 1991, quando uma portaria do
Ministério da Justiça declarou a posse permanente indígena nos seus períme-
tros, junto à determinação para que se realizasse a demarcação dos 573mil hec-
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tares da sua área (id.:45). Esta foi realizada entre 1994 e 1996, em uma iniciativa
considerada pioneira, uma vez que os Wajãpi tiveram um marcado protagonis-
mo – fazendo a demarcação física dos limites da TI em si e estabelecendo as ‘di-
retrizes’ do trabalho (id:47) – e que as atividades se desenvolveram em um con-
vênio estabelecido entre a Funai, a agência de cooperação alemã GTZ e o Centro
de Trabalho Indigenista (CTI).
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Firmado em 1995, esse convênio se insere no quadro mais amplo das expe-
riências de “demarcação participativas”, que acompanharam a ampliação do
Programa de Demarcações do PPG7, e a consolidação do PPTAL. A experiência,
conta-nos Gallois (apud Krasburg & Gramkow, 1999), foi determinada pelo pro-
cesso de controle territorial que os Wajãpi vinham desenvolvendo desde a déca-
da de 1980 (:139), e tomou como princípio o modo específico desse povo ocupar
a terra, marcado pela dispersão (:150). Os trabalhos, diz ainda Gallois em outro
lugar (2011), foram divididos em seis etapas: identificação das cabeceiras dos
rios limítrofes, realizada “sob responsabilidade exclusiva dos Wajãpi, organiza-
dos em diferentes equipes” (:51); levantamento geodésico, feito por técnicos li-
gados a empresas e a universidades e acompanhados por um grupo wajãpi nu-
meroso; plaqueamento de toda a extensão do rio Inipuku e de sua embocadura
no rio Jari – que “constituiu uma visita de rememoração da história do grupo”

6 Há algo curioso nesse caso: embora os Wajãpi não tenham chamado o processo de “autodemarcação”, este foi até
44 muito recentemente o exemplo mais conhecido desse tipo de iniciativa – considerando o envolvimento direto do coletivo
indígena nas ações não só de demarcação física como de monitoramento dos limites. Esse caso está exposto aqui porque
– repito – a identificação como “autodemarcação” ou “demarcação participativa” é menos importante do que a descrição
de como os índios viveram esse processo.
(:52); abertura de picadas nos limites secos; demarcação do divisor de águas
Ari-Pakwarã e plantios agro-florestais nas picadas (id.:ibid.).
Como veremos com as narrativas acerca dessa empreitada, os efeitos da
criação da TI e a sua sobreposição à terra se dão em diferentes direções, extra-
polando o encontro ou confronto entre as agências indígenas e estatais, e sendo
também vividos como experiências na terra. Nos percursos das expedições de-
marcatórias são revistos caminhos e paragens do tempo dos antigos, passam-se
a ser conhecidos locais dos quais só se tinha um vago conhecimento. É o que
conta Siro, uma liderança wajãpi, acerca da expedição até a cabeceira do rio
Kumakary. Em sua fala aparece um leque de lugares distintos: aqueles que havi-
am sido morada do criador dos Wajãpi; outros, percorridos no passado pelos
antigos; lugares de pouso e, enfim, a cabeceira propriamente dita, que é apre-
sentada por ele com generosos detalhes. “Chamamos os lugares como esse de
Janejarã tapererã. Não tem árvores, só capim. (...) Não tem palmeira warakuri,
nem kurua, nem mumuru” – e a extensa lista do que não há ali segue (Gallois,
2011:54). Conta Siro também que ao chegarem ali, os índios se surpreenderam
com o sereno, que desafiava qualquer iniciativa de manter acesa uma fogueira
durante a noite: “os antigos sabiam que fazia frio por lá, mas nunca haviam fa-
lado do sereno” (Id.:ibid.). Ainda sobre esse ponto – mas agora no curso baixo
do rio Visagem, onde “não tem rastro de branco na mata”, pois estes “só andam
de motor” –, Kurapi’a, outra liderança wajãpi, fala: “existem muitas capoeiras
dos antigos na cabeceira (...). Pra baixo, só existe um caminho dos antigos. Não
o vi desta vez, mas já o percorri há muito tempo atrás” (id.:55).
Além de rever ou conhecer lugares, torna-se também possível atualizar a
relação com locais já percorridos – fazendo surgir, inclusive, novos nomes. É o
que se vê no relato de Parikura, liderança wajãpi, a respeito das cachoeiras do
rio Felício: “Durante esta expedição, nós demos um novo nome àquela cachoei-
ra: é Tare’y kai ytu, a cachoeira do trairão queimado, porque Pejanã queimou o
peixe que íamos comer” (Gallois, 2011:56). Algo semelhante aparece na fala do
chefe Waiwai sobre diferentes locais da expedição para a cabeceira do igarapé
Pakwarã; nela, vemos uma série de lugares recém-nomeados a partir da experi-
ência da própria expedição:
chamamos o lugar de Pinoru tetã, o abrigo de folha de bacaba, porque não tem palha
preta. (...) Então, dormimos no lugar que chamamos Murumuru tetã, o abrigo de mu-
rumuru. Um lugar muito difícil, onde não tem palha pra cobertura. (...) Depois, leva-
mos o caminho até um lugar que chamamos Yjysõwa, o lugar da argila roxa. A argila é
bem roxa, azul mesmo Demos esse nome (id.:58).

É interessante notar, ainda que de maneira aproximativa, como a demar-


PONTES MOLINA, Luísa.

cação – um processo de metrificação do espaço (no sentido de Nodari, 2014) por


Terras incapturáveis

definição – não só é permeada como também engendra experiências outras, que


não aquelas de estabelecer fronteiras ou de estar contido em um espaço, como
se dá com o limite métrico. Tomemos também como exemplo a fala da liderança
wajãpi Tapenaiky sobre uma expedição rumo à cabeceira do igarapé Y’yakã, um
dos limites da área indígena. Conta ele que os seus parentes até então não co-
nheciam esse lugar; “não sabiam que era o Y’yãkã, iam caçar por ali, mas não
sabiam. Meu pai sabe. Ele já tinha andado por ali há muito tempo, pra caçar,
por isso que sabia que a cabeceira era por ali” (Gallois, 2011:57). Estaria o pro-
cesso de demarcação – ao fazer com que as pessoas voltassem a percorrer luga-
res ou passassem a conhecê-los, e que eventos ocorram novamente neles – rea-
45
nimando os lugares, trazendo-os “de volta à vida” (como discute Coelho de Sou-
za (2009), a partir das experiências kisedje, e também Cardoso (2016) seguindo
Ingold (2000)), ou atualizando a sua vida na experiência presente?
Ainda sobre os efeitos do processo de demarcação, observemos o que dis-
cute Gallois (2000, 2004, 2007), acerca das transformações nos conceitos de
terra e povo – ou de uma “auto-representação étnica” (para usar os termos da
autora) – entre os Wajãpi nos contextos de defesa da sua área contra invasões e
de reivindicação da TI. Conta a autora que até os primeiros anos da década de
1970, quando a Funai reuniu em um posto de assistência os Wajãpi sobreviven-
tes da forte epidemia de sarampo decorrente da invasão de garimpeiros na regi-
ão do Amapari, predominava uma “auto-representação não centralizada”, ligada
a uma forma de organização e de ocupação territorial em “zonas de suporte do
‘modo de ser fragmentado’” do grupo local, conta ainda Gallois. Essa forma de
ocupação marcada pela dispersão de pequenas aldeias em torno de lugares cen-
trais (2011:21) e fundamentalmente ligada ao grupo local toma expressão no
termo ekowa, que designa o lugar onde um indivíduo vive ao seu modo
(2004:6). É apenas no contexto de emergência da categoria “nós Wajãpi” – um
contexto marcado pelo contato com não-índios, ainda segundo Gallois – que
surge também uma expressão para identificar a “nossa terra”, jane yvy. Em ou-
tras palavras, “só há terra [no sentido de TI] se há ‘Wajãpi’” (2000:4).
Por fim, e ainda no que diz respeito aos efeitos das transformações e tra-
duções promovidas pelo processo de demarcação, vale mencionar uma anedota
apresentada por Gallois sobre o contexto da instalação dos marcos da área
wajãpi. Expressão direta dos equívocos que atravessam a criação de uma TI, es-
sa anedota e o comentário subsequente de Gallois iluminam o argumento que
apresentei anteriormente sobre a não dissolução do conceito indígena de terra
com a criação da TI, a sua diferença em relação à concepção não-indígena e a
incomensurabilidade que pauta esse encontro.
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

Aldeia Taitetuwa, num dia de festa. (...) Os anfitriões terminaram de limpar a praça,
onde em breve todos vão dançar. Matapi, chefe da aldeia, chama seus netos: eles de-
vem retirar o marco de cimento que ocupa o centro da praça de dança. Seis crianças
extraem da terra o pesado marco, com ajuda de alavancas e, já sem forças, o deixam
cair na borda do terreiro. Será recolocado no seu lugar no dia seguinte, sob os cuida-
dos do chefe.
(...)
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

A aldeia Taitetuwa foi, efetivamente, uma das primeiras visitadas pela equipe de geo-
desia responsável pelos cáculos da demarcação física da Terra Indígena e, sem conhe-
cer ainda o modo de vida dos Waiãpi, decidiu fincar a peça bem no centro da praça.
Na perspectiva dos engenheiros este era o ponto ideal para o marco, que deveria ser
apropriado como um monumento, em torno do qual a aldeia poderia crescer, como
qualquer povoado (Gallois, 2000:1).

Terras incapturáveis

O termo “autodemarcação” expressa uma curiosa conjugação: por um la-


do, sabemos bem – e os índios sabem melhor do que ninguém – que o modelo
de TI (seus limites próprios e particularmente construídos, sua ingerência sobre
a ocupação da terra, a política de gestão e administração a ela ligada etc.) é alie-
nígena às formas indígenas de habitar e às dinâmicas dos grupos locais de rela-
cionarem-se uns com os outros e com os demais Outros da região. Por outro la-
do, uma terra propriamente indígena não é, por definição, uma terra qualquer
46 – e o problema reside, justamente, na constituição de um entendimento sobre o
que ela é: algo que a partir do ordenamento jurídico se tenta descrever sob a no-
ção de “ocupação tradicional” e com um arsenal próprio de procedimentos ad-
ministrativos. Olhemos mais atentamente para a “curiosa conjugação” (ou, co-
mo buscarei argumentar, uma dissonância) sinalizada acima: que tipo de en-
contro é promovido – e o que permanece, por assim dizer, ‘incapturável’?
Após um período de marcante embate entre posições pró e anti-indígenas
– em que se reivindicava, respectivamente, as expressões “terras [simplesmen-
te] ocupadas” e “terras permanentemente ocupadas” (Barreto Filho, 2005: 121)
–, a Assembleia Nacional Constituinte consolidou a formulação ora vigente de
“terras tradicionalmente ocupadas” no seu capítulo dedicado aos índios. Esse
“advérbio ambíguo”, como o qualifica Barreto Filho, ao transitar “entre o tempo
e o modo”, reúne “a ideia de imemorialidade e a noção de modo de ocupação”
(id.: ibid.), um contraste com o qual os esforços de identificação de TIs teriam
que lidar dali para a frente. Essa ambiguidade – resultado do baixo investimen-
to em qualificar as noções de “ocupação” e de “tradicionalidade” – já era notada,
aliás, na época da formulação do artigo 231 da Constituição Federal de 1988. É o
que mostra Sandra Nascimento (2016:115), que então argumenta:
Ao estabelecer o direito à posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam,
condicionando a elementos objetivos para configurar o âmbito do tradicional, o
agente constituinte, propositalmente, renomeou, mas não ressignificou o conceito
relativamente ao núcleo jurídico da posse no direito civil clássico, em relação à exte-
riorização dela. A comprovação ficou dependente da valoração de fatos. Estes devi-
damente valorados desencadeiam a consequência jurídica que é o reconhecimento
do direito. A natureza vaga desse núcleo normativo demonstra a manobra linguística
para, de alguma maneira, manter-se o controle sobre a questão indígena. (id.:120.
Ênfases acrescentadas)

Sem desconsiderar a importância e mesmo a necessidade de discutir o


contexto de elaboração desse texto constitucional, procuro aqui me ater ao pro-
blema da “valoração de fatos”, como Nascimento aponta acima; isto é: o enten-
dimento traçado no artigo 231 dos elementos pertencentes às “terras tradicio-
nalmente ocupadas pelos índios”. Estes, expostos no parágrafo 1º daquele arti-
go, podem ser divididos em quatro ‘critérios’ ou ‘parâmetros’ a serem aferidos:
(i) a característica permanente da habitação; (ii) a ‘utilização’ da terra para ati-
vidades produtivas; (iii) o caráter imprescindível da terra para a preservação
dos recursos necessários ao bem-estar dos povos que as habitam; e (iv) a pre-
servação, pela terra, da reprodução física e cultural desses povos “segundo seus
usos, costumes e tradições”. Dominique Gallois entende esses elementos como
expressões de “quatro dimensões distintas, mas complementares, que remetem
às diferentes formas de ocupação, ou apropriações indígenas de uma terra”
(2004:37, ênfases acrescentadas). Uma interpretação apressada, a meu ver, pois
nos levaria a supor a preeminência de alguma estabilidade, uma espécie de ‘en-
PONTES MOLINA, Luísa.
Terras incapturáveis

caixe’ entre o texto do artigo constitucional e a multiplicidade de realidades que


ele busca abarcar; como se o primeiro fosse uma descrição dessas realidades – o
que permitiria falar que ele remete a formas de ocupação. Acredito que é mais
proveitoso dar um passo atrás, questionando essa estabilidade e atentando para
o próprio encontro entre as disposições da Constituição – junto às normas que a
elas seguiram – e essas formas de ocupação, com aquilo que as permeia: ontolo-
gias indígenas e seus respectivos conceitos de terra, seus modos de habitar e de
constituir lugares, e tanto mais.
Ao voltar-se para os seus materiais etnográficos, a própria discussão de
Gallois nos permite desconstruir a suposição desse encaixe estável. Comentando
a incumbência do antropólogo responsável pelos estudos para a criação de TIs 47
de mostrar como, em cada caso, as “lógicas espaciais” indígenas se articulam
com essas “dimensões”, a autora problematiza o esforço, suposto nessa incum-
bência, de “tradução” – usando um termo mobilizado por Leite (1999:130) para
discutir a identificação de TIs que será especialmente útil para a discussão que
segue. É sobre o caso da TI Zo’é (cuja identificação e delimitação foram feitas
por ela mesma e por Nadja Havt, a partir dos conceitos de território e modo de
vida, elaborados por esse povo) que Gallois se apoia, mostrando como é inade-
quada, naquele contexto, a aplicação ‘seca’ da noção de “habitação permanente”.
O padrão de ocupação territorial dos Zo’é, conta-nos ainda Gallois, alterna entre
movimentos de dispersão e de concentração populacional: “um princípio que
rege a qualidade de vida do grupo, abrangendo desde as relações interpessoais
entre famílias e entre grupos locais, até aquelas mantidas com os não-Zo’é”.
(2004:38). A definição da área de ocupação histórica desse povo – que necessa-
riamente expressará uma sobreposição entre áreas diferentes de grupos locais
também distintos – parte diretamente desse padrão, o que implica reconhecer
as suas descontinuidades territoriais (id.: ibid.).
O argumento de Gallois se desdobra ainda nos efeitos que a consolidação
de uma TI (ou de uma “terra” – termo equivalente a TI na exposição da autora)
tem sobre a “territorialidade” indígena – isto é, sobre a relação de cada povo
com o seu território. Este, para a autora, concerne “à construção e à vivência,
culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base ter-
ritorial” (id: 39). Gallois ainda discute etnograficamente os efeitos da constitui-
ção da TI a partir das transformações observadas entre os Wajãpi nos contextos
de contato interétnico e no próprio processo de regularização fundiária, para
então ponderar que
Teríamos então de analisar, caso a caso, as respostas dos grupos indígenas à conver-
são de seus territórios em terras, uma vez que, como sugere João Pacheco de Oliveira:
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

“Não é da natureza das sociedades indígenas estabeleceram limites territoriais preci-


sos para o exercício de sua sociabilidade. Tal necessidade advém exclusivamente da
situação colonial a que essas sociedades são submetidas” (1996: 9). Na transformação
de um território em terra, passa-se das relações de apropriação (que prescindem de
dimensão material) à nova concepção, de posse ou propriedade (id.: ibid. ênfases
acrescentadas).

Ainda que a ideia de ‘apropriação’ demande uma avaliação mais cuidado-


sa (sobretudo para tratar de relações com a terra), ou por mais que a passagem
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

para um regime de posse ou propriedade, com a instituição de uma TI, seja algo
questionável, pretendo apenas reter aqui, para os fins da argumentação que ora
esboço, a ideia de que a demarcação promove transformações nos modos indí-
genas de habitar a terra e de relacionar-se com ela – transformações essas que
geram “respostas” (termo tímido, que poderíamos talvez estender para ‘reação’,
ou mesmo ‘impacto’). Além disso, e lançando mão de uma licença, digamos, in-
terpretativa para ler a citação de João Pacheco de Oliveira apresentada por
Gallois, podemos pensar o problema das “respostas” indígenas a tais transfor-
mações como tendo ‘impactos’ sobre a territorialidade desses povos, uma vez
que os modos deles relacionarem-se com a terra não se encerra na natureza;
não é, por assim dizer, natural – como não o é a relação do ‘nativo’ com a sua
‘cultura’ (Viveiros de Castro, 2002:114).
Por falar em natureza, e voltando para os critérios estipulados pelo § 1º
do Artigo 231, merece atenção a preeminência dada ali às “atividades produti-
vas”, à “preservação dos recursos ambientais” e à “reprodução física e cultural”
dos índios – que nos impõe desafios próprios para a descrição dos modos desses
48
povos relacionarem-se com a terra e da centralidade desta para suas ontologias.
Como, portanto, não equacionar a cultura à natureza desses povos e, assim, en-
cerrar a terra a um outro registro de ‘natureza’, mais próximo da ideia de ‘recur-
so’, isto é, um objeto separado, um meio para que essa relação ‘natural’ com a
cultura se dê? Consequentemente, estaria esse equacionamento e a ênfase na
reprodução seguindo uma concepção já bastante debatida de que os índios esta-
riam sujeitos aos imperativos da subsistência – isto é, da mera existência?
Não me refiro ao que poderia ser identificado com uma esfera propriamen-
te econômica das socialidades indígenas, mas a uma ideia tácita, atrelada à de
‘reprodução’, de que existir basta – quando sequer sabemos o que é ‘existir’ pa-
ra esses povos. “Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abun-
dância”, diz Marshall Sahlins, recuperado por Pierre Clastres (2003:209) em
sua argumentação contra a determinação negativa dessas ‘sociedades’ – que
produziriam apenas o necessário para viver, seja por incapacidade técnica, seja
por preguiça. Mas há outra coisa em jogo; “misteriosamente, alguma coisa exis-
te na ausência”, como dizia também Clastres (id.:41). Ao nos colocarmos no es-
paço fértil da pergunta, concebendo o desencaixe, a diferença conceitual, abri-
mos espaço para os outros, como dizem Pignarre e Stengers (citados em Vivei-
ros de Castro, 2011:314). Como não fazê-lo, considerando que contínua e cons-
tantemente, de norte a sul do país, os índios têm chamado a atenção para o ca-
ráter indissociável da relação entre a garantia à vida e a permanência na terra?
“[A] terra ocupada é uma ‘terra de viver’”, afirma Lino Neves (2012:524)
acerca dos múltiplos, diversos e complexos sentidos abarcados pela noção de
vida aí contida. A essa constatação o autor une o argumento de que a expressão
“território de reprodução física e cultural” revela-se indiscutivelmente mais am-
pla quando confrontada pelas realidades que ela busca descrever. Neves então
conclui que a reivindicação de uma TI não poderia jamais dizer respeito a uma
“terra qualquer” – apresentando um contrapondo fundamental à ideia de que
ela se encerraria no registro da exploração de recursos (id.: ibid.). Para além dos
problemas políticos de resumir as ontologias indígenas aos ditames da necessi-
dade e da reprodução, portanto, a noção de ‘subsistência’ está longe de definir o
que a terra é para os ameríndios – o que tampouco é capturado pelo que a cate-
goria de “ocupação tradicional” busca abarcar. Ou seja: há um encontro desen-
contrado aí – um ruído, uma disjunção; como, então, pensar a partir (e não
apesar) da disjunção?

Dissonância de mão dupla

Se é sobre o aparato estatal que conforma a TI (categorias, normas e pro-


PONTES MOLINA, Luísa.

cessos) que a autodemarcação se realiza, e se há, como vimos, uma assimetria


Terras incapturáveis

central nas operações que consolidam essas experiências, a particularidade de-


las que me interessa tratar aqui está nas relações da qual partem (entre os dis-
tintos conceitos de terra) e nas novas relações que elas estabelecem (entre os
índios e o Estado, grosso modo). A autodemarcação parece promover mesmo
uma dobra sobre o aparato estatal, uma tensão que se dá não exatamente no
plano da execução dos procedimentos (estes são mantidos, já que estão no cerne
de tal aparato e, portanto, do lado ‘majoritário’ da assimetria) 7, mas no dos con-
ceitos que os subjazem. Ou melhor: a tensão sobre o aparato estatal é exercida,
antes, no âmbito dos conceitos, expressando-se então no dos procedimentos –
49
7Observemos, por exemplo, a ênfase dada ao rigor técnico no caso da autodemarcação da TI Kulina do Médio Juruá (cf.
Merz 1997), ou a exposição de Gallois (2011) sobre o protagonismo dos Wajãpi na realização dos procedimentos técnicos
durante a demarcação de suas terras.
onde ela é mais percebida, por assim dizer, como é percebido o desconcerto, ou
a instabilidade, a partir de acordes dissonantes em uma harmonia.
O encontro que a autodemarcação promove – uma dissonância de mão
dupla, como me inspira a pensar o sentido geral que a teoria da música dá ao
termo – é, pois, eminentemente instável: pois tanto é desconcertante a adoção
mesma desse aparato conceitual-procedimental-normativo estatal por parte dos
índios, como o são as imposições (técnicas e normativas) que esse mesmo apa-
rato apresenta aos índios para que a ‘adoção’ funcione. Trata-se portanto de um
encontro tão instável quanto irredutível, incomensurável: a diferença da qual a
autodemarcação parte não é dissolvida ou subsumida pela dobra que ali é reali-
zada; a tensão não é ‘resolvida’, estabilizada. Antes, ela perdura, desdobrando-
se nas relações e nos arranjos engendrados em cada caso: entre os diferentes
atores que deles participam (coletivos indígenas, órgãos estatais, ONGs, pesqui-
sadores e outros); na formação ou na atuação de organizações indígenas; ou na
participação de distintas agências, não apenas nas figuras de representantes,
mas também na expressão de suas forças (como o Estado e o Mercado). Poderia
parecer contraditório anunciar a incomensurabilidade como o centro desse en-
contro, não fosse ela a possibilidade mesma dele acontecer e de se estabelece-
rem, com ele, relações em que persistem (e resistem) a diferença. Em outras pa-
lavras, penso que para tomar a realização do processo demarcatório para si é
necessário, para os índios, saber que a TI como categoria, como forma e modelo
não equivale ao que a terra é para eles. Isto é: a terra indígena não se encerra,
dissolve ou se reduz à TI; a tradução não é completa, pois prevalece a incomen-
surabilidade – índice de resistência. Caso contrário, seria apagada a diferença
que anima e dá corpo à política.
Se a expressão da autodemarcação é a dissonância, a sua via é o dos equí-
vocos controlados: um modelo de tradução em que a diferença é a condição pa-
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

ra a significação, e não o seu obstáculo (Viveiros de Castro, 2004:20; ver tam-


bém Herzfeld, 2001 e Lambek, 1998). Menos do que denotar apenas um simples
problema de compreensão (pois o problema reside justamente em “entender
que os entendimentos não são os mesmos”, como coloca Viveiros de Castro), a
ideia de equivocidade trata de um modo de comunicação no qual diferentes
perspectivas se encontram em termos homônimos para distintos referentes (De
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

la Cadena, 2010: 351). O objetivo dessa “disjunção comunicacional” é evitar


perder de vista a diferença que reside nos homônimos equívocos, uma vez que
os interlocutores não estão falando sobre a mesma coisa, e sabem disso (Vivei-
ros de Castro, 2004:9). Não se busca resolver a disjunção, apagar a diferença
contida na equivocidade e suprimir a distância entre os conceitos em contato,
uma vez que é o próprio espaço da equivocidade que permite “o encontro de di-
ferentes mundos” (Entreterras, 2017:59). Seguindo Michael Lambek, Viveiros
de Castro afirma que a incomensurabilidade não só permite como justifica os
esforços de comparação – esta, ao mesmo tempo a ferramenta analítica primá-
ria e o material bruto da antropologia (2004:4). O ponto fundamental na dis-
cussão do autor é a possibilidade de reconceituar a comparação a partir da equi-
vocidade e do processo de tradução dos conceitos práticos e discursivos dos ‘na-
tivos’ em termos do aparato conceitual antropológico – promovendo, em última
instância, uma deformação desse aparato:
[T]raduzir é sempre trair, como o ditado italiano diz. Uma boa tradução (...) é uma
que trai a língua de destino, não a língua de origem. Uma boa tradução é aquela que
50 permite aos conceitos estrangeiros [alien] deformar e subverter as ferramentas con-
ceituais do tradutor para que a intenção [intentio] da língua original possa ser ex-
pressada no interior da nova. (idem:5)
Inspirada no trabalho de Marisol de la Cadena (2010) – que discute os
usos de “natureza” e “cultura” (e mais especificamente as montanhas e o “pa-
trimônio cultural”) pelos movimentos indígenas nos Andes como “sites of equi-
vocation” –, experimento estender o conceito de equivocidade para outros âm-
bitos em que se dão esforços de tradução e de produção antropológica, como as
demarcações e as autodemarcações de TIs. Se já é reconhecido que os processos
de demarcação (especialmente nas etapas de identificação das áreas, nas quais o
antropólogo precisa apresentar a relação dos índios com a terra e argumentar
sobre a tradicionalidade da ocupação nela) se dão a partir de traduções (Leite,
1999; Gallois, 1999, Havt, 2002), não é exagero afirmar que o mesmo aconteça
nas autodemarcações. Aliás, por compreenderem procedimentos comuns que
desembocam num mesmo objeto, ambas promovem passagens e produzem no-
vos sentidos para a terra: da terra vivida e entendida na perspectiva e nos ter-
mos indígenas, para a TI consolidada no modelo e sob os códigos do Estado; da
terra vista quando se olha pra baixo (como aludido na epígrafe deste capítulo)
para a terra traçada em mapas e descrita em coordenadas; da terra sem frontei-
ras em sentido estrito para uma área com uma forma, cujos perímetros são
marcados e monitorados.
A diferença que me interessa sinalizar ao pensar a autodemarcação a par-
tir dos equívocos controlados está antes no plano do processo de fazer essas
passagens – ou melhor, a adoção desses processos, a passagem para as passa-
gens, por assim dizer – do que no ‘produto’ delas (a TI propriamente dita, ainda
que ela mesma seja um equívoco, independente de ter sido criada por ação esta-
tal ou por esforços indígenas). Ater-se ao ‘produto’, aos resultados, seria apagar
a diferença primeira entre os processos empreendidos pelos índios e os requisi-
tos, as técnicas e os procedimentos previstos pelo Estado8; ou seria, no mínimo,
resumi-la ao âmbito desses procedimentos, como já discutimos aqui. O que bus-
co fazer é deslocar a “disjunção comunicacional” para a determinação, por parte
dos índios, de adotar um processo alheio de agir sobre a terra (de marcar, criar
limites e, em muitos casos, até mesmo ocupar), processo esse que gera uma so-
breposição de conceitos sabidamente distintos de ‘terra’. Uma hipótese que te-
nho perseguido é a de que a dobra realizada pela autodemarcação faz com que o
Estado, por sua vez, dobre-se sobre si mesmo (sobre suas próprias normas, seus
conflitos e tensionamentos internos), tendo que ‘lidar’ com a TI que fora consti-
tuída sob o seu próprio regime. 9
Para concluir o exercício de definição ao qual me ative até aqui, proponho
tomar o termo “autodemarcação” menos no sentido de descrever modos de ‘par-
ticipação’ indígena na criação de TIs, ou de ‘apropriação’ dessa categoria pelos
PONTES MOLINA, Luísa.

índios, ou de discernir ‘graus’ de autonomia desses grupos em relação ao Estado


Terras incapturáveis

e a outros atores, e mais sob o enfoque do encontro entre perspectivas distintas

8 E, nesse sentido, foco ainda na distinção entre pontos de vista sobre a terra (expressão de diferença ontológica), ao
invés da distinção sociológica entre um grupo indígena e o Estado como entidade empírica, que pode se fazer presente,
no processo de demarcação, na figura de seus “representantes” (servidores públicos, consultores de determinado órgão
etc.).
9 A discussão sobre o imbróglio em torno da regularização da TI Sawre Muybu, do povo Munduruku, no médio Tapajós

ilustra bem esse ponto (cf. Molina, 2017a, Loures, 2017), uma vez que e autodemarcação realizada por esse povo teve o
seu gatilho na declaração da então presidente da Funai Maria Augusta Assiratti, de que o processo de regularização
fundiária daquela e de outras TIs munduruku encontrava-se parado por pressão de setores do governo interessados na
construção do complexo hidrelétrico do Tapajós – que conta com uma usina, São Luiz do Tapajós, projetada para a área
de uma das TIs. O reconhecimento dessa terra como de ocupação tradicional indígena, por parte do Estado,
inviabilizaria a construção da usina, pois obrigaria o governo a remover os índios dali, o que é vedado pela Constituição 51
de 1988. Ao demarcarem, eles mesmos, Sawre Muybu (seguindo a delimitação dos estudos técnicos realizados pela
Funai), os Munduruku agem sobre o jogo de luz e sombra que permitia que o governo brasileiro fizesse de conta que não
haveria Tis afetadas pelo “empreendimento”.
relacionadas à terra – conceitos, modos de agir, de habitar, de relacionar-se com
ela etc. Experimento, assim, entender o radical “auto” como um indicador da
transformação que ele exerce sobre o termo ao qual é acoplado; com isso, pode
ser possível deslocar um problema com o qual me deparei ao iniciar este exercí-
cio: como traçar uma diferença entre demarcações ‘convencionais’ e autodemar-
cações sem deixar-se deslizar para a uma designação prévia do que um coletivo
indígena poderia ‘comportar’, incorrendo na discutível operação de reificação do
coletivo, grupo, povo ou sociedade indígena, já tão problematizada pela antro-
pologia? Ou mesmo sem pretender colocar a questão em termos de ‘graus’ de
autonomia ou protagonismo indígena (uma avaliação que certamente não cabe
ao antropólogo fazer)? E como elaborar uma definição dessas iniciativas sem
deixar-se capturar por um viés meramente técnico ou instrumental?
Ao abordar essas experiências a partir da dobra que elas realizam e da
ideia de equivocidade controlada, deixando o termo a princípio ‘vazio’, permiti-
mos que cada experiência fale por si: indicando como se deram, em cada caso,
as passagens entre os diferentes registros de ‘terra’; como cada povo lidou com o
Estado, os seus códigos e o seu aparato burocrático; quais relações foram cons-
truídas nesses processos – e o que elas revelam sobre os modos indígenas de fa-
zer política; e tanto mais. (E eu diria mais: abdicando da imposição de ‘provar’ o
que há de realmente “auto”, de propriamente “próprio” – para chegar a “genuí-
no” basta um pulo – nas experiências de autodemarcação, a etnografia se faz
possível, abrimos espaço para o outro.) Observemos, então, quais são os casos
identificados como “autodemarcação” no Brasil – reunidos no quadro abaixo,
no qual se vê a localização das TIs, os períodos nas quais as autodemarcações se
deram e indicações acerca do processo estatal de regularização fundiária.
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

Considerações finais: além e aquém do Estado


Por fim, faz-se necessário comentar o trato recente que autodemarcações e
retomadas de terra receberam de João Pacheco de Oliveira Filho (2018). Ao
abrir um dossiê sobre lutas por terra no Brasil – afirmando que a etnologia su-
lamericana das últimas décadas não investiu em reflexões sobre terra e territó-
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

rio –, o autor lança uma espécie de programa de pesquisa que entende as reto-
madas como uma forma atual de territorialização10, ao mesmo tempo em que
vincula as lutas indígenas à ideia de reelaboração cultural. Não é essa ideia ou o
conceito de territorialização que examinaremos, vale notar: são os problemas da
caracterização daquelas formas de ação política a partir desse esquema analíti-
co, sobretudo no que diz respeito a resumi-las à pressão sobre o Estado-nação,
ou mesmo a delinear limites temporais ao identificar autodermarcações e reto-
madas a determinadas formas de territorialização.
Para Oliveira Filho (2018), autodemarcações foram ações “individuais” e
“isoladas” que ocorreram entre as décadas de 1970 e 1980, e cujo objetivo teria
sido neutralizar entraves burocráticos à regularização de TIs (:12). Enquanto,
para esse autor, essas iniciativas se limitaram a acompanhar os processos admi-
nistrativos conduzidos pela Funai, as retomadas seriam algo de outra ordem:
estando totalmente fora do rol de ações apoiadas pelo órgão indigenista ou por
agências de cooperação internacional, esses processos de recuperação territorial
romperiam com um “perfil de vítima” com o qual entidades ligadas a direitos
52

10 Que não se deve confundir com territorialidade, como bem marcam Vieira et. al. (2015).
humanos supostamente atuam (seja lá o que essa caracterização signifique),
uma vez que os participantes das retomadas teriam – aí sim – posturas “mili-
tantes” e “protagonistas” (:13). Não há, por parte do autor, um investimento na
caracterização dos termos por ele empregados, e portanto resta impreciso o sen-
tido de “isolamento” ligado às autodetmarcações, ou de “militância”, mobilizado
a propósito das retomadas. Seja como for, a redução das autodemarcações à
ação da Funai não se sustenta quando confrontada com as narrativas indígenas
e as descrições etnográficas dessas experiências: ainda que também se configu-
rem como respostas à morosidade na regularização fundiária, essas iniciativas
transbordam a todo o momento os limites do processo administrativo – e evi-
denciam, sobretudo, um inequívoco “protagonismo” indígena, para usar os ter-
mos não só do autor, mas da extensa literatura que comenta a atuação dos ín-
dios nessas experiências.
Voltaremos a esse último ponto ao expor, ainda que resumidamente, algo
dos casos que analisei na dissertação já citada. Nesse trabalho reuni em um
quadro os casos de autodemarcações dos quais tive notícia na limitada produção
acadêmica e jornalística sobre o assunto; se não o reproduzo aqui, é apenas por
considerar realmente improdutiva qualquer delimitação desse conceito em ex-
tensão, ou mesmo uma distinção categórica entre autodemarcações e retoma-
das. Todavia, vale notar que autodemarcações também se deram após o período
traçado pelo autor – que, inclusive, identifica a ação dos Munduruku como re-
tomada, embora estes utilizem o termo autodemarcação e estejam notavelmen-
te se esforçando em demarcar a TI Sawre Muybu: abrindo picadas no perímetro
da TI, sinalizando os seus limites e monitorando-os (cf. Loures, 2017). 11 Além
disso, se considerarmos que há, já, uma espécie de consenso na literatura acerca
da importância das retomadas para o nordeste indígena dos anos 1980 – como
mostram Alarcon (2013), Tofoli (2010), Oliveira (2010), Bicalho (2010), por
exemplo –, a fronteira cronológica estabelecida pelo autor revela-se algo desca-
bida.
Embora seja especialmente inquietante a associação sugerida por Oliveira
Filho entre autodemarcações e tutela, não residirá aí o foco deste comentário,
considerando que o autor dedica-se menos a construir esse ponto do que a pro-
duzir a sua contrapartida: a identificação direta entre a conjuntura política atual
e as retomadas de terra, que faria dessas ações uma “sexta forma de territoriali-
zação” (2018:12). Nosso esforço será, primeiro, o de observar as implicações de
enquadrar as retomadas em um esquema que as vê sobretudo como uma “forma
pós-tutelar de exercício da política pelos índios, implicando um modo diferente
de conceber as suas relações com o Estado” (id.:13). Em seguida – e conside-
rando que descrições dessas formas de ação políticas centradas na pressão sobre
PONTES MOLINA, Luísa.
Terras incapturáveis

o Estado também são comuns no que diz respeito a autodemarcações, como ve-
mos por exemplo em Neves (2012) –, experimentaremos outros caminhos analí-
ticos. Pois ao contrário do que afirma Oliveiro Filho acerca de uma suposta au-
sência de reflexão sobre terra e território na etnologia americanista das últimas
décadas (id.:2), partimos justamente de contribuições substantivas a esse cam-
po (Gallois, 2004; Surrallés & Hierro, 2004; Ladeira, 2007; Amoroso & Mendes,
2013; Saéz, 2015; Vieira et. al., 2015; Entreterras, 2017; Morais, 2017) para pen-
sar política indígena a partir da terra – mobilizando, para isso, autodemarca-
ções indígenas e as dissonâncias de mão dupla que elas parecem produzir.

53
11Além do trabalho de Rosamaria Loures (que acompanhou de perto as ações dos Munduruku por anos) citado acima,
ver também a cartilha que a Associação Pariri elaborou a respeito da autodemarcação, disponível online:
http://media.wix.com/ugd/c99e01_7dcfb3cedf6546869a9d9ac542ec73da.pdf . Acesso em 12/09/2018.
É mesmo digna de nota a ênfase que Oliveira Filho dá àquela suposta au-
sência e a certa insuficiência na reflexão sobre paisagem e territorialidade: a
descrição das retomadas sob a noção de territorialização será justamente situa-
da nesse espaço, sugerindo um ineditismo particular da proposta teórica a partir
de confluência entre o fenômeno empírico (a emergência das retomadas como
estratégia política no contexto atual) e a solução analítica (o investimento nas
noções de terra e território). Ora, se o fenômeno não é exclusivo da conjuntura
política atual, e nem é exatamente original a atenção à terra, a ênfase do autor
provoca, no mínimo, algum estranhamento. De forma semelhante, o enquadra-
mento analítico das políticas ameríndias que privilegia a ação estatal ou a rela-
ção dos índios com o Estado não só parece desconsiderar, em grande medida, os
modos pelos quais esses povos encaram o aparato estatal no delineamento de
suas estratégias políticas, ou como lidam com o que, no processo de regulariza-
ção fundiária, escapa do mesmo aparato (como no caso da descrição das auto-
demarcações mencionada acima). A propósito, se os sentidos da terra, para os
índios, não se reduzem à descrição da categoria de Terras Indígenas, não seria
mais interessante questionar, antes, como os índios articulam essas diferentes
noções de terra do que supor que um enquadramento analítico centrado na con-
cepção estatal de território dará conta de definir essas ações políticas?
Esse enquadramento também passa ao largo de um notável acúmulo etno-
gráfico acerca de aspectos outros das retomadas de terra, que não o da pressão
sobre o Estado-nação. Em sua rica etnografia dos processos de recuperação ter-
ritorial promovidos pelos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA), Daniela Alarcon
(2013) dedica considerável fôlego a argumentar contra essa redução: “Não des-
conheço que pressionar o Estado brasileiro para que concluísse o processo ad-
ministrativo de demarcação da TI era uma das motivações dos indígenas ao rea-
lizar retomadas”, começa a autora, criticando uma determinada leitura que Su-
ACENO, 5 (10): 39-58, agosto a dezembro de 2018. ISSN: 2358-5587

sana Viegas teria feiro da questão. “Penso, contudo, que, além de apresentarem
esse componente instrumental, as retomadas traziam em seu bojo um leque de
causas historicamente constituídas, que devem ser examinadas detidamente”
(:54), segue Alarcon, mostrando que compõem esse leque de causas a crescente
degradação do território; as ameaças contra a vida dos índios e os levantes con-
tra a demarcação da TI; o intuito de promover plantios coletivos e nutrir as co-
Dossiê Temático: Políticas Ameríndias

munidades, solucionando problemas de desnutrição; a perspectiva de receber


parentes que retornariam à terra; e razões afetivas diversas, ligadas à memória
de violências e injustiças (:57). Com efeito, tanto o trabalho de Alarcon em sen-
tido amplo, como a descrição de outras pesquisadoras que passaram pela região
(cf. Ubinger 2012, Couto, 2008, Viegas, 2007), ou que atuaram em contextos
semelhantes (cf. Cardoso, 2016) permitem vislumbrar um aspecto notável das
retomadas de terra, que comentei com mais fôlego em outro lugar (Molina
2017b): a de condição para viver “de acordo com a cultura”, como expressam os
discursos indígenas em contextos distintos – pois terra é vida: é condição de
autodeterminação ontológica e política. 12
Que não restem dúvidas: não se trata de reivindicar um ou outro sentido
da luta como anterior ao outro ou mesmo exclusivo; isso seria, no mínimo, im-
produtivo. Procuro, com a exposição anterior, fazer o movimento inverso: ar-
gumentar que também ali onde se buscar pressionar o governo pela regulariza-

12Nesse sentido, aproximações entre a etnologia produzida no nordeste indígena e em outros contextos de recuperação
54 territorial podem ainda render contribuições potentes para uma reflexão sobre os sentidos de terra e de ação política
indígena – como, por exemplo, na literatura notavelmente vasta sobre retomadas kaiowá e guarani em Mato Grosso do
Sul, que inclusive já suscitaram reflexões sobre essas ações. Ver, por exemplo, Brand (1997), Crespe (2009, 2015);
Pimentel (2012), Morais (2016), Cariaga (2019).
ção de uma determinada área a luta é cosmopolítica. “Tem que pisar na terra
para ter direito”, disse uma mulher tupinambá a Alarcon, enquanto ambas olha-
vam fotos da primeira área retomada pelos índios da Serra do Padeiro – um di-
reito que, conforme mostra a autora, “repousa nas determinações dos encanta-
dos” (2013b:121). Da mesma maneira que não é de qualquer sorte de direito ao
qual se referia a tupinambá, não é de qualquer sorte de luta que falamos, mas da
luta como forma de habitar a terra, habitar a terra como forma de luta. É do
impacto dos conceitos indígenas de terra sobre o nosso conceito de política que
se trata: eis o desafio para uma antropologia que se pretende aliada dos povos
da terra.

Recebido em 12 de setembro de 2018.


Aprovado em 17 de abril de 2019.

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