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Os Estudos de Antropologia Da Saúdedoença PDF
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Abstract This article reviews and comments Resumo Este texto revê e comenta os estudos
the anthropological and qualitative studies antropológicos e qualitativos sobre as dimen-
about the sociocultural dimensions of health sões socioculturais da saúde/doença, engloban-
and illness. It focus the different intellectuals do os seus subtemas, conceitos e metodologias
positions, the concepts and methodologies and adotadas a partir de diferentes vocações intelec-
includes the theme sexuality, disease and gen- tuais. Inclui ainda a sexualidade, doença e re-
ders relations. The article discuss some factors lações de gênero.Traça alguns fatores que con-
and its contributions to the academic produc- tribuíram para a expansão daquela produção
tion expansion, and is concerned only to the acadêmica e circunscreve-se somente à publica-
publications which its examination showed the da, cujo exame permitiu a seleção dos temas
main themes for selection. abordados, devido aos seus predomínios.
Key words Anthropology of health/disease; Palavras-chave Antropologia da saúde/doen-
Qualitative research in health; Concepts, ça; Pesquisa qualitativa em saúde; Conceitos
methodologies and themes. e metodologias e assuntos
1 Departamento
de Medicina Preventiva
e Social, Faculdade de
Ciências Médicas, Unicamp.
Rua Copaíba 167,
Alphaville, 13098-347,
Campinas SP.
canesqui@mpc.com.br
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e lutas; e pela fenomenologia e correntes com- gerar questões a serem aprofundadas qualitati-
preensivas, por descurar-se do sujeito ou da vamente e vice-versa. A discussão de técnicas
ação social (Minayo, 1992). qualitativas para as pesquisas em saúde foi feita
No marxismo as representações remetem à por Minayo e por outros que se interessaram
ideologia e a autora toma as vertentes que não no seu emprego nos estudos sobre representa-
a concebem como mero reflexo das estruturas. ções sociais de saúde e doença (Rigotto, 1998).
Junta a dimensão cultural e o historicismo, que Argumentos favoráveis à complementa-
oferece espaço à criatividade do sujeito, sem ridade dos métodos fundam-se na necessária
descurar-se dos elementos estruturais, engen- discussão de vários pontos de vista na pesquisa
dradores da sociedade capitalista. Destaca a im- (Ramos, 1993). Acautelam-se os que admitem
portância dos estudos e representações sociais a impossibilidade de aplicá-la generalizada-
para a análise do social e a ação pedagógico- mente, deixando intocadas as questões epistê-
política transformadora. Elas retratam a reali- micas da objetividade/subjetividade, nas tenta-
dade, sem reduzir-se às concepções dos atores tivas interdisciplinares da epidemiologia com
sociais. as ciências sociais (Reichenhein, 1993; Santos,
Toma as representações sociais como senso 1993).
comum, idéias, imagens, concepções e visões Para potencializar o registro, obtenção e
de mundo. A representação social de indiví- análise de dados etnográficos são adequados os
duos e grupos, nas palavras da autora, está pen- usos de tecnologias eletrônicas e softwares. Na
sada em relação às bases materiais que a engen- sistematização dos dados obtidos, os descrito-
dram: de um lado temos o homem que é produto res conceituais e discursivos dos softwares per-
de seu produto: as estruturas da sociedade criam mitem observar as recorrências de categorias e
o seu ponto de partida; de outro, temos que este conceitos nos depoimentos dos informantes
homem constrói a história dentro das condições (Fachel et al., 1995; Victora et al., 2000). O em-
recebidas ultrapassando-as e inscreve sua signifi- prego da análise fatorial por correspondência,
cação sobre toda a parte, em todo o tempo e a or- uma técnica estatística, permitiu às autoras
dem das coisas (Minayo, 1992). identificarem várias correlações tais como: en-
Queiroz (2000) também refletiu critica- tre “visão de mundo” e decisões sobre recursos
mente sobre o conceito, a partir de diferentes de saúde e estratégias reprodutivas; as relações
perspectivas sociológicas e antropológicas, no entre gênero e recursos de cura; as causas atri-
estudo das doenças endêmicas. Juntando Mos- buídas à doença, entre outras. Não se trata de
covici com Schultz toma-o como um tipo de substituir o trabalho etnográfico e nem de des-
saber socialmente organizado, contido no sen- cartar o esforço da análise antropológica, mas
so comum e na dimensão cotidiana, que per- de buscar novas formas de sistematizá-las.
mite ao indivíduo uma visão de mundo e o ori- Cardoso & Gomes (2000) advertem sobre o
enta nos projetos de ação e nas estratégias que risco da incorporação acrítica, pelos estudos
desenvolve em seu meio. Afirma que as repre- sociais em saúde, do conceito de representações
sentações sociais são, portanto, conceitos cultu- sociais. Afirmam que o seu emprego não pode
ralmente carregados, que adquirem sentido e sig- ignorar o já estabelecido por vários autores li-
nificado pleno no contexto sociocultural e situa- gados à psicologia social e à sociologia no cam-
cional onde manifestam (Queiroz, 2000). po da saúde. Ao reverem o conceito nas teo-
Minayo & Sanchez (1993) propuseram a rias, discutem os limites da perspectiva cons-
complementaridade dos métodos qualitati- trutivista e a necessária articulação da pesquisa
vos e quantitativos na pesquisa. Os primeiros com a abordagem histórica, dado o enraiza-
se interessam pelo “nível mais profundo” em mento simultâneo das representações nas rea-
constante interação com o ecológico. Este nível lidades social e histórica, conforme posto per-
comporta significados, motivos, aspirações, tinentemente por Herzlich (1991).
crenças e valores, expressos na linguagem da Recomendam o uso de múltiplas fontes (do-
vida cotidiana e, bem se aplicam aos estudos de cumentária e orais) para classificar as diferen-
pessoas afetadas por doenças e a grupos deter- tes maneiras pelas quais os autores captaram o
minados, historicamente situados. Se um dado sentido do ser doente ou saudável; para esta-
objeto de pesquisa reclamar, sugerem a combi- belecer os nexos entre os sentidos de maneira a
nação dos métodos, que impõem, no plano do chegar à historicidade dos modelos de saúde e
conhecimento, a relação entre objetividade e doença, e para reconstituir, nas fontes, “a lógi-
subjetividade. Os estudos quantitativos podem ca” pela qual as representações foram produ-
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zidas e socializadas na longa duração, que per- beres e práticas ligadas às estruturas sociais, às
mite a maior compreensão dos modelos atuais. instituições, às representações, às mentalidades.
Demonstrou Laplantine (1986), sob ângulo A história cultural das doenças abre um leque
da abordagem estruturalista, a existência de di- muito fértil às pesquisas, que não se restringem
ferentes lógicas que presidem os modelos etio- aos saberes eruditos.
lógicos e terapêuticos na sociedade contempo- Rodrigues (1999) fornece um outro bom
rânea, irredutíveis a uma única lógica. O resga- exemplo da história das sensibilidades que pas-
te da historicidade dos sentidos ou significados sa nas fronteiras disciplinares, incluindo a com-
das doenças, no longo alcance, é bastante plau- preensão da sensorialidade dos processos cor-
sível de ser tentada, retirando dos estudos o seu porais, dos modos de sentir, do uso dos senti-
caráter meramente sincrônico e o atrelamento dos que não se restringem ao orgânico e são
exclusivo às perspectivas dos adoecidos, desde históricos, sempre remetidos na trama das re-
que são múltiplas as fontes produtoras de repre- lações sociais que lhes atribuem sentidos. Res-
sentações sobre saúde e doença na sociedade. gata as continuidades e rupturas dessa história
São lembradas, nesse sentido, as aborda- na constituição da sociedade ocidental.
gens da história das doenças, aproximando-se Alves & Rabelo (1998) reconhecem a con-
ou não de correntes antropológicas. Não se tra- tribuição dos estudos de representações e prá-
ta de retomar a produção dos estudos históri- ticas de saúde e doença para o entendimento de
cos, que foge dos propósitos deste texto. Os es- matrizes culturais dos grupos sociais, que per-
tudos de Carrara (1994; 1996) exemplificam mitem ultrapassar a objetividade dos estudos
como a sífilis (mal coletivo e ameaça) mobili- epidemiológicos e apontam as limitações de
zou vários discursos e práticas, cujo desenrolar seu uso: 1) a determinação das representações
foi acompanhado desde os finais do século 19 sobre as práticas; 2) a ênfase nos modelos fe-
até os meados da década de 1940. Em torno de- chados de significação (corpo, saúde e doen-
la os médicos especialistas sifilógrafos, diz o au- ça); 3) a necessidade de deslocar a atenção da
tor, souberam com maestria fazer com que, pela doença como fato (como dado empírico ou
sífilis, passassem não apenas o destino dos doen- signo) para a doença como experiência. Resga-
tes, mas o de uma série de entidades que trans- tam as perspectivas fenomenológica e pragmá-
cendiam o indivíduo: a família.... mas também a tica, associadas à interpretação hermenêutica.
sociedade, a raça, a nação, a humanidade, a es- Colocam em relação o pensamento e a ação, a
pécie (Carrara, 1996). consciência e o corpo, a cultura e individuali-
Ele mostra a articulação dos discursos mé- dade, cuja retomada dos estudos, sob esta pers-
dicos com outras forças e campos sociais, que pectiva, será feita adiante.
engendram resoluções para o problema ve-
néreo e todos eles geram representações sobre Representações do corpo, saúde
a doença. A sugestão do autor de se fazer uma e doença
antropologia da ciência, pela via do desenvol-
vimento conceitual da sífilis ou de sua constru- Reportando-se a autores nacionais e inter-
ção social, requer o recurso a inúmeras fontes nacionais (Mauss; Durkheim; Bourdieu; Herz-
disponíveis, tais como: manuais clínicos, rela- lich; Boltanski; Auge; Montero; Loyola; Duar-
tórios de pesquisa laboratoriais, livros didáti- te), várias etnografias (Knauth, 1992; 1992; Vic-
cos, dentre outros que podem oferecer fontes tora, 1995; Oliveira, 1998) abordaram as repre-
mais teóricas para o estudo dos aspectos noso- sentações do corpo e doença ou do seu funcio-
lógicos da doença e sua terapêutica. namento e estrutura, a partir dos pressupostos:
Na abordagem histórica das representa- 1) cada sociedade ou grupo social dispõe de
ções sociais da doença, Sevalho (1993) percor- maneiras específicas de conceber e lidar com o
re um conjunto de autores como Foucault, Ta- corpo, sendo que o saber biomédico contri-
mayo, Le Goff, Capra, Rosen, Canguilhen e ou- buiu, ao longo da história, na difusão de sua
tros, mostrando as continuidades e desconti- naturalização, tida como universal; 2) da doen-
nuidades, das distintas concepções de doença, ça, como fenômeno social, que é capaz de esta-
desde a Antiguidade até o início do século 20. belecer uma relação entre as ordens biológica e
Concordando com as palavras de Le Goff, cita- social, atingindo concomitantemente o indiví-
das pelo autor, a doença pertence não só à histó- duo, no que deve à biologia – o seu corpo –, a
ria superficial dos progressos científicos e tecnoló- sociedade e as relações sociais; e 3) das muitas
gicos, como também à história profunda dos sa- indagações e significados, suscitados pela
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Ferreira (1998) estudou as práticas de cui- cluem, segundo Claro, as relacionadas ao mun-
dados corporais a partir da experiência social e do natural (ambiente, clima, contato com ani-
descartou a existência de modelos que as presi- mais e substâncias tóxicas, sujeira e coisas po-
dem, uma vez que se embebem na ação, apro- luídas); as individuais, centradas nos compor-
ximando-se das posturas fenomenológicas. Es- tamentos morais, na hereditariedade e velhice;
sas práticas envolvem: o uso do médico, dos as sobrenaturais (karma, predisposição, fatali-
medicamentos e de outros recursos de cura dade) e as alimentares, em especial, a ingestão
(simpatias e remédios caseiros), uma vez per- da carne de porco, relacionada à idéia de sujei-
cebidos os sinais corporais, junto com os cui- ra. O contágio não é mencionado como causa
dados com a higiene principalmente, sem que da doença e os seus riscos se potencializam,
a idéia de prevenção esteja presente, tal como diante da “fraqueza” corporal (Queiroz & Pun-
definida pela medicina. A noção de tempo, en- tel, 1997).
tre as classes populares francesas, estudadas As representações sobre a tuberculose cen-
por Boltanski (1979) deve ser melhor explora- tram-se no “destino” e na percepção do corpo
da na compreensão da dissonância entre o ele- fragilizado, cujas causas incluem o desgaste
vado grau de previsibilidade que os comporta- físico, provocado pela exposição prolongada
mentos médicos preventivos suscitam e o bai- ao frio e ao trabalho, o enfraquecimento físico-
xo grau dessa previsibilidade, tão presentes nas moral, os efeitos da contaminação ambiental e
práticas daquelas classes. Os estudos sobre a da hereditariedade (Gonçalves, 1998). A sus-
Aids, como veremos, reiteram a ausência da- pensão dos tratamentos médicos ocorre quan-
quela idéia. do cessam os sinais corporais associados à do-
ença; restauram-se as “forças” do corpo, volta-
Representações sobre doenças se ao trabalho e são retomados os papéis e obri-
específicas gações familiares como sinalizadores da saúde,
embora possam não estar totalmente curados,
Pesquisas das representações sobre a han- segundo a concepção médica.
seníase e seu tratamento partem da experiência A questão do abandono do tratamento mé-
da clientela com os serviços de saúde; focalizam dico, pesquisado pela autora, mostra que o ofi-
as relações sociais dos adoecidos e os significa- cialmente utilizado não está adequado ao mo-
dos atribuídos à doença. Destacam alguns as- do de vida da clientela dos serviços de saúde. O
pectos: 1) as mudanças promovidas nas insti- abandono pode ser temporário ou definitivo,
tuições médico-sanitárias na institucionaliza- entre os alcoólatras, os portadores de Aids; de
ção dos adoecidos, antes excluídos e agora in- distúrbios psicológicos e indigentes. Além dis-
tegrados à sociedade; 2) as modificações tecno- so, os tratamentos instituídos pelo uso regular
lógicas e terapêuticas para o tratamento; 3) os e intenso de medicamentos não devem ser des-
seus efeitos na redução do processo de estig- cartados dos motivos do seu abandono, ainda
matização, uma vez alterada a forma de classi- que uma parcela da clientela a eles se submeta
ficação dos doentes pela medicina; 4) a insufi- e aceite as prescrições e condutas médicas, va-
ciência da presença de sinais na pele na indica- lorizando o seu poder de cura.
ção da doença, uma vez que não impedem o Diferenças de gênero, na percepção de do-
uso intenso corporal nas atividades cotidianas; enças ou de suas causas, fazem-se na hansenía-
5) o recurso a múltiplos tratamentos, os médi- se: as mulheres se preocupam mais com a apa-
cos, religiosos, os dietéticos e naturais (Claro, rência corporal e com as deformidades físicas
1995; Queiroz & Puntel, 1997). que a doença pode acarretar. Devido às razões
Apesar da incorporação, no discurso dos estéticas ocultam a doença e, ao se relaciona-
profissionais de saúde, da designação oficial da rem com os serviços de saúde movem-se pelos
doença, os entrevistados usam ainda o termo padrões físicos e morais, com forte preconceito
“lepra”, acompanhado do estigma social. A re- e insatisfação com a perda de seu status na fa-
dução do estigma pelos empenhos da medici- mília, embora tendam a aceitar mais facilmen-
na parece parcial e os estudos deixam entrever te os diagnósticos médicos e busquem na reli-
a persistência da autodepreciação dos adoeci- gião as soluções alternativas para se livrarem
dos e preocupações com a preservação de sua do “castigo”, que julgam merecer. Os homens
imagem social, cuja análise não se reduz aos relutam em aceitar os diagnósticos e as conse-
elementos de ordem subjetiva, conforme suge- qüências da doença sobre as suas atividades li-
re um dos estudos. As causas da doença in- gadas à sobrevivência. Quando reconhecida a
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doença, reestruturam as suas vidas e as relações dade. Se o sofrimento pode fragilizar e desinte-
afetivas e sociais (Oliveira, 1998). grar a pessoa, é também ponto de partida para
Os homens se referem ao desconhecimento a construção ou reconstrução da identidade so-
das causas da “hipertensão” e, quando interro- cial. Neste caso, a análise dos rituais de cura,
gados, hesitam em respondê-las. As mulheres nas casas de culto afro-brasileiro mostra a in-
as associam ao “nervosismo”, ao excesso de ali- corporação de distintos modelos de realização
mentação (gordurosa) e ao alcoolismo. Ela é de pessoa que, para terem sucesso, afirmam os
mais percebida através das sensações corporais, autores, requerem a socialização prévia do
como “tonturas”, “zoeira na cabeça”, “cansa- adoecido ou de sua família. Assim, a adesão
ço”, “dor de cabeça” (Carvalho et al., 1998). dos envolvidos dá-se apenas quando a ação
Observa-se que popularmente o termo hiper- mágica ou força sobrenatural evocam-se como
tensão não é utilizado, e sim “pressão alta”. causas do sofrimento.
Ao cessarem essas sensações pelo uso da Vários estudos antropológicos, enquadra-
medicação e não se sentindo mais doentes, os dos no tema representações sobre a Aids, se
idosos adoecidos entrevistados neste estudo aproximaram dos adoecidos, dos soropositi-
tendem a abandonar o uso de medicamentos, vos, das clientelas de serviços de saúde; de seg-
embora incorporem mais facilmente a cami- mentos populacionais diversificados ou das
nhada e a dieta com menos sal e gordura. A pri- classes trabalhadoras urbanas.
meira prescrição implica o uso corporal mais A epidemiologia, desde a emergência da
intenso que encontra maior ressonância nas Aids, valeu-se do conceito de grupos de risco
classes trabalhadoras, enquanto o uso de dietas para classificar uma ampla variedade de pes-
contraria-lhes as práticas e representações ali- soas potenciais ou efetivos portadores da doen-
mentares, uma vez que sal e alimentos gordu- ça e seus comportamentos e, certamente, a di-
rosos são valorizados por outorgarem “força” fusão deste conceito muito contribuiu para
ao corpo que trabalha. É provável que os ho- que a percepção dessa doença se associasse à
mens ativos profissionalmente resistam mais crença da “doença gay”, “dos desviantes se-
àquelas prescrições alimentares do que os apo- xuais” (Loyola, 1994).
sentados, que foram objetos desta pesquisa. O estudo de Paulilo (1999), através das
Explorando as narrativas de pessoas ligadas narrativas dos adoecidos de homens que fazem
ao pentecostalismo e às casas de culto afro-bra- sexo com homens, conclui que o sentido dado
sileiro, Rodrigues et al. (1998) observam que o ao “risco” nunca coincide com as idéias de gru-
discurso das concepções e representações das pos ou comportamentos de risco, incluídos no
causas das doenças envolve a ligação entre a discurso epidemiológico. A partir das expe-
pessoa e a moléstia, esta última como experiên- riências subjetivas, intersubjetivas, dos contex-
cia física e subjetiva, enquanto as causas das do- tos socioculturais e individuais, apreendeu os
enças são referidas às explicações que permi- seguintes significados dados ao risco pelos in-
tem responder por que a doença ou o sofrimen- formantes: a sua negação; a hierarquização; a
to ocorreu num dado momento das trajetórias afirmação de outros valores (prazer, vínculos
de vida dos informantes, tratando-se de con- afetivos, trocas ligadas ao sexo e ao uso de dro-
cepção de causalidade não linear e distinta da gas); a desconfiança das afirmações da ciência
racionalidade médica. Assim sendo, a causali- médica versus a confiança no parceiro/parceira
dade para o sofrimento associa-se ao plano fí- e a idéia de invulnerabilidade pela paixão e
sico, a partir da descrição corporal; ao plano amor. Este estudo, como muitos outros feitos
de qualidades atribuídas à pessoa e a um plano entre segmentos populacionais “sadios” sobre
não material remetido às relações sociais, do várias dimensões que cercam as percepções da
trabalho e ao plano mágico-espiritual. Aids e dos comportamentos, chama a atenção
Cada um desses planos engloba as catego- para os limites das estratégias, conceitos e mo-
rias “êmicas” dos discursos dos informantes, delos que ancoram as intervenções médico-sa-
submetidas a um esforço do pesquisador de nitárias (Corrêa, 1994; Loyola, 1994).
construir um modelo de explicação da causali- Outras reflexões sobre as representações da
dade, a partir da experiência da pessoa em sua Aids centram-se nos elementos que a configu-
relação com a doença. Trata-se, nesta aborda- ram simbolicamente e não apenas como doen-
gem, de fazer prevalecer um sistema mais am- ça física, mas na sua articulação com a socieda-
plo de significações, perpassando as experiên- de e a cultura. A Aids evoca, simbolicamente, a
cias, as noções de pessoa, sofrimento e identi- morte, o sexo, o contágio, a punição, a acusa-
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dos discursos de seus entrevistados, na sua re- ainda a partir da interpretação e significação
lação com o contexto em que foram produzi- dadas por mulheres “nervosas” às múltiplas ex-
dos, incluindo o sujeito, a fala, a resposta aos periências socioafetivas e relacionais que afe-
eventos, pessoas e outras falas (Rabelo, 1999). tam a construção de sua identidade (Hita,
Por esta via os autores identificam, inter- 1998).
pretam e demonstram como indivíduos, As reflexões de Duarte, que pesquisou os
oriundos das classes populares, lidam com a significados do “nervoso” entre as classes tra-
“doença mental”, um problema que requer so- balhadoras urbanas na década de 1980, con-
luções e a mobilização de um conjunto de de- tinuam reiterando a centralidade da noção de
cisões e de recursos terapêuticos. As inúmeras pessoa que engloba aquele fenômeno na cultu-
publicações, feitas individualmente ou em co- ra ocidental moderna, comportando múltiplos
laboração por Alves e Rabelo e seus colabora- sistemas simbólicos para explicá-la. São eles: a
dores, reuniram-se, em parte, nas coletâneas biomedicina; as teorias psicologizante e socio-
(Alves & Rabelo 1998; Rabelo et al., 1999). logizante, junto com as configurações culturais
Apesar de algumas diferenças nas suas aborda- das classes populares brasileiras, latino-ameri-
gens reiterarem sempre que a experiência não cana e presentes noutros grupos contemporâ-
decorre apenas de modelos internalizados, sen- neos e oitocentistas (Duarte, 1994), que não
do o doente um personagem capaz de comuni- individualizam ou psicologizam os “nervos”,
car e refletir sobre ela. integrando-os na noção de pessoa (físico-mo-
Ao libertarem os sujeitos das amarras das ral).
determinações, estes ganham maior liberdade Através de um culturalismo radical, o autor
(às vezes excessiva), diante de quaisquer cons- pretende criar uma teoria abrangente capaz de
trangimentos que possam pesar sobre eles. Há dar conta das continuidades e permanências
portanto, uma permanente e até excessiva flui- das diferenças culturais, na cultura ocidental
dez dos processos socioculturais e a ausência moderna, pela via comparativa. As categorias
de relações de força e poder, na “realidade” biomédicas, por esta e por outras abordagens
permanentemente construída e reconstruída. etnográficas, ancoraram nos sistemas de signi-
As narrativas fornecem visibilidade às co- ficação.
municações, hesitações, mudanças dos signifi- As suas contribuições recuperam a designa-
cados atribuídos nas interações sociais, antes ção físico-moral para qualificar as concepções
muito esquecidas sob as macrodeterminações. do “nervoso”, entre as classes trabalhadoras,
Essas pesquisas contribuíram para evidenciar reconhecendo o caráter de vínculo ou mediação
crenças e valores, construções de conhecimen- de que esses fenômenos se cercam nas relações en-
to e a construção dos significados dados pelos tre a corporalidade em todas as demais dimen-
indivíduos à enfermidade. Deixam de abordar, sões da vida social, inclusive e eventualmente a
quando analisam os itinerários terapêuticos, espiritual ou transcendental (Duarte, 1998).
qualquer tipo de influência que possa ter a or- Neste caso, o trabalho etnográfico oferece ma-
ganização da produção/oferta de bens de servi- terial substantivo aos esforços comparativos,
ços de cura (oficiais e não oficiais) nas escolhas sendo-lhes secundários os múltiplos arranjos
terapêuticas e serviços, embora mostrem tam- ou variações que possam comportar as práticas
bém em dadas experiências de cura os modelos sob outras configurações simbólicas no inte-
religiosos de doenças (Rabelo, 1993). rior de situações ideológicas mais homogêneas
Pela via das narrativas, Silveira (2000) des- e que podem, em dadas esferas (no consumo,
vendou o significado do “nervoso”, analisan- por exemplo) e entre as novas gerações, vir a
do-o como experiência e linguagem sobre um configurar mudanças ou a conquistar novos
conjunto de aflições e problemas sociais e indi- contornos, estranhos aos valores holistas pre-
viduais, e compreendeu as explicações sobre valentes nas classes trabalhadoras, expostas
suas causas e os limites da biomedicina para li- ainda a futuras pesquisas.
dar com este fenômeno. Outra pesquisa mos- Os estudos deste autor reafirmam o quanto
trou o seu caráter polissêmico, associado a vá- a ideologia individualista não está presente na
rios signos: a violência e agressividade; a agita- cultura da classe trabalhadora, e não é casual
ção e impaciência; a tristeza e isolamento, que recusem o psicologismo, embora não o fa-
abarcando conjuntamente o “descontrole” e a çam em relação a todos os serviços e recursos
“fraqueza dos nervos” (Rabelo, 1997). O “ner- diagnósticos e terapêuticos ofertados pela me-
voso”, como experiência fragilizadora, foi visto dicina, que são sistematicamente demandados
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Nota
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