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Eu conto um pouco de história da minha vida...

EU CONTO UM POUCO DE
HISTÓRIA DA MINHA VIDA...
Eu me lembro muito daqueles tempos de despreocu-
pação, de uma vida calma, daquela tranquilidade e
que, no entanto, parecia não me agradar, pois queria
crescer, virar gente grande, para poder fazer as coisas
sem ter que ficar ouvindo os pais ralharem, dizendo
que isto ou aquilo não estava certo.
Também a vida não era mole. Eu devia ter entre sete
e oito anos. De manhã bem cedinho, ali pelas quatro
a cinco horas da manhã, já tinha que me levantar, no
melhor do sono, com o friozinho gostoso, aquele calor
das cobertas, que não sabia como tinha alguém com
coragem de sair e ainda mais, trabalhar. Lá fora esta-
va frio, um vento que começava a soprar muito cedo.
O pior de tudo é que ainda tinha aquele orvalho, que
molhava a gente todo. Ai, que preguiça! E lá voltava o
meu pai de novo, fazendo as suas ameaças, dizendo
que da próxima vez ia descer o couro. Não tinha jeito,
o recurso era mesmo levantar, mesmo com todo o pe-
sar do mundo. E depois ainda tinha que ir lá na bica,
lavar a cara naquela água fria. Ui! O corpo chegava a

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Eu conto um pouco de história da minha vida...

arrepiar só em pensar. A água tinha a vantagem que


tirava logo o sono. Antes de chegar até à bica, dava
uma parada no meio do caminho para dar uma mija-
da, descarregando logo a bexiga. Pelo ar frio a gente
começava já a tremer, não adiantava querer ficar
parado, fazendo hora. O trabalho começava cedo. Ah,
meu Deus, para que foi que inventaram o serviço! Às
vezes eu ficava pensando, será se todos os meninos
do mundo têm que fazer a mesma coisa? Levantar
cedo e logo ir para o serviço? Daí a pouco aparecia o
meu irmão (o José), que também teve que espirrar da
cama.
Não havia jeito de o velho deixar a gente na cama. Que
coisa, pensava eu! Bem, o jeito era lavar a cara e bus-
car o burro lá no piquete. Eta burro danado de velha-
co! Se a gente não levasse uma espiguinha de milho,
quem disse que ele deixava colocar o cabresto. Mas
também pensava eu, ele é que está certo, logo de man-
hã já tem que começar a trabalhar? Lá ia eu querendo
surpreendê-lo, pensando sempre que o bicho estava
dormindo. Lá chegando, pé ante pé, procurando não
fazer o menor ruído. Quando pensava que já podia
jogar o cabresto e pegar a outra ponta, o danado do
burro virava nas duas patas traseiras e saía corren-
do feito um raio. Ah seu miserável e lá ia eu correndo

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atrás do bicho. Dali pra frente era luta, eu querendo


ser mais esperto do que o burro. Era preciso encan-
toar o sem vergonha num canto da cerca. Depois de
muita correria, até que enfim conseguia chegar lá, no
canto da cerca, no mais longe. Eta burro, até parecia
que o bicho queria me castigar. E depois, com muito
jeito, fui chegando devagarzinho e o burro me olhan-
do, com as orelhas levantadas, parecendo até me go-
zar e sair na disparada de novo, mas logo comecei a
descascar a espiga de milho, fazendo barulho com a
palha, para que ele ouvisse e se interessasse pelo seu
petisco predileto. Aí é que achava o burro, burro mes-
mo, onde já se viu, deixar-se pegar e sair para o tra-
balho o dia inteiro só por causa de uma mísera espiga
de milho? A espiga eu tinha que oferecer ao burro e
ao mesmo tempo passar a corda pelo seu pescoço e
encabrestá-lo logo, pois, do contrário ainda teria que
voltar ao paiol, para pegar uma segunda espiga. Bom,
lá estava o pilantra pego e logo tratei de pular em cima
de seu pelo. Como era ruim de sela, o danado. Ainda
bem que ele tina muita força e ia girar as moendas do
engenho por um bom pedaço de tempo. A pior coisa
que tinha era aquela tal moeção de cana. Ficava mais
chateado ainda era porque o meu irmão ia ajudar ti-
rar leite e eu tinha que ajudar com o engenho, droga!

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E lá ia eu levando o burro para o serviço. Eu bem sabia


que ele não gostava muito daquilo e por isso precisava
ficar de olho, para que ele não fizesse nenhuma arte.
Bem ou mal, o burro estava atrelado e fazendo gi-
rar as moendas. Não havia outro animal que tivesse
mais força do que ele, por isso, apesar de toda a vel-
hacaria, era o preferido para aquele tipo de trabalho.
Enquanto os homens começavam a mexer nas for-
nalhas, preparando fogo para cozinhar a garapa, lá
ficava eu enfiando cana nas moendas e o burro gi-
rando aquele pau ligado ao eixo central do engenho.
Às vezes eu ficava danado de bravo, principalmente
quando alguns primos que moravam na cidade resol-
viam aparecer lá na fazenda. Estes ficavam dormindo
até depois das sete horas e ainda resolviam aparecer
por lá para beber garapa. Bem que a garapa era uma
delícia, não havia a menor dúvida, fresquinha e doce,
tomada àquela hora, que a cana estava no ponto, não
havia quem resistisse. Me dava vontade era de partir
umas boas canas na cara deles, pois os dorminhoc-
os só tinham levantado àquela hora e ainda tinham
o desplante de dizer que haviam levantado cedo só
para tomar uma garapinha. Ah, seus sem vergonha,
seus preguiçosos. É bem verdade que acabava não fa-
zendo nada, estava mesmo era doido para sair dali,

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Eu conto um pouco de história da minha vida...

sair correndo para os matos, a fim de poder vadiar


um pouco. Mas, cadê a coragem? Bem e lá iam os vag-
abundos fazer justamente o que eu estava doidinho
para fazer. Ainda bem que me vinguei, pois um deles
passou muito perto do burro, este lhe meteu um coice
na bunda, que o danado saiu gritando como coisa que
estava levando o maior cacete. Era muito comum isto
acontecer, pois aqueles meninos bobocas da cidade
não entendiam nada de roça e muito menos de bur-
ros. O que eles sabiam mesmo era contar vantagem.
Ainda bem que eles não iriam embora logo e ficariam
até no domingo, dia de folga daquela labuta toda e
que, após ajudar a tirar o leite, a gente podia cair no
sengo.
Mesmo nos dias de semana, após um dia duro de tra-
balho, até o sol se esconder, ainda achava tempo de
brincar, até lá pelas oito, dez horas da noite, princi-
palmente quando estava aquela molecada toda. Eles
podiam ser muita coisa lá na cidade, mas, ali na roça,
a gente é que mandava. Os coitados dos bezerros é
que sofriam, pois quando havia lua, a gente ia brincar
de montá-los. De vez em quando havia um berreiro de
um moleque que caía no chão, esfolando a cara toda.
Era só passar um tempinho e lá estávamos todos de
volta, enquanto não vinha uma voz autoritária lá de

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Eu conto um pouco de história da minha vida...

dentro mandando deixar os bezerros em paz. Era lar-


gar dos bezerros e partir para o pique esconde até a
voz de novo mandando parar a brincadeira, que já es-
tava na hora de dormir, a noite era pouca. Todo mun-
do cansado ia para dentro de casa, passava uma água
na cara, lavava os pés e pra cama. Não tinha nada de
tomar banho. Num minuto, estava todo mundo dor-
mindo, para acordar cedo no dia seguinte.
Eu estava crescendo e além de trabalho, estava
começando a hora de também aprender a ler. Por ali
não havia escolas. Minha mãe tinha começado a ensi-
nar a gente, mas o tempo quase não lhe sobrava. Por
isso contratou uma moça que morava lá na fazenda
(filha da tia Corina) e que frequentara a escola na ci-
dade até o quarto ano. E lá iniciamos nós as nossas
primeiras letras. Recebemos cada um de nós e mais
alguns garotos que moravam na fazenda ali por per-
to, uma lousa e um lápis de pedra. Que coisa estranha
eram aqueles símbolos. A gente começou a aprender
as primeiras letras, para nós o famoso a, e, i, o, u. Até
aprender aquelas primeiras letras, foi um sacrifício.
O primeiro livro se chamava Minha Primeira Cartilha
da Infância.
Para aprender o alfabeto, a cartilha ficou um farrapo.
Não havia meio de aprender aquelas primeiras let-

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Eu conto um pouco de história da minha vida...

ras todas, difíceis toda vida. Ainda a gente aguentava


porque era melhor estudar do que ir para o trabalho
duro da roça. Lá se foram alguns meses, mas con-
seguimos aprender a ler e escrever e fazer algumas
contas. Já não dava para ficar na roça, pois a nossa
professora não tinha muito mais coisas para nos en-
sinar. O jeito era a família mudar-se para a cidade. Lá
foi o papai procurar uma casa para morarmos.

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02 Lembrança de Pessoas

LEMBRANÇAS DE PESSOAS

xar de mencionar as lembranças de algumas pessoas.

casou maduro, como se dizia na época, com 40 anos e


os seus filhos não tiveram muito contato com os avós,
principalmente os paternos, pois naquela época a vida
das pessoas era bem mais curta. Alguma coisa, muito
pouca, me ficou na memória do meu avô paterno, o

que o chamávamos de tio Zezé (o nome dele era José


Rodrigues Neto). O Barbosa creio que veio da avó.
O que me lembro do vovô era que ele já estava do-
ente e a gente ainda morava na fazenda. Ele só ficava

muito a atenção era um padre que vinha toda semana


à fazenda, creio que o nome dele era Padre Elói, trazer
a comunhão para ele. Ele vinha numa moto enorme,
que fazia um barulhão danado.

ele morreu, porque o papai anotou em um livro que

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02 Lembrança de Pessoas

ele tinha. Se me lembrasse de mais de alguma coisa

ser nenhum pé rapado não, pois o papai estudou no


Colégio Diocesano de Uberaba e tinha uma instrução
muito boa para a época. São pessoas que nos legaram
essa vontade de estudar, conhecer as coisas. A descen-
dência do vovô tem gente esparramada por todo esse
Brasil afora, veja só a nossa família e os demais que
nem conheço.
A vovó era conhecida como tia Bem, mas essa não
a conheci em vida. Somente algumas histórias de que
era baixinha e muito braba. De acordo com a mamãe
ela gostava de mascar fumo de rolo, motivo pelo qual
o papai tinha muita ojeriza de quem fumava.
Os nossos avós maternos já tiveram uma convivên-
cia maior com a gente, pelo menos os mais velhos. O
vovô Cirilo (Cirilo Gonçalves Ribeiro) era marceneiro,
tinha uma habilidade muito grande em trabalhar com
madeira. O Marcílio deve ter herdado isso dele. A vovó
Mariana era muito ranzinza e não gostava de criança.

O papai mandou fazer uma casa para eles no fundo


do quintal, quando estávamos morando no bairro do
Rosário, em Araguari. O vovô bebia muito, então ele
morreu logo. Com a morte dele, a vovó foi morar com

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a tia Gersonita, em Uberlândia. Ela, por incrível que


pareça, gostava muito das meninas, a Rosemary e a

época era muito difícil de viajar. Só existia o trem e


para fazer a viagem era aquele alvoroço. Lembro-me
que a gente foi algumas vezes até à casa da tia Gerso-
nita. Para a viagem era preciso fazer a matula, isto é,
preparar alguma coisa para se comer, pois a viagem

sem comer algo para encher o bucho. Não sei qual era
o grau de instrução deles. Pelo menos o vovô sei que
tinha alguma instrução.
Mas a pessoa que mais participava da vida da gente
era a tia Corina. Ela era a alegria em pessoa, nunca a
vi triste. Ela ia da cidade até à fazenda a pé. Eram uns

andar a pé. Os filhos dela eram nossos companheiros

ele era um pouco mais velho, não se entrosava muito

de carnaval, a tia Corina aparecia na roça cantando as

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02 Lembrança de Pessoas

fazer uma fogueira enorme e levantar o mastro com


as bandeiras de Santo Antônio, São João e São Pedro.

tipo. Milho assado na brasa, batata doce, doce de leite,


pé de moleque, canjica. Era uma festança danada. Até

a gente, aqueles caipiras bocós. Era uma maravilha.

marido da tia Corina estava morando numa casinha


na fazenda, enquanto construía uma casa para ele na

pois lhe apareceu uma doença nas vistas, que não teve
jeito, deixou-o cego em pouco tempo. Mudaram para
a cidade e foram morar na casa inacabada até o fim da
vida. Ele morreu intoxicado com veneno utilizado nas

muitos anos depois.


Quando mudamos para a cidade, essas festas todas

não gostava de fazer festa de S. João na cidade.


Há uma passagem na roça com a Nair, quando ela

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02 Lembrança de Pessoas

dela e o papai pegou um espeto, esses de duas pontas


e atravessou a gia com ele e a jogou longe. Uma outra
pessoa que a gente gostava muito quando criança, era

com a gente. O papai gostava muito dele porque ele


era o faz tudo na fazenda. Construía porteiras, fazia
as casas para guardar mantimentos e para a fábrica

farpado e também era o nosso barbeiro. Outro era o


Chico Vieira, que era o carroceiro da fazenda. Ele era
quem ia buscar as colheitas nas roças, buscar madeira
no mato e ajudava também na lida com o gado, como
tirar leite, pegar os bezerros para vacinar e castrar.

mundo) era de pouco mais de um ano e nós nos dáva-

era muito raro e nunca passava de alguns empurrões.

me lembro porque, só sei que quebrei uma garrafa na

a primeira. Era uma surrinha de nada, pois ele pegou


uma vara de marmelo, um galho fino da planta, que

pra burro. O José era muito mais esperto do que eu.


Acho que eu era um tipo de escudeiro dele. Como se

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02 Lembrança de Pessoas

os acidentes aconteciam muito mais com ele do que


comigo. Ele queimou a perna com melado de cana, foi

mudamos para a cidade, quebrou um braço ao cair de


uma árvore que ficava na praça. O Miguel ficou pouco
tempo com a gente, pois ele foi para o seminário, jun-

sei como a Maria Alves conseguiu convencer à mamãe


para deixá-lo ir. Nem sei se ele sabe. Mesmo morando
na cidade, continuávamos trabalhando na roça, nas

um caminhãozinho e tinha aprendido a dirigir mais


ou menos e nos levava para a roça em todas as nossas
férias escolares. Era um trabalho duro mesmo, pois já
estávamos bem maiores e já dávamos conta de fazer
serviço de adulto.

e cadê de o papai querer dar dinheiro. Tínhamos de


descolar com a mamãe. No princípio só existia o Cine
Rex, um cinema cheio de frescura, que precisava usar
terno e gravata para poder entrar e era bem caro. Logo
construíram o Cine Lux, maior e mais barato, sem as
exigências do outro. Como a gente só tinha o dinheiro
do ingresso, não dava para comprar mais nada, nem

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02 Lembrança de Pessoas

um saquinho de pipoca. Mas o José sempre arranjava


algum dinheiro a mais e chegava cedo para comprar
alguns ingressos a mais e depois sair vendendo para

cambista. Precisava tomar cuidado com os fiscais do


cinema porque senão eles tomavam o ingresso. Tam-
bém ele vendia gibi e conseguia arranjar uns trocados
para comprar alguma outra coisa a mais. Nós dois nos
dávamos bem era no jogo de bolinhas de gude. O José
era o líder e quase sempre ganhava, mas havia os dias

ganhas da molecada. Para guarda-las, construíamos


uns buracos no chão, que chamávamos de caverna e lá
as deixávamos. Quando mudamos da casa de Fátima,
esquecemo-nos de tirá-las do buraco e lá ficaram.

curto, que não dava para a gente curtir a vida com ele.

Rosário. A única vantagem era a água, assim mesmo


só uma bica no meio do quintal. Não havia banheiro,
nem privada nem chuveiro. A privada era um buraco
no chão onde a gente ia fazer as necessidades. Banho

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02 Lembrança de Pessoas

era de bacia e não era todo dia. Na roça também não

bananeiras. Hoje esse conforto todo em que vivemos


e ainda reclamamos que não está bem.

ir a pé, tinha que levantar muito cedo. Às vezes havia

debaixo daquele sol queimando. Já que estou falando


do José, há duas passagens no colégio que merecem
registro. Uma vez chegamos atrasados e os portões já

não tiveram dúvida, pularam o muro e foram assistir


às aulas. Havia inclusive provas. O bocó aqui não teve
coragem de pular e acabou perdendo as provas.

buzina com o José e um amigo dele, não me lembro

ateus. O padre ficava uma fera e tentava de todas as


maneiras fazê-los mudar de opinião, mas que nada. O
José também era bom de bola e fazia parte do time do

militar, fazendo o Tiro de Guerra, que era uma forma

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02 Lembrança de Pessoas

tel. No encerramento do ginásio tinha festa, era uma


verdadeira festa de formatura, em que todos tinham
que ir de terno. Como o José não gostava de ciências
exatas, como matemática, física, química, ele foi para
Uberlândia para fazer o curso Clássico, especial para

Direito, Magistério, Filosofia e afins. Logo depois foi


para o Rio e de lá conseguiu uma bolsa e foi parar na
Europa, na Checoslováquia, para ser mais preciso. A
partir daí só nos comunicávamos por carta. A nossa
convivência não existiu mais. Ele foi para a Europa e
eu fui para a roça. Passei um ano inteiro na roça, pen-
sando no que fazer. Só me decidi continuar a estudar
porque tinha que servir ao Exército e para não ficar
sem fazer nada, voltei a estudar. Essa foi a primeira
encruzilhada de minha vida. E que encruzilhada. Daí
para frente é outra história e acho que essa eu não vou
ter coragem de escrever nada.

da infância do que da minha juventude. Muita coisa


eu quis esquecer mesmo, porque não me agradavam
muito. A luta diária era muito difícil.
Estou me lembrando de uma passagem com José.

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02 Lembrança de Pessoas

na cidade. Ficamos lá quase um ano, quando a Nair


nasceu. Eu, o José e o Miguel já éramos mais cresci-
dos e aproveitávamos o tempo sem fazer nada para ir
brincar no armazém do Antônio Arantes, casado com
uma sobrinha do papai. Ele só tinha um filho e como

papai nem quiseram ouvir. Voltamos logo para a roça


e fomos morar numa casinha isolada nos fundos da
fazenda. Logo, logo os criadores de zebu quebraram a
cara, quando o Getúlio Vargas disse que gado para ele
de valor era pelo peso e não pelas orelhas compridas
ou chifre grande. Deixaram o gado todo para o papai e
as dívidas, que merecem contar um pouco sobre elas.

passou a valer o quanto pesava, ou seja, quase nada.


O credor era o Banco do Brasil, que mandava fiscais
todo ano para ver como estava o rebanho. Se uma rês
morresse tinha que botar outra no lugar. Não podia
vender nada, mas tinha que pagar o banco todo o ano.
Mas o brasileiro sempre dá um jeito e naquele tempo
não foi diferente. O papai vendia as vacas de descarte
e quando dava, colocava outra no lugar. Quando não
dava pedia emprestado ao vizinho e marcava o animal

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02 Lembrança de Pessoas

com piche, ao invés de a ferro quente ou então solta


algumas e dava uma volta no pasto e trazia de novo.
Não sei se os fiscais sabiam da mutreta e se faziam de

e assinou uma lei perdoando a dívida de todo mundo.

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03 As frias que o papai entrou com os nascimentos e outros que tais

AS FRIAS EM QUE O
PAPAI ENTROU COM OS
NASCIMENTOS E OUTROS
QUE TAIS
O “seo” Chico, como todos chamava o papai, ou tio

como os parentes mais próximos era querido por todo


mundo. Ele tinha um coração enorme e ajudava todo

O papai nunca deixou de pagar os seus empregados,


pelo contrário, eles é que viviam passando a perna no
papai.
No entanto quem passou a perna no papai mesmo
foram os irmãos Nascimento, filhos da Maria Alves,
principalmente o Zé, que todos conheciam como Zé
Piado. O papai sempre foi muito precavido e o meio

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03 As frias que o papai entrou com os nascimentos e outros que tais

para manter tantos animais na fazenda ele os vendia


e depositava o dinheiro no banco, que naquela época

e lá aparecia ele rodeando, pedindo um empréstimo.

emprestar, mas acabava emprestando. Isso era quase


todo o ano. Receber que é bom, nada. Sei só que eles
compraram fazenda em Quirinópolis e lá instalaram
uma fábrica de metalurgia, para construir ferragens
para construção e não pagaram quase nada ao papai.

marido da Judite, nossa prima. Aprendeu com os Nas-


cimentos e também foi para Goiás, não sei a cidade, lá
foi ser gerente de uma fazenda de uma viúva e deu o
cano nela também, acabando ficando rico.
O papai tinha comprado um caminhão Studebaker,

em uma casa na Av. Coronel Belchior de Godói, aquela

um comprador, um tal de Antônio, um crente, como

comprar o caminhão, o Ormindo estava presente, era

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03 As frias que o papai entrou com os nascimentos e outros que tais

ele quem dirigia para o papai. Ele disse para o papai

dizendo. Dito e feito, não pagou mesmo. Acho que foi


isso que o estimulou a dar o cano no papai, pois se ele

que o Francisco ficou uma fera com o papai.


Que se há de fazer, ele não tinha nascido para ser
um homem rico, de bens materiais, mas foi rico em
bondade.
Estou pensando em escrever mais algumas coisas,
mas tenho tido muita preocupação aqui em casa. Só

ainda me deixa muito apreensivo. Considero Brasília


uma cidade muito difícil e só ainda estou aqui porque
o Marcelo está nos dando muita assistência.
Ainda havia o Quente, nunca soube o nome dele de
verdade, que era mascate de tourinhos, ele os levava
lá para a fazenda do papai para vender ou trocar por
outro tipo de gado. Geralmente dava negócio e ainda

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03 As frias que o papai entrou com os nascimentos e outros que tais

calda feita à base de casca de barbatimão. Geralmente


o animal ficava curado
O Jeová era outro freguês, mas só sabia explorar, ele

sempre caía na conversa dele. Às vezes ele chegava ter


quase tanto gado quanto o papai.
Nesse tempo, década de 30 a 50, quem nascia tinha
uma expectativa de vida em torno dos quarenta anos.

chegar até os oitenta ou mais.


Era uma doençada que não acabava mais. As mais
comuns eram as verminoses, mas também havia cru-
pe, maleita (malária), disenteria, caxumba, sarampo,

gripe, pneumonia e a campeã em mortandade, prin-


cipalmente de jovens, a doença de Chagas. Havia uma

parteiras, fora os natimortos, como eu tive uma irmã

médica já com quase dois anos.


Não havia esgoto e nem privada, nem a tal de fossa
negra. Essa só na cidade e olhe lá as condições. Para

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03 As frias que o papai entrou com os nascimentos e outros que tais

não sair no sereno à noite, se usava o famoso penico.


A alimentação também era muito precária, sendo

mesmo.

vivendo num paraíso.

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04 A Maria Alves

A Maria Alves

embora ela fosse casada com o tio Jorge, que não era

pelos cotovelos. Para ir até à fazenda do Perobal era


preciso descer umas serras que, apesar de não serem

dos lados só ficavam os despenhadeiros, cobertos de


uma loresta de perobas, bálsamos, cedros, aroeiras,

e Ritinha. Como era ela que decidia, queria vender a


fazenda para ir para a cidade e por os filhos na escola.

um pouco de açúcar, cachaça e alguma madeira.

de serra mecanizada para produzir as tábuas. O que

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04 A Maria Alves

exigia um esforço danado para poder abrir as toras de


madeira e produzir o tipo de madeira que se desejava,

que acabou vendendo as terrinhas e se mudou para a


cidade. Na cidade ela tinha que se virar para ganhar
a vida, pois o tio Jorge só fazia uns negocinhos daqui
e dali e era que tinha de se virar para fazer dinheiro.
Por esses anos, década de 50, o tio Juca ficou viúvo,
a sua mulher (tia Carolina, creio que era o seu nome)
havia morrido e deixado uma penca de filhos. Sebas-
tião, Vicente, Zé Gabriel, Maria, Judite e Raulino. Só
o Tião já tinha condições de se virar sozinho, embora
ainda fosse muito novo. O resto era só menino e o tio
Juca não tinha condições de cuidar deles. Foi aí que
apareceu a Maria Alves. Levou todo mundo para sua

e também arranjou escola para todo mundo. Os seus


filhos já estavam crescidos e ela pôde cuidar da meni-
nada. Ela era enérgica mas tratava todo mundo bem.
O tio Juca arranjou uma outra mulher, mas ela dizia

filho para ele. Ela se metia também na vida do papai


e vivia dizendo para ele se mudar para a cidade, pois

escola. Aí a Maria Alves começou a arranjar colocação

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04 A Maria Alves

para os filhos do tio Juca deu um jeito de enviar o Zé


Gabriel para o seminário e juntou o Miguel também.

tinha pouco mais de oito anos. Lá se foram eles para


o seminário em Ferraz de Vasconcelos. Acho que isso
foi uma judiação que a Maria Alves fez, mas naquela
época era o sonho de toda família ter um filho padre e

da igreja de Fátima e a Maria Alves morava na casa ao

os filhos do tio Juca. Casou a Maria com o Leodolfo e


a Judite com o Ormindo, este tinha trabalhado para
o papai. Apesar de ser muito enérgica, também tinha
seus momentos de bom humor. O seu filho Zé Piado
se apaixonou por uma moça que não era muito bem
vista pela sociedade, mas que não muita pelota para
ele e por isso ele vivia chorando pelos cantos e a Maria
Alves ficava imitando o seu choro para todo o mundo,

acabou se casando com ela e tiveram uns doze filhos.


O Raulino, o mais novo se formou em Agronomia, não
sei como ela conseguiu. Ela vivia vendendo peças de

26
04 A Maria Alves

e colchas feitas de retalho. Através da Ritinha, que se


tinha formado professora (normalista) nos conseguiu
vaga na escola experimenta do Colégio das Irmãs, a
Escola São Luiz. A Maria Alves não tinha recursos mas
conseguiu criar os seus filhos e os órfãos do tio Juca e
ajudou muito o papai a nos enviar para a escola. Ela
tinha uma ascendência sobre o papai que até eu não
entendo. Quando retornei a Araguari, depois de me

é quem cuidou dela já nesse final de vida. A última vez


que a vi, foi quando o Zé não encontrou ninguém para
lhe aplicar uma injeção e ele me foi buscar para fazer
a aplicação. Foi a última vez que a vi com vida.

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05 Vida na Roça

VIDA NA ROÇA

para fazer. Brincar de pique, subir nas árvores, enfim,

trabalho. Seis horas da manhã era tarde e seis horas


da tarde era cedo para se largar o trabalho. Como se
trabalhava. Era juntar as vacas para tirar leite, ajudar
a arar as roças para plantar, capinar, cortar lenha no

Acho que se conseguia escapar do parto, um menino


daqueles dificilmente morria. A não ser por acidente.
Foi um desses que levou a minha irmã.
Uma empregada a deixou cair e ela quebrou a espi-
nha. Demorou algum tempo, mas acabou morrendo.
Outra foi durante o parto. Já não sei quantos filhos a
minha mãe tivera. Acho que era quinta. Foram duas
mulheres seguidas. Coincidiu que o parto dessa irmã
foi feito sem a parteira, feito pelo meu pai que, porque

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05 Vida na Roça

a criança estava de “fasto”, isto é, os pés apontaram

ninguém para ajudar, o parto demorou e a irmãzinha

muito vagas e cheias de lapsos.


Como menino não podia ver a mãe dando à luz, a
gente só ficava ouvindo os gemidos. A gente às vezes
ouvia o choro do neném. Naquele dia não chorou. Só
o silêncio. A gente só via o pai entrando e saindo do

acontecendo? Parece que depois de tudo ter passado,

era tardezinha. Não deixaram a gente ver o neném. Só

mais. Mesmo de longe a gente ficava observando. Vi


quando papai colocou a irmãzinha numa caixa, toda
enrolada em panos, fez uma alça com uma corda e a
deixou ali, em cima da mesa. Foi até o curral, selou o
cavalo, voltou à sala, pegou a caixa, montou no cavalo
e saiu. Uma imagem não me foge da memória: eu, ali,
com a porta entreaberta, olhando o meu pai montar
no cavalo, segurando aquela caixa, passar a corda no

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05 Vida na Roça

pescoço, tipo tiracolo, abrir a porteira, virar as costas


e partir. O dia já estava escurecendo e fiquei olhando

sem dar um olhar para trás. Não sei o que ele sentia

ele que não expressava os seus sentimentos, deve ter


sido duro, muito duro.
Mais de cinquenta anos depois, numa sessão de um
centro espírita de Araguari, estas coisas foram ditas

recentemente. A minha irmã que morrera em conse-


quência da queda e da fratura na coluna vertebral, foi

civil e constatar a data de sua morte. Quanto à outra


não consegui descobrir nada. A informação de que ela
teria sido enterrada na fazenda, logo acima de umas
mangueiras e ao pé de uma cruz que lá existia não foi

me impressionou foi a localização do lugar. A mulher


de um primo meu me confirmou essas informações

que ela havia sido enterrada na fazenda. Isto não era


novidade, pois existia um local com vária cruzes onde

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05 Vida na Roça

o povo dizia que era um cemitério de crianças. Aliás,


a referência a esse cemitério era constante em casa,

na meninada, quando estavam fazendo muita bagun-


ça. Como são boas as lembranças daqueles tempos de

grassando uma guerra horrível. A gente pelo menos

informações, pressões, opressões, angústias, apertos,

crença, quase nenhuma esperança, muita destruição,


pouca compreensão e muita depressão. Hoje não há
muita diferença entre campo e cidade, a não ser pelos

Poluição existe por todo lado, destruição e violência se


equivalem, miséria e opulência se distanciam.
Naqueles meus tempos de criança era muito bom
viver, embora, às vezes fosse um pouco monótono.
Lá fomos nós aprender a ler e escrever. Que coisa

de limpar e quando não se conseguia fazer as letras


direito, era só apagar. De tanto repetir, a professora
insistir, alguma coisa ia aprendendo. A cartilha é que
sofria. Mesmo lavadas as mãos ainda restava alguma

31
05 Vida na Roça

terra e as folhas de papel iam ficando vermelhas e as


pontas enrolando e não voltavam mais ao normal. A
professora dizia que eram orelhas de burro, só que os
burros têm orelhas em pé e não enroladas.

professora também só tinha o quarto ano primário,


feito em escola pública. Não tinha muita coisa mais
para ensinar para a gente. O que papai tinha resistido
por tanto tempo, não dava para adiar mais. Tinha de

os colegas, tudo diferente da roça. Menino da roça e

meninos da roça e da cidade tinham. Aprender o que


não presta, para menino então, é a coisa mais fácil do
mundo. Bem, deixemos isso pra lá, pois mudar para a

Como papai não arrumara casa para morar na cidade,


fomos, eu e o José deixados na casa de parentes, pois
as aulas iam começar e não devíamos perder o início
delas. Fiquei na casa da tia Iracema e o José na casa do
Ormindo, casado com a prima Judite.

32
05 Vida na Roça

bastante. O marido da tia Iracema era cheio de tiques


nervosos e manias. Mais tarde, soube que também era
pederasta. Era pederasta e tinha dois filhos. Aqueles

aquilo que chamava de desvio de conduta. A tia, como

e muito menos iniciativa. Fazia o que o marido queria


e mandava. Pobre tia.

diferente e a minha timidez aliada à bobice de rocei-


ro, tornaram as coisas mais difíceis. De manhã, bem
cedo ia para a escola. Era uma escola experimental do

suas aulas. Era uma boa escola. Só estudava menino.


No colégio, eram as meninas. Era a mania de os reli-
giosos separarem os meninos das meninas. Naquele

que ser assim mesmo. Por quê? Não importa, se tiver


oportunidade, talvez comente.

Eu e o José fomos classificados para o primeiro ano


33
05 Vida na Roça

adiantado e o Miguel, para o primeiro ano atrasado.


A professora era uma irmã enorme, com uma roupa

severa, braba mesmo, como dizia a molecada. Não se


podia distrair um segundo, que lá vinha ela, ralhando,

Conseguimos aprender o que nos foi ensinado. Até a

xucro. Conseguimos captar os seus princípios, como


a soma, a subtração. Passamos para o segundo ano. A

carinho com as crianças. Todos a adoravam. Que bela


professora, a gente aprendia sem fazer força. Os seus

com muita naturalidade.


O terceiro ano foi mais difícil, a professora também
era severa, não tanto quanto a freira. Mas passamos
de ano. A minha melhor lembrança, no entanto, ficou
para o quarto ano. Era bom aluno, estudioso, sempre
com boas notas. Nenhuma professora me tinha dado

ingressado como nova professora. Era linda, educada


e muito atenciosa com os seus alunos. Devia ter em
34
05 Vida na Roça

torno de vinte anos. Creio que foi a minha primeira

ver como estava com as contas, os desenhos e outras

deu aula no primeiro semestre, pois no segundo ela se


casou. Foi uma pena, pois além de perder uma ótima

a tenha visto mais uma ou duas vezes. A última, me


lembro bem, estava na rua, quando, de longe a avistei.
Lá estava ela, não tão bonita como antes e com uma

vi a professora Stela.
Terminado o quarto ano era preciso fazer o exame
de admissão ao ginásio do Colégio Regina Pacis. Era
um pequeno vestibular.

35
06 Roça sem Cachorro

ROÇA SEM CACHORRO

não era muito numerosa, pois papai vivia dizendo que


muito cachorro dava prejuízo, pois comiam muito e
ficavam sem vergonha. Tanto assim que cachorra só
por acidente, pois elas pariam e era aquela cachorrada
de uma vez só. A maioria dos cachorros era vira lata

faltavam por lá na fazenda. Tanto assim que os gatos

cachorros ou por causa da gente mesmo, que gostava


de aprontar com os bichanos.

gatos, brincar com eles, mas também fazia algumas

deixava a gente fazer com ele o que bem entendesse. E


era nessas horas que os bichos passavam apertado. Eu
amarrava um punhado de palha de milho no rabo dos
bichanos e tacava fogo. O gato saía feito um foguete,

36
06 Roça sem Cachorro

deixando um rastro de fogo atrás dele. Aquele, porém,

e não dava uma segunda chance para se fazer dele um

a mesma brincadeira, pois eram muito mais apegados

sobre os gatos um tio sempre gostava de contar uma


história sobre eles e Jesus. Dizia ele: “havia um padre
que gostava muito de gatos e tinha uma porção deles”.

nada dos gatos era o sacristão, pois era ele que tinha

sujeira e tratar dos bichos quando adoeciam. O padre

brincando e pulando por todos os lados. O sacristão

pelo menos de um pouco daqueles gatos. Mas, nada.


De vez em quando ele prendia um punhado de gatos
num saco e ia longe soltar os bichos. Não adiantava,
pois no dia seguinte estavam todos de volta. Matar ele
não queria e não podia, pois o povo dizia que quem

tanto de gato então, seria azar para muitas vidas. Até


que o padre teve que fazer uma viagem e o sacristão

37
06 Roça sem Cachorro

ficou matutando uma forma de poder se desfazer dos


gatos. Havia na casa um salão grande, que podia ser

para reunir todos num mesmo lugar, pois uma ideia


lhe aparecera e dessa o padre não tinha jeito de fugir.
Quando a gataiada estava toda no salão, o sacristão
fechou as portas e munido de um chicote começou a
espancar os bichanos e a gritar: Jesus Cristo, gatos!

que o senhor tem aqui não gostam de Jesus Cristo.


O padre respondeu: - que é isso sacristão, eles são

Então o senhor grita o nome de Jesus Cristo para


eles, para o senhor ver o que acontece.
Eu não acredito nisso, mas está bem. Quando for a
hora do jantar, vou fazer o que você está falando.

volta do padre, comendo os petiscos que o padre lhes

à sua volta, o padre, de repente deu um grito: JESUS


CRISTO, GATO!

38
06 Roça sem Cachorro

como loucos. E o sacristão todo satisfeito comentou:

É, você parece ter razão, não vou querer mais saber


de gato por aqui. Coitados dos gatos, o padre nunca
mais quis saber deles.

39
07 Professora da Roça

PROFESSORA DA ROÇA
Só para me lembrar, a nossa professora da roça era
a nossa prima, a Jandira, filha da tia Corina. Acho que
ela foi uma heroína, conseguindo enfiar na cabeça da

O Miguel era o mais novo, mas nem por isso o menos


peralta. A Jandira ficava bem em cima da gente para
poder explicar como se desenhava as letras e o Miguel
em vez de prestar atenção foi pegar nos peitos dela.
Ela deu um pulo e uma varada na sua mão, que ficou

não fosse com ele.


O papai tinha arranjado um empregado novo, cujo

toda noitinha a gente ficava em volta dele e ele come-

do Pedro Malasartes, que era um pilandra de marca


maior. Aprontava com todo mundo, até com o rei e a
princesa. Mas ele não ficou muito tempo na fazenda
e acho que era muito paquerador e logo se envolveu

40
07 Professora da Roça

histórias para a gente. As que mais gostávamos eram


as do tio Maneco. Ele sempre vinha arrumar as tralhas
do papai para fazer açúcar, pinga e rapadura. A gente
até se esquecia de ir dormir, pois além das histórias, a
mamãe fazia um montão de biscoito, leite queimado

histórias que a gente mais gostava eram as do Gato


de Botas, Gata Borralheira, Branca de Neve e tantas
outras. Isto tudo acontecia no mês de julho, que era

próximo possível do fogão a lenha.


Era também uma época de trabalho duro. Logo de-

levantar cedo, muito cedo mesmo, três a quatro horas

Depois de cumpridas todas essas tarefas, ali pelas dez


horas, almoço. Depois, pegar os bois e ir buscar milho
nas roças. A gente só ia ajudar, pois pegar no trabalho

de espigas de milho para encher o carroção, era feito

bois fazendo força, puxando aquele carroção pesado,

41
07 Professora da Roça

volta pelas encostas, tornando as distâncias maiores,


pois uma viagem de uns oitocentos a mil metros era
preciso percorrer umas quatro a cinco vezes a mesma
distância. O carroção chegava e era descarregado na
porta do paiol. Aí o serviço sobrava para a gente, a me-
ninada. Pegar aquele milho todo e jogar para dentro.
Era uma piniqueira, uma coceira pelo corpo todo. As

recolhêssemos o milho todo não podíamos parar. Era


o mês de julho inteiro naquela labuta. À noite, o corpo

O tempo era frio, mas não dava para ficar sem tomar
banho, pois com aquela piniqueira toda, não se con-
seguia dormir. O pior é que o banho era na água fria,
na bica do monjolo. Que frio!
Mas o pior de tudo era ter de levantar cedo no outro

chorando, tínhamos que pular fora. Eu e o José, pois


o Miguel ainda estava muito novo e não participava
ainda daquele serviço mais duro e a mamãe também
não deixava. E tudo recomeçava. Trabalho a semana

tarefas com o gado, não havia tanta coisa para fazer, a

42
07 Professora da Roça

para rasgar as palhas e arrancar os grãos das espigas.


Depois do almoço, saíamos para brincar. Se não tem

de brincar. Mês de julho, palha de arroz esparramada

o gado comer durante a seca. Mas, enquanto as vacas


não as comiam, serviam para as nossas brincadeiras.
Fazíamos buracos nos montes de palha e lá ficávamos
um tempão, escondidos, às vezes chegando a dormir,
pois o local era confortável e aquecido. Quando isto
acontecia, ninguém conseguia encontrar o moleque,
pois os montes de palha eram grandes e muito cheios
de entradas, um ótimo esconderijo.
Como disse, a palha de arroz era para alimentar as

ficavam ali em volta. Logo, logo, devoravam a palhada

famintas e não tinham energia para sobreviver, muito


menos para produzir leite. Muitas vacas morriam ou
de fome ou de acidente. Aquelas que procuravam os

43
07 Professora da Roça

acabavam caindo e terminavam morrendo. Só se con-


seguia encontra-las através dos urubus, que ficavam

Já não havia bichos selvagens na região, a não ser os

suas vítimas preferidas os pintinhos. Às vezes a gente

da casa. Ele ficava voando alto, dando voltas no céu,


quando, de repente descia feito uma lecha e catava a
sua presa, levando-a para o topo de uma árvore aonde
ia se refestelar.

guerra, pois guerra para a gente era brincadeira. Por


exemplo, guerra de mamonas, um atirando mamonas
no outro. A molecada jogava um cacho de mamona e

por aqui. Estava havendo racionamento de açúcar na

44
07 Professora da Roça

isso, só ouvi falar de guerra quando mudamos para a

preciso. Elas tinham sentido os horrores da guerra e


contavam as histórias horríveis porque suas famílias

aprontando das suas.

ranchos cobertos de capim. Mesmo a nossa era muito

Não havia maior porcaria, porque os porcos comiam


a maior parte das merdas e nós comíamos os porcos.
De vez em quando se encontrava um porco cheio de
canjiquinha por toda a sua musculatura, quando era

não servia para se comer. Só se aproveitava a banha,


pois o toucinho era muito bem frito e matava todos
aqueles bichos que estavam na carne. Mas lombriga a

a gente tinha de tomar em jejum. Era horrível. Comia-


se também muita semente de abóbora. Pelo menos as

45
07 Professora da Roça

sementes, torradas, eram gostosas e gente comia com


gosto. Mesmo assim, era difícil controlar os vermes,

que era assim que se pegava lombriga mais fácil.


Lembro-me que, certa vez, estava indo com mamãe

Chamei mamãe e ela disse que era uma lombriga. Ela

cuja da lombriga. Ah! Que nojo!


O cabelo da gente era raspado, ficando apenas um

bol. Era raspado por causa dos piolhos, que era outra
praga que existia em abundância, assim como pulgas
e bicho de pé (tunga penetrans).
Escapar com vida naqueles tempos era bem mais

arroz. Só mesmo uma boa alimentação para resistir

catapora e machucado de todo tipo.

de sua perna ficou todinha sem a pele. Tratar como?


Levar para a cidade para consultar um médico? Nem
pensar. Seguia-se as receitas da roça mesmo. Colocar

46
07 Professora da Roça

folha de bananeira para refrescar, banha de porco, até


caldo de bosta de cavalo foi aplicado. Escapar de tudo

lugar, para estancar o sangue, açúcar ou pó de café.


Às vezes até terra servia. Sempre vinha também uma
boa lavada com sabão de cinza e papai não deixava de
aplicar limão com sal. Ai, ai, doía muito, mais do que o

a da varíola. Eram dois risquinhos no braço, com uma


pena de caneta e um pingo da vacina. Dentro de dois
ou três dias aparecia a pústula. Mas, pelo menos da
bexiga se estava salvo.

dessa conseguimos escapar, mas o gado não escapava

outras. Os cavalos estavam sempre com garrotilho, as


galinhas com caroço, peste e outras que a gente não
sabia o nome. Nos leitões era a batedeira. As plantas
tinham poucas doenças, pois a agricultura era pouco
desenvolvida e se plantava quase só para o consumo
próprio.

47
08 Vida de Menino na Roça

VIDA DE DE MENINO NA
ROÇA

60 a 70 anos atrás. Os adultos usavam e abusavam dos


meninos. Qualquer serviço corriqueiro, como juntar
lenha, dar comida para os porcos, apartar as vacas, era

medo do escuro e tudo culpa dos adultos, pois criança

distingue o bem do mal. As coisas poderiam evoluir


normalmente, com o conhecimento vindo aos poucos,

era muito difícil, para não dizer impossível.

nada não entendia e nem os adultos sabiam explicar.


As histórias de assombração eram as mais frequentes.

sem cabeça, o saci Pererê, além de muitos outros que


o próprio pessoal inventava, só para passar medo na
petizada.

48
08 Vida de Menino na Roça

mas há muitas de tristeza também. As crianças que

canto da própria fazenda. Como o próprio povo dizia

morria ao nascer, às vezes a mãe e o filho juntos, era


muito difícil escapar das doenças.

da, quando alguém tinha de passar por perto, à noite,

que se prezasse tinha que usar roupa branca. Por isso


todas as histórias se referiam a um vulto coberto de
branco pela fazenda, principalmente onde houvesse
um cruzeiro.

tínhamos que rezar um pai nossa e uma Ave Maria.


Aquelas rezas não tinham muito significado para nós.
A alegação era que se não rezássemos iríamos para o

quando a chuva não vinha. Sim, pois a natureza tem


os seus caprichos e nem sempre mandava a chuva na

49
08 Vida de Menino na Roça

folhas, as águas dos córregos quase desaparecendo e


os animais morrendo por falta do que comer.
O que o roceiro poderia fazer para amenizar o pro-
blema? As reservas de alimento para o gado já tinham
acabado. Era hora de recorrer ao que restava de verde.

que ficava verde. Lá íamos nós buscar as suas folhas


para dar para as vacas.

só restava rezar. E quem rezava eram as mulheres e as

rezas, parece que não tinham a humildade suficiente


para pedir aos céus a solução do problema que mais os
afetava. Mas as crianças, puras de alma e as mulheres,
sublimes pela sua fé, tinham a capacidade e a humil-
dade de pedir a Deus pelas chuvas. Colhiam lores dos
raquíticos jardins, folhagens dos brejos ainda úmidos
e latas d’água na cabeça, lá iam em romaria até a parte
mais alta da fazenda onde ficava o cruzeiro. Era real-
mente um grande sacrifício, pois a procissão era feita
em pleno meio dia, sol a pino, queimando a pele e os
pés, pois a maioria não usava calçado. Lá no cruzeiro,
após enfeitar o madeiro com as ramagens e limpar o
pé da cruz, todos se ajoelhavam e rezavam o terço. Era

50
08 Vida de Menino na Roça

sempre a chuva vinha, acontecendo, às vezes, de todo


mundo voltar molhado para casa. Mesmo chovendo, a
novena tinha de continuar até o fim. Logo que as chu-
vas chegavam, o verde brotava como que por milagre,

aspecto de deserto que aparecia por toda parte.


Com a chuva vinha a alegria, a fartura, tudo ficava

parindo os seus bezerros e estes, correndo de um lado

beirando às cercas de arame farpado, no momento de


sua queda.
Nada melhor do que brincar na enxurrada, depois
daquela chuvarada toda.

51
09 Tios

TIOS

área da fazenda mais dois irmãos do papai. O tio Juca


e o tio Aramis.
O papai tinha outros cinco irmãos e uma irmã. Os
tios João, Hildebrando, Juca (José), Antonio e Aramis
e a tia Malica, creio que o nome dela era Amélia. O tio
João tinha uma fazenda pelo lado do alto de São João,

pois ele morava longe e foi o primeiro irmão do papai


a morrer. A sua mulher tinha o nome de Fausta, mas
não era muito achegada à família. Eles tiveram uma

mora em Arguari, mas nunca tive muito contato com


ele. Trabalha como corretor de imóveis e é conhecido

assassinados por um psicopata que andou matando


muita gente nas fazendas de Araguari e sul de Goiás.
Ele era conhecido como bandido da cartucheira, arma
utilizada para cometer os seus crimes.

52
09 Tios

papai, inclusive tinham tido sociedade na fazenda. O


papai comprou a sua parte e ele ficou com as terras da
Cachoeirinha.

morava numa casa mais em baixo. Creio que foi o que


teve mais filhos, acredito que uns doze ou mais. A sua

sabia fazer quitanda como ninguém. Eles têm filhos


esparramados por todo esse Brasil, creio que só uma

mais em nossa terra.

tinha um pedaço de terra também. Ele ficou viúvo e


deixou uma porção de filhos. Os mais novos a Maria
Alves acabou de criar e as mulheres ela arranjou ca-
samento. Ele se casou com uma viúva, a Laudelina e

inventar de garimpar às suas margens.


O tio Antonio foi outro que tivemos muito pouco
contato, pois ele era comerciante em Araguari e quase
não tinha contato com o papai. Esse nem sei quantos
filhos teve.

53
09 Tios

A tia Malica era mulher do tio Diógenes. Eles mora-

para a cidade. Só tiveram uma filha, que se casou com


o Antonio Arantes, que além de ser fazendeiro, tinha
um comércio de atacado de cereais. Era um homem
rico e ficou mais rico ainda. A sua família é dona do
centro de Araguari.

Todos tiveram muitos filhos e mesmo os mais pobres,


como tio Juca e o tio Aramis, tiveram alguns filhos que
estão muito bem de situação, inclusive o José Gabriel,
que foi colega do Miguel no seminário. Está morando

sei se ainda o faz. Creio que ele deve estar beirando os

Os parentes da mamãe é que são numerosos. Acho


que eram quinze irmãos, vou tentar lembrar o nome
de todos. Corina, Orozina, Estelina, Celina, Iracema,

Goiás) e José (este morreu ainda jovem). Há uma irmã

avô passou por lá. Casou-se por lá e nunca mais deu


notícias. Consegui me lembrar do nome de 13.
Creio que a tia que mais sofreu, foi a tia Maria. Ela

54
09 Tios

teve duas filhas, provenientes de um relacionamento


com um tio. Uma foi criada por uma família que tinha

saber da mãe, que era quase uma mendiga. A outra foi


a Mariinha, que era deficiente mental, que creio que
a maioria a conheceu. Outra tia que sofreu muito foi
a tia Celina, pois era muito maltratada pelo marido.

55
10 Algumas coisas da infância

ALGUMAS COISAS DA
INFANCIA

felizes pelo término do ano escolar. Eu não. As férias


para os demais eram uma oportunidade de passear,

Férias para mim significava trabalho e trabalho pesa-


do na roça. Nas férias de julho ia para a roça ajudar a
colher milho, arar as terras para o plantio. Nas de fim
de ano, era para capinar, limpar as roças do mato, das
ervas daninhas. Trocava o lápis pela enxada, pela foice

do sol. Só tinha de folga os domingos. Não dava para

as tardes livres, depois de fazer as tarefas escolares. As


brincadeiras eram de acordo com a época do ano. Nos

brincávamos com água mesmo, apesar da bronca da

56
10 Algumas coisas da infância

gude, de rodar pião, subir nas árvores. Quando estava

da cidade. Não faltava o que fazer. Era muito melhor


do que puxar o cabo da enxada ou segurar o cabo do
arado.
Quando o papai comprou um rádio, foi uma festa.
Que maravilha! Mas eram poucos os programas que

Atlas, transmitido pela rádio Tamoio. Todos os dias,


à tardezinha, lá estávamos nós, colados os ouvidos no
rádio para ouvir as histórias do valente Capitão Atlas e
seus companheiros. Nem sempre era possível ouvir o

muito. Mesmo assim não desgrudávamos os ouvidos


do rádio. Logo em seguida havia o Jaguar, outro pro-

o preferido era o do Capitão Atlas, que tinha o Chicão,

engraçado. A namorada do Capitão Atlas era a Rainha


da Cachoeira e a sua maior inimiga era a feiticeira da
Lagoa Negra. Eram uns a 15 a 30 minutos de seriado

57
10 Algumas coisas da infância

de acompanhar os jogos de futebol também, com as


narrações empolgadas dos locutores que queriam dar
a sensação de que estávamos assistindo o jogo ao vivo.
As brincadeiras eram muito boas e a gente estava
sempre alegre, mas, vez ou outra, havia um aconteci-
mento que não estava de acordo com aquela alegria

que a gente olhava para ela como se fosse inatingível.


Apesar de estar com mais de dez anos, não ligava para

causava admiração pela sua beleza. Ela passava pela


gente com o nariz todo arrebitado, nem olhava, pois
havia uns moleques mais velhos que já lhe dirigiam

moleques mais novos, a seguiam dizendo “que linda,


minha deusa” ou coisas que tais. A molecada daquela
época dificilmente dizia palavras grosseiras. A linda
moça, no entanto, não parecia feliz. Seu olhar estava

rapaz. Creio que bem mais velho. Certo dia, quando


estávamos brincando na rua, observamos uma porção
de gente na casa da moça. Gente que entrava e saía,

58
10 Algumas coisas da infância

com o olhar triste e falando baixo. Ficamos curiosos e

formicida Tatu.
A gente conhecia bem a tal de formicida Tatu, pois

chegar perto, que o papai ralhava, pois era um veneno


muito perigoso e a moça tinha bebido aquilo. Como
podia? Uma moça tão bonita, jovem, cheia de vida. A

onde estava a moça. Lá estava ela, estendida dentro de


um caixão, sobre uma mesa na sala, ladeada de velas.
Pelas narinas e boca saía uma espuma vermelha, cor
de terra, apesar de estarem tampadas com chumaços
de algodão. Coisa macabra, horrível! E ainda mais que
ela tinha se matado! Nem o padre vinha para rezar. Os
pais dela estavam arrasados. O povo falava baixinho,
como se para ninguém ouvir: “ela vai para o inferno.
Nem rezar pela alma dela adianta”.
Quem se matava, naquela época, não importava o
motivo, ainda tinha que amargar a maldição eterna
em sofrimento.
Eterna! Lembro-me da história de um livro da es-

59
10 Algumas coisas da infância

cola que tentava explicar o que era eterno. Um jovem


perguntou a um sábio o que era a eternidade e ele lhe
respondeu: “eternidade, meu filho é como se aquela

um tico-tico, a cada cem anos viesse até ela e lhe desse


uma bicada. Quando ela se nivelasse com o terreno ao
seu redor, então a eternidade teria acabado”.

60
11 Mudança para cidade

MUDANÇA PARA A CIDADE


Com a mudança para a cidade, quase nada mudava,
pois a cidade era pequena, o lugar onde fomos morar
era quase uma grande fazenda, só que sem o conforto

correr e brincar. Então só havia a rua. Na rua era bem

à vontade e até brigar se bem que não me lembro de


ter brigado com alguém alguma vez. As provocações
eram muitas, mas como não tínhamos o costume de
brigar e nem espírito de guerreiro, fazia de conta que

brigando, algumas vezes até se machucavam, pois na

vibrava e ainda gozava os briguentos, dizendo: “dá no


olho, para não estragar a cara”.

um pai ou mãe é que a briga parava. Ainda bem que

briguentos já estavam brincando de novo.

61
11 Mudança para cidade

Tempos de estudar e de brincar também. As aulas


começavam cedo, sete horas da manhã e terminavam

as lições, mas era muito tempo. Das quatro horas de


aula, ainda sobravam umas dez horas do dia para as

A luta para fazer papagaio é que era dura. Primeiro,

Obtidas essas duas coisas, o resto a gente se virava. As


varetas de bambu eram conseguidas num bambuzal
existente no quintal de um colega, a cola a gente fazia
de polvilho ou tirava de alguma árvore que produzia
algum tipo de látex. Pronto o papagaio, lá íamos para
a praça. Tínhamos que ter cuidado com os enormes

deles ficarem enganranchados nas grimpas daquelas

queles tempos parece um sonho. Não me lembro de

pudemos viver felizes.


Mas os anos vão passando, a criança vai crescendo

62
11 Mudança para cidade

seja uma criança e nem um adulto. Dão-lhe o nome de


adolescente. Começam a aparecer outras prioridades,
outras indagações da vida.

jovem, que era eu. Estudando em colégio de padres,

para que as diferenças não sobressaíssem tanto. No


entanto, os mais ricos estavam sempre esnobando os
mais pobres. Era raro haver amizade entre os alunos
ricos e pobres. Ou melhor, não tão pobres, pois para

mas o sacrifício era muito grande. Fora a roupa do co-

os padres serem radicalmente contra as suas idéias,

Rousseau e muitos outros. Não entendia muita coisa,

O Voltaire era o mais execrado, pois ele desancava a


Igreja, que, aliás, fazia por merecer.

63
11 Mudança para cidade

O Schopenhauer que, parece, pregava a boa vida e

política, pouco se falava, a não ser que os comunistas

fazem até hoje.

do fogo do inferno superava tudo. Era confissão, co-


munhão, toda semana. A missa era sagrada em todos
os domingos e dias santos. Mas, acho que, tudo que é
imposto, ou pelo medo ou pela força, não tem muita
condição de prosperar, apesar de que houvesse muita

festas. Na época das festas era realmente muito agra-


dável. O ensino também era muito bom, pelo menos
no conhecimento teórico, apesar de muitas vezes até
parecia que estávamos discutindo o sexo dos anjos. A

a moçada somente o que interessava às autoridades.

pobre coitado e o Paraguai um monstro devorador.

64
11 Mudança para cidade

contribuiu para o desenvolvimento de nosso país. Um

uns trinta mil habitantes. Mas ele servia toda a região,


inclusive o sul do estado de Goiás. À época, não havia

Coração de Jesus, das freiras, para meninas e moças.

misturavam homens e mulheres. Besteira de padre e


freira.
Aquele colégio era dirigido pelos padres e a maioria

por assim dizer. Mulher não entrava nem como pro-

porque uma bola que eu estava brincando lhe tocou


a batina. Felizmente consegui desviar-me a tempo de
sua patada. Às vezes a vida no colégio era muito chata,

conhecer, passar de ano, essa era a única preocupação


da gente no colégio. Havia muito esporte, educação
física, futebol e outros jogos. Vejo que o tempo passou
e quase não consegui realizar nada daquilo que tanto

65
11 Mudança para cidade

forte. A gente sempre quer mais do que pode. Poderia


ser diferente? Não sei.

66
12 História de tios

HISTORIAS DE TIOS
Essa terra dos homens é sempre mais fantástica do
que a gente possa imaginar. O homem, como animal,
às vezes é a pior fera que se possa imaginar. Não se
conhece outro bicho que mate outro bicho a não ser

mata para lhe tomar os bens ou se vingar. Vou incluir


umas histórias que alguns tios me contavam, nessas
minhas memórias, porque muitas coisas que eles fala-
vam, pude comprovar depois, quando voltei a morara

literária dele, mas procuro falar alguma coisa de real


e imaginário que aconteceu por aqui. Acredito que o

pois ele era natural da nossa vizinha Monte Carmelo.


Então vamos lá.
O tempo chega para tudo. Não adianta querer fugir

carestia estava braba, o trabalho, escasso.

67
12 História de tios

tempo de ausência. Em quem votar? Não importa, o

da república. Os coronéis estavam alvoraçados. O par-

ganhar. Para o povo não importava quem ganhasse,


pois iria continuar tudo na mesma. Apenas o poder é
que passaria o coronel Sagaz para o coronel Esperto.
Aí as coisas iriam mudar ou não, isto é, os asseclas, os

coletor de impostos, delegado de polícia, diretora de

O pagamento era a subserviência, o atendimento aos


desejos do coronel que assumisse o poder na comarca.

farta de graça. Os cabos eleitorais iam distribuindo os


eleitores segundo o partido, principalmente aqueles
eleitores que chegavam da roça. Eles vinham a cavalo,
de carroça, de charrete e alguns tinham o privilégio
de vir até de automóvel. Era o único dia que podiam
andar de automóvel de graça.
As cédulas eram distribuídas de acordo com o can-
didato. Só que havia alguns eleitores mais safados que

68
12 História de tios

Eram os traidores, difíceis de detectar, pois não havia


tempo de ficar revistando todo mundo.
A eleição naquele dia ocorreu tranquila, pois havia
muito tempo que ninguém votava nem para a irman-

cidade. Houve até o caso do padre que andou fazendo


sermão na igreja, dizendo que os ricos deveriam ser
menos egoístas, que deveriam ajudar os pobres. Que
os donos da cidade não deveriam roubar o dinheiro
dos impostos, pois o povo precisava de escola e ajuda
para não morrer das doenças mais corriqueiras. Que

um dia sumiu da cidade. Ninguém sabia para onde ele


tinha ido. Uns três dias depois foi achado na beira da

no seu corpo e penas de galinha. Ainda foi encontrado


com vida, mas não resistiu muito. Morreu poucos dias

perigoso, podia desaparecer, ser baleado em qualquer


lugar da cidade. Jagunço para isso não faltava. Aliás,
os jagunços tinham o maior prazer em faze qualquer
servicinho para algum coronel.

69
12 História de tios

Estes eram mais ou menos fiéis aos coronéis, mas

gostavam de correr riscos. Jagunço fiel era só aquele


que tivesse matado alguém importante. Aí tinha que

rios da vítima não iriam permitir que ele desse sopa.


Se quisesse sair da proteção do coronel Sagaz para a
proteção do coronel Esperto, era um homem morto.
Os dois lados o fritavam. Daí tinha que ser fiel a um
dos lados, se quisesse sobreviver.
Os jagunços só se sentiam muito apertados quando
a guerra entre os coronéis se tornava muito acirrada
e começava a haver muitas mortes. Então o governo
estadual era obrigado a despachar as polícias volantes

eram muitas vezes piores que os jagunços. Matavam

era fuzilado. Que prisão que nada. Se prendesse logo

cadeia. Matando não tinha santo que desse jeito e o

Lá ele dava um jeito neles.

70
12 História de tios

quem não tinha eira nem beira. Esses poderiam ficar

galinhas ficavam em paz. Eu não me lembro bem, por


que os que conheciam os fatos de perto não gostavam

de falar de seus feitos. Fora contratado pelo coronel


Sagaz, para dar cabo de alguns aliados do coronel Es-
perto, que estava muito forte, com aliados mais ricos
do que os seus. O seu nome correto ninguém nunca
ficou sabendo alguns o chamavam de Mãozinha, mas
era mais conhecido por Sete Dedos. Naquelas eleições

dor. O coronel Sagaz, que tinha o mando da cidade, se


viu no mato sem cachorro. Apesar de ter mais poder

que as coisas iriam mudar. Tratou de limpar os cofres


da prefeitura e fazer muitas dívidas, para dificultar a
vida dos adversários. Não teve muito tempo, porque a
posse dos adversários foi muito rápida. Todo mundo
que ocupava postos importantes na cidade, ficou de-
sempregado. Foi um deus nos acuda. Teve gente que
até se matou, pois não suportava perder o poder e o
emprego ao mesmo tempo.

71
12 História de tios

para ocupar os cargos vagos, mas o coronel Sagaz não

seus melhores jagunços e mandou fazer um estrago


na camarilha do adversário. Os cupinchas mais for-
tes do coronel Esperto foram assassinados. E o Sete
Dedos se destacou, levando para o outro lado da vida
um dos mais fortes aliados do coronel Esperto. Era o
major Sabido, que já começava a se destacar como o

um desastre. Não havia ninguém para assumir o seu

comandar inclusive o prefeito.

capital. Não tinha jagunços suficientes para enfrentar


os do coronel Sagaz. Era como um recurso extremo,
pois sabia que o Governador iria mandar um pelotão

jagunço de quem fosse se caísse em suas mãos estava


frito. Por isso antes que a volante chegasse, mandou
seus homens se esconderem. Fossem para outras ci-
dades. Ficaria descoberto por alguns dias, mas como a
coisa seria feita em segredo, não correria muito risco,
pois deixara alguns homens menos conhecidos e até

72
12 História de tios

qualquer eventualidade.
O coronel Sagaz se sentiu fortalecido e colocou seus
jagunços praticamente patrulhando a cidade. Estava
desconfiado de alguma coisa, mas não imaginava que
o coronel Esperto tivesse pedido ajuda à capital, pois
sempre os assuntos locais eram resolvidos ali mesmo,
sem interferência de fora.
Uma certa madrugada, desembarcaram na cidade
uma dupla de policiais, dois negros enormes, um com
farda de tenente e outro com a de sargento. Eram o

eram conhecidos na região. Vinham diretamente da

das ordens do tenente.


O tenente se hospedou no melhor hotel da cidade,
pois tudo era pago pelo Governo. O sargento foi para

e outros menos aquinhoados que paravam na cidade.

eram recolhidas, sem precisar de muito esforço.


O tenente fez questão de se mostrar, colocando a
sua melhor farda, aquele ar todo empinado, a fivela
do cinto reluzente e mandou dar uma caprichada nas
botas. À noite saía para a praça, em frente ao hotel, o
73
12 História de tios

não havia, mas nada o que fazer. Pelo menos para um

policial tão mal encarado.

em lugares mais afastados. Havia as casas de jogos, as

eram frequentados por gente especial: os fazendeiros


e comerciantes abastados.

dias da semana. Ou era na terça ou na quinta, eram


dias neutros, que não chamavam muito a atenção e

população não prestava muita atenção. Na segunda,

na sexta-feira se antecipava uma ou outra tarefa. Já


se dormia na casa do “cacho” depois do jogo e depois
se ia para a fazenda de madrugada. Coisas de cidade

trajes civis, para não aparecer com sua identidade de

74
12 História de tios

com os desocupados que apareciam na pensão para


jogar conversa fora e fofocar. Já que não participava
do poder local sabiam tudo que se passava na cidade.

em quando pagava uma pinga para alguns daqueles


linguarudos para que soltassem mais ainda a língua.

coronel Sagaz e do coronel Esperto e o Mãozinha ou

Nada ficava escrito, tudo era transmitido pelo correio


sem sê-lo. As avós contavam, os tios contavam, aliás,
um tio que não era tio de verdade, era ótimo contador
de histórias. Foi através desse tio e da tia Corina que
fiquei sabendo de todas essas histórias. Uma história

se passa a tirar conclusões. É claro que o que o coronel


Esperto não se chamava assim e tampouco o coronel
Sagaz. Mas ainda existem descendentes seus que não
gostariam de ver seus verdadeiros nomes lembrados
com essas histórias de barbaridade.

cendo o ponto de encontro dos coronéis. Já sabiam até


onde se reuniam com seus jagunços, ou melhor, não

75
12 História de tios

se reuniam, passavam as ordens.

atenção. O que poderia fazer um crioulo daqueles ali

alumiava. No escuro só se viam os dentes quando ele


ria, coisa que quase nunca fazia.

e rolando. Já não tomavam os cuidados necessários,


pois sabiam que o coronel Esperto se recolhera, não

discreto, no seu canto. Não iria dar bobeira só porque


o inimigo se recolhera.

pois só tinha uma oportunidade. Se a perdesse, a sua

para que não escapassem. A oportunidade apareceu.


Era a festa do padroeiro da cidade, onde todo mun-
do comemorava, era a festa de todos, dos ricos e dos
pobres. Vinha gente de tudo quanto era buraco. Era

despachado mais um dos correligionários do coronel


Esperto.

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12 História de tios

Era um mês de sequidão, muita poeira, mas também


com muita gente na cidade. Os jagunços do coronel

as cercanias da cidade. A meganhada ficou ouriçada,


sabia que haveria ação e das boas, pois não era só um

que poderia haver. O sargento já sabia onde estava o


Sete Dedos. À noite mandou cercar o casebre onde ele
se acoitava. Sete Dedos era valente, mas não era bobo.
Quando se viu cercado, se entregou. Não havia como
furar o cerco daqueles macacos. Depois da prisão do

valente foi simplesmente fuzilado. Sobraram alguns

fugir. Não iriam ficar dando bobeira. O coronel Sagaz


perdeu o poder e quase todos os jagunços. O coronel
Esperto também viu o seu poder de fogo aniquilado.

com alguns apaniguados dos dois coronéis. Aí ele ex-

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12 História de tios

mas mexer com a graudada da cidade, nem pensar.


Logo o governador foi informado e a ordem veio de

e se mandasse dali. Seria nomeado um delegado para


a cidade. Um outro tenente, ou melhor, capitão, pois
tinha sido promovido fazia pouco tempo. A ordem era
para não deixar mais prosperar bandos de jagunços.
Assim o capitão Pedro passou alguns anos na cidade.

ficou algum, como deve ter ficado, ficou na moita. Já

só há pouco tempo fiquei sabendo que era jagunço e

cimento de suas atividades.

coronéis e sim doutores (médicos, advogados, enge-


nheiros, etc.). Assim, era mais fácil passar a conversa
na patuléia, sem que houvesse necessidade de tantas
mortes e tantos entreveros. Ficava mais barato e nem
era preciso ter jagunço acoitado, que custava caro e
não deixava de ser muito perigoso.
Aqueles jagunços que o tenente ficou de levar para
78
12 História de tios

a Capital, ninguém mais ficou sabendo deles não. Na


Capital não chegaram e para as suas cidades também

delegado numa cidadezinha no norte do estado.


E a minha terra do passado volta à minha memória.
Será que tudo isso aconteceu mesmo? Não sobrou ne-
nhum jagunço conhecido? Hum! Não sei, dizem que
o tio avô, um tal de Miguelão, andava com a capanga
cheia de orelhas. A tia Corina é quem contava isso.

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13 Quinca Peixoto

QUINCA PEIXOTO
Naqueles tempos de criança, algumas pessoas, as
quais muitas conheci, possuiam hábitos bem interes-

outras pela sua habilidade e outras pela arrogância e


truculência.

seu trabalho e a família numerosa que tinha, além dos


seus bois de carro. Seus dois carreiros eram sempre
admirados, pois esavam sempre gordos e bonitos. O

se pelo canto dos eixos, quando passava pelo estrada.


Todo mundo sabia que aquele era o carro do Quinca
Peixoto. Era inconfundível.

adiantava lhe dar uma resposta, era preciso explicar

o conheci, já era velhinho, baixinho e com os cabelos


todos brancos. Suas roupas eram tecidas pela própria
família, ou melhor, eram plantadas em suas roças. Ele

te, também oriundo de seu algodão. Praticamente, só

80
13 Quinca Peixoto

comprava o sal, pois o resto, produzia em suas terras.


Calçado não precisava, pois só andava descalço. Aliás,
diziam que o par de botinas que tinha comprado para
o casamento, ainda estava guardado numa prateleira
do quarto.
O truculento era o Juca Porva, um fazendeirão do

mundo, o Juca Porva era a arrogância e a truculência


em pessoa. As terras do Quinca quase não davam paa
manter a sua família, numerosa e simples como ele.
O juca, com tantas terras, não tinha filhos, tanto que

escravos e só ficavam na fazenda enquanto não con-


seguiam um meio de escapar. Tinham que trabalhar
de sol a sol, praticamente não recebiam pagamento. A

mais rebelde, era amarrado no mourão e chicoteado.


O Juca também era baixinho, mas só andavam ontado

chados, estribos e fivelas de prata.


Ninguém ousava entrar em suas terras pois, se ele
ficasse sabendo ia atrás e dizia que se houvesse uma

81
13 Quinca Peixoto

pronto a explodir a qualquer momento.


O Quinca tinha um pedaço de terra que fazia divisa
com o Juca. Um dos filhos do Quinca sempre ouvira
falar daquele homem truculento e com fama de mau,
mas não o conhecia. Como o caminho das terras era o
mesmo, tanto do Juca como do Quinca, m dia o rapaz
encontrou o famoso fazendeiro.

como o mesmo, viu aquele homem montado naquele


cavalo enorme, mas tão pequeno como ele e a curiosi-
dade, como de toda a família do Quinca, fez com que
não resistisse tacasse a pergunta: “Quem é o senhor?”

como aquele bocó não o conhecesse: “Então não sabe


que eu sou, seu moleque? Eu sou o Juca, o Juca Porva,
procê”.

Oh! Eu pensei que era um homão e é um homico!”

Este saiu espavorido, correndo pelo mato a dentro e


nunca mais querendo ver o Juca Porva.
Amar, será que os homems estão preparados para
amar? Fala-se tanto em amor, em paz e amor, mas a
maior parte do tempo os homens estão competindo,

82
13 Quinca Peixoto

brigando ou guerreando. Aquele amor sincero e puro,


desprendido, é raro de se encontrar.

83
14 A Viagem

VIAGEM
O dia tinha amanhecido cinzento, com uma névoa

prenunciava que teríamos um inverno mais frio. As


chuvas já tinham ido embora, vez ou outra caía uma
chuvarada à tarde. E aquela névoa era consequencia

limparia e iria fazer um belo dia de sol.


Papai já tinha planejado levar um gado para uma
outra fazenda, uma fazenda do seu tio, que ficava lá
para as bandas da Bocaína, bem longe, uns dois dia de
marcha para o gado. Aquele ano tinha sido um bom

muitos bezerros. As pastagens não suportariam todo


aquel egado no período da seca.
O tio Chiquinho, esse era o nome do tio do papai,

quase não criava bois. Os bois eram para quem tinha


muita invernada, coisa para os grandes fazendeiros.

84
14 A Viagem

Boi era para produzir carne, coisa que demorava mais


de três anos, às vezes até cinco. A vaca todo ano trazia
um bezerro. Por ter sido um ano bom para os animais,
os preços caíram, portanto, só vendia quem não tinha
onde colocar.
E para nós, a molecada, não havia coisa melhor do

era trabalho, era diversão.


Mesmo com toda neblina, saímos cedo para fechar
o gado e apartar as reses que iriam viajar. Oito horas

inquietas por ter que ficar presas nos currais. Com a


chuva do dia anterior, formava-se uma camada fina

pastas dos animais.


Pé na estrada. À saída do curral, o gado se espremia

muito cuidado, pois os animais estavam com toda a


energia e andavam depressa ou corriam para todo o
lado. Um vaqueiro mais experimentado ia na frente,

85
14 A Viagem

disparassem pela estrada afora.


Tudo parecia correr bem, o gado já começava a se
enfileirar e, nós, os meninos, íamos despreocupados

esparramdno por todo o lado. As cercas eram arranca-

sido o estouro da vada. Ninguém mais iria conseguir


reunir aquele gado espavorido.
Mas o que tinha provocado aquele estouro? Nada

que tinha feito de propósito. Mas não era. Sua simplo-

numeroso e arisco como aquele, era era um desastre.


Coincidiu que no mesmo momento que o gado estava
chegando na porteira da divida dafazenda, lá vinha o

e aquele gado todo embicando para sair, o simplório


Quinca saiu da beira da estrada correndo para fechar
a porteira, pois, para ele, o gado estava fugindo.
Como os animais que iam à frente eram novilhas

rada. E como parar um estouro de boiada? Basta um


sair correndo em desabalada carreira, para os demais
acompanharem. Não deu outra, toda vacada começou

86
14 A Viagem

conseguir conter aquele rebanho. Todo o gado se dis-

tristeza para nós, a meninada, que estava adorando


aquela viagem.
E o Quinca Peixoto começando a fazer perguntas.
Papai é porque era muito calmo, senão teria soltado o
cavalo em cima dele. Que pena!

ali de visita e teriam que ir embora. A viagem não iria


ser a mesma coisa.
Finalmente, dois dias depois, conseguimos iniciar
a viagem. Dessa vez era preciso ter mais cuidado com

cedo e tudo correu bem. Tivemos que pernoitar numa


fazenda no meio do caminho. Ainda bem que era tudo
fazendeiro amigo e todos procuravam ajudar um ao
outro. No outro dia, à notinha, arribamos na fazenda
do tio Chiquinho. Ele já estava preocupado, acando o
que poderia ter acontecido? Mas a história do Quinca
Peixoto só serviu para todo mundo cair na risada. Ele
era único por todas aquelas paragens.

87
14 A Viagem

Tipos estranhos aqueles tios. O tio Chiquinho era

aquelas mulheres bíblicas, secas, esguias e sem graça.


Parecia que a falta de filhos a deixava sem graça, sem
gosto. O tio Pio, homem alto, caladão, solteirão. Com
menino não dava nem uma palavra. E a tia Maricota,
naquee tempo ainda nova, solteirona, quase careca.
Seu hábito de comer cabelo era estranho. Foi a única

e também não era séria, isto é, carrancuda. Mas talvez

importância para nós, os meninos. Ficamos perdidos


naquela casa enorme, às margens do rio, rodeada de

prender as vacas. Vivia-se praticamente no meio dos

ao lado da casa e os ninhos, debaixo do assoalho.

asseada, apesar de sua aparência esquisita, e boa cozi-


nheira. A tia Maricota, quando havia visita, não podia

dormimos aquela noite e nodia seguinte tínhamos de


voltar cedo. A volta dava para fazer num dia, mas era
preciso sair bem cedo.

88
14 A Viagem

aconteciam quase todos os anos, mas eram para fa-


zendas vizinhas. Não davam nem um dia de viagem.
Para o gado, o único suplemento que se dava, era

Manguinhos, contra a manqueira. Tinha que ser gado

Quando aparecia a febre a tosa, era um arraso. E isto


acontecia quase todos os anos.

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