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CADERNO

DE

DIREITO ROMANO ATUAL I E II


Discussões em aula e resumos da obra Curso Elementar de Direito Romano

do autor THOMAS MARKY, nas aulas das disciplinas de Direito Romano Atual I e II da FDUSP
Resumo pessoal das obras (1 e 2.º Semestres de Direito, DCV0127 e DCV0132)

Os capítulos foram baseados principalmente na obra Curso Ele-


mentar de Direito Romano de THOMAS MARKY. Alguns deles fo-
ram construídos com nuances e auxílios da obra Direito Romano
de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, além de anotações e observa-
ções durante as aulas dos PROFS. MARCHI e HÉLCIO.
À pessoa que estiver lendo este resumo, peço, por favor, que não
o divulgue fora do âmbito da FDUSP (ou da USP, em geral).
Comentários respeitosos e sugestões para correções e melhorias
são sempre bem-vindos!

Aluno: RAFAEL MARQUES QUESADA


Docentes: PROF. EDUARDO C. S. MARCHI e PROF. HÉLCIO M. F. MADEIRA
Turmas: 194-XI e D1
Ano/Semestre: 2021/01 e 2021/02
SUMÁRIO DOS CAPÍTULOS
PARTE INTRODUTÓRIA P. 1

Utilidade do estudo do direito romano ............................................................................................................ p. 1


Introdução histórica .......................................................................................................................................... p. 2
PARTE I: PARTE GERAL P. 3

Cap. 1 – Conceito de direito .............................................................................................................................. p. 3


Cap. 2 – Fontes do direito ................................................................................................................................. p. 4
Cap. 3 – Norma jurídica ................................................................................................................................... p. 6
Cap. 4 – Sujeitos de direito ............................................................................................................................... p. 7
Cap. 5 – Objetos de direito ............................................................................................................................... p. 12
Cap. 6 – Negócio jurídico .................................................................................................................................. p. 14
PARTE II: DIREITOS REAIS P. 19

Cap. 7 – Direitos reais ....................................................................................................................................... p. 19


Cap. 8 – Propriedade ......................................................................................................................................... p. 20
Cap. 9 – Proteção da propriedade .................................................................................................................... p. 22
Cap. 10 – Posse ................................................................................................................................................... p. 23
Cap. 11 – Proteção da posse de direito ............................................................................................................ p. 23
Cap. 12 – Aquisição da propriedade ................................................................................................................ p. 22
Cap. 13 – Direitos reais sobre coisa alheia ...................................................................................................... p. 25
Cap. 14 – Direitos reais de garantia ................................................................................................................. p. X
PARTE III: DIREITOS DAS OBRIGAÇÕES P. 26

Cap. 15 – Obrigações ......................................................................................................................................... p. 26


Cap. 16 – Fontes das obrigações ....................................................................................................................... p. 28
Cap. 17 – Contratos ........................................................................................................................................... p. 29
Cap. 18 – Quase-contratos ................................................................................................................................ p. 36
Cap. 19 – Delitos e quase-delitos ...................................................................................................................... p. 38
Cap. 20 – Garantia das obrigações .................................................................................................................. p. 42
Cap. 21 – Transmissão das obrigações ............................................................................................................ p. 43
Cap. 22 – Extinção das obrigações ................................................................................................................... p. 45
PARTE IV: DIREITO DE FAMÍLIA P. 46

Cap. 23 – Família ............................................................................................................................................... p. 46


Cap. 24 – Casamento ......................................................................................................................................... p. 48
Cap. 25 – Tutela e curatela ............................................................................................................................... p. 49
PARTE V: DIREITO DAS SUCESSÕES P. X

Cap. 26 – Sucessão universal ............................................................................................................................ p. X


Cap. 27 – Sucessão testamentária .................................................................................................................... p. X
Cap. 28 – Sucessão legítima .............................................................................................................................. p. X
Cap. 29 – Sucessão necessária .......................................................................................................................... p. X
Cap. 30 – Colação .............................................................................................................................................. p. X
Cap. 31 – Sucessão singular ............................................................................................................................. p. X
Pretendo futuramente atualizar e completar o resumo com o cap. 14 da PARTE II e os caps. 26 a 31 da PARTE V.
CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
THOMAS MARKY

PARTE INTRODUTÓRIA
UTILIDADE DO ESTUDO DO DIREITO ROMANO
No mundo contemporâneo, dentre os muitos sistemas
legais, os dois mais importantes são:
• Civil Law: países que adotam o Direito Romano Ger-
mânico, e.g., Europa continental (Alemanha, França,
etc.), América Latina (Brasil, Argentina, etc.), e alguns
países da Ásia (Japão, Coréia do Sul, China).
• Common Law: países que adotam o Direito Anglo-Sa-
xão1, e.g., Inglaterra, EUA, Canadá, Austrália, etc.
Foi o Direito Romano Civil que influenciou a atual
Civil Law, de forma que 2/3 do Código Civil Brasileiro
(excluído o Direito Empresarial) têm influência romana.
Esse direito cuidava das áreas diversas da vida privada
dos indivíduos – cidadãos (cives), particulares (privi), ou
não –, a saber, os direitos civis2:
• Das coisas ou real: posse, propriedade, usufruto, etc.;
• Das obrigações: compra e venda, locação, indenização
por danos, etc.;
• De família: filiação, adoção, matrimônio, etc.;
• Das sucessões: herança, testamento, legado, etc.
Os romanos inovaram em relação aos outros povos por
terem criado um ciência do direito, i.e., uma construção
lógico-sistemática do fenômeno jurídico – pela obra de ju-
ristas e magistrados. Assim podemos dizer que o estudo do
direito romano hoje não é por mero interesse histórico ou
arqueológico; ele serve como modelo de comparação, para
que, por meio dele (e sua análise), possamos interpretar e
aperfeiçoar os nossos códigos legais.
Esse direito, por ter influenciado os códigos posterio-
res, permanece vivo (em constante mudança), daí a no-
menclatura da disciplina, Direito Romano Atual.
OBS. 1: Serão usadas caixas de texto azuis como esta
para adicionar comentários, observações, explicações
não contidas no livro, ou discussões trazidas durante as
aulas pelos PROFS. MARCHI e HÉLCIO.

OBS.2: O direito romano imprimiu seu grande legado


histórico em nossos sistema jurídico — muitos institutos
modernos são parecidos ou iguais aos equivalentes roma-
nos. Mas atenção! Há também diversas situações em que
o direito moderno se afastou do direito romano, che-
gando a definições distintas ou até mesmo aplicações
opostas. É sempre importante prestar atenção a esse de-
talhe e tomar cuidado ao lidar com a comparação entre
os dois direitos, cada qual em seu recorte histórico.

1
Embora haja discussões quanto à pertinência do uso desse 2
Em Roma, “direito privado” e “direito civil” eram tidos como
termo, visto que a Common Law se desenvolveu após o período sinônimos. Hoje, consideramos “direito civil” um dos ramos do
anglo-saxônico do direito inglês, a partir da conquista pelos nor- Direito Privado — que rege a vida privada dos indivíduos.
mandos.

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
THOMAS MARKY

INTRODUÇÃO HISTÓRICA • Os juristas leigos (não-religiosos/sacerdotes) ganham o


poder de conhecer, interpretar e até criar novas regras;
Chamamos de direito romano ao complexo de normas
— Funções de emitir pareceres jurídicos (respondere),
vigentes em Roma, entre os sécs. VIII a.C. (fundação len-
instruir as partes sobre como agir em juízo (agere) e
dária da cidade – 753 a.C.) e VI d.C. (morte de Justini-
orientar os leigos em negócios jurídicos (cavere);
ano – 565 d.C.). Para fins didáticos, a compilação justi-
niana é considerada como a obra conclusiva, definitiva e — Tinham muito prestígio (eram a elite intelectual);
imutável do direito romano. — O imperador Augusto concede a alguns juristas
Também para fins didáticos, classificamos de duas for- (chamados jurisconsultos) o “direito de dar pareceres
mas a evolução do direito romano: <com força obrigatória> em nome do imperador”;
a) Classificação pela História Externa ou política: OBS.: Havendo pareceres conflitantes de jurisconsultos,
o juiz estaria livre para decidir; para “orientar” o juiz,
criou-se a “Lei das Citações” (426 d.C.), reunindo as
opiniões de Ulpiano, Paulo, Papiano, Modestino e Gaio.
III. Período Pós-Clássico (séc. III – séc. VI d.C.)
• Decadência de Roma: falta de inovação; manutenção do
b) Classificação pela História Interna ou jurídica: direito do Período Clássico;
• Necessidade de adaptar as leis para o contexto dos povos
conquistados levou à vulgarização (tornar comum);
• Necessidade de fixar as leis, sistematizando-as;
• Compilações a mando do imperador Justiniano (Impé-
Estudaremos o desenvolvimento do direito romano rio Romano do Oriente):
usando a classificação b).
a) O Códex (Codex, 529 d.C.): codificação de todas as
I. Período Pré-Clássico (séc. VIII a.C. – séc. II a.C.) leis e constituições imperiais;
• Caracterizado pela primitividade, religiosidade3, ritua-
b) o Digesto (Pandectas, 530–33 d.C.): codificação dos
lismo, formalismo;
pareceres de jurisconsultos clássicos;
• Registros iniciais de atividade administrativa em Roma;
c) As Institutas (Instituitiones, 533 d.C.): manual de
• O Estado resolvia questões essenciais à sobrevivência: direito para estudantes;
guerra, punir delitos graves, observar regras religiosas;
d) As Novelas (Novellae constituitiones, 533–65 d.C.):
• No início, só os sacerdotes conheciam as poucas leis; a novas leis criadas por Justiniano ao longo da sua vida.
principal fonte de direito eram costumes e tradições;
— Esses quatro documentos compõem o chamado
• Houve algumas conquistas da plebe: Corpo do Direito Civil (Corpus Iuris Civilis)
— Leis das XII Tábuas (450 a.C.): primeiras leis ro-
manas escritas e públicas; direitos e punições (talião);
— Tribunos da Plebe: figura defensora dos plebeus e
seus direitos frente aos patrícios.
II. Período Clássico (séc. II a.C. – séc. III d.C.)
• Após as Guerras Púnicas e a expansão pelo Mediterrâ-
neo, houve constantes mudanças no direito romano;
• Entre os magistrados republicanos, estava o pretor:
— Ele fazia o primeiro contato entre os particulares
(partes do processo jurídico);
— Por meio de editos (feitos durante o mandato anual),
“os pretores introduziam seu direito para auxiliar, su-
prir ou corrigir o direito antigo.”;
— Lei Ebúcia (lex Aebutia): o pretor ganhou mais po-
der discricionário e de mando (imperium), usando-o
para instruir os árbitros nas decisões usando formulae;

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Sanctu (palavra latina de onde vem “sanção”) significa “esta-
belecido por lei” e “que se tornou sagrado”, mostrando a ligação
romana entre direito e religião.

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PARTE I: PARTE GERAL


CAP. 1 – CONCEITO DE DIREITO — Ius extraordinarium: provinha do imperador e seus
jurisconsultos, por meio das constituições imperiais.
Há duas compreensões do vocábulo “direito”:
• Segundo a dogmática ou sistemática:
• Direito objetivo: ligado à norma jurídica, uma obriga-
a) Oposição público x privado (quanto à atuação):
ção ou imposição (norma agendi, “norma de agir”);
— Direito público (ius publicum): atividade estatal;
• Direito subjetivo: é a faculdade (permissão ou possi-
bilidade) de exigir uma conduta alheia (facultas agendi, — Direito privado (ius privatum): atividade entre
“faculdade de agir”) – faculdade protegida por “ação”. particulares.
Os direitos objetivos, aqueles firmados na norma, po- OBS. 2: Para o PROF. HÉLCIO, esta não é uma divisão ca-
dem ou não criar direitos subjetivos (estes sempre pres- tegórica; estas são, na verdade, duas posições/perspecti-
supõem um direito objetivo). E.g., a norma objetiva “o di- vas diferentes de estudar um caso.
reito impõe a todos o respeito à propriedade” pode gerar a b) Oposição cogente x dispositivo (quanto à imperati-
faculdade subjetiva “o proprietário tem o direito de repelir vidade):
a agressão à sua coisa.”
— Direito cogente (ius cogens): regras absolutas, de
Vemos que as palavras latinas directus (“retificado”) e grande importância, que não podem ser modificadas
ius/Iustitia (“justo/Justiça”) influenciaram os termos “di- pelas partes (maior imperatividade); um direito obje-
reito” e “justiça”. [nota: lê-se ti como ci] tivo que não gera direito subjetivo correspondente
1. Direito objetivo (deve ser aplicada independentemente das exigências
A norma jurídica é parte reguladora da vida humana. das partes);
Ela possui tanto um mandamento de conduta (norma — Direito dispositivo (ius dispositivum): regras rela-
agendi) quanto o uso de coerção para trazer consequên- tivas, de menor relevância, que podem (ou não) ser al-
cias à transgressão do mandamento – a sanção (sanctio). teradas ou dispostas, i.e., deixadas de lado pelas partes
A sanção pode ser de nulidade, que, em caso de inob- (menor imperatividade), que têm faculdade; um direito
servância jurídica, torna inválido o ato, ou de punição, que objetivo que gera direito subjetivo correspondente.
prevê uma pena ao transgressor. A partir da presença ou c) Oposição comum x singular (quanto à aplicabili-
ausência de sanções, podemos classificar as leis como: dade):
Tipo
Nuli- Penali- — Direito comum (ius commune): regras generaliza-
dade dade das, destinadas e aplicadas a todos (ou quase todos);
Mais que perfeita (plus quam perfecta) ✓ ✓ — Direito singular (ius singulare): regras destinadas
Perfeita (perfecta) ✓ ✗ a pessoas, classes de pessoas, ou situações específicas;
Menos que perfeita (minus quam perfecta) ✗ ✓ Em resumo, o direito romano (ius) se baseava na frase
Imperfeita (imperfecta) ✗ ✗ máxima: “viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a
cada um o que é o seu” (honeste vivere, alterum non lae-
Podemos, então, classificar o direito objetivo de várias dere, suum cuique tribuere).
formas, dependendo do critério:
2. Direito subjetivo
• Segundo o destinatário e a história das regras jurídicas: Como visto, direito subjetivo é a faculdade de agir,
— Ius civile ou ius Quiritium: destinado ao cidadão i.e., poder de exigir determinada conduta de outrem, poder
romano (cives ou Quirites); este concedido primeiramente pelo direito objetivo.
— Ius gentium: destinado a todos os povos (romanos Podemos classificar os direitos subjetivos em dois:
ou não); • Direitos familiares: relativos ao casamento, ao poder
— Ius naturale: as leis da natureza, tidas por comuns familiar, à tutela e à curatela;
e destinadas a todos os seres vivos – eterno e universal; OBS. 3: Quando está relacionado à morte de familiares e
OBS. 1: A diferenciação entre cidadão romano e não ro- heranças, trata-se da área do direito de sucessões;
mano permaneceu até o Edito de Caracala (212 d.C.),
quando o imperador decretou a cidadania de TODOS os • Direitos patrimoniais: subdividem-se em dois:
habitantes livres do Império. — Reais: relacionados à posse de coisas (res); todos
• Segundo a diversidade da origem das regras jurídicas: são obrigados a respeitar o poder absoluto do dono so-
bre sua coisa (“lei contra todos”, lex erga omnes);
— Ius civile: provinha de costumes, leis, plebiscitos,
senatusconsultos (nesse sentido, é sinônimo de “direito — Obrigacionais: relações de obrigação entre pessoas
antigo” e embarca o ius gentium); determinadas (e.g., num contrato) – o devedor, vincu-
lado ao seu credor.
— Ius honorarium: provinha dos editos pretorianos;

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CAP. 2 – FONTES DO DIREITO paralelo e complementar – não substitutivo – ao direito


quiritário (ius civile).
As regras jurídicas são produzidas pelas fontes do di-
— O jurista SÁLVIO JULIANO compilou em sua obra
reito. Essa expressão pode ter dois significados: os pró-
Edito Perpétuo (Edictum Perpetuum, 130 d.C.) a reda-
prios órgãos que legislam (as “fontes de produção”), ou o
ção completa e definitiva do direito pretório; a partir daí,
produto das atividades deles (as “fontes de revelação”).
houve a estratificação e fim da evolução de tal direito.
Analisaremos os diferentes tipos de fontes de revelação.
• Jurisprudência (responsa prudentium): eram os pare-
1. Fontes de direito não escrito ceres jurídicos – a “ciência do direito” – dos juristas,
O costume (consuetudo ou mores maiorum, “costu- também chamados de sábios do direito (iurispruden-
mes dos antepassados”) era a principal fonte do direito – tes), que conheciam o direito romano.
praticamente a única no período Pré-Clássico ou Arcaico Inicialmente, os costumes eram interpretados somente
(da Monarquia e início da República). É a observância pelos sacerdotes. Na República, os juristas leigos pas-
constante e espontânea das normas de comportamento da saram a interpretar e explicar o direito consuetudinário,
sociedade Para ser um costume, deve ser conhecido e pra- mas só ganharam importância durante o Império: Prin-
ticado por TODOS (unânime e universal). cipado e Dominato: com a oficialização dos juristas do
2. Fontes de direito escrito imperador – os jurisconsultos (jurisconsulti) – sua in-
As fontes de direito escritas surgiram posteriormente, tepretação passou a ser fonte do direito.
como complementares aos costumes: • Constituições Imperiais (constituitiones principum):
• Leis (lex): o magistrado propunha leis (leges rogatae) as deliberações do imperador (não no sentido atual de
e convocava assembleias populares (comitia), onde os “Constituição”) que interpretavam, estendiam ou ino-
cidadãos romanos discutiriam e aprovariam as leis. Os vavam as leis. Ele fazia isso por editos (edicta), decre-
romanos fizeram pouquíssimas leis, baseando-se no tos (decreta) e ordens (mandata), além de responder
princípio “Corrruptissima respublica, plurimae leges” (rescripta) às questões jurídicas que lhe apresentavam.
(“Quanto mais corrupta a República, mais leis terá.”). Tornaram-se fonte importantíssima no Dominato.
Foram primeiro registradas no início da República, com Quadro histórico da evolução das fontes do direito:
as Leis das XII Tábuas (450 a.C.).
• Plebiscitos4 (plebiscita): eram decisões da plebe sem
consultar os patrícios. A partir da Lei Hortênsia (lex
Hortensia, 286 a.C.) as decisões nos plebiscitos passa-
ram a ser obrigatórias para TODA a comunidade (plebeus
e patrícios). Importantíssimas no auge da República.
Perderam a importância no auge do Principado.
• Senatusconsultos (senatusconsulta): eram as delibe-
Quanto às fontes de direito, observa-se:
rações do Senado (assembleia dos anciãos), que, inici-
almente, se limitava à administração pública e à eleição OBS. 1: Algumas instituições (órgãos, cargos, apara-
dos magistrados; porém, durante o Principado, passa- tos) jurídico-legislativas atuais levam o mesmo nome de
ram a legislar – aclamando as propostas do imperador instituições romanas, mas com significados diferentes:
(oratio principis). • “Plebiscito”:
• Editos dos Magistrados (edicta magistratum): eram – ROMA: decisões nas reuniões da plebe;
as deliberações dos magistrados5 (magistratus), que – BRASIL: a própria reunião em si, junto às suas deci-
cuidavam da administração pública junto com o Se- sões.
nado. Os magistrados exerciam funções no mercado, na
manutenção de vias públicas, na economia, etc. • “Constituição”:
Dentre eles, o pretor (praetor) tinha a função de juris- – ROMA: decisões do imperador;
dição (ius dicere, “dizer do direito”). Por meio do poder – BRASIL: lei fundamental ou “Carta Magna” do país.
de mando (imperium), ele baixava editos de magis- • “Jurisprudência”:
trado. Os editos dos pretores se “acumulavam e soma- – ROMA: pareceres jurídicos do jurisconsulto;
vam” – foram importantíssima fonte na República. – BRASIL: decisões dos tribunais.
— Lembre que o direito pretório (ius honorarium) era

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É importante não confundir estes três termos: sem consultar os patrícios.
Tribuno da Plebe: era um tipo de cargo político com a função Plebiscito: a decisão em si, resultado da reunião; as normas cri-
de defender a plebe. adas pela plebe que depois ganharam universal obrigatoriedade.
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Comissão da Plebe: reunião da plebe para decidir seus direitos, Alguns magistrados podiam fazer parte também do Senado.

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OBS. 2: O Tribuno da Plebe era um plebeu, cujo


cargo político tinha a função de defender o direito dos
demais plebeus. Ele não era tecnicamente um magis-
trado, porém fazia oposição (quando necessário) aos ma-
gistrados utilizando de sua sacrossantidade: sendo sa-
crossanto, ele não poderia ser desautorizado ou contrari-
ado por ninguém (nem mesmo magistrados) e, assim,
seus decretos eram obrigatórios.
Nos dias de hoje, um possível análogo (com funções
semelhantes) ao tribuno da plebe seria o Ministério Pú-
blico, que é independente dos outros poderes e defende
os interesses sociais dos brasileiros.

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CAP. 3 – NORMA JURÍDICA (“ficção”). Estudaremos essas duas exceções ao ônus da


prova:
Trataremos da aplicação e eficácia da norma jurídica
1) Presunção (praesumptio): aceita-se um fato provável
no espaço e no tempo.
como verdadeiro pelo direito. Há dois tipos:
1. Aplicação da norma jurídica
a) Presunção simples ou relativa (praesumptio iuris
Para que os princípios e disposições abstratas da norma tantum): é uma presunção que admite contraprova.
jurídica sejam aplicadas aos casos concretos, é necessário Ela é um tipo de “inversão do ônus da prova”:
um conhecimento perfeito, seguro e completo tanto da aceita-se como verdadeira uma situação provável,
norma jurídica quanto dos fatos concretos. dispensando-se a comprovação. Aí, cabe à parte
a) Norma jurídica abstrata acusada produzir uma contraprova.
Supõe-se que, num processo jurídico, o tribunal co- E.g., presume-se o filho nascido da esposa como fi-
nhece a lei (“iura novit curia”). Assim, o aplicador da lei lho legítimo do marido (mas ele pode contraprová-
(advogado, juiz, etc.) não precisa “provar a existência da lo); presume-se que quem sabe falar num contrato
lei”, mas deve ser capaz de identificar e conhecer a norma solene, pode contratar, independentemente da idade
jurídica aplicável ao fato concreto. (o que também pode ser contestado).
Dizia um brocardo6 romano, “conhecer as leis não sig- b) Presunção de direito ou absoluta (praesumptio
nifica saber suas palavras, mas compreender sua força e iuris de iure): é uma presunção que não admite con-
poder” (“scire leges non hoc est verba earum tenere, sed traprova.
vim ac potestatem”, CELSO). Desta forma, é necessário co- E.g., coisa já julgada é tomada como verdadeira;
nhecer o pleno significado da lei e, para isso, deve-se es- presume-se um filho nascido após 300 dias da morte
tudá-la e saber interpretá-la. A interpretação da norma do marido como filho ilegítimo.
jurídica é feito por um procedimento crítico-técnico que
2) Ficção (fictio): aceita-se um fato que já se sabe inverí-
analisa gramática, história, lógica, sistemática, etc., para
dico como verdadeiro (“fictio est falsitas pro veritate
reconstruir o pensamento ou vontade do legislador.
accepta”). E.g., a ficção de considerar o nascituro como
Há a interpretação autêntica (mediante a expedição já nascido, em se tratando da proteção de seus interes-
de uma nova ordem jurídica) e a interpretação doutrinal ses; a Lei Cornélia (fictio legis Corneliae), que tomava
(estudo das normas antigas pelos cultores, i.e., conhecedo- por morto o cidadão romano capturado e escravizado.
res da norma – os juristas com sua interpretatio pruden-
2. Eficácia da norma jurídica no tempo e no espaço
tium). Os resultados da lei podem ser três: confirmar seu
sentido (interpretatio declarativa), estendê-lo (interpreta- O ius Quiritium, destinado aos cidadãos romanos, ba-
tio extensiva) ou restringi-lo (interpretatio restrictiva). seava-se, geralmente, no princípio da personalidade e
não no da territorialidade. Aos estrangeiros, porém, era
Quando não existe preceito abstrato para determinado
aplicado o direito na sua expressão ius gentium.
caso concreto, cabe ao aplicador do direito preencher a la-
cuna com as analogias: A eficácia da norma jurídica comumente se iniciava
na sua promulgação e poderia terminar de três formas:
• Analogia legal (analogia legis): quando se estende a
quando terminava seu prazo (se ela o tiver estipulado),
aplicação de uma norma já existente para fatos que ela
quando ela for revogada por uma norma posterior (lex pos-
não contemplava ou não previa inicialmente;
terior derogat priori) ou pela falta de costume, i.e., desuso
• Analogia jurídica (analogia iuris): cria-se uma nova constante (desuetudo). O desuso foi a maneira mais co-
norma para ser aplicada a um caso concreto, com base mum ao longo da evolução do direito em Roma.
nos princípios gerais de direito.
Há um princípio geral (não absoluto) de irretroativi-
b) Fato concreto dade da norma: ela não pode “modificar” o passado, só
Além de saber interpretar as normas, é necessário ter se aplicando a acontecimentos e fatos posteriores à pro-
pleno conhecimento objetivo dos fatos do caso concreto. mulgação. Em alguns casos, porém, poderia retroagir. Po-
Eles são comprovados, i.e., recebem prova, por meio de rém, quando se trata de proteger o direito adquirido e a
documentos, testemunhas, perícia, depoimentos, etc. coisa julgada, a irretroatividade é absoluta.
Os brocardos são que o “ônus da prova” cabe ao autor Por fim, a regra jurídica vigente é aplicada a TODOS. A
da ação (i.e., quem acusa) e que “na dúvida, <decide-se> ignorância dela não isenta ninguém de suas sanções. Ha-
em favor do réu” (“in dubio pro reo”, GAIO). veria, porém, menos rigor em relação a menores de 25
Às vezes, porém, não se conseguem provas completas. anos, mulheres, soldados em ativa e camponeses.
Nesses casos, o Direito contenta-se com acontecimento
provável (“presunção”) ou até fatos inverídicos

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Brocardo é um axioma, aforismo ou máxima jurídica.

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CAP. 4 – SUJEITOS DE DIREITO Também era possível uma quase “morte civil” em vida.
2. Capacidade de direito
OBS. 1: Ressalta-se que concepções abstratas, e.g., “su-
jeito de direito”, “personalidade jurídica”, “capacidade de OBS. 3: O PROF. HÉLCIO nos trouxe uma análise com-
direito”, são classificações atuais, que serão utilizadas parativa entre os direito romano antigo e o atual:
apenas para fins didáticos no estudo do Direito Romano. – ROMA: era, basicamente, um “sistema de ações” –
estudava-se pelo aspecto processual (das actiones);
Quando estudamos as relações jurídicas, notamos que
elas ocorrem entre dois sujeitos de direito: o sujeito ativo – ATUAL: é, basicamente, um “sistema de direitos
(que exige uma conduta alheia) e o sujeito passivo (que subjetivos” – estudam-se os direitos objetivos que ge-
deve cumprir com tal conduta). A personalidade jurídica ram os direitos subjetivos.
(ou civil) é a característica dada pelo direito às pessoas, Diz GAIO que o direito romano antigo (tal qual o atual
tornando-as capazes de serem sujeitos de direito. direito civil) baseava-se em três elementos:
Diz-se, assim, que pessoas têm personalidade jurí- 1.º 2.º 3.º
dica. Há dois tipos de pessoas: pessoa (persona) coisa (res) ação (actione)
• Pessoa física: um ser humano, pessoa natural em si, que Reforçando a importância do 1.º pilar, apresentou-se
existe concretamente. E.g.: em Roma, a personalidade o brocardo “todo direito é constituído por causa dos ho-
começava com o nascimento e terminava com a morte mens” (“hominum causa omne ius constitutum est”, HER-
(em alguns casos extremos, era possível uma quase MOGENIANO).
“morte civil” ainda em vida);
Vimos uma parte do 1.º pilar: a persona do direito an-
• Pessoa jurídica: uma entidade ou organização, artifi-
tigo, análoga ao sujeito de direito do direito atual. Mas
cial, que existe enquanto conceito abstrato. E.g.: hoje, há
são todas as pessoas juridicamente iguais?
a pessoa jurídica do Estado, a da empresa, etc.
Para o direito moderno, todos têm igual capacidade de
OBS. 2: A partir dessas definições e de uma compara- direito (ou capacidade jurídica de gozo), que a aptidão da
ção histórica, o PROF. HÉLCIO trouxe um debate sobre a pessoa para ser sujeito de direitos e deveres. Assim, hoje,
responsabilidade dos tipos de pessoas: “todos têm igual capacidade (ou seja, potencial) jurídica
– ROMA: primariamente eram as pessoas físicas juri- de gozo” (princípio da isonomia).
dicamente responsáveis por seus atos. E.g.: os indiví-
duos dentro das corporações receberiam a ação judi- Para o direito romano antigo, porém, o estado (status)
cial em casos de transgressão à norma. diferenciava as pessoas e suas capacidades – nem todos ti-
nham igual capacidade.
– ATUAL: em algumas situações (não todas), as pes-
soas tornam-se juridicamente irresponsáveis por de- Havia três tipos de status no direito antigo:
terminados atos, ao transferirem sua responsabilidade a) Status libertatis: liberdade – dicotomia (ou tricoto-
à pessoa jurídica. E.g.: em alguns casos de transgres- mia) “livre” x “servo” (x “escravo”);
são à norma, é a empresa que recebe a ação judicial, b) Status civitatis: cidadania – dicotomia “cidadão” x
não seus funcionários. “estrangeiro”;
c) Status familiae: independência do pátrio poder – di-
1. Pessoa física
cotomia entre “sui iuris” e “alieni iuris”.
Em Roma, uma pessoa (persona) iniciava sua vida ci-
Nos aprofundaremos sobre cada um deles.
vil ao nascimento. Segundo MARKY, o nascituro ainda
não é pessoa,7 mas, para assegurar seus direitos, os roma- a) Status libertatis (estado de liberdade)
nos adotavam a ficção de considerá-lo já nascido, ainda SERVOS E ESCRAVOS:—
durante a gestação – definida entre 180 e 300 dias.
Segundo um brocardo romano, “a principal divisão do
Porém, para ser considerado pessoa, o nascituro deve- direito das pessoas é a de que todos os homens ou são li-
ria nascer com (1) vida e (2) “forma humana” – nati- vres ou são servos.” (GAIO). Então, que o SERVO era con-
mortos e crianças com deformações graves (chamadas de siderado pessoa, porém, com capacidade muito limitada.
monstra, “monstros”) não tinham personalidade civil.
Seriam, porém, “servo” e “escravo” a mesma coisa?
O fim da personalidade civil era a morte, que, por não
Em Curso Elementar de Direito Romano, THOMAS
ter registro civil, não tinha formalidades. Não havia pre-
MARKY usa os termos como sinônimos. Ele prioriza o uso
sunções de morte (nem se houvesse ausência), porém, ha-
do termo “escravo”, sem distingui-lo de “servo”.
via um complexo sistema de presunções de comoriência
(quando duas ou mais pessoas morrem simultaneamente). Durante a aula e, a partir dos roteiros, porém, o PROF.

7
O PROF. HÉLCIO discorda dessa afirmação, que, para ele, é ape- considerado pessoa; a única ficção, de fato, seria considerá-lo já
nas uma interpretação equivocada. Para ele, o nascituro já era nascido ainda durante a gestação.

7
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THOMAS MARKY

HÉLCIO defendeu uma “diferenciação histórica” entre Os escravos estavam, então, numa situação “transicio-
“servo” e “escravo” como duas instituições ou momentos nal” entre “pessoas” e “coisas”. Apesar de serem conside-
históricos diferentes (mas relacionados). rados “pessoas”, escravos não podiam ser sujeitos de di-
reito; eles eram objetos do direito – na República, não
OBS. 4: O PROF. HÉLCIO esclareceu a situação dos tinham direitos ou deveres, até em relação às questões fa-
“servos” e “escravos” em Roma:
miliar e sucessória; em contraste, participavam do culto e
• Servo (servus): a instituição mais antiga entre as seus túmulos seriam tão sagrados quanto dos livres.
duas, datada da Monarquia. Inicialmente, os servos OBS. 6: Na transição entre a República e o Principado,
eram prisioneiros de guerra conSERVAdos (“servo” os escravos passaram a ganhar alguns direitos: ele po-
vem de “conservar”, “poupar”). Os romanos viam a
dia administrar um pequeno pecúlio8 e tornou-se um
servidão como instituição humanitária do direito das crime um dono torturar ou matar seu escravo – apesar
gentes (ius gentium), para conservá-los em vida. das proibições não serem tão respeitadas.
Enquanto, na teoria (pelo direito), o servo tinha capa- A condição de escravo era permanente mesmo que ele
cidade limitada e seu dono teria direito até sobre sua
fosse abandonado por seu dono – ele seria considerado
vida (porém, tais execuções eram raras), na prática, os “coisa sem dono” (res nullius). Ele só sairia dessa condi-
servos viviam relativamente bem, e participavam da ção se fosse liberto (algo que não era “automático”).
família de seu dono como subordinados.
LIVRES:—
Um brocardo dizia, “quanto ao direito civil, os servos
não são considerados; mas, quanto ao direito natural, Já os LIVRES eram, literalmente, as pessoas não es-
todos os homens são iguais.” (ULPIANO) cravas (GAIO). Eles dividiam-se em dois tipos:
Escravo (sclavus): a instituição da servidão foi se • Ingênuo (ingenuus): aquele nascido livre e que nun-
“degenerando” com as expansões na República e o ca deixou de sê-lo; sua liberdade não tinha nenhuma
número de servos – agora, “escravos” – aumentou ex restrição.
ponencialmente. Na teoria (pelo direito), as regras • Libertos (libertus ou libertinus): aquele que já foi es-
melhoraram sensivelmente em favor dos escravos, cravo, e conquistou sua liberdade (“ex-escravo”). Os
porém, os donos passaram a agir como se as antigas libertos tinham direitos limitados e, caso seu ex-dono
normas ainda estivessem em vigor (e.g., o antigo di- ainda estivesse vivo, ainda permaneceriam dependen-
reito sobre a vida do escravo) e desumanizaram a an- tes a ele numa relação de patronato (patronatos) – en-
tiga instituição: os escravos receberam uma piora tre patrono e liberto.
substancial nas condições de vida e de tratamento. — O ato de libertação (alforria) era chamado de ma-
Começam, então, diversas revoltas (sécs. Ⅲ–I a.C.), numissão (manumissio). Ele poderia ocorrer de três
e.g., Espártaco (séc. I a.C.). formas:
A situação dos escravos em Roma só melhorou sécu- a) Manumissio testamento: pelo testamento do ex-
los depois, no Dominato, com a oficialização do Cris- dono, garantindo a liberdade após a morte dele;
tianismo e declínio da servidão. b) Manumissio vindicta: por meio de um processo ju-
dicial;
Daí, seguindo o entendimento proposto pelo PROF.
HÉLCIO, quando MARKY fala sobre “servos” ou “escra- c) Manumissio censu: pela inscrição do escravo na
vos” como sinônimos – e equivalentes a uma situação ex- lista dos cidadãos livres durante um recenseamento.
tremamente degradante –, ele se refere, geralmente, ao se- — Se a alforria fosse feita conforme o ius honorarium
gundo momento ou instituição. (direito pretório), i.e., expedida por um pretor, o li-
Como visto, havia escravidão por guerra (cativos berto ficaria em condição inferior ao cidadão romano –
conservados) e, além disso, escravidão por nascimento: seria considerado estrangeiro da categoria “latino”.
era escravo o filho da escrava, independentemente da li- — Se a alforria fosse feita conforme o ius Quiritium
berdade ou não do pai. (direito quiritário), i.e., expedida pelo ex-dono, sem
OBS. 5: Após o direito justinianeu (de Justiniano), po- contrariar as restrições legais, o liberto ganhava, simul-
rém, caso a mãe estivesse em liberdade em algum mo- tânea e automaticamente, a cidadania romana.
mento da gravidez, adotava-se a ficção do nascituro b) Status civitatis (estado de cidadania)
como já nascido em favor da liberdade dele. CIDADÃOS E ESTRANGEIROS:—
Apesar das condições desumanas, o escravo tinha per- Em princípio, o direito quiritário, público ou privado,
sonalidade humana como “pessoa servil” (persona servi- valia apenas para os cidadãos romanos (Quirites ou cives).
lis), mas não personalidade jurídica-civil. Em outras pa- Aos estrangeiros (peregrini) aplicava-se o ius gentium.
lavras, os escravos eram pessoas.

8
Pecúlio é uma pequena soma de dinheiro.

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Um cidadão ou nascia cidadão ou se tornava cidadão 3. Mudanças na capacidade de direito (capitis demi-
– na última opção, como vimos, pela alforria quiritária. nutio)
A cidadania pelo nascimento poderia ser pelo “nasci- Mudando-se a liberdade, cidadania ou condição na fa-
mento em justas núpcias” (ambos pais cidadãos), ou até mília, havia uma mudança no status da pessoa – a capitis
fora do casamento, caso a mãe fosse cidadã. Se a mãe deminutio (lit., “diminuição da cabeça”, fig., “diminuição
fosse estrangeira, segundo a lei Minícia (lex Minicia), os do poder, da capacidade”).
filhos seriam estrangeiros.
A pessoa perde seu status para adquirir outro tipo de
Caso algum cidadão romano perdesse a liberdade (e.g., status – ela pode até, em casos extremos, perder sua per-
punição), ele automaticamente perderia sua cidadania. sonalidade jurídica (ficando apenas com personalidade hu-
Porém, em casos de exílio voluntário, deportação ou re- mana), numa quase “morte civil”.
núncia da cidadania, era possível que a pessoa perdesse
sua cidadania, ainda assim, mantendo-se livre. Havia três tipos de diminuições:
Com o tempo, Roma foi expandindo a abrangência da I. Capitis deminutio maxima: perda da liberdade.
cidadania – primeiro a todos os moradores da Península Quando o cidadão romano caia prisioneiro e se tornava
Itálica (89 a.C.) e, depois, a TODOS os habitantes livres escravo dos inimigos (ele sofria quase uma morte civil,
do Império (212 d.C.); esta última expansão ocorreu pela em que perdia sua capacidade de direitos).
Constituição Imperial de Antonino Caracala, também Caso ele voltasse para sua pátria, recuperaria TODOS
chamada de Édito de Caracala. os seus direitos perdidos, pelo chamado direito de pos-
c) Status familiae (estado familiar) limínio (ius postliminii) – mas não recuperava auto-
INDEPENDENTES DO PODER PÁTRIO:— maticamente as situações (e.g., matrimônio e posses).
Distinguem-se, no direito romano, as pessoas sui iuris Caso ele morresse prisioneiro, adotava-se a ficção Cor-
(“de direito seu, próprio”), independentes do poder pátrio nélia (legis Corneliae) – a ficção de que ele teria mor-
(i.e., do poder do paterfamilias), e as pessoas alieni iuris rido antes de ser capturado – e se nulificavam quaisquer
(“de direito alheio”), sujeitas ao poder pátrio. testamentos seus.
O paterfamilias era o homem mais velho da família, Uma pessoa também podia perder sua liberdade como
independentemente da idade. E.g.: um recém-nascido com punição (e.g., roubo pego em flagrante).
pai morto e nenhum tio ou irmão seria o paterfamilias, en- II. Capitis deminutio media: perda de cidadania.
quanto um idoso de 60 anos que ainda tivesse seu pai vivo Além da perda de liberdade – que automaticamente fa-
não seria o paterfamilias. zia perder-se a cidadania –, havia perda de cidadania
Poderiam ser sui iuris o paterfamilias, ou, em situações romana por punição ou exílio voluntário.
extremas, uma mulher que não tivesse nenhum ascendente III. Capitis deminutio mínima: perda de independência
ou descendente homem que fosse seu paterfamilias. do pátrio poder.
DEPENDENTES DO PODER PÁTRIO:— Um alieni iuris poderia passar de sua família de origem
Os alieni iuris eram aqueles dependentes do pátrio po- para uma família nova (por casamento ou adoção) ou
der, fossem todos os homens exceto o mais velho, ou as se emancipar (virando, assim, sui iuris).
mulheres dentro da família. Um sui iuris poderia ser adotado e se tornar alieni iuris
Eles não eram, porém, absolutamente incapazes: eles na nova família.
tinham capacidade plena no direito público (e.g., podiam Note que, nessas mudanças, as pessoas perdem as re-
votar e ser magistrados, caso homens), mas recebiam res- lações jurídicas, mas não perdem a consanguinidade.
trições no direito privado (e.g., precisavam do consenti-
mento do paterfamilias para se casar – nesse caso, homens 4. Outras causas restritivas da capacidade
e mulheres tinham direitos privados relativamente iguais). Eram outras circunstâncias que restringiam, no direito
Com a evolução jurídica, os paterfamilias foram cada romano antigo, a capacidade de direito:
vez mais responsabilizados pelas obrigações contraídas • Mulheres: como vimos, mulheres tinham capacidade
por familiares; além disso, as posses dos alieni iuris, que de direito quase igual à dos homens no direito privado
originalmente pertenciam ao paterfamilias, foram cada (exceto não poderem ser paterfamilias), mas eram in-
vez mais se tornando independentes dele. capazes quanto ao direito público.
• Intestabilidade (intestabilitas), infâmia (infâmia) e a
CONCLUSÃO: Juntando-se os diferentes estados, a torpeza (turpitudo): penalidades para atos ilícitos,
pessoa com plena capacidade de direitos é o homem li- acarretavam restrição da honorabilidade e capacidade.
vre, cidadão romano e independente do poder pátrio.
• Religião: restrições na capacidade de direito dos sacer-
dotes, quanto ao matrimônio ou heranças.

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
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5. Capacidade de agir como a de um infantia maiores: podiam praticar negó-


Se o direito moderno e o romano antigo tinham dife- cios jurídicos favoráveis a eles, mas não podiam obri-
renças quanto à capacidade de direito (capacidade jurí- gar-se sem a intervenção do curador;
dica de gozo), eles são bem semelhantes quanto à capaci- • Púberes maiores de 25 anos (adultus): eram plena-
dade de fato (capacidade jurídica de exercício): em am- mente capazes de agir e não havia uma ação protetiva
bos, nem todos têm plena capacidade de fato (ou de agir). em seu favor (pressupunha-se sua experiência jurídica);
A capacidade de agir ou de fato é a capacidade de — Em casos específicos, o imperador concedia o venia
exercer os direitos adquiridos graças à capacidade de di- aetatis, um favor legal que conferia a púberes menores
reito. Ela pressupõe a validade da manifestação de von- individuais (homens entre 18 e 25 anos e mulheres en-
tade da pessoa que praticava o negócio jurídico. tre 20 e 25 anos) a plena capacidade de agir.
Havia três circunstâncias que restringiam, no direito ro- OBS. 5: As regras de capacidade de agir eram válidas
mano antigo, a capacidade de agir: de forma igual, quanto à idade, tanto para sui iuris quanto
a) Idade: tricotomia “infante” x “infante maior” x “pú- para alieni iuris. Havia, porém, duas diferenças entre es-
bere” (e, depois, a dicotomia “púbere menor” x “púbere ses grupos nesse sentido:
maior”); • Sui iuris: faziam aquisições para si próprios e podiam
b) Sexo: dicotomia “homem” x “mulher”; assumir obrigações, pelas quais respondiam;
c) Sanidade física e mental: dicotomia “são” x “insano” • Alieni iuris: faziam aquisições para seu paterfami-
Nos aprofundaremos sobre cada um deles. lias, e não podiam assumir obrigações – ou, quando
assumissem, seriam seus paterfamilias que responde-
a) Idade riam por elas, de acordo com o direito pretório.
INFANTES E PÚBERES:—
Quanto à idade, a divisão entre capaz e incapaz ocorria OBS. 6: É importante distinguir as instituições do tu-
na puberdade (no direito justinianeu, 14 anos para ho- tor e do curador. O brocardo “tutor dator personae, cu-
mens e 12 anos para mulheres). Em princípio, os púberes rator bonis” (“O tutor se dá à pessoa; o curador, aos
(pós-puberdade) tinham plena capacidade de agir, e os im- bens/coisas”) explica que tutores cuidam de pessoas (in-
púberes ou infantes (pré-puberdade), não a tinham. capazes de agir, por idade ou sexo), enquanto curadores
Os infantes (infantes, “aqueles que não podem falar” cuidam do patrimônio das pessoas (incapazes de agir, por
– lembre-se de que a manifestação da vontade é vital ao insanidade, ou capazes de agir, mas ainda inexperientes).
direito) dividiam-se em dois grupos, quanto à idade: b) Sexo
• Infantes (infantes): menores de 7 anos, absolutamente HOMENS E MULHERES:—
incapazes de agir; o tutor praticava, em seu nome pró-
prio, os negócios jurídicos em favor do infans; Quanto ao sexo, os homens adultos eram plenamente
capazes de agir. As mulheres adultas, no direito clássico,
• Infantes maiores (infantes maiores): dos 7 anos à pu- eram relativamente incapazes de agir – estando sob tutela
berdade, relativamente incapazes de agir; ainda tinham perpétua do tutor mulierum – e, no direito pós-clássico,
tutor; podiam praticar negócios jurídicos favoráveis a eram plenamente capazes de agir.
eles, mas não podiam obrigar-se sem a intervenção do
tutor. c) Sanidade física e mental
Do outro lado, no direito romano arcaico, os púberes SÃOS E INSANOS:—
(puberes) eram plenamente capazes de agir. Porém, no di- Quanto à sanidade mental, os sãos eram plenamente
reito romano clássico, a Lei Letória (lex Laetoria, séc. II capazes de agir (se preenchessem os outros critérios, é
a. C.) introduziu uma diferença entre os púberes: claro), enquanto os insanos (também chamados de “lou-
• Púberes menores de 25 anos (adulescens): eram ple- cos”) eram absolutamente incapazes de agir.
namente capazes de agir; havia, porém, uma ação po- Os pródigos eram relativamente incapazes de agir,
pular (actio popularis) contra aqueles que envolvessem pois precisavam da assistência de um curador.
o adolescente em um negócio jurídico prejudicial a ele Quanto à sanidade física, os surdos-mudos eram rela-
(ação protetiva ao adolescente, que se pressupunha tivamente incapazes de agir, pois, por não poderem prati-
inexperiente e, portanto, vulnerável). car atos verbais, sua capacidade de manifestação de von-
— Também como proteção aos menores púberes, o tade era limitada.
pretor poderia conceder meios processuais para anular
seus negócios jurídicos; CONCLUSÃO: Juntando-se as diferentes circunstân-
cias, a pessoa com plena capacidade de agir é o homem
— Caso o menor púbere tivesse um curador (diferente
adulto (maior de 25 anos) e são física e mentalmente.
de tutor), este poderia assisti-lo nos negócios jurídicos.
Assim, este menor púbere teria sua capacidade restrita

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
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6. Pessoa jurídica Importa ressaltar, porém, que NO DIREITO ROMANO, A


Além da pessoa física, o direito também reconhece NOÇÃO DE “PESSOA JURÍDICA” NÃO EXISTIA DA FORMA
pessoas jurídicas: entidades ou organizações artificiais, COMO A CONHECEMOS HOJE — ELA AINDA ESTAVA EM
que adquirem personalidade jurídica. A pessoa jurídica é FORMAÇÃO; as “pessoas jurídicas” aqui apresentadas eram
um sujeito de direito, que existe para uma finalidade. mais organizações de pessoas ou patrimônio do que pes-
soas distintas dos membros — essa distinção está mais
Classificamos as “pessoas jurídicas” romanas (leia a clara no direito moderno.
ressalva na coluna à direita) em dois tipos:
• Corporação: associação de pessoas (universitas per-
sonarum, “universalidade de pessoas”); presente no di-
reito romano clássico e pós-clássico e no direito mo-
derno. Podiam ter caráter público ou privado:
a) Corporações de caráter público: Estado romano
(populus Romanus) e seu erário9, organizações mu-
nicipais e colônias;
b) Corporações de caráter privado: agremiações
(sodalitates), associações (collegia) e sociedades
(societates), com fins religiosos (e.g., colégios de
sacerdotes – era pagã) ou econômicos (corporações
de artesãos, sociedades de cobradores de impostos).
• Fundação: conjunto de bens (universitas rerum, “uni-
versalidade de coisas”) destinados a uma determinada
finalidade; ausente no direito romano clássico; presente
no direito romano pós-clássico e no direito moderno.
E.g.: destinação de patrimônio para fins de beneficên-
cia ou fins religiosos (era cristã).
A característica essencial das pessoas jurídicas é que
elas têm personalidade distinta dos seus componentes,
bem como patrimônio e relações jurídicas distintas dos
seus componentes. Daí, a discussão de transferência de
responsabilidade de pessoas físicas para a pessoa jurídica.
As corporações e fundações tinham diferentes requisi-
tos e processos de constituição (início) e extinção (fim):
Corporações Fundações
Requisitos:
• Ato constitutivo / es-
tatuto (lex collegii):
– Prever finalidade; Requisitos:
– Regular organização • Ato constitutivo:
Início

interna (actores, – Prever finalidade;


“agentes” e syndici, – Regular organização
“síndicos”); interna.
• Três membros (mín.)
• Autorização do Se-
nado (ou imperador)
• Se a finalidade foi
atingida; • Se a finalidade foi
• Se todos os membros atingida;
Fim

morreram; • Se todo o patrimônio


• Se o Senado (ou im- foi perdido.
perador) revogou a
autorização.

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Erário: fazenda, tesouro.

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CAP. 5 – OBJETOS DE DIREITO 2. Classificações das coisas dentro do comércio e do


patrimônio
“Coisa” (res) é um termo que se usa para designar todo
A partir daquelas definições, podemos classificar os ti-
e qualquer objeto do nosso pensamento – real ou ideal.
pos de coisas em comércio e em patrimônio.
Porém, na linguagem jurídica, “coisa” é o objeto de
a) Coisas res mancipi e res nec mancipi
relações jurídicas que tenha valor econômico. Isso se
aplica tanto a coisas materiais quanto imateriais, desde que Distinção histórica, quanto à necessidade da formali-
tenham ou representem valor econômico, e.g., invenções dade da mancipatio (ato solene de transferência de coisas
(protegidas por patentes), obras literárias e musicais (pro- e direitos) para a transferência.
tegidas por direitos autorais). • Res mancipi: só podem ser transferidas por meio da
1. Classificações iniciais das coisas mancipatio, e.g., imóveis itálicos, animais de tração e
carga (cavalo, boi, burro), escravos, e as quatro “servi-
Há diversas distinções e classificações entre as coisas.
dões prediais rústicas” (iter, actus, via e aquaeductus);
Cada uma das classificações, além da diferenciação teó-
rica, traz efeitos práticos que estudaremos adiantes. • Res nec mancipi: podem ser transferidas pela simples
entrega manual (traditio, “tradição”), e.g., todas as de-
a) Coisas corpóreas e incorpóreas
mais coisas.
Quanto à tangibilidade:
b) Coisas móveis e imóveis
• Coisas corpóreas (res corporales): podem ser tocadas
Quanto à mobilidade e permanência das coisas:
e/ou apreendidas fisicamente, e.g., coisas-objetos;
• Coisas imóveis (res immobiles): têm caráter perma-
• Coisas incorpóreas (res incorporales): podem ser
nente, não transportável, e.g., construções e plantações.
compreendidas intelectualmente, e.g., coisas-direitos.
• Coisas móveis (res mobiles): são transportáveis (po-
Efeitos práticos: alguns institutos jurídicos só se apli-
dem ser movidas ou se mover), e.g., escravos e animais.
cam às coisas corpóreas, e.g., posse e transferência de pro-
priedade por entrega manual. Efeitos práticos: diferenças no prazo do usucapião e
nos modos especiais de aquisição de propriedade.
b) Coisas em comércio e fora do comércio
c) Coisas fungíveis e infungíveis
Quanto à apropriação das coisas por particulares:
O termo “fungível” não é romano, mas foi criado por
• Coisas em comércio (res in commercio): podem ser
ULRICH ZASIUS (séc. ⅩⅥ) baseado no jurista PAULO (séc.
apropriadas por particulares e ser objeto de relação ju-
Ⅲ), quanto à substitutibilidade das coisas:
rídica entre eles.
• Fungíveis: substituíveis por outras do mesmo gênero,
• Coisas fora do comércio (res extra commercium):
qualidade e quantidade, pertencentes a um gênero ex-
não podem ser apropriadas por particulares, nem ser
tenso, para o qal a individualidade de cada unidade não
objetos de relações jurídicas entre eles, devido a sua
tem relevância jurídica, e.g., arroz, farinha, dinheiro.
natureza física ou sua destinação jurídica.
• Não fungíveis: não são substituíveis por outras do
— Res extra commercium divini iuris (“coisa de di-
mesmo gênero, pois são especificamente consideradas
reito divino fora do comércio”): coisas sagradas (res
em suas características individuais, e.g., um quadro,
sacrae), dedicadas ao culto religioso; coisas santas (res
uma estátua (cada uma tem sua individualidade).
sanctae), sob a proteção dos deuses, e.g., portas e mu-
ros; e coisas religiosas (res religiosae), e.g., túmulos. Efeitos práticos: no campo dos contratos.
— Res extra commercium humani iuris (“coisa de di- d) Coisas consumíveis e inconsumíveis
reito humano fora do comércio”): coisas comuns de No direito romano pós-clássico, quanto à possibilidade
todos (res communes omnium), indispensáveis à vida, de reutilização sem desgaste ou perda da coisa:
e.g., ar, água corrente, mar; coisas públicas (res publi-
• Coisas inconsumíveis ou realmente inconsumíveis
cae), do Estado romano, e.g., estradas públicas, Fórum.
(quae inconsumptus): suscetíveis de utilização cons-
c) Coisas em patrimônio e fora do patrimônio tante, sem que sejam destruídas, e.g., quadro, estátua.
Quanto à relação patrimonial: • Coisas inconsumíveis depreciáveis (quae usu mi-
• Coisas em patrimônio (res in patrimonio): estão efe- nuuntur): perdem lentamente seu valor pelo uso repe-
tivamente no patrimônio de alguém. tido, e.g., carro, sapato, vestido.
• Coisas fora do patrimônio (res extra patrimonium): • Coisas consumíveis (quae consumuntur): se exaurem
não estão no patrimônio de ninguém, mas podem ser com o uso normal, não podendo ser usadas mais de uma
apropriadas por qualquer um, e.g., coisas sem dono (res vez, e.g. comidas, bebidas, dinheiro (são gastos).
nullius, “coisa de ninguém”) ou bens pertencentes aos Efeitos práticos: alguns institutos jurídicos só se apli-
inimigos de Roma (res hostium, “coisas dos inimigos”). cam às coisas inconsumíveis, e.g., usufruto.

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e) Coisas divisíveis e indivisíveis Efeito jurídico: apenas frutos não pendentes podem fa-
Quanto à divisibilidade (num sentido ligado ao valor zer parte de relações jurídicas separados da coisa frugífera.
econômico e jurídico, já que tudo é fisicamente divisível): i) Benfeitorias
• Divisível: pode ser repartida sem perder seu valor pro- Benfeitorias são gastos ou despesas com coisas aces-
porcional, e.g., um terreno ou uma quantidade de trigo. sórias ou pertenças acrescidas à coisa principal. Podem ser
• Indivisível: quando são repartidas perdem ou reduzem- imprescindíveis (necessárias à sua existência), úteis (au-
se em valor, e.g., uma estátua, um carro. mentam sua utilidade) ou voluptuárias (mero luxo).
Efeitos práticos: na resolução de conflitos envolvendo Efeitos práticos: o possuidor de boa-fé tem direito a
partilha de bens, coerdeiros em um processo de inventário, reembolso por benfeitorias necessárias ou úteis agregadas
sócios após a extinção de uma sociedade. à coisa alheia, mas não pelas voluptárias.
f) Coisas simples, coletivas e compostas
Uma distinção romana, quanto à unidade das coisas
• Simples: quando “consistem em um todo único”, res-
tritas a uma unidade, e.g., uma ovelha.
• Compostas: quando “se compõem de coisas unidas,
i.e., ligadas entre si”, formando uma nova coisa, e.g.,
um edifício ou um carro (feitos de várias peças).
• Coletivas ou universais: quando coisas simples ou
compostas são colecionadas, de modo a serem destina-
das juntas a uma mesma finalidade (mas podem existir
separadas), e.g., um rebanho de ovelhas (as ovelhas
existem fora do rebanho).
Efeitos práticos: as coisas coletivas ou universais po-
dem ser tratadas como uma só coisa para efeitos jurídicos,
e.g., é possível tanto negociar ovelhas por unidade, como
também todo um rebanho num único contrato.
g) Acessórios e pertenças
A coisa composta, união de coisas simples, pode fundi-
las numa coisa completamente nova e que absorva todos
os componentes. Mas também é possível haver uma sepa-
ração essencial entre acessório (accessio) e principal
(principalis), e.g., uma plantação em relação a um terreno.
O acessório é parte da união e segue a sorte do princi-
pal sem autonomia, mesmo reconhecido como elemento
separado.
A pertença (instrumentum) é uma exceção à regra:
apesar de ser tipo de coisa acessória, ela conserva sua au-
tonomia física e não segue a sorte do principal, e.g., ins-
trumentos de trabalho destinados ao cultivo da terra.
h) Frutos
Frutos (fructus) são coisas novas produzidas periodi-
camente por outra, de forma natural ou civil.
• Naturais: frutas, leite e cria de animais.
• Civis: renda obtidas com locação ou arrendamento.
Obs.: filhos de escravos, por razões filosóficas, não
eram frutos; pertenciam ao dono da escrava-mãe.
O fruto só adquire independência jurídica quando deixa
de fazer parte da coisa frugífera (pendente): ele pode es-
tar a ser colhido (percipiendi), a ser colhido (percepti),
consumido (consumpti) ou colhido e armazenado (ex-
tantes).

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
THOMAS MARKY

CAP. 6 – NEGÓCIO JURÍDICO


A doutrina do negócio jurídico é uma construção dogmática moderna, desenvolvida sobre bases romanísticas. Um dos
principais elementos do direito são os fatos (que podem ser jurídicos ou não). O PROF. MARCHI elaborou um quadro expli-
cando10 os diferentes tipos de fatos, classificando-os até chegar ao negócio jurídico, que é o que nos interessa.

1. Conceito de negócio jurídico Com a evolução do direito romano, passou-se a interes-


Fatos são eventos de qualquer espécie. Os fatos que sar mais a intenção do que a declaração propriamente
produzem efeitos ou consequências jurídicas são chama- dita. Supõe-se, é claro, que a intenção corresponde ao que
dos de fatos jurídicos. Estes são de dois tipos: foi declarado; os romanos apenas minimizaram sua preo-
cupação (antes excessiva) com a literalidade das palavras.
• Voluntários: dependem da vontade humana, e.g., con-
tratos; O direito romano evoluído definiu o negócio jurídico
• Involuntários: independem da vontade humana, e.g., como “inequívoca manifestação de vontade”. A manifes-
morte e consequente sucessão patrimonial. tação de vontade pode ser feita de modo expresso (e.g., por
palavras, gestos, redação e assinatura de documentos), ou
Os fatos jurídicos voluntários podem ser lícitos, i.e., de modo tácito11 (e.g., por comportamentos inequívocos
em conformidade com a norma jurídica, ou ilícitos (ou de- dos quais a verdade pode ser deduzida), ou, às vezes, até
litos), i.e., que violam a norma jurídica. mesmo pelo silêncio (qui tacet, non negare, “quem cala,
Os fatos lícitos, também chamados de atos jurídicos não nega”, transformado em “quem cala, consente”).
no amplo sentido (lato sensu), são de dois tipos: 2. Representação
• Atos jurídicos no estrito sentido (stricto sensu): aque- A manifestação da vontade em um negócio jurídico
les que dependem de ação humana, mas não necessa- poderia ser feita pelo próprio manifestante, por um inter-
riamente expressam manifestação de vontade, e.g., edi- mediário, ou por um representante.
ficação em solo alheio, que gera a perda da propriedade
da construção para o dono do terreno (ainda que o cons- O intermediário, chamado de núncio (nuntius) não fa-
trutor ou o dono do terreno não tivessem manifestado a lava de sua vontade própria, mas era um mero mensageiro
vontade dessa “transferência”); da vontade do manifestante (daí, ele podia ser incapaz, e.g.,
• Negócios jurídicos: aqueles que não só dependem de uma criança, meramente carregando a mensagem de seu pa-
ação humana, mas também expressam claramente a terfamilias). Não se trata aqui de uma representação.
manifestação de vontade para realizar determinada O direito pretório também passou a responsabilizar
consequências jurídicas, e.g., contratos ou testamentos. cada vez mais o paterfamilias pelas obrigações contraídas
O direito romano antigo era formalista: a validade do por escravos ou por alieni iuris que estes exercessem no
negócio chegava a depender mais da observância estrita de seu interesse. E.g., os escravos poderiam gerir as grandes
formalidades complicadas do que do próprio conteúdo do empresas romanas em interesse de seus donos (não tinham
negócio. capacidade de direito, mas tinham capacidade de fato).
Mas esta ainda não era uma representação propriamente
Durante o negócio, era necessário pronunciar fórmulas dita, pois a responsabilidade do representante e do repre-
verbais e realizar atos simbólicos, e.g., mancipatio (ato sentado coexistiam.
solene de transferência de direitos e coisas), nexum (espé-
cie de empréstimo) solutio per aes et libram (modo solene Na representação, há também uma relação de repre-
de quitação), in iure cessio (cessão em juízo por simula- sentante e representado. O representante manifesta sua
ção) ou stipulatio (promessa verbal em forma de perguntas própria vontade visando substituir a vontade do represen-
e respostas), além da presença de cinco testemunhas idô- tado (que seria o “manifestante original”), porém, de
neas e de um porta-balança (para pesar moedas). forma que as consequências da sua manifestação recaiam
na esfera jurídica do representado e não de si próprio.

10
Esse quadro explicativo é diferente daquele usado na dou- Geral do Direito Privado (TGDP II).
11
trina moderna, como por BERNARDES DE MELLO em Teoria Tácito é algo silencioso, implícito, subentendido.

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A representação poderia ocorrer de duas formas: mancipatio (ato solene que era realizado na transferên-
• Direta (perfeita): o representante age por conta e em cia de propriedade com diversas finalidades, não neces-
nome de outrem; ESTA ERA UMA FORMA ESTRANHA AO sariamente algo fixo ou preciso).
DIREITO ROMANO, exceto para a aquisição de posse por OBS. 1: Dentro da classificação de negócio abstrato,
meio do procurador e do tutor (ideia posteriormente de- o PROF. MARCHI elencou, no direito atual, o cheque (o
senvolvida no direito moderno); ato do cheque pode ser realizado para diversas finalida-
• Indireta (imperfeita): o representante age em seu pró- des, não necessariamente algo fixo ou declarado — você
prio nome, mas de acordo com o interesse do repre- preenche o destinatário, mas não preenche normalmente
sentado; o efeito jurídico recaía sobre o representante qual o motivo/finalidade da transferência).
que, obrigatoriamente, transferia-o ao representado.
Poderia ocorrer de três formas: • Quanto à origem jurídica do instituto:
a) Pela norma jurídica: cabe aos que têm incumbên- — Negócio quiritário (ius civile): institutos típicos do
cia de tratar dos interesses alheios de uma pessoa direito quiritário, e.g., mancipatio, in iure cessio;
jurídica, e.g., tutor, curador, gestor (síndico); — Negócio pretório (ius honorarium): institutos san-
b) Pela vontade das partes: ocorre a partir de um cionados pelo pretor, e.g., pacta paetoria.
acordo entre as partes; daí, o representante trata dos • Quanto à cidadania das partes:
interesses da outra parte, e.g., procurador, procura-
dor de todos os bens; — Negócio dos cidadãos (ius civile): negócios que só
poderiam ser realizados por cidadãos romanos, e.g.,
c) Pela vontade unilateral do representante: o re- mancipatio;
presentante, espontaneamente, prontifica-se a cui-
dar dos interesses do representado, e.g., gestor de — Negócio das gentes (ius gentium): negócios que
negócios. poderiam ser realizados tanto por cidadãos romanos
quanto por estrangeiros em Roma, e.g., contratos con-
3. Classificação dos negócios jurídicos sensuais em geral.
Podemos, então, classificar os negócios jurídicos de 4. Discussões sobre os negócios jurídicos
várias formas, dependendo do critério:
Atenção: este tópico não está no livro de MARKY. Ela
• Quanto à manifestação das partes: foi elaborada com base nas discussões apresentadas pelos
— Unilaterais: partindo de uma só pessoa, e.g., manu- PROFS. MARCHI e HÉLCIO.
missão do escravo, nomeação do tutor, testamento,
OBS. 2: O PROF. HÉLCIO definiu negócio jurídico
aceitação ou renúncia da herança;
como “declaração de vontade que visa a um fim prático
— Bilaterais: depende de duas ou mais pessoas, e.g., tutelado pela ordem jurídica, socialmente reputada
contratos de compra e venda, locação, e até doação (o como vinculante.” Esta definição traz três pilares do ne-
doador e o donatário têm que concordar com a doação). gócio jurídico:
• Quanto ao momento de eficácia negócio: • Declaração de vontade — define o negócio;
— Inter vivos (“entre vivos”): gera efeitos durante a • Ordem jurídica — tutela seu fim prático;
vida das partes, e.g., contratos; • Aceitação social — confere-lhe vinculação.
— Mortis causa (“por causa da morte”): gera efeitos
somente após o falecimento de uma das partes, e.g., tes- OBS. 3: No direito dispositivo moderno, influenciado
tamento. pelo liberalismo atual, pode-se criar contratos quaisquer,
• Quanto à prestação e contraprestação: desde que não contrariem a lei (sob a máxima “se a lei
não proíbe, está permitido.”) — liberdade contratual.
— Onerosos: aqueles em que a prestação e a contra-
prestação têm o mesmo valor, e.g., compra e venda; Porém, a situação não era exatamente a mesma para o
direito romano antigo. Desde o séc. ⅩⅧ, os estudio-
— Gratuitos: gera efeitos somente após o falecimento sos romanistas trouxeram diferentes interpretações sobre
de uma das partes, e.g., testamento. as possibilidades do negócio jurídico naquele direito:
• Quanto à identificação da causa ou finalidade: • Interpretação liberal (defendida, e.g., pelos Pandec-
— Causais: a causa ou finalidade prática pode ser fa- tistas, séc. ⅩⅨ): enxerga uma maior autonomia pri-
cilmente identificada, e.g., contrato de compra e venda vada no negócio. Propôs, à semelhança do direito dis-
(há um propósito específico e claro: a troca de merca- positivo moderno, que o direito romano antigo seria
doria por dinheiro); liberal, permitindo contratos quaisquer dentro da lei.
— Abstratos: a causa ou finalidade prática não é tão • Interpretação anti-liberal (defendida, e.g., pelos ro-
facilmente identificada ou não é tão importante, preva- manistas modernos, dentre eles o PROF. HÉLCIO, séc.
lecendo mais a forma externa do negócio, e.g., o ⅩⅪ): enxerga uma maior influência social e estatal

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no negócio. Propôs que, ao contrário do que afirma- Respeitados esses requisitos (validade), classificam-se
vam os pandectistas, havia requisitos e pontos impor- os elementos (existência e tipicidade contratual) dentro do
tantes na construção e aplicação de contratos: conteúdo do contrato em:
1) Por definição, só havia contratos pré-autorizados a) Essenciais: elementos necessários e obrigatórios
e socialmente aceitos — tipicidade contratual. para a existência jurídica de qualquer negócio (e.g.,
manifestação da vontade), ou de um negócio em
2) Por consequência, alguém só poderia entrar em ju- particular (e.g., preço num contrato de compra e
ízo para exigir o cumprimento de contratos que venda). Fazem parte, então, do direito cogente.
fossem socialmente aceitos.
b) Naturais: elementos que são naturalmente incluí-
dos porque o ordenamento jurídico os considera ine-
OBS. 4: O PROF. HÉLCIO também ressaltou a relação
rentes à sua estrutura (e.g., responsabilidade do ven-
entre os contratos e a norma — a força vinculante do
dedor por vícios ou defeitos ocultos na coisa ven-
contrato como “lei” aos particulares.
dida), mas que podem ser excluídos pelas partes in-
Em geral, define-se lei (lex) como aquilo que o povo teressadas caso expressamente combinado (e.g., é
aprovava em comícios (as assembleias populares con- possível excluir essa responsabilidade por combina-
vocadas por magistrados) e que todos devem obedecer. ção). Fazem parte, então, do direito dispositivo.
Mas os romanos também chamavam de lei às normas c) Acidentais: elementos eventuais e secundários que
do contrato (lex contratum, lex testamenti), pois elas as partes estão livres para inserir (ou não) no con-
são vinculantes aos particulares, que se comprometeram trato por meio de cláusulas (e.g., disposições sobre
a obedecê-las. Há um brocardo que diz “aquilo que foi a forma de pagamento).
declarado solenemente com a língua, faz-se lei” (Uti
lingua nuncupassit ita ius esto). Se uma pessoa declarou, OBS. 5: O PROF. HÉLCIO salientou dois elementos es-
combinou, ou prometeu algo, ela está obrigada a cumprir. senciais do contrato: a intenção (voluntas) e a declara-
ção (verba) — ambas intimamente relacionadas com a
Daí, sendo o contrato uma declaração de vontade,
manifestação da vontade.
ele funciona como lei para as partes. Assim, quando for
julgar o negócio, o juiz deixará a lei civil de lado; ele A “intenção” é aquilo que as partes queriam, e a “de-
deverá julgar através das estipulações e combinados do claração” é aquilo que foi expressamente dito e/ou es-
contrato (exceto, é claro, quando o contrato ferir uma crito no contrato.
norma cogente ou de ordem pública — nesse caso, a A declaração é o ponto de partida; presume-se que a
norma cogente, superior a qualquer outra norma, deverá declaração corresponde à intenção, i.e., que a intenção
ser aquela a partir da qual o juiz julgará). foi corretamente expressa na declaração. Porém, como
Por causa desse controle social do negócio jurídico procederia o direito romano caso isso não ocorresse?
(muito maior do que uma sociedade liberal), havia pou- No direito romano arcaico predominava o forma-
cas instituições de contratos em Roma, e.g., compra e lismo e, nesse sentido, a declaração verbal ou escrita era
venda, locação, sociedade etc. muito mais importante do que a vontade — como já dito,
a validade seria prejudicada caso as formalidades não
5. Elementos dos negócios jurídicos fossem seguidas à regra.
Alguns negócios tinham forma e conteúdo predetermi- Isso se estendeu em certa medida ao direito romano
nados pelo direito, e.g., mancipatio, manumissão etc. Ou- clássico, mas houve uma grande mudança após o célebre
tros, porém, tinham liberdade quanto ao seu conteúdo e processo da Causa Curiana (92 a.C.) — na qual foi jul-
forma predeterminada, e.g., stipulatio e contratos. gada uma causa do direito das sucessões.
Havia limites quanto ao conteúdo dos negócios jurídi- A partir daí, pela concepção do fim do direito ro-
cos – ele precisava preencher quatro requisitos (validade). mano clássico e pós-clássico, adotou-se o princípio de
• Fisicamente possível: é inválido um negócio cujo ob- que “a intenção vale mais do que a declaração”. Assim,
jeto seja algo fisicamente inexistente ou impossível de se eventualmente as duas não corresponderem, e se for
se atingir (e.g., vender uma estrela); possível provar a verdadeira intenção (sendo ela dife-
rente da declaração), então as coisas deverão ser julga-
• Juridicamente possível: é inválido um negócio cujo
das, nesse caso, pela intenção.
objeto seja algo juridicamente impossível (e.g., vender
um cidadão romano como escravo);
Ademais, o PROF. MARKY salientou três elementos ou
• Lícito: é inválido um negócio ilícito (e.g., contratar um cláusulas acidentais do contrato:
sicário para matar alguém);
a) Condição (condicio);
• Determinado: o conteúdo do negócio jurídico deve ser
determinado de forma objetiva, seja pelas partes ou por b) Termo (dies, “dia”);
terceiros (e.g., um amigo comum das partes arbitrar). c) Modo (modus) ou encargo.

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a) Condição (condicio) verificação do fato condicionante (direito romano


Condição (condicio) é a cláusula pela qual a vontade clássico).
das partes subordina os efeitos do negócio jurídico a um • Ex tunc (“desde então”): os efeitos retroagem, i.e.,
evento futuro e incerto, e.g., “se minhas cargas chegarem têm eficácia considerada a partir da celebração do
ao destino, vou te pagar dez moedas.” negócio, no momento inicial (direito romano pós-
Há três requisitos para haver uma condição própria: clássico e moderno).
I. O arbítrio de fato das partes, que subordine os efeitos Alguns negócios jurídicos, chamados de “atos lícitos”
(meras condições do direito não fazem um negócio (actus legitimi), e.g., mancipatio, in iure cessio e outros
condicionado, uma vez que, nesse caso, foi o ordena- atos formais, não admitiam condição, sob pena de nuli-
mento jurídico o responsável pela subordinação, e não dade do ato.
a vontade das partes); b) Termo (dies)
II. O fator condicionante dos efeitos deve ser futuro (não Termo (dies, “dia”) é a cláusula pela qual a vontade
valem aquelas “relativas ao presente ou passado”); das partes subordina os efeitos do negócio jurídico a um
III. A incerteza sobre a ocorrência ou não do fato futuro evento futuro e certo, e.g., “serão destinados esses imó-
(caso haja certeza na ocorrência do evento, não é con- veis ao herdeiro quando o testamentário morrer” (não se
dição, mas é termo). A condição deve ser estipulada de sabe quando o testamentário vai morrer, mas se sabe que,
forma clara e lógica (condições perplexas, ilógicas ou algum dia, ele vai morrer, garantidamente).
contraditórias não valem). • Termo suspensivo: o negócio é válido desde o princí-
Condições que contrariem os requisitos são nulas e pio, apenas a eficácia e os efeitos jurídicos estão em
anulam todo o negócio jurídico – somente no caso dos suspensão;
testamentos, tornava-se a condição inválida e o restante do • Termo resolutivo: o negócio é perfeito e eficaz desde
negócio, válido. o princípio, cessando seus efeitos com a verificação do
Pode-se classificar as condições de diversas formas. evento estipulado.
• Quanto ao acontecimento do qual depende: A propriedade, os direitos da servidão e a qualidade de
herdeiro são permanentes e, portanto, não podem ser cons-
— Condição positiva (positiva): depende de um acon- tituídos a partir de termos resolutivos.
tecimento;
Já os atos formais não podem ser estabelecidos nem
— Condição negativa (negativa): depende de um não sob condição nem sob termo.
conhecimento;
c) Modo (modus)
• Quanto à manifestação das vontades:
Modo (modus) ou encargo é a cláusula que (em negó-
— Condição potestativa (potestativa): depende da cios jurídicos gratuitos) impõe ao destinatário da liberali-
vontade de uma das partes; dade uma obrigação sem influir na eficácia do negócio (os
— Condição casual (casualis): depende do acaso; efeitos do negócio ocorrerão cumprindo-se ou não a
— Condição mista (mixta): depende da vontade de obrigação modal), e.g., um testador que pede ao herdeiro
ambas as partes; para construir um monumento em sua memória (o herdeiro
vai receber a herança construindo ou não o monumento).
• Quanto aos efeitos do negócio:
Apesar disso, havia meios jurídicos pretorianos e esta-
— Condição resolutiva: os efeitos do negócio jurídico tais para constranger o destinatário a cumprir com sua
são observados a partir da celebração dele, no entanto, obrigação modal.
cessam com a verificação do fato condicionante;
6. Vícios do negócio jurídico
— Condição suspensiva: os efeitos do negócio estão
em situação de pendência enquanto não se verificar o Negócios jurídicos são válidos quando a vontade in-
evento (condicio pendet, “condição pendente”). terna é exteriorizada (manifestação) de forma clara e per-
feita. Porém, caso haja uma discrepância entre a vontade
Caso o evento previsto não seja concretizado (condicio interna e sua manifestação, o negócio jurídico é inválido.
déficit, “condição deficitária”), o negócio é conside-
rado como se nunca tivesse existido. A invalidade dos negócios pode ser de dois tipos:
Caso se verifique a condição (condicio existit, “condi- • Nulidade (nulo): invalida-se o negócio de forma que
ção existente”), o negócio é considerado puro, como se ele não produz nenhum efeito jurídico;
nunca houvesse sido condicionado – i.e., ele retroage. • Anulabilidade (anulável): invalida-se o negócio de
Pode haver duas situações relativas à retroatividade forma que ele pode ou não produzir efeitos jurídicos
do negócio jurídico: (o interessado vai precisar requerer sua anulação judi-
• Ex nunc (“desde agora”): os efeitos não retroa- cial para cessar os efeitos).
gem, i.e., apenas têm eficácia após o momento da Nota-se que a invalidade vem dos vícios do negócio.

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Um brocardo dizia “aquilo que no início é vicioso não c) Dolo


pode convalescer por decurso do tempo” (PAULO), i.e., o Dolo (dolus) é quando a divergência entre a vontade
inválido não se torna válido espontaneamente. interna e sua manifestação externa é realizada proposital-
a) Simulação e reserva mental mente por uma das partes com o intuito de induzir a outra
Simulação (simulatio) é quando as partes do negócio ao erro. Um brocardo a definia como “toda malícia, falácia
fingem (de maneira conhecida pelas partes) uma manifes- ou maquinação empregada para enganar, iludir ou ludi-
tação externa diferente da correspondente vontade interna. briar o outro.” (ULPIANO).
• Absoluta: as partes manifestam vontade de um negó- O pretor AQUÍLIO GALO introduziu (68 a.C.) a ação de
cio, mas, na verdade, não querem negócio algum; dolo (actio de dolo): essa proteção estipulava que quem
agisse com dolo poderia ser condenado a pagar à vítima o
• Relativa: as partes manifestam vontade de um negócio, prejuízo por ela sofrido em virtude do vício (ação penal
mas, na verdade, querem um fato diverso do praticado. gravíssima, pois também resultava na pena de infâmia ao
Em princípio, o negócio simulado é valido frente a ter- condenado).
ceiros; entre as partes, prevalece o ato dissimulado. Porém, d) Coação
caso haja evidência inegável da simulação frente a tercei-
ros, o negócio é nulo. Coação (coactio) é a pressão física ou psíquica exer-
cida ilegalmente contra um agente para que este pratique
Reserva mental (reservatio mentalis) é quando uma um negócio jurídico. O direito antigo, muito formalista,
das partes diverge a manifestação externa de sua vontade desconsiderava a coação (porque mais importava a forma
interna (sem que a outra reconheça). Como dificilmente é externa do que a vontade interna).
reconhecido pelos outros, o ato permanece válido.
O pretor OTÁVIO definiu (80 a.C.) a coação como por
b) Erro dois motivos: pela força (vis) ou pelo medo (metus). Ele
Erro (error) é quando a divergência da vontade interna introduziu três meios que combatiam a coação:
e sua manifestação externa não é conhecida pelas partes, ou a) Restituição integral (in integrum restitutio): um
seja, é um conhecimento falso do fato. processo que tornava nulo o efeito do negócio e re-
O negócio pode se manter válido. Para que os efeitos do estabelecia a situação anterior;
negócio jurídico sejam anulados é necessário um erro es- b) Exceção (exceptio): defesa processual contra
sencial (referente a um elemento central do negócio jurí- aquele que pretendesse fazer valer um negócio de-
dico) e provável (uma conduta escusável do agente). corrente do negócio coagido;
• Erros que provocam a nulidade do negócio jurídico: c) Ação por causa de ameaça (actio quod metus
— Quanto ao negócio (in negotio): referente à própria causa): ação penal que instituía a coação como de-
essência do ato, i.e., realizar um negócio pensando que lito, sendo punível por 4 vezes o valor do negócio.
se realizava outro; • Quadro sinóptico dos vícios:
— Quanto à pessoa (in persona): referente à identi- Tipos de vícios As partes
dade da pessoa com quem negocia, e.g., emprestar di- Há Vali-
no conhecem a
nheiro a alguém pensando que fosse outra pessoa; prejudicados? dade
negócio jurídico
discrepância?
— Quanto ao objeto (in corpore): referente à identi- Simulação abs. As duas, sim Não ✓/✗
dade física do objeto, e.g., comprar um objeto pensando
Simulação rel. As duas, sim Não ✓/✗
que fosse outro;
Uma sim,
— Quanto à substância (in substantia): referente às Reserva mental Talvez ✓
outra, não
qualidades essenciais do objeto, e.g., comprar um ob-
Erro Nenhuma Talvez ✓/✗
jeto pensando que ele tem um atributo que não tem.
Dolo Uma, sim Sim ✗
• Erros que não provocam a nulidade do negócio ju-
rídico (ele permanece válido): Coação As duas, sim Sim ✗
— Quanto à qualidade (in qualitate): referente à
quantidade do objeto, e.g., adquirir um objeto de quali-
dade inferior ao que se pensava;
— Quanto à quantidade (in qualitate): referente à
quantidade do objeto, e.g., adquirir mais do objeto do
que se pensava;
— Quanto à ignorância da regra (error iuris): veja o
tóp. 2 do cap. 3 quanto à ignorância da regra.

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PARTE II: DIREITOS REAIS


CAP. 7 – DIREITOS REAIS
1. Direitos reais e direitos obrigacionais ou pessoais
O capítulo aborda uma distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais ou pessoais.12
DIREITOS REAIS DIREITOS OBRIGACIONAIS
Direito obrigacional ou pessoal é aquele exercido sobre
Direito real é aquele exercido sobre uma coisa que a
uma pessoa que afeta indireta e mediatamente uma coisa,
afeta direta e imediatamente, sob todos ou certos aspectos,
não a seguindo.
seguindo-a em poder de quem a detenha (“sequela”).
Na relação, o credor exerce seu poder sobre o devedor,
O proprietário (ou usufrutuário, usuário, etc.) exerce
exigindo-lhe uma certa conduta, e.g., que ele lhe transfira a
seu poder sobre a coisa, contra os demais.
coisa do dever jurídico.
O titular do direito e a coisa têm uma relação material e
O titular do direito e a coisa têm uma relação obrigacio-
direta. Por isso, é um “direito sobre a coisa” (ius in re).
nal e indireta. Por isso, é um “direito à coisa” (ius ad rem).
1. Exigem ao sujeito passivo uma conduta negativa, i.e., 1. Exigem ao sujeito passivo uma conduta positiva, i.e.,
que ele se abstenha de determinada prática sobre coisa que ele se pratique de determinada prática, cumprindo
alheia, ou que ele tolere que outrem exerça certa conduta seu dever.
sobre a sua.
2. Há um sujeito passivo universal: tais direitos valem 2. Há um sujeito passivo específico: tais direitos não va-
contra todos (erga omnes), podendo ser invocados con- lem contra todos, mas tão somente contra pessoas deter-
tra toda e qualquer pessoa (mesmo que de boa-fé) que se minadas: os devedores, envolvidos na obrigação.
oponha ao exercício desses direitos pelo titular.
3. Exigem publicidade, sendo de conhecimento geral. 3. Normalmente, não exigem publicidade.

4. Devido à sua importância (pois afetam todos da socie- 4. Afetam apenas os vinculados às obrigações e, por isso,
dade), são limitados e determinados pela lei (numerus permitem certa “criatividade” dos particulares (dentro
clausus). da tipicidade publicamente reconhecida).13
5. Tendem a produzir efeitos por prazos breves ou limita-
5. Tendem a produzir efeitos por prazos longos ou perpé- dos, extinguindo sua validade quando for cumprida pelas
tuos, permanecendo válidos indeterminadamente (a me- partes, ou quando não for exigida tempestivamente (su-
nos que haja uma causa extintiva). jeitos, assim, à prescrição e à decadência).

2. Espécies de direitos reais


Podemos classificar os direitos reais em dois:
• Direito real sobre coisa própria (ius in re propria): aqueles mais amplos e abrangentes, em que o titular do direito tem
propriedade (proprietas) ou domínio (dominium) sobre a coisa.
• Direitos reais sobre coisa alheia (iura in re aliena): aqueles limitados, em que o titular do direito não tem propriedade
ou domínio sobre a coisa, mas o proprietário da coisa alheia lhe concede parcela de seus direitos. Subdividem-se em dois:
— Direitos reais de gozo: visam o uso ou fruição de coisa alheia, e.g., servidões pessoais (usufruto, uso e habitação),
servidões prediais, superfície e enfiteuse;
— Direitos reais de garantia: visam a servir de garantia para o cumprimento de uma obrigação, e.g., fidúcia, penhor e
hipoteca.
OBS. 1: Tomei a liberdade de tirar os capítulos seguintes da ordem, por achar que assim seria melhor para fins didáticos
e de compreensão. A ordem adotada foi a seguinte:
CAP. 8 – PROPRIEDADE → CAP. 12 – AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE → CAP. 10 – POSSE → CAP. 9 – PROTEÇÃO DA
PROPRIEDADE → CAP. 11 – PROTEÇÃO DA POSSE → CAP. 13 – DIREITOS REAIS SOBRE COISA ALHEIA .

12
Há uma pequena diferenciação entre as doutrinas: a nomenclatura “direitos obrigacionais” é aquela adotada pelo PROF. MARKY (p.
91) e “direitos pessoais” é aquela adotada pelo PROF. MOREIRA ALVES (top. 138).
13
Releia o quadro OBS. 3 e 4 do cap. 6, “Negócio jurídico”.

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CAP. 8 – PROPRIEDADE • Limitação pela lei: inicialmente não existiam, porém,


por exigências sociais (agrícolas, religiosas, higiênicas
1. Conceito etc.) o direito romano introduziu leis que atenuassem o
“Propriedade” (proprietas) ou “domínio” (domi- fator individualista e acentuação o elemento social (isso
nium) é um poder jurídico pleno, exclusivo e potencial- originará a moderna “função social da propriedade”).
mente14 absoluto sobre uma coisa corpórea. É um DIREITO As limitações pela lei visam proteger o interesse pú-
SUBJETIVO. blico ou o interesse de terceiros particulares.
O direito de propriedade traduz uma relação direita e
— O proprietário de um terreno ribeirinho devia tolerar
imediata entre a pessoa titular do direito (chamada de
o uso público da margem;
“proprietário” ou “dono”)e a coisa.
— A manutenção de estradas marginais ao terreno fi-
No sentido positivo, atribui três direitos ao titular:
cava a cargo do proprietário;
a) Direito de “usar” (ius utendi): faculdade de utilizar a
— Havia proibições de demolição de prédios sem au-
coisa (respeitando os limites legais);
torização administrativa;
b) Direito de “fruir” (ius fruendi): faculdade de colher — O descobridor da jazida tinha o direito de explorar a
frutos da coisa; mina em terreno alheio, mediante indenização a ser paga
c) Direito de “dispor” (ius disponendi): faculdade de pelo proprietário (o tesouro é dividido meio a meio);
alienar sua coisa a outrem (onerosa ou gratuitamente). — O dono de um terreno devia tolerar que um vizinho
No sentido negativo, protege o proprietário por meio entrasse ali dias sim, dia não, para recolher os frutos
de uma ação (actio) contra turbação da propriedade por caídos de sua árvore;
terceiros (erga omnes, “contra todos”). — O vizinho devia suportar a inclinação de ramos em
altura superior a 15 pés (4,5 metros), podendo cortá-los
As formas de propriedade surgiram da propriedade co- até essa altura;
letiva sobre terras, exercida pelas gentes (conjunto de fa- — O fluxo normal das águas pluviais devia ser supor-
mílias coligadas por um ascendente em comum) e que, de- tado também pelos donos de terrenos, sendo vedadas
pois, passaram para o Estado romano. obras que o alterassem artificialmente;
A distribuição de terras públicas e particulares verifi- — Era proibida a emissão de fumaça, calor, umidade e
cou-se durante a República. Assim, ficaram como propri- mau cheiro sobre imóveis próximos;
edade do Estado as propriedades provinciais (fora da — O direito de construir era condicionado a não preju-
península itálica). dicar a iluminação e vista dos prédios vizinhos;
Distinguiam-se dois tipos de propriedades: — Era limitada a altura máxima dos prédios de aparta-
mento (insulae) a 70 pés (21 metros) de altura.
• Propriedade quiritária: a propriedade do cidadão ro- — Em algumas situações, a propriedade seria inaliená-
mano, que deve ser res in commercio; a coisa deve ter vel: visando proteger os bens do pupilo, os interesses
sido adquirida pelo titular de forma reconhecida pelo da mulher, as coisas em litígio e o terreno dotal;
ius civile. — No direito medieval, com bases no direito Justini-
• Propriedade pretoriana: uma vez que o sistema qui- ano, foram proibidos os atos emulativos (o proprietá-
ritário era rígido e complicado para o desenvolvimento rio faz algo unicamente para prejudicar o vizinho).
de negócios, os pretores criavam mecanismos que fa- 3. Copropriedade
cilitavam a aquisição de propriedade.
a) Conceito
E.g.: se uma pessoa comprasse um terreno sem as for-
malidade do mancipatio, teoricamente, o antigo propri- Existe “copropriedade”? Seria essa uma “contradição
etário ainda era dono do terreno; o pretor protegia o entre termos” (contradictio in terminis)?
comprador até que se finalizasse o prazo do usucapião Sendo “propriedade” um direito absoluto, como po-
(veremos mais a diante) e ele se tornasse o novo dono. deriam duas ou mais pessoas ter direito absoluto sobre uma
2. Limitações legais à propriedade mesma coisa? Era impossível “haver propriedade de duas
pessoas sobre a totalidade <de uma coisa>.” (ULPIANO).
Em princípio, o poder jurídico do proprietário é ilimi-
tado. Mas ele é limitável, seja pela vontade do proprietá- A solução é a seguinte: é possível que uma única pro-
rio ou pela lei. priedade (e não várias propriedades) de uma coisa seja di-
• Limitação por vontade do proprietário: o proprietário
vidida em partes ideais (chamadas de “porções”, “qui-
podia, voluntariamente, restringir a amplitude de seu di- nhões” ou “cotas” ideais) e, assim, compartilhada por
reito, destacando e concedendo a outrem certa parcela várias pessoas. Nota-se que as partes ideais são, geral-
dele; assim se criam os direitos reais sobre coisa alheia. mente, abstratas (não físicas), correspondentes ao direito
de cada um.

14
Há uma elasticidade desse direito: o direito pode ser absoluto, No primeiro caso, terminado o prazo da limitação, os direitos
mas também pode ser limitado pela vontade do dono ou pela lei. retornam ao dono e o poder volta a ser absoluto.

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Assim, chama-se copropriedade ou condomínio (con-


dominium) quando a propriedade (dominium) de uma
coisa é compartilhada por duas ou mais pessoas (chamadas
de “coproprietário” ou “condôminos”).
OBS. 1: Lembre-se de que algumas instituições jurídi-
cas atuais levam o mesmo nome de instituições romanas,
mas com significados diferentes:
• “Condomínio”:
– ROMA: qualquer tipo de copropriedade;
– BRASIL: na linguagem coloquial, trata-se um tipo es-
pecífico de copropriedade, em que os vários proprie-
tários dividem um espaço físico, cada qual com seu
apartamento.

Cada coproprietário tem poder ilimitado somente sobre


a sua parte ideal. Em relação ao todo, porém, ele tem ape-
nas poder limitado. Para qualquer mudança no todo, não
vale a vontade da maioria, mas sim a vontade unânime (não
pode ter uma pessoa que discorde).
Há dois direitos ligados à copropriedade:
• Ius accrescendi (“direito de acrescer”): caso um dos
coproprietários renunciasse, sua parte seria igualmente
dividida e acrescentada às partes dos demais.
• Ius prohibendi (“direito de proibir/vetar”): cada um
dos coproprietários pode vetar a disposição dos outros
(e.g., vetar algum uso, ou uma mudança na propriedade
em sua totalidade); como já vimos, não vale o voto da
maioria, mas, sim, a unanimidade. Esse é um defeito do
instituto da copropriedade, para o qual não há correção
(o único “remédio” seria extinguir a propriedade).
b) Origem e extinção
• Há duas espécies de copropriedades quanto à origem:

— Voluntária: adquirindo uma coisa em comum;


— Incidental: herdando uma coisa em comum.
• Há duas formas de extinção de copropriedades:
— Voluntária: os coproprietários vendem suas partes
uns aos outros, até que só sobre uma pessoa com a pro-
priedade total, ou cada um vende sua parte da proprie-
dade para terceiros e a copropriedade se desfaz;
— Incidental: um dos coproprietários poderia, a qual-
quer momento, propor uma ação de divisão <da
coisa> comum (actio communi dividundo), um meio
judicial para dividir a propriedade compartilhada.
Após a extinção, se a coisa fosse divisível, ela seria fi-
sicamente dividida, mas, se não fosse possível, seria
adjudicada15 a quem desse o maior lance, e o adjudi-
catário ficaria obrigado a pagar para cada coproprietá-
rio sua respectiva parte.

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Adjudicar significa atribuir propriedade a alguém.

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CAP. 12 – AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE • In iure cessio (“cessão em juízo <por simulação>”):


se destinava à transferência de propriedade de coisas
Os romanos distinguiam os modos de aquisição de pro- quaisquer num processo simulado.
priedade do ius civile e do ius gentium, além daqueles inter
• Traditio (“tradição”): se destinava à transferência da
vivos e os mortis causa.
propriedade de res nec mancipi, pela simples entrega
1. Modos de aquisição de propriedade sem formalidade. Podia ser feita uma entrega física,
Entretanto, a dogmática moderna, que utilizada no ca- simbólica ou fictícia (e todas seriam consideradas reais,
pítulo, distingue os modos de aquisição em originários e importando a intenção das partes).
derivados. Adquire-se a propriedade após a transferência. c) Usucapião (usucapio)
a) Modos originários Não se sabe se era um modo originário ou derivado. De
São aqueles modos em que não há relação entre o ad- qualquer forma, o usucapião (usucapio) é a posse exis-
quirente e o proprietário precedente, e.g., a coisa que não tente por tempo prolongado que transforma uma situação
era propriedade de ninguém quando adquirida. São reco- de fato em direito. Segundo a Lei das XII Tábuas, “depois
nhecidos no ius gentium, portanto, também aplicáveis aos de dois anos usando ininterruptamente um terreno, é ge-
estrangeiros. Podem ser memorizados pela mnemônica rada a propriedade.”
“A-E-I-O-U”: aquisição, especificação, invenção, ocu- O direito romano clássico estabeleceu alguns critérios:
pação e união. deveria ser uma coisa suscetível de propriedade quiritária;
• Aquisição dos frutos: os frutos, em regra, pertencem deveria possuir a coisa com a intenção de tê-la como sua;
ao proprietário da coisa frugífera. Porém, em alguns ca- deveria ter um título ou causa que justificasse a aquisição;
sos, os frutos são propriedade de pessoa diversa dele: deveria haver uma transferência lícita da propriedade (sem
— Usufrutuário: adquire a propriedade do fruto vícios); o possuidor deveria ter boa-fé.
quando os apreende materialmente (percepção); CAP. 9 – PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE
— Enfiteuta e possuidor de boa-fé: adquirem a pro-
1. Ações reais: proteção da propriedade
priedade do fruto quando ele se desprende da coisa
frugífera; Como já vimos, o direito romano é baseado num sis-
tema de ações; todos os DIREITOS SUBJETIVOS são prote-
— Locatário: adquire a propriedade do fruto por per-
gidos por AÇÕES. No caso, os direitos reais são protegi-
cepção caso convencionado no contrato de locação.
dos por ações reais (actiones in rem).
• Especificação: é a confecção de coisa nova a partir de
As ações reais protegem a propriedade contra a turbação
material alheio; o especificador se tornará proprietário
e esbulho de quaisquer terceiros. Elas são de dois tipos:
caso a confecção seja irreversível.
a) Ação reivindicatória (actio rei vindicatio): se alguém
• Invenção do tesouro: o tesouro será dividido em par-
sofre lesão total da propriedade;
tes iguais entre o inventor (descobridor) e o proprietá-
rio da terra onde o tesouro foi achado, ou inteiramente b) Ação negatória (actio negatoria): se alguém sofre le-
ao proprietário, se o inventor foi mandado por ele. são parcial da propriedade.
• Ocupação: é a tomada de posse de uma coisa in com- Para requerer uma ação (actio), o ônus da prova recai
mercio, porém res nullius (ninguém é seu dono); a sobre o autor, i.e., é necessário que o autor da ação prove
ocupação gera direito de propriedade caso esse futuro que ele é o verdadeiro proprietário, e não o réu. Em outras
proprietário tenha intenção de a ter como coisa sua. palavras, precisa-se provar um DIREITO. Porém, a prova
da propriedade é uma das mais difíceis provas — os ju-
• União de coisas: é a acessão, i.e., junção material de
ristas medievais chamaram-na de diabólica (probatio dia-
duas ou mais coisas. A coisa principal sempre absorve
bolica).
seus acessórios, e.g., o terreno absorve a edificação, a
semeadura, o plantio; a mesma regra se aplica para li- Uma das formas de provar o direito da propriedade se-
gas metálicas e misturas de líquidos. ria, e.g., recorrer de possuidor em possuidor (i.e., aqueles
que fisicamente detiveram a coisa) até chegar ao fabrica-
b) Modos derivados
dor (para provar que os possuidores anteriores também
São aqueles modos que se fundam na transferência do eram proprietários). Chegando no fabricador, a origem da
direito de propriedade pelo proprietário precedente ao propriedade, seria possível provar que a propriedade (e não
adquirente. São três: mancipatio, in iure cessio e traditio. apenas a posse) foi legalmente transferida e, portanto, o
• Mancipatio (“mancipação”): se destinava à transfe- autor da ação é o verdadeiro proprietário.
rência da propriedade de res mancipi, independente- As cinco formas rigorosas de provar a propriedade da
mente da natureza ou validade do negócio jurídico em coisa são provando-se os modos originários de aquisição
que se funda. Era um negócio formal, abstrato e verbal de propriedade.
— um ato solene.

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CAP. 10 – POSSE CAP. 11 – PROTEÇÃO DA POSSE


1. Conceito 1. Interditos: proteções da posse
“Posse” (possessione) é um poder de fato que gera Como já vimos, no direito romano, os DIREITOS SUB-
consequências jurídicas. É um FATO que produz conse- JETIVOS são protegidos por AÇÕES. Porém, a posse não é
quências jurídicas. um direito, mas sim um FATO.
Ele caracteriza-se pela “exteriorização social de que se Ainda assim, o direito romano reconhecia uma prote-
é dono de um bem, não importando se é ou não é o ver- ção da posse: os interditos (interdicta), ordens judiciais
dadeiro dono.” Por causa disso, é possível que alguém te- provisórias expressas pelo pretor (espécies de “manda-
nha posse de algo, mas não tenha a propriedade (i.e., seja dos”).
possuidor, mas não proprietário ou dono de fato). Os interditos protegem a posse contra a turbação ou es-
Já diziam os romanos que “nada tem em comum a pro- bulho de terceiros. Eles classificam-se em dois tipos:
priedade com a posse” (“nihil commune habet proprietas a) Reintegração de posse (interdicta recuperandae pos-
cum possessione,” ULPIANO), daí devemos diferenciá-las. sessionis causa, “interditos para recuperação de
Para que haja efetiva subordinação física da coisa al- posse): se alguém sofre lesão total da posse (o esbulho
guém, não é preciso direito algum, e.g., ladrão (não tem ou espólio);
direito algum de propriedade, mas tem a posse).
São necessários dois elementos: o corpus e o animus: b) Manutenção de posse (interdicta recuperandae pos-
• Corpus (elemento material): a coisa deve estar subor-
sessionis causa, “interditos para ser mantida a
dinada fisicamente a alguém; posse”): se alguém sofre lesão parcial da posse (a tur-
bação ou perturbação).
• Animus (elemento intencional): a pessoa deve ter a
intenção de ter a coisa para si (animus rem sibi habe- As posses justas eram equiparadas às posses injustas,
ndi), de possui-la (affectio tenendi), e de ser (ainda que e ambas recebiam a mesma proteção jurídica por meio dos
ilegalmente) seu proprietário (animus domini) — por interditos, com apenas uma diferença:
• Já que “a relação de vício existe somente entre o pos-
causa disso, apenas pessoas com capacidade de agir
(i.e., que podem manifestar vontade) seriam capazes de suidor e a pessoa desapossada”, um possuidor com
adquirir posse por si mesmas. posse viciosa tinha proteção judicial (idêntica à posse
justa) contra terceiros, porém, não tinha proteção judi-
Para que alguém seja possuidor, ele precisa ter tanto cial contra a pessoa desapossada (que poderia recuperar
corpus quanto animus sobre a coisa, simultaneamente. a posse mesmo violentamente, mas sem armas).
OBS. 1: Distingue-se dos dois institutos mencionados Dentro daquela classificação, havia diversos interditos:
a “detenção” que é um FATO para o qual não há meio • Uti possidetis (“assim como vós possuís”): aplica-se
judicial de proteção. O detentor apenas tem corpus so- em casos de turbação duradoura da posse de um imó-
bre uma coisa, mas não animus (ele sabe que aquela vel. Para a posse viciosa, o efeito era o inverso: quem
coisa não é dele, e nem quer possui-la), e.g., comodatá- possuía de fato perdia sua posse para aquele a quem ti-
rio (toma emprestado), inquilino (toma alugado), guar- nha indevidamente esbulhado; possuía efeito duplo:
dador, transportador, etc. contra turbação, ou recuperação de posse.
Duas exceções são o enfiteuta e o credor pignoratí- • Utrubi (“em um ou outro dos dois lugares”): aplica-
cio que, apesar de serem, na teoria, detenções, recebem se em casos de turbação rápida da posse de um imóvel.
proteção jurídica como se fossem posses. Protegia não o possuidor atual, mas aquele que possuíra
a coisa por mais tempo dentro do período de um ano;
Quem tem posse pode ou não ser um proprietário legí- possuía efeito duplo: contra turbação, ou recuperação
timo. Por causa disso, a posse poderia ser: de posse.
• Justa: baseando-se num direito de exercer o poder de
fato, e.g., o proprietário tem o direito de exercer posse • Unde vi (“de onde <a coisa foi esbulhada> com vio-
sobre sua propriedade (ele tem propriedade e posse); lência”): protegia a posse não viciosa contra o esbulho
violento, dentro de um ano a contar do esbulho.
• Injusta ou viciosa: obtida pela violência (vi), clandes-
tinamente (clam) ou a título precário (precário). • De vi armata (“acerca da violência à mão armada”):
protegia qualquer tipo de posse (viciosa ou não) con-
E.g.: invasor e ladrão (não têm propriedade, mas têm tra o esbulho violento à mão armada, ou por bandos de
posse), comprador de boa-fé que não recebeu a posse grileiros.
da casa comprada (não tem propriedade, mas tem
posse), e possuidor de terreno abandonado (ainda • De precário (“acerca <da posse a título> precário”):
não tem propriedade, mas tem posse). o concedente podia conseguir reintegração de posse do
precarista (aquele que tinha recebido título temporá-
Da forma como se adquire a posse, perde-se: se faltar rio).
corpus (que pode ser retirado por interditos) ou animus.

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2. Características do interdito (interdictum)


O interdito era uma ordem provisória e célere (rápida),
pela qual se protege a posse (mas não a propriedade), até
mesmo sem precisar ouvir a outra parte.
Ela era feita pelo pretor (enquanto a decisão final era
dada pelo juiz). A proteção que o pretor dava era liminar,
i.e., uma medida inicial ou de entrada (por ser uma “ins-
tituição urbana”, era concedida na entrada da cidade).
OBS. 1: O PROF. HÉLCIO levantou conosco o questio-
namento: por que proteger a posse?
Mesmo aplicando tal princípio, os romanos não expli-
caram o porquê. Daí, os juristas romanistas do séc. XIX,
para explicar essa proteção, chegaram a duas teorias:
• Teoria da proteção de posse com cunho privado
(defendida, e.g., por IHERING): essa teoria defende
que, no final das contas, a proteção à posse tem a fi-
nalidade de proteger a propriedade; isso porque, na
maioria das vezes, a posse está nas mãos do proprie-
tário (possuidores viciosos são uma minoria). Além
disso, como é difícil provar a propriedade, esse seria
um mecanismo para resolver o problema de forma
provisória e rápida.
• Teoria da proteção de posse com cunho público
(defendida, e.g., por SAVIGNY): essa teoria defende
que é necessário garantir uma mínima ordem e paz
pública (até porque não se pode ficar provando a pro-
priedade a cada problema que aparecer). É necessário
manter certo equilíbrio. Nesse caso, mantém-se a
coisa nas mãos de quem tiver a posse mais pacífica.

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CAP. 13 – DIREITOS REAIS SOBRE COISA ALHEIA direito de “usar”. O usuário não tem direito de “fruir”
nem de “dispor” (não tem a faculdade nem de transferir
1. Direitos reais sobre coisa alheia esses direitos, nem transferir o exercício desses direi-
Direitos reais sobre coisa alheia (iura in re aliena) tos).
são direitos reais em que o titular não é proprietário, mas • Habitação: uso de uma casa para habitação, ou de ser-
recebe do proprietário alguns direitos. viços de escravos ou animais de carga.
Há dois tipos de direitos reais sobre coisa alheia:
Eram normalmente constituídas pela iure in cessio, e
a) Direitos reais de gozo
extintas pela confusio (reunião na mesma pessoa da servi-
b) Direitos reais de garantia
dão e do domínio). Protegidas por uma ação legal seme-
São de direitos reais de gozo: servidões prediais, ser-
lhante ao vindicatio.
vidões pessoais, superfície e enfiteuse.
2. Servidões prediais
“Prédio”, na linguagem técnico-jurídica, quer dizer
imóvel em geral (construído ou não).
Nesse tipo de servidão, há dois prédios próximos: um
dominante e um serviente, no qual a servidão existe. O
titular do direito de servidão é o dono do prédio domi-
nante, mas a relação está no domínio entre os dois prédios.
Eram perpétuas (pela relação jurídica entre os prédios)
e indivisíveis (não partilhadas entre condôminos).
Poderiam ser rústicas (mais antigas) ou urbanas, de-
pendendo do caráter do prédio dominante.
Normalmente, as urbanas eram negativas (proibiam o
proprietário do terreno serviente de fazer algo) e as rústi-
cas eram positivas (autorizavam o proprietário do prédio
dominante a fazer algo).
As servidões rústicas eram as servidões de passa-
gem: a pé (iter), a pé e com animais (actus), a pé, com
animais e com veículos (via) e o aqueduto (aquaeductus).
Eram normalmente constituídas pela mancipatio e ex-
tintas pelo não uso ou perecimento do prédio serviente ou
dominante.
3. Servidões pessoais
Há três tipos de servidões pessoais:
• Usufruto: direito real sobre coisa alheia, inaliená-
vel, limitado no tempo, que atribui ao titular apenas
os direitos de “usar” e de “fruir”. O usufrutuário não
tem direito de “dispor” (não tem faculdade de transferir
seu direito de usufruto, mas pode transferir o exercício
desse direito). No final da limitação temporal, o usufru-
tuário vai retornar a propriedade ao proprietário (por
isso, a coisa deveria ser inconsumível).
OBS. 1: A propriedade marcada pelo usufruto é cha-
mada de “nua propriedade” e o proprietário (que
cede direitos ao usufrutuário), de “nu proprietário”.
OBS. 2: O usufruto e a locação, apesar de conferirem,
na prática, os mesmos direitos ao usufrutuário e ao lo-
catário, porém, são diferentes, visto que a primeira faz
parte do direito real (portanto, com proteção erga om-
nes, incluindo o proprietário), e a segunda, um direito
obrigacional (portanto, com proteção somente contra
o proprietário, aquele com quem se estabeleceu o con-
trato, e não contra terceiros).
• Uso: direito real sobre coisa alheia, inalienável, li-
mitado no tempo, que atribui ao titular apenas o

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PARTE III: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES


CAP. 15 – OBRIGAÇÕES 1. Partes na obrigação
As partes essenciais na obrigação são o CREDOR e o
A palavra “obrigação” (do latim obligatio = ob + li-
DEVEDOR. Pode haver outras partes secundárias, como o
gatio, lit. “ligação, vinculação”) pode ter diferentes senti-
fiador, do lado do devedor, ou um terceiro autorizado
dos, de acordo com o contexto:
para receber ou acionar em nome do credor.
• Obrigação em sentido amplo: obrigação como “de-
Geralmente, o credor e o devedor de uma obrigação são
ver” em contraposição a direitos; nesse sentido, um de-
apenas uma pessoa cada. Mas é possível que haja duas ou
ver de qualquer área do direito (e.g., filho obedecer ao
mais pessoas na parte de credor (cocredores) ou devedor
pai; dever de todos de não perturbar a propriedade);
(codevedores) — isso pode ocorrer de duas formas:
• Obrigação em sentido estrito: obrigação como “vín-
a) Obrigações parciais: quando a prestação é conside-
culo ou relação jurídica” entre credor e devedor,
rada divisível, cada pessoa é credora ou devedora de
com avaliação pecuniária (em dinheiro); nesse sentido,
uma parte ou quota (pro parte vel pro rata) dela;
a obrigação (também chamada de “relação obrigaci-
onal”) faz parte do direito das obrigações. b) Obrigações solidárias: quando a prestação é conside-
rada indivisível (seja por sua natureza, pela disposição
— OBS. 1: Para diferenciar “direitos reais” e “direito
contratual entre as partes, ou como consequência de um
obrigacionais” releia o CAP. 7.
ato ilícito praticado por várias pessoas), cada pessoa é
Na OBRIGAÇÃO (relação obrigacional), o credor credora ou devedora da prestação na sua totalidade (in
(polo ativo) tem a faculdade de exigir do devedor (polo solidum) e, caso um deles pague ou receba toda a pres-
passivo) uma prestação (i.e., uma conduta de dar, fazer tação, extingue-se a obrigação para todos.
ou prestar), que tem o dever de cumpri-la (i.e., “solvê-la”)
A solidariedade poderá ser ativa (cocredores) ou pas-
A faculdade do credor (polo ativo) de exigir o cum- siva (codevedores).
primento da prestação é chamada de “CRÉDITO”. O dever
2. Objeto da obrigação
do devedor (polo passivo) de cumprir com a prestação é
chamado de “OBRIGAÇÃO”16. O objeto da obrigação (id quod debetur, “aquilo que
é devido”) é a própria PRESTAÇÃO: ela é o dever de “dar”
Caso o devedor não cumpra com sua obrigação, o cre-
(dare), “fazer” (facere) ou “prestar” (praestare).
dor pode recorrer com uma ação obrigacional ou pessoal
(actio in personam) contra ele. Há várias possibilidades para a prestação; o necessário
é que ela tenha um valor pecuniário e que não seja impos-
Originalmente, a execução da ação era feita no próprio
sível, ilícita, imoral ou totalmente indeterminada.
corpo do devedor (XII Tábuas, séc. V a.C.): após o pro-
cesso do manus injectio (“colocação das mãos” do credor Caso seja impossível desde a constituição da obrigação,
sobre o devedor), o devedor poderia ser feito escravo do ela é nula. Caso se torne impossível no decorrer do pro-
credor ou ser morto por ele. Posteriormente, com a lex Po- cesso (superveniente), a obrigação se extingue — se o de-
etelia Papiria (séc. IV a.C.), a execução passou a ser feita vedor for responsável pela impossibilidade superveniente, a
em seu patrimônio (bens ou direitos). prestação vira a obrigação do devedor de ressarcir o credor.
OBS. 2: Consequências da lei Petélia Papíria: 3. Classificações de acordo com o objeto
• Em relação à “prisão civil”: até hoje não se res- OBS. 3: O PROF. MARCHI nos ressaltou a distinção:
ponde por delitos civis com o corpo, mas somente • Objeto da obrigação: é a prestação em si, i.e., um
com o patrimônio; por isso, não existe “prisão civil” comportamento de dar, fazer ou prestar;
(exceto por inadimplemento de pensão alimentícia). • Objeto da prestação: é o bem ou serviço dentro da
• Em relação à fraude contra credores: quando um prestação.
devedor insolvente (i.e., que não cumpriu sua obri-
E.g.: O contrato de compra e venda tem duas obriga-
gação) ou na iminência de tornar-se tal, por má fé,
ções: a do comprador e do vendedor.
pratica atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio —
prejudicando o credor, que deveria ter garantia no pa- • O objeto da obrigação do comprador é a prestação de
trimônio do devedor —, diz-se que houve uma fraude transferir dinheiro, e o objeto da obrigação do ven-
contra o credor (fraus creditorum). dedor é prestação de transferir a coisa.
O remédio jurídico dessa fraude é a Ação Pauliana • O objeto da prestação “transferir dinheiro” é o di-
(Actio Pauliana, do jurista PAULO), que anula ou re- nheiro, e o objeto da prestação “transferir a coisa”
voga os atos fraudulentos do devedor (CC, art. 161). é a coisa em si.

16
Aqui, vemos obrigação em sentido ainda mais estrito; pode- gação [relação obrigacional].” A distinção era mais explícita no
ríamos pensá-la como uma “obrigação [dever] dentro da obri- latim: obligatio (vínculo jurídico) e oportere (dever do devedor).

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Vejamos diferentes classificações da obrigação, de i) Pelo preço do carro;


acordo com o objeto da prestação — a) e b) — e de acordo
com o objeto da obrigação — c). ii) Por ter sido tolhido (obstruído) seu direito (dimi-
nuíram suas opções de escolher).
a) Obrigações específicas e genéricas
2. Se a impossibilidade for causada pelo devedor,
• Obrigação específica (obligatio speciei): quando o ob- mantém-se a obrigação do credor (a contraprestação).
jeto da prestação é uma coisa específica (certa species), Porém, caberia somente uma ação de indenização mo-
bem determinada, e.g., o carro da chapa n.º X. vida pelo credor (prejudicado) contra o devedor:
Se a coisa específica se extinguir por caso fortuito (cf. i) Por ter sido tolhido seu direito.
p. 28), o devedor fica liberado da obrigação.
• Obrigação genérica (obligatio generis): quando o ob- • Obrigação facultativa: quando há uma prestação prin-
jeto da prestação é uma coisa genérica (genus), deter- cipal, mas o devedor tem a faculdade de pagar de forma
minável pelas partes (o devedor escolhe, exceto quando diferente daquela devida (i.e., da prestação principal).
convencionado pelas partes), e.g., cinco sacos de trigo. E.g.: “A concessionário se obriga a entregar o Fusca;
Se a coisa genérica se extinguir por caso fortuito, o de- caso não queira entregá-lo, ela se permite (se faculta) a
vedor não fica liberado da obrigação (genus non parit, entregar o Camaro.”
“o gênero não perece”), exceto se houver delimitações Há uma prestação principal e única em “primeiro
neste gênero, que acabem sendo impossibilitadas. plano”, e uma prestação facultativa em “segundo
b) Obrigações divisíveis e indivisíveis plano”. A escolha de qual prestar é do devedor, por-
• Obrigação divisível: quando o objeto da prestação é tanto, o credor só pode exigir a prestação devida.
divisível, i.e., quando a prestação pode ser dividida em Se a prestação principal (aquela devida) se torna im-
partes sem diminuir o valor proporcional de cada uma; possível, a obrigação se extingue. Se a prestação facul-
• Obrigação indivisível: quando o objeto da prestação é tativa se torna impossível, a obrigação não se extingue.
indivisível, i.e., quando a prestação não pode ser divi- 4. Elementos e efeitos jurídicos da obrigação
dida em partes, ou a divisão diminuiria o valor propor- A relação obrigacional é, geralmente, temporária, afi-
cional de cada uma delas. nal, a obrigação existe para sem cumprida — o cumpri-
O critério da “divisibilidade” da prestação se refere mento espontâneo é chamado de “adimplemento” (“pa-
tanto a bens, quanto a condutas devidas (e.g., realizar um gamento” = “solução” = “liquidação”) e o não cumpri-
deslocamento pela metade, ou pelo percurso completo). mento é chamado de “inadimplemento”.
c) Obrigações alternativas e facultativas A obrigação tem dois elementos: o débito/Schuld (ele-
• Obrigação alternativa: caso o credor ou devedor te- mento não-coativo), que é a dívida da obrigação, e a res-
nha direito a escolher, dentre diversas opções, respecti- ponsabilidade/Haftung (elemento coativo), que é a con-
vamente, o que receber ou o que prestar. sequência para a inadimplência da dívida.
E.g.: “A concessionária se obriga a entregar ou o Fusca — OBS. 5: Didaticamente, chamamos os elementos de
ou o Camaro.” “fases”, mas, a rigor, são cronologicamente indepen-
dentes. Geralmente, há os dois elementos para o deve-
As múltiplas prestações estão num “mesmo plano”; dor; porém, em obrigações naturais há apenas Schuld e
diz-se que a obrigação “se concentra” na prestação es- para fiadores há apenas Haftung.
colhida. A escolha de qual receber ou prestar pode ser
feita por ambas as partes, portanto, o credor pode exi- a) Responsabilidade
gir o cumprimento de qualquer uma das prestações. A responsabilidade é a consequência para a inadim-
Se uma delas se tornar impossível, a obrigação não se plência: se o devedor for responsável por não ter pagado
extingue; a possibilidade de escolha é repassada (ou a dívida, o credor terá a faculdade de recorrer num tribu-
“concentrada”) para as outras. nal, e o juiz aplicará contra o devedor uma ação obrigaci-
onal (actio in personam) — a execução da ação recairá
OBS. 4: O PROF. MARCHI nos deu dois exemplos sobre sobre seu patrimônio (punição com valor pecuniário).
o tema: suponha duas situações envolvendo prestações Contudo, nem todos os casos de inadimplemento geram
alternativas, em que uma das prestações se torna impos- tal consequência — somente naqueles em que o devedor é
sibilitada, não por caso fortuito (cf. p. 28), mas por causa responsável —, afinal, é possível que ele não o seja.
de uma das partes, seja por dolo ou culpa (idem).
1. Se a impossibilidade for causada pelo credor, man- DICA PARA ANÁLISE DOS CASOS: sempre se atentar à
tém-se a obrigação do devedor (a prestação). Porém, ca- utilidade do negócio e quais suas consequências para
beriam duas ações de indenização movidas pelo deve- o patrimônio das partes (aumentar, diminuir, manter).
dor (prejudicado) contra o credor: Daí, precisamos analisar três fatores que afetam a res-
ponsabilidade do devedor:

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1) DOLO (dolus): é a intenção de descumprir a lei ou a • Aumenta a responsabilidade do devedor: faz com
obrigação; é o agir de má-fé, com conhecimento do que o devedor se responsabilize não só pelo dolo,
comportamento ilícito. Não há graduações do dolo. mas também pela culpa e causa maior – daí, “a obri-
— O devedor sempre responde por dolo – tanto quando gação se perpetua” mesmo que haja uma impossibi-
o contrato é útil para o devedor quanto quando não o é. lidade (ainda assim o devedor é responsável).
Não é possível disposição contrária (norma cogente). • Nas obrigações baseadas na boa fé: o devedor tem
2) CULPA (culpa): é a negligência, falta de diligência ne- que pagar por juros da dívida e entregar os frutos
cessária; é o agir de boa-fé, não prevendo algo que é adquiridos durante a mora.
previsível. Há graduações da culpa: b) Mora do credor (mora creditoris): quando o credor se
a) Culpa leve: quando não se tem o cuidado que o ho- atrasa ou se recusa a receber (mora accipiendi).
mem médio (bonus paterfamilias) deve ter – negli- • Diminui a responsabilidade do devedor: faz com
genciar algo que a média se preocupa; dependendo que o devedor se responsabilize só pelo dolo, e
dos contratos, pode assumir duas formas: possa exigir indenização por despesas e danos sofri-
• “Culpa leve em concreto”: quando o ponto de re- dos em consequência da mora do credor.
ferência é a diligência do bonus paterfamilias; A purgação da mora (purgatio mora) é quando o de-
• “Culpa leve em abstrato”: quando o ponto de refe- vedor ou credor “limpa” a obrigação, livrando-se dela.
rência é a diligência costumeira do própria devedor; A mora do devedor é purgada quando este oferece a
b) Culpa lata: quando não se tem o cuidado que qual- prestação devida e o credor a aceita, ou ele a recusa sem
quer pessoa deve ter – negligenciar algo “óbvio”; motivo justificado (“sem justa causa”).
— Geralmente, o devedor só responde por negligência A mora do credor é purgada quando ele oferece aceitar
quando o contrato é útil ou proveitoso para ele (e.g., o pagamento do devedor e o indeniza por eventuais danos.
comodato) ou para ambos (e.g., locação). Há possibili- 5. Obrigações naturais
dade de disposição contrária (norma dispositiva); Obrigações naturais são aquelas em que, embora te-
• Alguns contratos responsabilizam culpa leve in con- nham formalmente o aspecto de obrigação perfeita, o cre-
creto, e.g., sociedade, tutela, curatela matrimônio; dor não pode exigir do devedor o cumprimento da presta-
• Outros, responsabilizam tanto a culpa leve quanto a ção por meio de ação — o cumprimento deverá ser natu-
culpa lata, e.g., mandato. ral, espontâneo (de livre vontade do devedor).
• Certifique-se da responsabilização no caso concreto! E.g. 1: os alieni iuris, sendo relativamente incapazes de
direito, não podiam obrigar-se juridicamente; daí, seus pa-
3) CASO FORTUITO (casus): é a impossibilidade inevi- terfamilias seriam responsabilizados por seus negócios.
tável ou imprevisível, mesmo havendo diligência de
um bonus paterfamilias. Há graduações do caso: E.g. 2: os infantes maiores, sendo relativamente inca-
pazes de agir, podiam praticar negócios jurídicos favorá-
a) Caso fortuito maior (casus maior) ou força maior veis, mas não podiam obrigar-se sem intervenção do tutor.
(vis maior): quando não há meio de defesa, e.g.,
raio, incêndio, desastres, guerra, morte. Apesar de não haver constrangimento de ação (Haf-
tung), um cumprimento da prestação natural (Schuld) é to-
b) Caso fortuito menor (casus minor): quando há talmente válido e, assim, o devedor não poderá pedir de-
meio de defesa, e.g., furto, estrago, quebra, perda volução do pagamento (ele não tem direito de “repetição”).
acidental ou fortuita.
Hoje, também são obrigações naturais: as dívidas de jo-
— O devedor não responde por caso maior (a não ser gos e apostas, e as dívidas que já prescreveram. O devedor
que haja mora), mas alguns contratos específicos (e.g., não está juridicamente obrigado a pagar o preço, mas há
hoteleiro, transportador marítimo, tintureiro, alfaiate, uma obrigação social e moral — preza-se pelas promessas
comodatário, depositário, credor pignoratício), por e compromissos (nesse caso, a moral reflete-se no direito).
custódia, responsabilizam o devedor por caso menor.
Caso ele não cumpra com a prestação, não haverá con-
b) Mora sequências jurídicas, porém pode haver sanção social.
Geralmente há um prazo para o pagamento da dívida
(i.e., “solução ou liquidação do débito”). Caso não haja o CAP. 16 – FONTES DAS OBRIGAÇÕES
pagamento da dívida dentro do vencimento, diz-se que há Na divisão clássica, de GAIO, as fontes das obrigações
“mora” (mora) ou “demora”. são duas: os contratos (responsabilidade contratual) e os
A mora aumenta a responsabilidade de um dos lados delitos civis (responsabilidade extracontratual). JUSTI-
e diminui a responsabilidade do outro lado. NIANO inclui outras fontes: os “quase contratos” (quasi
a) Mora do devedor (mora debitoris): quando o devedor ex contractu) e os “quase delitos” (quasi ex maleficio).
se atrasa ou não consegue prestar/pagar (mora solvendi). Nos próximos capítulos, estudaremos essas fontes.

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CAP. 17 – CONTRATOS • Há diversos tipos contratuais – exceto quanto es-


pecificado pela lei, os contratos são abertos na
Este resumo baseia-se no CAP. 17 de THOMAS MARKY,
forma e abertos no conteúdo; o único requisito é
nos TÓPICOS 223–255 de MOREIRA ALVES e nas aulas do
não ferir a lei cogente;
PROF. HÉLCIO, com ênfase na história contratual romana.
• Brocardo medieval-moderno explicando princípio:
1. Princípios contratuais: uma comparação
c) “Pacta sunt servanda” (“Os pactos devem ser ob-
“Contrato” (contractus) é um gênero que engloba um
servados”) – prioriza-se cumprir o acordo de von-
conjunto de atos jurídicos bilaterais, baseados no acordo
tades, reforçando a obrigatoriedade no contrato.
entre as vontades (conventio) manifestadas pelas partes.
Em síntese, podemos pensar nos requisitos para a ori-
Porém, não basta o acordo. Os romanos entendiam a
gem da obrigação contratual:
necessidade de um fundamento jurídico, isto é, uma causa
civil (causa civilis) para elevar o ato jurídico bilateral à Direito romano:
condição de contractus. A convenção em geral, sem causa ACORDO DE VONTADES + CAUSA CIVIL
civil, era apenas um “pacto” (pactum), que não gerava (fundamento jurídico + autorização social)
obrigação (algumas raras exceções de pacta eventual- v.
mente obtiveram tutela jurídica pelos pretores ou por cons-
Direito moderno:
tituições imperiais).
ACORDO DE VONTADES + CONFORMIDADE COM
Como ressaltamos, os romanos eram muito práticos: a A NORMA COGENTE
noção de obrigação estava ligada à existência de uma ação
jurídica que poderia exigir do outro lado de cumprir a sua 2. História do contrato em Roma: Introdução
prestação. Lembremo-nos que o sistema romano é um ars
A história dos contratos em Roma é marcada por ques-
(uma arte prática): um sistema de ações.
tões penais, sociais e religiosas.
Evidentemente, o contrato não permaneceu inalterado
No direito primitivo, quase não havia contratos; as
ao longo da história. Antes de falarmos da evolução con-
questões hoje resolvidas com contratos eram, na época, re-
tratual, podemos ver um quadro comparativo dos princí-
solvidas com o direito penal (por meio da ação reivindi-
pios contratuais nos direitos romano e moderno.
catória, para retornar a posse àquele que tinha proprie-
PRINCÍPIOS CONTRATUAIS dade, e da tipificação de crime de furto, para punir aquilo
1. Direito romano: vigorava a máxima da “tipicidade que estivesse em desconformidade com um acordo).
contratual” – contratos são uma questão civil, social No início do direito romano arcaico, não existia “con-
e até mesmo religiosa: trato de compra e venda” – os romanos viam duas transfe-
• Fundamento público-privado: controle social; rências simultâneas: mancipatio da coisa (transferência
formal) e pagamento em dinheiro (transferência informal).
• Só havia contratos pré-autorizados e socialmente
aceitos; assim, só se poderia entrar em juízo para Nesse sentido, só havia pagamentos “à vista”, pois as
exigir o cumprimento destes tipos de contratos; transferências deveriam ser publicamente reconhecidas
(feitas no ato). Mas e o pagamento “a prazo”?
• Havia pouquíssimos tipos contratuais (o Digesto
lista dez) – o contrato era fechado na forma, mas 3. Primeira fase dos contratos romanos: Formalismo
aberto no conteúdo (poderia ter qualquer conteúdo (séc. VIII – V a.C.)
desde que a formas estivesse dentro dos limites); Com a evolução do direito romano, no fim do período
• Brocardos romanos explicando princípios: arcaico, surgiu o mecanismo do “CONTRATO” para per-
mitir pagamentos “a prazo”. O contrato seria realizado en-
a) “Nuda pactio obligationem non parit” (“Um sim- tre mais de uma parte: um “devedor” e um “credor”:
ples acordo não gera obrigação”) – o que gera obri-
• O devedor tem o dever de cumprir uma obrigação;
gação é a causa civil;
• O credor tem a faculdade de exigir (por meios legais)
b) “Uti lingua nuncupassit, ita ius esto” (“Aquilo que
se declarou solenemente com a língua, faz-se lei”) que o devedor cumpra sua obrigação;
– o contrato tem força vinculante às partes. O termo “contractus” tem a etimologia: con (“com, en-
2. Direito moderno: vigora a máxima da “liberdade tre”) + traho (“arrastar”). Ela transmite a ideia do “[di-
contratual” – grandes influências do liberalismo: reito] de uma pessoa [credor] de arrastar a outra [deve-
dor]” caso esta última não cumprisse sua obrigação.
• Fundamento privado: acordo de vontade;
— O credor tinha direito de arrastar o devedor até o juiz
• Pode-se criar qualquer contrato que não contrarie (literal ou figuradamente), que decidiria a disputa, po-
“a lei, a ordem pública e os bons costumes”, sob a dendo permitir ao credor exercer uma punição corporal
máxima “se a lei não proíbe, está permitido”; ao devedor (que se tornou patrimonial, cf. CAP. 15).

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Assim, o contrato cria uma RELAÇÃO DE OBRIGAÇÃO pretores foram criando contratos semelhantes.
(direito obrigacional) entre o devedor e o credor — re- A segunda fase dos contratos romanos foi chamada de
forçada pelo uso da força, ou por uma ação jurídica. “REALISMO CONTRATUAL” — foi a época dos “contra-
Primeiro, havia a transferência formal da coisa por tos reais”, pois os contratos reais se referiam à transferên-
mancipatio; depois, o contrato garantia que a transferência cia de propriedade, posse ou detenção de uma coisa (res).
informal do dinheiro ocorreria dentro do prazo. Os contratos reais funcionavam geralmente como em-
O contrato era feito publicamente, numa cerimônia so- préstimos gratuitos: o credor empresta uma coisa ao de-
lene de promessa: o devedor juraria perante a sociedade e vedor e, logo depois, espera que este lhe restitua esta coisa
os deuses, comprometendo-se a cumprir sua obrigação (caso infungível) ou uma coisa de igual gênero, quantidade
para com o credor. Por causa disso, o contrato não era um e qualidade (caso fungível). Da simples entrega (traditio)
assunto particular, mas envolvia a sociedade e a religião; da coisa, resultava a obrigação do devedor à devolução.
o devedor punha-se sob pena de dupla punição: humana
Contratos reais:
(reprovação social e castigo jurídico) e divina.
ACORDO DE VONTADES + CAUSA CIVIL
Obs. 1: A rigor, ninguém está obrigado a fazer algo + ENTREGA DA COISA + OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
contra sua vontade — o próprio contrato depende do — Ações de restituição
acordo entre vontades. Quando um contrato não é cum-
prido por falta de vontade, o ideal é resolver este não cum- A ação típica dos contratos reais era a ação de restitui-
primento com “perdas e danos” (veremos adiante). Porém, ção (que podia ser uma “actio” ou uma “condictio” — não
o juiz pode determinar uma multa pelo não cumprimento confunda esta última com condicio, “condição”!). Quanto
para pressionar o devedor a cumprir sua prestação. à origem, estas ações eram geralmente classificadas em:
a) Actio in ius: ação criada pelos juristas ou pela lei;
Devido à solenidade, a primeira fase dos contratos ro- b) Actio in factum: ação criada ou admitida pelo pretor,
manos foi chamada de “FORMALISMO CONTRATUAL” — mesmo que não esteja na lei ou no edito.
foi a época dos “contratos formais”. O fundamento destes
— Classificação dos contratos
contratos era a formalidade, que garantia segurança e esta-
bilidade jurídica. CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS
Contratos formais: Em primeiro lugar, TODO contrato é um ato jurídico
ACORDO DE VONTADES + CAUSA CIVIL + ATO SOLENE bilateral (ou até multilateral, em sociedades), pois re-
Neste sentido, inicialmente, os “contratos” derivaram quer o acordo entre vontades das partes.
seu vocabulário e lógica dos “delitos”. Eles têm algo em — Obs. 3: Porém, o termo “bilateral” é usado em ou-
comum: ambos são fontes de relações obrigacionais (cf. tro sentido para classificar um tipo de contrato, como
CAP. 16). A lógica contratual derivou da lógica penal. veremos; por isso, devemos notar o contexto em que
se estão usando os adjetivos “unilateral” e “bilateral”.
Havia dois tipos de contratos formais, com forma limi-
tada, mas conteúdo ilimitado: Classificação dos contratos:
a) Quanto à forma (menos importante):
a) Contrato formal de nexum
• Formal escrito (ou literal): por meio de uma fórmula
Nexum era uma espécie de empréstimo realizado em escrita; eram pouquíssimos, e caíram em desuso;
um ato formal: na presença das partes, do objeto (geral-
• Formal verbal (ou solene): por meio de uma fórmula
mente dinheiro), de uma balança e de cinco testemunhas,
verbal de promessa, usando palavras específicas;
pronunciavam-se fórmulas verbais e solenes. O credor
transferia a propriedade do objeto ao devedor, que tinha • Informal verbal: por meio de uma fórmula verbal de

obrigação de devolver outro tanto equivalente. Logo na promessa, porém mais flexível quanto às palavras.
próxima fase do direito romano, o nexum caiu em desuso. b) Quanto ao tipo (as necessidades além da causa civil e
do acordo entre vontades para gerar obrigação):
b) Contrato formal de stipulatio
• Formal: precisa revestir-se de forma fixa e solene;
Stipulatio era a promessa solene (spondere) de uma
• Real: precisa da entrega da coisa;
prestação qualquer. A obrigação tinha caráter sagrado e
• Consensual: só precisa de causa civil e acordo.
força obrigatória. Manteve-se nas próximas fases do di-
reito romano; as formalidades logo foram caindo, e os con- c) Quanto às vantagens das partes:
tratos constituídos pela promessa solene passaram a se • Gratuito: gera vantagem para uma das partes, com a
chamar “contratos verbais”. prestação;
4. Segunda fase dos contratos romanos: Realismo • Oneroso: gera vantagem para ambas as partes, com
(séc. V – II a.C.) a prestação e contraprestação.
O primeiro dos contratos sem tal formalidade foi criado
por uma lei votada em comício. Depois, aos poucos, os

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d) Quanto às obrigações das partes: • Contrato unilateral: só gera uma obrigação:


• Unilateral: gera obrigação para só uma das partes; — O mutuário-devedor deve “devolver outro tanto”;
— Há apenas uma prestação; • Ações possíveis:
— Só uma das partes tem direito (facultas agendi, — Há transferência de propriedade, daí não é possível
faculdade de exigir ação) contra a outra; uma rei vindicatio;
• Bilateral imperfeito: gera uma obrigação principal e — Foram criadas actiones in ius pela lei. O mutuante-
essencial para uma das partes, e uma obrigação se- credor tinha duas ações contra o mutuário-devedor:
cundária e acessória para a outra parte; a) Condictio certae creditae pecuniae (“ação de resti-
— Há duas prestações de valores econômicos diferen- tuição de certa quantia de dinheiro emprestado”);
tes: prestação essencial e contraprestação eventual; b) Condictio triticaria (“ação de restituição de
— Uma das partes tem direito essencial contra a ou- trigo”) – usada para grãos em geral.
tra, a qual tem direito eventual contra aquela; b) Contrato real de fidúcia (fiducia)
• Bilateral perfeito: gera duas obrigações correspon- Na fidúcia, o credor (“fiduciante”) emprestava coisa
dentes e recíprocas para ambas as partes; infungível ao devedor (“fiduciário”), esperando que este
— Há duas prestações de valores econômicos equiva- conservasse a própria coisa e devolvesse-a depois.
lentes (ou próximos): prestação e contraprestação; • Brocardos romanos: “Fiducia cum amico” (“Fidúcia
— Ambas as partes têm direito uma contra a outra. com amigo”, contrato de confiança) e “Fiducia cum
creditore” (Fidúcia com credor”, contrato de garantia);
e) Quanto à análise do contrato:
• Tratava-se de uma transferência de propriedade de
• Stricti iuris: o juiz só pode analisar estritamente o di- uma coisa infungível (e.g., casa, animais, escravos) do
reito do contrato, seja aquele da lei ou o estipulado; credor por mancipatio ou in iure cessio, para o devedor,
• Bonae fidei: o juiz pode analisar tanto o direito das que devia conservá-la; algum tempo depois, o credor
partes como o comportamento destas (boa e má-fé). exigirá que o fiduciário dê à coisa uma determinada
destinação, ou que lhe restitua a própria coisa;
Tendo em vista as classificações, podemos ver os cinco • Os acordos eram inicialmente feitos entre amigos, pois
tipos de contratos reais: no início de Roma, todos eles eram
era necessária muita confiança do credor no devedor
meros pacta, até serem transformados em contratos.
para restituir-lhe a coisa sem formalidade; posterior-
Os contratos reais eram gratuitos, havendo uma presta- mente, esse tipo foi popularizado entre comerciantes.
ção que favorece um lado, não admitindo contraprestação, • Contrato gratuito: só o fiduciário-devedor tem vanta-
exceto se convencionada em um contrato separado.
gens; o fiduciante-credor faz um favor;
As suas condictio eram scricti iura, e as suas actio eram
• Contrato bilateral imperfeito: gera uma obrigação
bonae fidei – por conta disso, é necessário atentar-se ao
principal (do devedor) e uma secundária (do credor):
tipo de ação e o tipo de contrato!
— O fiduciário-devedor deve “conservar a coisa, resti-
VOCABULÁRIO DOS AGENTES NOS CONTRATOS REAIS tuindo-a ou destinando-a conforme o acordo”;
Geralmente, nos contratos reais, o “nome” do credor ❖ Responde por dolo e culpa na perda ou avaria
(polo ativo na relação jurídica) termina em -ante, e o (danificação da coisa);
“nome” do devedor (polo passivo) termina em -ário.
— O fiduciante-credor eventualmente deve “ressarcir
as despesas e indenizar danos providos pela coisa”;
a) Contrato real de mútuo (mutuum)
❖ Neste caso, o credor deve temporariamente su-
No mutuum, o credor (“mutuante”) emprestava coisa
portar o “direito de retenção” (ius retentionis)
fungível ao devedor (“mutuário”), esperando que este de-
do devedor até que este seja ressarcido ou indeni-
volvesse coisa equivalente depois.
zado;
• Brocardo romano: “Mutuum quia ex meo fit tuum” (“É
• Ações possíveis:
mútuo porque o meu se torna teu.”);
— Há transferência de propriedade, daí também não é
• Tratava-se de uma transferência de propriedade de
possível uma rei vindicatio;
uma coisa fungível (e.g., dinheiro, grãos) do credor por
traditio, para ser consumida pelo devedor; algum — Primeiro, foram criadas actio in factum pelos preto-
tempo depois, o credor exigirá que o mutuário lhe res- res; depois, surgiu uma actio in ius. O fiduciante-credor
titua coisa de mesma quantidade, qualidade e gênero; tinha esta ação contra o fiduciário-devedor:
• Contrato gratuito: só o mutuário-devedor tem vanta- a) Actio fiduciae (“ação fiduciária”) para exigir a de-
gem; o mutuante-credor faz um favor; volução; tornou-se uma eventual ação bilateral.

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THOMAS MARKY

c) Contrato real de depósito (depositum) ❖ Responde por dolo e custódia (culpa lata e leve);
No depositum, o credor (“depositante”) entregava — O comodante-credor eventualmente deve “ressarcir
coisa móvel infungível ao devedor (“depositário”), espe- as despesas e indenizar danos providos pela coisa” e até
rando que este guardasse a coisa, para devolvê-la depois. “suportar o direito de retenção do devedor”;
• Tratava-se de uma transferência de detenção de uma • Ações possíveis:
coisa móvel infungível do credor (e.g., livro, quadro), — Foi criada uma actio in factum, que se tornou duas
para o devedor, que devia guardá-lo; algum tempo de- actiones in ius. Uma era faculdade do comodante-cre-
pois, o credor exigirá que o devedor devolva a coisa. dor, e outra era faculdade do comodatário-devedor:
• Contrato gratuito: só o depositante-credor tem vanta- a) Actio commodati directa (“ação depositária di-
gens; o depositário-devedor faz um favor; reta”) – em favor do comodante-credor;
• Contrato bilateral imperfeito: gera uma obrigação b) Actio commodati contraria (“ação depositária
principal (do devedor) e uma secundária (do credor): contrária”) – em favor do comodatário-devedor.
— O depositário-devedor deve “guardar a coisa sem e) Contrato real de penhor (pignus) ou
usar, e restituir com os frutos”; contrato pignoratício (contractus pignoraticius)
❖ Se ele usar a coisa enquanto a guarda, está come- No contractus pignoraticius, o devedor (“devedor
tendo o delito de furto de uso (furtum usus); pignoratício”) entregava coisa móvel (ou até imóvel) ao
❖ Responde por dolo e culpa lata na perda ou ava- credor (“credor pignoratício”), para servir de garantia
ria; real de outra obrigação entre os dois. Se o devedor cum-
— O depositante-credor eventualmente deve “ressarcir prisse sua prestação na obrigação primária, o credor pig-
as despesas e indenizar danos providos pela coisa” e até noratício deveria devolver a coisa.
“suportar o direito de retenção do devedor”; • Tratava-se de uma transferência de posse ad inter-
• Ações possíveis: dicta de uma coisa móvel (ou imóvel) do devedor para
o credor, que devia guardá-la sem o usar; esse credor
— Foi criada uma actio in factum, que se tornou duas pignoratício eventualmente devolveria a coisa.
actiones in ius. Uma era faculdade do depositante-cre-
• Este contrato pressupõe a existência de um outro con-
dor, e outra era faculdade do depositário-devedor:
trato (real ou consensual) do qual ele serve de garantia.
a) Actio depositi directa (“ação depositária direta”)
• Contrato gratuito: só o devedor pignoratício tem van-
– em favor do depositante-credor;
tagens (a garantia em si);
b) Actio depositi contraria (“ação depositária con-
• Contrato bilateral imperfeito: gera uma obrigação
trária”) – em favor do depositário-devedor.
principal (do credor) e uma secundária (do devedor).
d) Contrato real de comodato (commodatum)
Há certa “inversão de papéis” (compare com os demais
No commodatum, o credor (“comodante”) entregava contratos reais, e veja como aqui as maiores obrigações
coisa móvel inconsumível ou coisa móvel consumível recaem sobre o “credor”):
(desde que não seja consumida) ao devedor (“comodatá-
rio”), que deve usá-la de forma gratuita e de boa-fé (sem — O credor pignoratício deve “conservar a coisa sem
a consumir), para devolvê-la depois. usar (exceto se for um uso convencionado)”;
• Tratava-se de uma transferência de detenção de uma ❖ Se usar a coisa além do convencionado, está co-
coisa móvel inconsumível (e.g., quadro, estátua) ou metendo o delito de furto de uso (furtum usus);
coisa móvel consumível (e.g., garrafas de vinho) do ❖ Pode responder por custódia;
credor (e.g., livro, quadro) para o devedor, que devia — O devedor pignoratício eventualmente deve “ressar-
usá-la conforme estipulado no contrato; algum tempo cir as despesas e indenizar danos providos pela coisa”;
depois, o credor exigirá que o devedor devolva a coisa.
• Ações possíveis:
• Contrato gratuito: só o comodatário-devedor tem
vantagens; o comodante-credor faz um favor; — Foi criada uma actio in factum, que se tornou duas
actiones in ius. Uma era faculdade do depositante-cre-
• Contrato bilateral imperfeito: gera uma obrigação dor, e outra era faculdade do depositário-devedor:
principal (do devedor) e uma secundária (do credor):
a) Actio pigneraticia directa (“ação pignoratícia di-
— O comodatário-devedor deve “conservar a coisa e reta”) – em favor do que entregou a coisa e contra o
usá-la somente dentro do convencionado”; credor pignoratício que não cumpriu sua obrigação;
❖ Se usar a coisa além do convencionado, está co- b) Actio pigneraticia contraria (“ação pignoratícia
metendo o delito de furto de uso (furtum usus); contrária”) – em favor do credor pignoratício e
❖ Pode ser julgado quanto a seu comportamento, contra o que entregou a coisa e que se recusa a cum-
pelo exercício de boa-fé (bona fides); prir as obrigações eventuais.

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
THOMAS MARKY

5. Terceira fase dos contratos romanos: Consensua- a) Contrato consensual de compra e venda (emptio ven-
lismo (séc. II a.C. – I d.C.) ditio)
Já havendo passado o período do FORMALISMO CON- — Obs. 6: Vimos que a compra e venda já foi um con-
TRATUAL e do REALISMO CONTRATUAL, vemos no séc. trato formal e, depois, real. Aqui, referimo-nos à compra e
II a.C. uma outra mudança nos tipos contratuais romanos. venda após ser transformada em contrato consensual.
A República de Roma venceu Cartago nas Guerras Pú- Na compra e venda, há um acordo de vontades baseado
nicas (264–146 a.C.). Com o maior influxo de estrangei- na entrega de uma mercadoria (merx) em troca de di-
ros, surgiram novas necessidades; o crescimento do co- nheiro (pretium).
mércio aumentava o número de contratos — então, fica- • Mercadoria: deve ser uma coisa corpórea ou incorpó-
ram evidentes as limitações dos contratos formais e reais. rea, própria ou alheia, presente ou futura;
Como agilizar esse processo? Como ter garantia em ❖ O vendedor pode vender coisa que ainda não existe,
contratos sem precisar de solenidades como stipulatio? ou que ainda não é sua — negócios com tais objetos
Para resolver essa questão, em 140 a.C., o pretor pe- seriam válidos. Porém, ele deve garantir que conse-
regrino se inspirou no costume geral dos povos para in- guirá fornecer ao comprador esta coisa e garantir-
troduzir no seu edito os “contratos consensuais”. Logo lhe a posse pacífica. Se ele não conseguir, não cum-
depois, o pretor urbano se inspirou nele e introduziu priu com sua promessa, e o comprador pode entrar
ações para proteger estes contratos. com uma ação contra ele.
Assim, com as novas necessidades, veio a terceira fase ❖ Caso o vendedor tenha agido por má-fé, será res-
dos contratos romanos, chamada de “CONSENSUALISMO ponsabilizado pela inadimplência por dolo.
CONTRATUAL”. Os romanos “liberaram” três contratos ti- — Obs. 7: Diferenciamos “dolo” como vício de
picamente comerciais — compra e venda, locação e so- consentimento (no momento inicial do contrato) e
ciedade (e, mais tarde, o mandato) —, permitindo que o “dolo” como motivo de responsabilização pela ina-
simples acordo, havendo causa civil, gerasse obrigação. dimplência (durante a execução do contrato).
— Obs. 5: Os demais contratos ainda precisavam da for- ❖ A venda de coisa futura pode ser uma emptio rei
malidade, ou da entrega da coisa para gerar a obrigação. speratae (“de coisa esperada”), quando o compra-
Havia uma abertura nestes contratos, retirando forma- dor paga o dinheiro se a coisa vier a existir; ou uma
lidades excessivas e permitindo gerar-se a obrigação a par- emptio spei “da esperança”), quando o comprador
tir da promessa convencionada (como predomina HOJE). paga o dinheiro independentemente de a coisa vir a
existir ou não (ele submete-se à aleatória).
Contratos consensuais:
ACORDO DE VONTADES + CAUSA CIVIL • Preço: deve ser em dinheiro, real, certo e justo.
— Equilíbrio contratual e contratos sinalagmáticos ❖ Se o preço não for em dinheiro, mas com coisa, di-
zemos que houve uma troca (permutatio);
Logo no final da República, os juristas procuraram
criar um novo mecanismo que (assumindo a função do for- ❖ “Real” – não simulado;
malismo) garantisse a segurança e o equilíbrio contratual. ❖ “Certo” – determinável por um terceiro ou fixado
Além disso, o juiz também precisava analisar os detalhes no ato, mas nunca por arbítrio de uma das partes;
e as cláusulas dos contratos, para que fosse justo quando — Características da compra e venda:
uma das partes exigisse o cumprimento da promessa.
• Contrato oneroso: tanto o vendedor quanto o compra-
A doutrina jurídica que analisava o consenso e equilí- dor têm vantagens ou interesses;
brio entre as partes vinha da retórica grega; por isso, usou-
se o termo grego “sinalagmático” para denominar contra- • Contrato bilateral perfeito: gera duas obrigações re-
tos equilibrados. O termo “synallagma” tem a etimologia: cíprocas e correspondentes:
syn (“com, junto de”) + allagma (“trocar [por algo seme- — O vendedor (venditor) “transfere a posse da mer-
lhante]”). Ele transmite a ideia do “contrato de troca, ha- cadoria” ao comprador e “garante seu uso pacífico”
vendo semelhança entre as partes”, i.e., prestação e con- (praestare rem habere licere);
traprestação. ❖ O vendedor tem a faculdade de exigir do com-
Já vimos que contratos podem ser unilaterais, bilate- prador a entrega do dinheiro;
rais imperfeitos (obrigações não correspondentes, uma ❖ Risco do vendedor = turbação e evicção.
essencial e outra eventual) ou bilaterais perfeitos (obri-
gações recíprocas e correspondentes). O termo “sinalag- Se aparecer alguém com direito mais forte que o
máticos” aplica-se a contratos bilaterais perfeitos. direito de posse do comprador (e.g., o direito real
do antigo dono da mercadoria) e tira dele a coisa,
Nestes contratos, há sempre duas relações simultâneas turbando seu direito, o comprador pode mover
de credor–devedor: cada um é credor de uma obrigação e uma ação contra o vendedor para que este lhe
devedor de outra.

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devolva o dinheiro, pois não assegurou a posse — Características da(s) locação(es):


pacífica da coisa; neste caso, diz-se que o vende- • Contrato oneroso: tanto o locador quanto o locatário
dor foi responsabilizado por evicção (evictio). têm vantagens ou interesses;
Não se trata de inadimplemento se o vendedor já • Contrato bilateral perfeito: gera duas obrigações re-
entregou a coisa ao comprador. cíprocas e correspondentes:
❖ Risco do vendedor = vícios ocultos. — Na ordem das espécies apresentadas, o locador (lo-
O vendedor também é responsável pelos vícios cator) “cede a coisa para uso e/ou gozo”, ou “presta o
(defeitos) ocultos da coisa vendida. serviço”, ou “cede os materiais e é o dono da obra”17;
— Obs. 8: Estes dois riscos podem ser excluídos — Na ordem das espécies apresentadas, o locatário ou
por convenção expressa entre as partes. condutor (conductor) “recebe a coisa para usá-la
— O comprador (emptor) “transfere a propriedade e/ou dela gozar e paga o aluguel”, ou “paga salário
de dinheiro” ao vendedor; pelo serviço”, ou “recebe os materiais e realiza a obra
(=empreiteiro)”.
❖ O comprador tem a faculdade de exigir do ven-
dedor a entrega da coisa; ❖ Tanto locador quanto locatário respondem por dolo
e culpa (lata e leve).
❖ Risco do comprador = perecimento da coisa.
• Ações possíveis:
Se a coisa perece por caso fortuito, o comprador
ainda é obrigado a entregar o dinheiro ao vende- a) Actio locati (“ação do que foi dado em locação”)
dor (pois este agiu com diligência para conservar – em favor do locador;
a coisa, não sendo responsabilizado pela perda). b) Actio conducti (“ação do que foi recebido em lo-
Assim, o comprador suporta os riscos da compra cação”) – em favor do locatário ou condutor.
e venda. Para os romanos, isso não era uma ques- c) Contrato consensual de sociedade (societas)
tão de justiça, mas de normatividade e costume. Na sociedade, há um acordo de vontades baseado na
— Obs. 9: O brocardo “res perit domino” (“a cooperação das partes em atividade lícita, com fins lu-
coisa perece ao dono”) vale em contratos reais, crativos.
mas no contrato de compra e venda, vale “res • Baseada na recíproca confiança, originou-se da comu-
perit emptori” (“a coisa perece ao comprador”). nidade fraternal de coerdeiros.
• Ações possíveis: — Obs. XI: Por isso, ela é um liame obrigacional entre
a) Actio auctoritatis (“ação de autoridade”) – em as partes, e não uma pessoa jurídica distinta dos mem-
caso de evicção, o comprador pode exigir que o ven- bros, como na noção moderna (cf. CAP. 4).
dedor lhe restitua o dobro do preço da coisa; — Características da sociedade:
b) Actio redhibitoria (“ação redibitória”) – em caso • Contrato oneroso: todos os sócios têm vantagens ou
de vício oculto depois descoberto, o comprador po- interesses;
de exigir a rescisão da venda (prescrição: 6 meses);
• Contrato bilateral (ou plurilateral) perfeito: gera
c) Actio quanti minoris (“ação de um quanto a me- duas ou mais obrigações recíprocas e correspondentes:
nor”) – em caso de vício oculto depois descoberto, o
comprador pode exigir a redução do preço da coisa — Cada sócio deve “entrar com sua parte na socie-
(prescrição: 1 ano); dade” (contribuição pecuniária ou realização de ativi-
dade) e, na medida dessa contribuição, pode “partici-
b) Contrato consensual de locação (locatio conductio) par dos lucros e prejuízos”;
Na locação, há um acordo de vontades baseado na troca ❖ Os sócios respondem por dolo, culpa lata e culpa
de dinheiro (merces) por alguma destas três: leve em concreto.
a) disposição de coisa ou aluguel (locatio conductio • É sempre temporária: dissolve-se quando a finalidade
rei), ou; foi alcançada, ou se tornou impossível, ou venceu seu
b) prestação de serviço ou trabalho (locatio conduc- prazo, ou os sócios acordaram em dissolvê-la;
tio operarum), ou;
• Ações possíveis:
c) realização de obra ou empreitada (locatio condu-
ctio operis factendi). a) Actio pro socio (“ação na qualidade de sócio”) –
— Obs. 10: No direito romano, estas três espécies eram para liquidar a sociedade após sua dissolução;
um só tipo de contrato; o direito moderno as distingue. b) Actio communi dividundo (“ação para divisão do
As partes são chamadas de locador e locatário. <patrimônio> comum”).

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Isso no direito romano. No direito moderno, locador é quem “realiza a obra (=empreiteiro)” e o locatário é o “dono da obra”

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d) Contrato consensual de mandato (mandatum) convenções acessórias acompanhando o contrato (pacta


No mandato, há um acordo de vontades baseado na adiecta), ou convenções admitidas pelos pretores (pacta
prática de atos por alguém (mandatário) conforme as ins- praetoria) e por constituições imperiais (pacta legitima).
truções de outrem (mandante). b) Doação (donatio)
Era baseado na recíproca confiança. Por isso, admitia A doação (donatio) não era um contrato no direito ro-
rescisão por acordo entre vontades (“distrato”) a qualquer mano, mas uma causa que justificava um ato jurídico qual-
momento, mas só admitia rescisão unilateral (por qualquer quer: alguém (doador) diminui voluntariamente seu patri-
uma das partes) antes de iniciada sua execução. De forma mônio e aumenta o de outrem (donatário).
semelhante, extinguia-se com a morte de uma das partes. As doações poderiam ser doações reais (e.g., transfe-
— Características do mandato: rência do direito real de propriedade), obrigacionais (e.g.,
• Contrato gratuito: só o mandante tem vantagens e in- dever obrigacional do doador de doar ao donatário) ou li-
teresses; beratórias (eg., remissão de dívida).
• Contrato bilateral imperfeito: gera uma obrigação O direito justinianeu tutelou o simples acordo entre do-
principal (do mandatário) e uma secundária (do man- ador e donatário, tornando-o um pactum legitimum.
dante): c) Contratos inominados
— O mandatário “pratica gratuitamente um ato con- O direito justinianeu também reconheceu outros con-
forme as instruções e a vontade do mandante”; tratos que, por não se enquadrarem nas categorias tradici-
❖ Como sua atuação é gratuita, as eventuais vanta- onais, eram chamados de “contratos inominados” (con-
gens que o mandatário obtiver deverão ser repas- tractus innominati), e.g., o contrato inominado à troca ou
sadas ao mandante na prestação de contas como permuta (permutatio).
se fossem frutos; Estes eram, geralmente, bilaterais perfeitos (sinalagmá-
❖ Responde por dolo e até culpa leve; ticos), e adquiriam força e tutela jurídica quando uma das
partes efetuava sua prestação — obrigando a outra a efe-
— O mandante eventualmente “ressarce as despesas e tuar a contraprestação.
indeniza danos providos pela coisa”.
A parte que cumpria sua obrigação primeiro, porém,
❖ Em algumas situações, o mandante pode volun- em vez de exigir a contraprestação, podia simplesmente
tariamente renunciar a seu direito da prestação rescindir o contrato e pedir devolução — fazia uso da cha-
de contas, desta forma permitindo que o manda- mada condictio causa data causa non secuta (“ação de
tário continuasse com as eventuais vantagens. causa que foi dada <mas> não foi seguida”).
• Ações possíveis:
a) Actio mandati directa (“ação direta de mandato”)
– em favor do mandante, contra o mandatário ina-
dimplente.
b) Actio mandati contraria (“ação indireta de man-
dato”) – em favor do mandatário, contra o man-
dante que não ressarciu as eventuais despesas.
CLASSIFICAÇÃO RESUMIDA DOS
CONTRATOS REAIS E CONSENSUAIS
• Contratos unilaterais: contrato real de mútuo.
• Contratos bilaterais imperfeitos: contratos reais de
fidúcia, depósito, comodato, penhor.
• Contratos bilaterais perfeitos (sinalagmáticos per-
feitos): contratos consensuais de compra e venda, lo-
cação e sociedade.
— Obs. 12: o contrato real de mandato pode ser bi-
lateral imperfeito, dependendo da situação.

6. Outras situações
a) Pactos (pacta)
Como já vimos, a convenção, sem causa civil, era ape-
nas um “pacto” (pactum), que não gerava obrigação. Al-
gumas exceções eventualmente obtiveram tutela jurídica:

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CAP. 18 – QUASE-CONTRATOS causa jurídica. Devido à variedade de situações, havia vá-


rias condictiones.
Alguns fatos jurídicos voluntários lícitos criam relação
• Ações possíveis:
obrigacional entre as partes, sem que elas tenham conven-
cionado criá-la. Estes são os chamados “quase-contra- a) Condictio indebiti (“ação de repetição de indé-
tos”, presentes em diversas áreas do direito: bito”) – na situação de débito inexistente, mas pago
por engano;
• direito das obrigações: gestão de negócios e enrique-
cimento sem causa; b) Condictio ob causam datorum (“ação das coisas
dadas com uma causa”) ou condictio causa data
• direito familiar: tutela (relação entre tutor e tutelado).
causa non secuta (“ação de causa que foi dada
• direito das sucessões: legado (relação entre herdeiro e <mas> não foi seguida”) – na situação de contra-
legatário). prestação não executada pelo accipiens, o soluens
— Obs.: neste cap. estudaremos só as duas primeiras. poderia reaver a prestação executada (cf. CAP. 17).
Inicialmente, estes fatos geravam obrigações meramente c) Condictio ob iniustam causam (“ação em razão de
morais ou sociais, que, com o tempo, ganharam tutela jurí- causa injusta”) – na situação de pagamento por
dica. A noção da relação (às vezes de complementariedade, causa ilícita;
às vezes de oposição) entre moral e direito é expressa no d) Condictio ob turpem causam (“ação em razão de
brocardo: “Nem tudo que é lícito é honesto.” (PAULO) causa torpe”) – na situação de pagamento por causa
As obligationes ex quasi contractu eram reforçadas pe- torpe, imoral;
las actiones ou pelas condictiones: estas últimas eram ações e) Condictio sine causa (“ação sem causa”) – ação
abstratas baseadas no ius civile, que tinham como objetivo genérica que se aplicava a quaisquer situações de
a devolução de uma quantia ou coisa, servindo em diversas enriquecimento sem causa não categorizados.
situações.
1. Gestão de negócios (negotiorum gestio)
Gestão de negócios é um liame obrigacional parecido
com mandato, no qual alguém (gestor de negócios – ne-
gotiorum gestor) espontaneamente se encarrega de prati-
car atos no interesse de outrem (dono do negócio – domi-
nus negotii), sem que este o tenha incumbido.
— O gestor de negócios deve “agir de boa-fé e no in-
teresse da outra parte, e terminar a gestão iniciada”; sua
gestão não pode ser inútil nem expressamente proibida
pelo dono;
❖ Os gestores respondem por dolo ou culpa.
— O dono do negócio pode “aceitar a gestão e indeni-
zar o gestor por eventuais despesas e danos da gestão”
caso o gestor tenha agido dentro das obrigações.
• Ações possíveis:
a) Actio negotiorum gestorum directa (“ação direta
de gestão de negócios”) – em favor do dono, contra
o gestor, para exigir que este termine a gestão,
preste-lhe contas e entregue-lhe os frutos ou o lucro;
b) Actio negotiorum gestorum contraria (“ação con-
trária de gestão de negócios”) – em favor do ges-
tor, contra o dono, para exigir que este aceite a ges-
tão, reconhecendo seus resultados e indenizando-o
pelas despesas e danos decorrentes da gestão.
2. Enriquecimento sem causa
O enriquecimento sem causa decorre do recebimento
de um pagamento não devido (indebiti solutio) ou outras
situações contra o direito. Cria-se um liame obrigacional
entre o que pagou (soluens) e o que recebeu (accipiens):
este deve devolver a quantia ou coisa àquele que a deu sem

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RESUMO DOS CONTRATOS, QUASE-CONTRATOS E OUTRAS SITUAÇÕES JURÍDICAS


1) CONTRATOS
São fatos jurídicos voluntários lícitos que criam relação obrigacional entre as partes, conforme elas convencionaram.
Para gerar obrigação, necessitam de dois elementos: acordo de vontades e causa civil (fundamento jurídico-social).
A) Contratos nominados
Contratos que se enquadravam nas categorias tradicionais; ao longo da evolução histórica:
• 1.ª Fase: Contratos formais: Além dos dois elementos essenciais, precisam da forma fixa e solene:
— Nexum: Transferência da propriedade de um objeto para que depois outro tanto equivalente seja devolvido,
mediante ato público e solene.
— Stipulatio: Promessa solene de uma prestação qualquer.
• 2.ª Fase: Contratos reais: Além dos dois elementos essenciais, precisam da entrega da coisa:
— Mútuo: Transferência da propriedade de coisa fungível para que depois coisa equivalente seja devolvida.
— Fidúcia: Transferência da propriedade de coisa infungível para que depois ela mesma seja devolvida.
— Depósito: Transferência da detenção de coisa móvel infungível para ser temporariamente guardada.
— Comodato: Transferência da detenção de coisa móvel inconsumível ou consumível para ser destinada a um
uso específico.
— Penhor: Transferência da posse de coisa qualquer como garantia real de outro contrato.
• 3.ª Fase: Contratos consensuais: Só precisam do acordo de vontades e da causa civil:
— Compra e venda: Transferência da posse de uma mercadoria em troca da transferência da propriedade de
uma quantia de dinheiro (preço).
— Locação: Transferência da propriedade de uma quantia de dinheiro em troca de disposição de coisa (aluguel)
ou prestação de serviço (trabalho) ou realização de obra (empreitada)
— Sociedade: Colaboração de partes em atividade lícita com fins lucrativos.
— Mandato: Prática de atos por alguém em favor de outrem, que o incumbiu dessa função.
B) Contratos inominados
Outros contratos que não se enquadravam nas categorias tradicionais; adquiriam tutela jurídica ao se efetuar pres-
tação em troca de contraprestação.
2) QUASE-CONTRATOS
São fatos jurídicos voluntários lícitos que criam relação obrigacional entre as partes, sem que a tenham convencionado.
• Gestão de negócios: Decorre da prática de atos por alguém em favor de outrem, sem que este tenha o incumbido
dessa função.
• Enriquecimento sem causa: Decorre do recebimento de um pagamento não devido que deve ser devolvido.
3) OUTRAS SITUAÇÕES
• Pactos: São meros acordos de vontades sem causa civil, não gerando obrigação; alguns obtiveram tutela jurídica.
• Doações: Não eram contratos, mas uma causa para justificar a transferência voluntária de patrimônio.
4) CLASSIFICAÇÕES DOS CONTRATOS SEGUNDO DIFERENTES CRITÉRIOS
CONTRATO / Compra
Mútuo Fidúcia Depósito Comodato Penhor Locação Sociedade Mandato
CRITÉRIO e venda

Tipo REAL CONSENSUAL

Onerosidade Gratuito Gratuito Gratuito Gratuito Gratuito Oneroso Oneroso Oneroso Oneroso

Lateralidade
Bilateral Bilateral Bilateral
• Há quantas Bilateral Bilateral Bilateral Bilateral Bilateral
obrigações?
Unilateral imperfeito imperfeito imperfeito
imperfeito perfeito perfeito perfeito imperfeito
•Obrigações equi- • 1 • 2≠ • 2≠ • 2≠
valentes (= ou ≠)?
• 2≠ • 2= • 2= • 2= • 2≠
• mutuário • depositá- • comodatá- • credor
• De quem é a • fiduciário • ambos • ambos • todos • mandatário
rio rio pignoratício
obrigação principal?

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CAP. 19 – DELITOS E QUASE-DELITOS Historicamente, os crimes eram poucos no início de


Roma (Monarquia) e sua tipificação foi crescendo em nú-
Este resumo baseia-se no CAP. 19 de THOMAS MARKY, mero até o auge de Roma (Principado). Em contrapartida,
nos TÓPICOS 262–267 de MOREIRA ALVES e nas aulas do ocorreu o contrário com os delitos: eles eram muitos no
PROF. HÉLCIO, com ênfase na história penal-civil romana. início de Roma (Monarquia) e sua tipificação foi dimi-
1. Noção geral de crimes e delitos nuindo em número até o auge de Roma (Principado).
a) Noção romana da noxa Isso tem um motivo: no início, a sociedade romana era
Inicialmente, devemos entender a noção romana de apenas uma união de muitas “famílias” (de patrícios e de
“noxa”. Noxa é todo mal ou desgraça praticado por um plebeus); não havia tantos órgãos competentes, daí a ne-
agente (humano ou animal) causando dano ou prejuízo a cessidade de punir os delitos na esfera privada (ou até fa-
outrem (seja ele uma pessoa em particular, ou a sociedade miliar). Com o tempo e a evolução de Roma, foi aumen-
como um todo). Noxa carrega uma ideia de perturbação à tando a população e a complexidade da sociedade; desen-
paz social, que deve ser punida para que se retorne a essa volveram-se órgãos competentes para punir atos que per-
paz. O agente que cometeu a noxa traz sobre si uma des- turbassem a paz social (como os julgamentos pretorianos,
graça ou maldição e, por consequência, a punição. chamados de Quaestiones perpetuae) — daí, a possibili-
dade tardia de que fossem tipificados e punidos vários ti-
— Obs. 1: As palavras “nocivo” (causador de noxa) e pos de crimes na esfera pública.
“inocente” (sem noxa) são derivadas de “noxa”.
No curso, nos preocuparemos com os delicta privata.
Da noxa surgem as noções de “delito” e “crime”. Po-
rém, precisamos diferenciá-los. c) Obligationes ex delicto
b) Distinção entre delitos públicos e privados Já vimos que, no direito romano, as duas fontes de obri-
gações são os contratos e os delitos. “Obligationes ex de-
— HOJE: licto” são as obrigações decorrentes de delito.
• Definições: A palavra “delito” é usada de forma ge- De modo geral, quando um ofensor comete um delito
nérica para tratar da violação à norma jurídica, em- contra alguém (no sentido genérico de injustiça ou ilici-
barcando tanto de “crimes” (no direito penal, i.e., tude), o ofendido torna-se um credor em relação ao ofen-
“delitos públicos”) quanto para “ilícitos civis” (no sor, passando a ter o direito de exigir dele (por meio de
direito privado, i.e., “delitos privados”). uma ação judicial penal) um pagamento em dinheiro pelo
• Penas: Há uma distinção entre os dois motivos da delito (multa, indenização, etc.). Assim, surge a obrigação.
pena: a “punição” (no direito penal), dentro da re- A pena tem caráter de punição e ressarcimento. As
lação entre o Estado e o autor do delito; e “ressar- ações penais poderiam ser cumulativas a outras ações
cimento do dano” (no direito civil), dentro da rela- (como as ações reipersecutórias).
ção entre particulares — ofensor e ofendido.
Ao longo da história de Roma, os primeiros delitos
• Intersecção entre penal e civil: Muitas vezes, os eram perseguidos pelo ius civile; posteriormente, os preto-
crimes podem gerar consequências de delitos priva- res perseguiram outros delitos pelo ius honorarium:
dos: a ofensa pública gera consequências tanto na
• Delitos originados no ius civile: injúria, dano, furto
esfera pública/penal, quanto na esfera privada/civil.
e roubo.
— ROMA:
• Delitos originados no ius honorarium: dolo, coação,
• Definições: Os “delitos” que lesavam ao interesse fraude contra credores, etc.
público eram chamados de “crimina publica” ou
“delicta publica” e aqueles que lesavam ao inte- 2. Injúria(s) (Iniuria)
resse privado eram chamados de “delicta privata” a) Origens (sécs. VII–VI a.C.)
ou simplesmente “delicta”. Na origem, “injúria” não era um crime ou delito espe-
• Penas: Não há uma distinção entre os dois motivos cífico, mas um termo genérico para “injustiça” ou até “ili-
da pena (poena): a “punição” carrega também o citude” qualquer.
sentido de “ressarcimento do dano” ao ofendido A noção de injustiça traz um sentido de perturbação da
— em Roma, os motivos se confundem. paz social, e um desejo humano de reagir a essa perturba-
• Não intersecção entre penal e civil: Ao contrário ção — a “vingança”. Daí, tratando-se de um delito pri-
de hoje, em Roma, os crimes mantinham-se restritos vado, a sociedade tornava o ofendido em credor e facul-
à esfera pública e os delitos privados mantinham-se tava-lhe o exercício da vingança sobre o ofensor, seu de-
restritos à esfera privada. vedor. Inicialmente, a vingança era exercida sobre o corpo
EM RESUMO, podemos dizer que “crimes” se referem do ofensor; posteriormente, sobre seu patrimônio.
aos atos punidos pelo direito público/penal e “delitos” se PENA: Não havia ações judiciais. Os costumes davam
referem atos punidos pelo direito privado/civil, ressalvada ao particular o direito de exercer vingança privada ilimi-
a diferença entre Roma e hoje. tada sobre os delitos; assim, ele tinha duas opções:

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THOMAS MARKY

• Exercia vingança por si mesmo, determinando qual a 3. Dano (Damnum iniuria datum)
proporção de sua vingança; ou “Dano causado ilicitamente” é toda lesão ilícita ao
• Decidia voluntariamente o assunto de forma pacífica patrimônio de alguém (quebrar, estragar, perder coisa
com a outra parte: fazendo um acordo de composição alheia). Ultrapassando a esfera da vingança privada, o
voluntária (compositio), estabelecia uma compensação princípio da reparação pecuniária pelo dano se baseou nas
pecuniária voluntária. disposições da lei Aquília (lex Aquilia), no séc. III a.C.
b) XII Tábuas (sécs. V–II a.C.) Inicialmente, a lex Aquilia exigia do ofensor a indeni-
As leis das XII Tábuas delimitaram a “injúria” como zação quando ele matasse o escravo ou o animal do ofen-
uma ofensa física e/ou moral a uma pessoa; ela tipificou dido; o ofensor ficava obrigado a pagar o maior valor que
quatro tipos de injúrias dentro do crime privado: tal coisa tivera no ano anterior.
I. Membrum ruptum: ofensa física por desmembramento: O dano só se aplicava se causado por conduta positiva
(excluindo o caso de morte por falta de alimentação) que
— Pena: compositio ou talião; levasse ao estrago físico e material da coisa corpórea (ex-
II. Fractum: ofensa física por fratura dos ossos: cluindo o caso de deixar animal alheio simplesmente fu-
— Pena: 300 asses, se o ofendido fosse livre, ou 150 gir). Ele deveria ocorrer por iniuria: deveria ser algo ilí-
asses, se o ofendido fosse servo; cito, havendo a culpabilidade do autor do dano (fosse por
dolo ou por qualquer tipo de culpa, até levíssima).
III. Iniuria: ofensa física e/ou verbal, porém, sem causar
um dano físico grave: Depois, outros casos foram punidos com tal indeniza-
ção: prejuízos por omissão, ou até prejuízos sem estrago
— Pena: inicialmente, eram 25 asses; os romanos per- físico e material da coisa.
ceberam que as compensações fixas privilegiavam os
ricos e permitiam que ofensores se livrassem de duras O valor do dano era originalmente calculado pelo valor
consequências; assim, usando o princípio da equidade objetivo da coisa. No direito clássico, passou a incluir todo
(aequitas), os pretores criavam novas fórmulas (pro- o interesse do proprietário, incluindo o “dano emergente”
cesso formulário) para criar compensações que varia- (damnum emergens) e o “lucro cessante” (lucrum ces-
vam de acordo com o caso concreto; sans) sofridos por ele.
IV. Carmen malum: ofensa moral e religiosa pela prática 4. Furto (Furtum)
de magia oculta (invocando maus espíritos): “Furto” é a subtração (contrectatio) fraudulenta de
— Pena: fustigação (chicotes) até a morte. coisa alheia contra a vontade de seu dono; posteriormente,
o uso indevido de coisa alheia passou a ser caracterizado
PENA: As leis das XII Tábuas limitaram a vingança pri- como furto (furtum usus). Para se caracterizar o furto, a
vada, permitindo-a apenas dentro da proporção legalmente pessoa precisa ter consciência de que age ilicitamente.
determinada — tal era o princípio do talião (talio): “[ape-
nas] olho por olho, [apenas] dente por dente...”. Inicialmente, o ofendido pelo furto tinha direito de vin-
gar-se fisicamente do ladrão colhido em flagrante (fur ma-
Leis posteriores tornaram em alguns casos a composi- nifestus), podendo matá-lo ou torná-lo escravo. Depois, o
ção obrigatória: ofendido e ofensor entrariam em um direito passou a exigir do ladrão uma multa pecuniária.
acordo pacífico para a compensação pecuniária, com valor
fixado pela lei: para cada delito, uma multa. Havia três meios processuais facultados ao ofendido:
Verificamos aqui uma crescente intervenção da esfera a) Actio furti (“ação de furto”) – para exigir multas;
pública na vingança privada. A partir das leis das XII Tá- b) Rei vindicatio (“ação de reivindicação”) – para exigir
buas, os delitos mais graves migraram da esfera privada a recuperação da coisa, com base na sua posse ilícita;
para a pública, tornando-se crimes públicos, e.g.: traição c) Condictio furtiva (“ação de restituição da coisa fur-
à pátria (perduellio), homicídio (parricidium) e incêndio. tada”) – para exigir a recuperação da coisa, com base
Estes crimes públicos, mais graves, sofreriam punições no enriquecimento ilícito do ladrão.
públicas e exemplares: execução, chicotes, etc.
A primeira delas era uma ação penal (visando punir e
c) Direito Clássico (sécs. II a.C. – III d.C.) ressarcir) — com a qual se buscava de duas a quatro vezes
Generalizou-se a composição obrigatória. A punição o valor da coisa furtada —, enquanto as outras duas eram
consistia na condenação do ofensor à compensação pecu- ações reipersecutórias (visando recuperar a coisa) — com
niária (pagamento em dinheiro). Daí surgiu a noção da as quais se buscava o “valor simples” da coisa furtada.
“obrigação decorrente do delito” (obligatio ex delicto); 5. Roubo (Rapina)
a pena pecuniária torna-se o objeto da obrigação.
“Roubo” é um furto qualificado por violência. O ofen-
Manteve-se o sentido específico de “injúria” como dido persegue o ladrão com uma actio vi bonorum rapto-
ofensa física e/ou moral a uma pessoa. O ofendido tinha rum (“ação dos bens arrebatados com violência”), pena-
a faculdade de exigir do ofensor a indenização pela actio lizando-o com quatro vezes o valor da coisa.
iniuriarum (“ação de injúrias”).

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6. Dolo (dolus malus) e coação (metus)


Outros delitos foram introduzidos pela atividade preto-
riana no ius honorarium. Eles eram vícios do negócio ju-
rídico que, em Roma, se elevaram à condição de delito.
“Dolo” é o comportamento desonesto com a finalidade
de induzir em erro a parte por ele lesada. O ofendido tinha
a actio de dolo (“ação de dolo”) para obter do ofensor o
ressarcimento do dano sofrido.
“Coação” é o fato de compelir alguém à prática de de-
terminado ato jurídico por violência física ou moral. Tanto
a parte coagida quanto terceiro poderiam ser considerados
ofendidos pela coação; ambos possuíam a actio quod me-
tus causa (“ação por causa de medo”) contra o ofensor.
7. Quase-delitos
As obrigações “como se fosse de delito” (ex quase
delicto) eram situações decorrentes de fatos tratados como
se fossem delitos. Porém, ao contrário dos delitos, os
“quase delitos” não se julgavam pela responsabilidade
subjetiva (ou seja, de acordo com a culpa do ofensor), mas
pela responsabilidade objetiva (ou seja, de acordo com o
que de fato aconteceu, independentemente da culpa do
ofensor).
MARKY nos dá três exemplos de ações que penaliza-
vam quase-delitos, concedidas pelos pretores:
a) Actio de effusis vel deiectis (“ação de coisas derrama-
das ou atiradas”) – concedida contra o morador (ha-
bitator) de um edifício de onde uma coisa caiu e causou
dano a alguém, independente de quem a tiver jogado;
b) Actio de positis vel suspensis (“ação de coisas coloca-
das ou penduradas”) – concedida contra o morador de
um edifício onde uma coisa está pendurada ou sus-
pensa, ameaçando causar danos a alguém, indepen-
dente de quem a tenha colocado lá;
c) Actio furti adversus nautas, caupones, stabularios
furtiva (“ação de furto, contra transportadores ma-
rítimos e hoteleiros”) – concedida contra os transpor-
tadores marítimos e hoteleiros que, independentemente
de sua culpa, eram responsáveis pelo furto sofrido por
seus passageiros ou hóspedes.

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RESUMO DOS DELITOS E QUASE-DELITOS


1) DELITOS
Partindo da ideia de noxa, os delitos eram perturbações à paz social (ofendendo a algo ou alguém) que deveriam ser
punidos, seja pela vingança particular ou pública. As esferas privada e pública dos delitos não se confundiam.
A maioria dos delitos eram julgados pela responsabilidade subjetiva (de acordo com a culpa ou dolo do ofensor).
A) Delitos públicos (“ilícitos penais” ou “crimes”)
Aqueles delitos que lesavam ao interesse público. Sua tipificação cresceu ao longo da história de Roma.
E.g.: traição à pátria, homicídio e incêndio.
B) Delitos privados (“ilícitos civis” ou “delitos”)
Aqueles delitos que lesavam ao interesse privado. Sua tipificação diminuiu ao longo da história de Roma.
• Delitos originados no ius civile: instituídos pela Lei das XII Tábuas e pelas leis posteriores:
— Injúria: Ofensa física e moral a uma pessoa.
— Dano: Lesão a coisa de patrimônio alheio.
— Furto: Subtração fraudulenta de coisa alheia contra a vontade de seu dono.
— Roubo: Subtração fraudulenta de coisa alheia contra a vontade de seu dono, qualificada por ato violento.
• Delitos originados no ius honorarium: eram, inicialmente, vícios do negócio jurídico, que se elevaram à con-
dição de delito pela atuação pretoriana:
— Dolo: Comportamento desonesto com a finalidade de induzir ao erro a parte por ele lesada.
— Coação: Compelir alguém à prática de determinado ato jurídico por violência física ou moral.
2) QUASE-DELITOS
Os quase-delitos eram situações de fato qualificadas como se fossem delitos. Ao contrário dos delitos, os quase-delitos
eram julgados pela responsabilidade objetiva (de acordo com o que ocorreu, independentemente da culpa do ofensor).
Eram protegidos por ações específicas, e.g.: ação de coisas derramadas ou atiradas, ação de coisas colocadas ou
penduradas, ações de furto contra transportes marítimos e hoteleiros, etc.

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CAP. 20 – GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES Ao fiador cabiam todas as exceções processuais (pedi-
dos de defesa no caso concreto) que o devedor principal
O cumprimento da obrigação pelo devedor depende, tinha contra o credor.
do ponto de vista subjetivo, da sua vontade, e do ponto de
O fiador respondia acessoriamente, quando o devedor
vista objetivo, da sua capacidade econômica ou física.
principal fosse insolvente. Se, porém, o fiador cumprisse a
O interesse do credor é de assegurar o cumprimento da obrigação que garantia, tinha uma ação de regresso contra
obrigação contra ambos os tipos de inadimplemento. o devedor principal caso ele não o indenizasse dentro de
1. Garantias contra o inadimplemento voluntário seis meses: a actio depensi (“ação daquilo que foi pago”).
Eram feitos acordos acessórios para reforçar a obriga-
ção principal. Podia ser de dois tipos:
a) Arras (arrha)
Arras era a entrega, pelo devedor ao credor, de uma
coisa ou quantia, para que ela servisse de confirmação da
conclusão de um acordo (arras confirmatórias) ou de ga-
rantia de seu cumprimento (arras penitenciais – caso não
houvesse o cumprimento ou o contrato fosse rescindido, a
parte sofreria a pena de perder o valor das arras).
b) Multa contratual (poena conventionalis)
Multa contratual era a promessa, por meio de stipula-
tio, do pagamento de uma indenização pecuniária, prede-
terminada, no caso de inadimplemento de uma obrigação.
2. Garantias contra o inadimplemento pela incapaci-
dade econômica ou física
Os meios que visavam garantir o adimplemento da
obrigação contra a superveniente incapacidade econômica
ou física do devedor eram importantíssimas. Podiam ser
garantias reais ou pessoais.
As garantias pessoais eram a solidariedade dos devedo-
res principais, ou a inclusão de um fiador.
c) Fiança (sponsio, fideipromissio, fideiussio)
Fiança é o contrato pelo qual um devedor acessório
(fiador) junta-se a um devedor principal, a fim de garantir
o adimplemento da obrigação por este assumida, caso ele
não a cumpra.
Havia três tipos diferentes de fiança, feitos pelo con-
trato verbal e solene da stipulatio:
a) Sponsio: pelo uso do verbo spondere (“prometer sole-
nemente”); só poderia ser usado por cidadãos romanos
e estrangeiros latinos;
b) Fideipromissio: pelo uso do verbo promitto (“pro-
meto”), em resposta à pergunta “prometes, fielmente, o
mesmo?”; poderia ser usado tanto por cidadãos quanto
por estrangeiros quaisquer;
c) Fideiussio: pelo uso do verbo iubeo (“garanto”), em
resposta à pergunta “garantes o mesmo, por tua fé?”.
A obrigação por sponsio ou fideipromissio extinguia-se
com a morte do fiador; a obrigação por fideiussio era trans-
mitida a seus herdeiros.
A fiança devia ser menor ou igual à obrigação princi-
pal. Havendo diversos fiadores, eles poderiam dividir o va-
lor da obrigação entre si — responsabilizando-se parcial-
mente pelo “benefício da divisão” (beneficium divisionis).

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CAP. 21 – TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES ❖ Suponha um credor e um devedor numa relação


obrigacional; o credor não recebe a prestação que
1. Em Roma lhe é devida, e contrata um advogado para entrar em
Devemos lembrar que, em Roma, não havia “pessoa ju- juízo contra o devedor; nesse caso, o trabalho do ad-
rídica” nem “representação” como as conhecemos hoje vogado é considerado um mandatum agendi
(cf. TÓP. 6, CAP. 4 e TÓP. 2, CAP. 6). (“mandato para agir em juízo”).
Ao contrário dos direitos reais, os romanos considera- • “Procuração em causa própria” é um jeito jurídico
vam as relações obrigacionais intransmissíveis, baseadas de o mandatário possa manter suas vantagens.
na ideia da responsabilidade pessoal e corpórea das partes. ❖ O mandante (o “cedente”) pode renunciar à ação di-
a) Não havia transmissão por meios diretos entre vivos reta de mandato — e, consequentemente, a seu di-
O princípio geral em Roma era a intransmissibili- reito da prestação de contas —, permitindo, assim,
dade: as obrigações não se transmitiam por atos diretos que o mandatário (o “cessionário”) continue com
entre vivos. A única transmissão direta da relação obriga- suas eventuais vantagens;
cional de credores ou de devedores era a transmissão he- ❖ Assim, o mandatário estaria agindo em causa pró-
reditária, i.e., pela morte de um deles. pria, ou seja, buscando benefício próprio;
b) Havia transmissão por meios indiretos entre vivos • Peculiaridades:
As obrigações poderiam se transmitir por atos indiretos ❖ O contrato de mandato é intransmissível, logo o
entre vivos – adequações jurídicas às exigências comerciais: mandatário perde o crédito se o contrato for revo-
— DELEGAÇÃO (delegatio, “novação subjetiva”): gado pelo mandante, ou se o mandante morrer;
• “Delegação” é uma renovação da dívida, que exige a ❖ Na situação judicial descrita, o contrato de mandato
presença de todos; era feita uma stipulatio entre o de- não precisava da anuência do devedor; o credor é
vedor e o novo credor (“delegação ativa”, delegatio ac- livre para constituir um mandatário (tornando-se
tiva) ou entre o credor e o novo devedor (“delegação seu mandante);
passiva”, delegatio passiva) para criar uma nova obri- ❖ Inconveniente: o direito do mandatário-cessionário
gação com prestação idêntica à da obrigação originária; era dependente do direito do mandante-cedente; o
• Peculiaridades: mandante ainda é o credor da obrigação originária;
❖ Inconveniente: Sempre precisava da presença e — SISTEMA DAS AÇÕES ÚTEIS (actiones utiles):
anuência de ambas as partes da obrigação originária • O sistema das “ações úteis” foi uma forma de corrigir
(os credores e devedores “cedentes”) junto ao novo os inconvenientes da “procuração em causa pró-
credor ou devedor (o “cessionário”); desta forma, a pria”, tornando o direito do cessionário independente
delegação poderia ser lenta. do direito do cedente.
❖ As eventuais garantias da obrigação originária e • As “ações úteis” eram ficções jurídicas — o pretor fin-
pactos acessórios com terceiros não se renovam. gia que o credor-cedente havia morrido, transmitindo o
— PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA (procuratio in crédito para o credor-cessionário.
rem suam): ❖ Cessão gratuita: nesse caso, o cedente se responsa-
• Observações prévias: bilizava pela existência do crédito cedido (verum
nomen, “crédito verdadeiro”), mas não se responsa-
❖ “Procurador” é aquele que cuida ou administra as bilizava pela solvência do devedor ao cessionário
coisas de outrem; a procuração pode ser um instru- (bonum nomen, “crédito bom”);
mento do mandato — um tipo de representação;
❖ Cessão onerosa: nesse caso, o cedente se responsa-
❖ Não havia representação perfeita em Roma; o pro- bilizava por ambas as coisas;
curador “representante”, agia no interesse e causa
• O cessionário adquire o crédito nas mesmas condições
do “representado”, mas se responsabilizava em
nome próprio; e com as mesmas garantias que o cedente tinha; ele não
pode cobrar do devedor mais do que foi pago pela ces-
❖ No caso do mandato, o mandatário se dispõe a cum- são do crédito, e o devedor tem contra ele as mesmas
prir as ordens do mandante, agindo em seu interesse defesas processuais que tinha contra o credor antigo.
num, num contrato gratuito;
c) A regra geral era transmissão entre mortos
❖ Assim, em situações normais, o mandatário não po-
deria receber vantagens na sua atuação (tendo que Quanto aos mortos, o princípio geral em Roma era a
repassar as eventuais vantagens para seu mandante); transmissibilidade. A regra geral era a transmissão heredi-
tária da obrigação de credores ou de devedores após a
❖ O mandante tinha uma actio mandati directa (“ação morte. Alguns contratos, porém, não admitiam transmis-
direta de mandato”) para exigir do mandatário a são pela morte, e.g., mandato.
prestação de contas;

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2. Hoje
Não somente há, hoje, as instituições da “pessoa jurí-
dica” e da “representação”, como também há formas de
transmitir obrigações de credores e de devedores por atos
diretos entre vivos.
— CESSÃO DE CRÉDITO (“transmissão ativa”):
• “Cessão de crédito” é quando o credor (“cedente”)
transmite seu crédito para um novo credor (“cessioná-
rio”) por meio de um contrato; como regra geral, o de-
vedor não pode negar o pagamento ao novo credor.
— ASSUNÇÃO DE DÍVIDA (“transmissão passiva”):
• “Assunção de dívida” é quando um novo devedor as-
sume a dívida de um devedor anterior; porém, não basta
somente um contrato, mas também a anuência do cre-
dor na transmissão dessa dívida; como regra geral, o
credor, assim que der seu consentimento, não pode ne-
gar o recebimento do pagamento do novo devedor.
❖ Nesse sentido, o credor pode dar sua anuência a
qualquer momento (antes, depois ou no momento
do contrato de assunção).

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CAP. 22 – EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES 2. Extinções independentes da vontade das partes


Extinguiam-se as obrigações também:
A obrigação é originada com o intuito de ser cumprida;
naturalmente, ela se extingue com seu cumprimento ou a) Quando seu cumprimento se torna impossível, a não ser
solução (solutio), mas pode se extinguir em outros casos. que a impossibilidade seja imputável ao devedor;
1. Extinções dependentes da vontade das partes b) Em certos casos, pela morte das artes;
As extinções por pagamento e por novação se opera- c) Pela capitis deminutio do devedor, exceto nas obriga-
vam automaticamente, pelo próprio direito (ipso iure). As ções delituais;
extinções por compensação ou por acordo mútuo deve- d) Pela confusão (confusio), i.e., junção na mesma pessoa
riam ser convencionadas, ou alegadas em juízo por meio da posição de credor e de devedor (e.g., o devedor que
de ação processual ou exceção (exceptiones ope). se torna herdeiro universal de seu próprio credor);
a) Pagamento e) Pelo “concurso de duas causas lucrativas”;
O pagamento (solutio) era o modo natural da extinção f) Pelo decurso do prazo de vigência convencionado pelas
das obrigações. O direito primitivo exigia tanto o paga- partes ou estabelecido pela lei;
mento quanto a solenidade. O direito clássico exigia so-
g) Pela verificação da condição resolutiva nas obrigações
mente o pagamento.
sujeitas a essa espécie de condição;
O objeto do pagamento deve ser exatamente o da obri-
h) Pela extinção da obrigação principal, no caso de obri-
gação; o credor não é obrigado a aceitar pagamento parcial
gação acessória;
(exceto quando previsto no contrato), nem pagamento dis-
tinto do combinado (ele pode aceitar, havendo uma “dação i) Por ordem legal, em determinados casos, a título de pe-
em pagamento”, datio in solutum). nalidade.
O pagamento deve ser feito ao credor ou a seu repre-
sentante, sendo cumprido pelo devedor ou por outra pes-
soa, a menos que o credor tenha interesse especial na pres-
tação pessoal do devedor.
O prazo e o lugar do cumprimento dependem da con-
venção das partes; se não determinada, a prestação é de-
vida logo que cobrada e no lugar escolhido pelo devedor.
b) Compensação
A compensação (compensatio) é quando as duas par-
tes têm, reciprocamente, obrigações que se compensam,
sendo simultaneamente credor e devedor uma da outra.
No direito clássico, ocorria nas “ações baseadas na
boa-fé”, nas obrigações entre banqueiros e no concurso de
credores. No direito pós-clássico, aplicou-se em geral a
créditos, sem restrições, dentro do mesmo gênero.
c) Novação
A novação (novatio) é quando uma obrigação era ex-
tinta ao ser substituída por obrigação nova, com mesmo
conteúdo da originária.
As prestações devem ser idênticas, exceto quanto a um
“elemento novo” obrigatório para justificar a novação:
• Novidade na prestação (novas condições, novo prazo,
novo lugar de pagamento);
• Novidade nas partes (substituição do credor ou do de-
vedor, respectivamente na delegação ativa ou passiva);
• Novidade na causa contratual da obrigação.
d) Acordo entre as partes
Por mútuo acordo, as partes podiam rescindir o con-
trato. Para isso, precisaram da tutela pretoriana no cha-
mado pactum de non petendo (“pacto de não deman-
dar”).

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PARTE IV: DIREITO DE FAMÍLIA


CAP. 23 – FAMÍLIA Havia dois sentidos de parentesco romano:
— PARENTESCO AGNATÍCIO (adgnatio)
A família é o instituto jurídico-social mais antigo, pre-
sente em todas as sociedades, porém em formas variadas. • Era um liame puramente jurídico; os parentes agnatí-
Daí, o direito de família é o que mais varia nos sistemas cios eram as pessoas sujeitas a um mesmo paterfami-
— tanto na legislação quanto na jurisprudência. A pre- lias (na família proprio iure), ou que estariam sujeitas
sença do instituto “família” é universal, mas o “direito de a um mesmo paterfamilias se ele estivesse vivo (na fa-
família” é local e temporal. mília communi iure);
• Transmitido somente pela linha paterna.
1. Família romana: conceito, estrutura e histórico
— PARENTESCO COGNATÍCIO OU CONSANGUÍNEO
A palavra “família” (de famulus, “escravo”) pode se
(cognatio)
referir tanto a um chefe de família e o grupo de pessoas
sujeitas a seu poder, quanto ao patrimônio familiar. • Era um liame sanguíneo; os parentes consanguíneos
eram todos aqueles que têm ascendentes comuns;
Nos atentaremos para o primeiro sentido: a “família”
• Transmitido pelas linhas paterna e materna.
como organização jurídico-social de uma pluralidade de
pessoas subordinadas ao poder de um chefe jurídico-polí- Ambas as formas existiram desde o início de Roma, em
tico. Esse chefe (geralmente o ascendente masculino direto constante concorrência. No início da Roma pagã, predo-
e mais velho) era o paterfamilias e os seus subordinados minava a agnação. Com a atividade pretoriana, a cogna-
eram os filiifamilias. ção foi ganhando importância até predominar no fim da
Roma pagã. Na Roma cristã, a cognação suplantou total-
Historicamente, houve duas possibilidades de estrutura
mente a agnação — nessa fase, a única forma de paren-
familiar (i.e., quem era membro da família):
tesco não consanguínea seria a adoção (que, inclusive, teve
— FAMÍLIA POR DIREITO PRÓPRIO (familia proprio sentidos diferentes nas diferentes fases do direito romano).
iure)
O cálculo do grau de parentesco se fazia pelas gerações:
• A “família por direito próprio” é o modelo mais an- “Tantos são os graus, quanto são as gerações” (quot gene-
tigo e típico de Roma; nesse caso, consideram-se como rationes, tot gradus).
membros de família todos os subordinados a um
a) Na linha reta (entre ascendentes e descendentes), a
mesmo paterfamilias. A família romana era um grupo
conta é simples, das gerações entre eles.
político-econômico-social, baseada em vínculos jurídi-
b) Na linha transversal (entre colaterais), a conta precisa
cos (os vínculos sanguíneos eram considerados em si-
remontar ao ascendente comum e contar todas as gera-
tuações excepcionais, como incesto). Nesse sentido, os
ções intermediárias.
filiifamilias poderiam ser descendentes ou escravos.
Suponha que Caio e Tício são irmãos, filhos de Mévio, Por fim, a afinidade era o parentesco cognatício entre
que é seu paterfamilias. Quando Mévio morrer, na um cônjuge e os parentes do outro.
acepção de família proprio iure, Caio e Tício se torna- Uma pessoa poderia ingressar em uma família romana
rão paterfamilias de duas famílias distintas; a família “pela natureza” (aut natura), pelo nascimento; ou “pelo
de Caio e todos subordinados a ele e a família de Tício direito” (aut iure), pelo casamento ou pela adoção.
e todos subordinados a ele.
2. Pátrio poder
— FAMÍLIA POR DIREITO COMUM (familia communi
A autoridade do paterfamilias era marcada por seu
iure)
“pátrio poder”. No direito arcaico, o paterfamilias tinha
• A “família por direito comum” é o modelo mais re- “poder de vida e de morte” sobre seus descendentes: ele
cente de Roma (uma expansão do modelo antigo); podia matar um recém-nascido por abandono, vender seu
nesse caso, consideram-se como membros de família filho (para fins de emancipação, ou para entregar à vítima
todos os subordinados a um mesmo paterfamilias o filho que cometera delito), casar e “descasar” seus filhos
vivo, além daqueles que estariam subordinados a um sem seu consentimento, etc. Nesse sentido, a situação dos
mesmo paterfamilias anterior se ele estivesse vivo. descendentes era juridicamente semelhante à dos escravos.
Suponha os mesmos irmãos Caio e Tício, filhos de Mé-
Esse poder ilimitado foi diminuindo com o tempo, até
vio. Quando Mévio morrer, na acepção de família
que tais práticas foram proibidas no período clássico, entre
communi iure, as “famílias” de Caio e Tício serão uma
os sécs. II a IV d.C.
só grande família, agrupando todos aqueles que esta-
riam sujeitos a Mévio se ele estivesse vivo. No direito patrimonial, durante o período clássico, o
paterfamilias era o único plenamente capaz; se os descen-
Em ambos os conceitos de família, a base do liame são
dentes ou escravos adquirissem um direito, adquiriam-no
a pessoa e a autoridade do paterfamilias. O liame que une
para seu paterfamilias. Quanto às obrigações contraídas
os membros de uma família é chamado de “parentesco”.
pelos filiifamilias, havia duas situações:

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a) Obrigações delituais: o paterfamilias era responsabili- — EMANCIPAÇÃO:


zado pelos delitos cometidos pelo filho; ele poderia en- Geralmente, o liame jurídico entre paterfamilias e fi-
tregá-lo ao ofendido (noxae datio) ou ressarcir o dano; liusfamilias se dava pela morte de um deles; porém, era
b) Obrigações contratuais: pelo direito quiritário, o pa- possível haver a extinção desse liame ainda em vida, ha-
terfamilias não era responsabilizado pelos contratos vendo a emancipação do filho do pátrio poder. Essa
firmados pelo filho; posteriormente, os pretores cria- emancipação tornaria o filho sui iuris.
ram as chamadas actiones adiectitiae qualitatis O processo de emancipação era um complicado ato ju-
(“ações adicionais”) para responsabilizar o paterfami- rídico: a lei das XII Tábuas penalizava quem vendesse três
lias pelas obrigações assumidas pelo filho. vezes seu filho com a perda do pátrio poder sobre ele; as-
Após o séc. I d.C., os filhos foram adquirindo certa in- sim, o pai praticava a venda fictícia do filho a um amigo
dependência parcial no campo patrimonial; o filho passou de confiança, que logo depois o libertaria. Na terceira re-
a poder dispor livremente de certos bens e situações, e.g.: petição da ficção, vendia-se o filho novamente ao pai e,
o “pecúlio castrense” (peculium castrense), o “pecúlio desta vez, ele o libertaria; assim, o filho seria emancipado,
quase-castrense” (peculium quase castrense) e os “bens mas o pai ainda teria sobre ele direitos do patronato.
maternos” (bona materna) — respectivamente, pecúlio
pelo serviço militar, pelo serviço público, e bens proveni-
entes da linha materna. O direito justinianeu fez com que
somente o usufruto dos bens do filho coubesse ao pai.
Aquisição e perda do pátrio poder
— AQUISIÇÃO:
A forma mais comum de aquisição de pátrio poder era
pelo nascimento do filho havido em justas núpcias – entre
180 dias após a contração do matrimônio e 300 dias após
sua dissolução. Filhos de justas núpcias (nascidos dentro
do casamento e reconhecidos) estavam sob pátrio poder.
Filhos naturais (nascidos fora do casamento e não re-
conhecidos) não estavam sob pátrio poder. O reconheci-
mento de paternidade era feito por um procedimento judi-
cial preliminar (praeiudicium).
A aquisição do pátrio poder também poderia ocorrer
pela adoção. Havia, duas formas típicas de adoção:
a) Ad-rogação (adrogatio): a forma mais antiga, perante
o povo reunido em comício; um paterfamilias adotava
outro paterfamilias (i.e., uma pessoa sui iuris do sexo
masculino e púbere) e, com ele, vinha toda sua família
(tornando-se todos alieni iuris do ad-rogante);
b) Adoção (adoptio): a forma mais recente; um paterfa-
milias adotava um filiusfamilias (i.e., uma pessoa alieni
iuris de qualquer sexo) que antes estava sob poder de
outro paterfamilias; por esse meio, o filiusfamilias saía
de sua família de origem, para entrar na família do ado-
tante; era necessário que o paterfamilias originário pra-
ticasse uma venda fictícia do filho para romper o liame
com a família de origem.
— Obs.: A adoção mais comum na Roma pagã não era
de menores de idade, mas púberes ou maiores de idade.
A ad-rogação, especificamente, servia para aumentar o
poder político-econômico da família. A adoção de me-
nores, no sentido atual, é típica da fase cristã de Roma.
— EXTINÇÃO:
A extinção do pátrio poder se dava pela morte do pa-
terfamilias ou do filiusfamilias, ou pela adoptio do alieni
iuris, ou pelo casamento cum manu da filha.

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CAP. 24 – CASAMENTO 4. Esponsais


A promessa de contrair matrimônio fazia-se no direito
1. Conceitos romanos de matrimônio e manus
arcaico, por uma estipulação que utilizava o verbo spon-
Em Roma, matrimônio ou casamento ou núpcias é a deo (“eu prometo”), daí o nome esponsal (sponsalia).
união duradoura entre marido e mulher — os nubentes
Originalmente, tal promessa gerava a obrigação de con-
(uma relação estritamente monogâmica). Ressalta-se, po-
trair o matrimônio prometido, ou de pagar multa contratual
rém, que o matrimônio não tornava a mulher automatica-
para o caso de não cumprimento. No direito clássico, per-
mente subordinada juridicamente ao poder do marido —
deram-se esses efeitos jurídicos, mas a pessoa que fizesse
para isso, era preciso haver o poder marital ou manus.
mais de uma promessa com diferentes pessoas concomi-
Para explicar melhor, devemos diferenciar o matrimô- tantemente era penalizada com infâmia e outros efeitos de
nio da manus. O matrimônio era uma situação de fato, ordem patrimonial.
muito parecida com a posse, enquanto a manus era um di-
5. Efeitos do matrimônio
reito, uma relação jurídica de poder marital do marido
sobre a mulher. Os filhos, quando nascidos de núpcias justas, ficavam
sobre o pátrio poder; presumiam-se legítimos os filhos
Havia matrimônios cum manu e sine manu. A aquisi-
nascidos na constância do casamento (presunção simples,
ção da manus se dava de três formas:
da gravidez de 180 a 300 dias).
a) Pela cerimônia do conferreatio, em que os nubentes fa-
A mulher, quando no casamento cum manu, sujeitava-
ziam uma espécie de formalidade social-religiosa;
se ao poder do marido, na qualidade de alieni iuris.
b) Pela coemptio (coempção), a venda formal da nubente Quando no casamento sine manu, conservava sua indepen-
pelo seu paterfamilias ao nubente por uma mancipatio; dência em relação ao marido, permanecendo ou como ali-
c) Pelo usus (posse prolongada), quando marido e mu- eni iuris na sua família originária, ou como sui iuris se as-
lher conviviam em matrimônio por mais de um ano; sim o fosse antes de se casar.
essa forma de aquisição de manus poderia ser interrom- — AUTORIDADE DO MARIDO SOBRE A MULHER:
pida caso a mulher se ausentasse de casa por três noites
Mesmo sem o manus, o marido exercia certa autoridade
consecutivas (isso, porém, não rompia o matrimônio,
sobre a mulher (ainda que limitada). Ele estabelecia o do-
apenas interrompia a manus).
micílio e cabia a ele a obrigação de prover o sustento dos
2. Requisitos e impedimentos do justo matrimônio seus. Ele tinha meios judiciais para defender a mulher con-
Para haver o justo matrimônio, eram necessários: tra atos injuriosos, e podia exigir o retorno da mulher ao
• A capacidade jurídica matrimonial das partes (as “jus- lar conjugal, mesmo se o paterfamilias dela a retivesse.
tas núpcias” ocorriam entre cidadãos romanos; as “in- O adultério da mulher era considerado crime previsto
justas núpcias” ocorriam se um dos nubentes fosse es- pela Lei Júlia dos adultérios (17 a.C.).
trangeiro ou escravo); — BENS:
• A capacidade de fato delas para esse fim (deveriam ser No casamento sine manu, os bens que a mulher tivesse
púberes); antes do casamento — “bens parafernais” — eram dela;
• O consentimento contínuo das partes, e a anuência do os acréscimos ao patrimônio dela posteriores ao casa-
paterfamilias no ato de realização do matrimônio. mento eram presumidos (presunção muciana) como pro-
O matrimônio era impedido por algumas causas: a lou- venientes do marido (presunção simples, admitia contra-
cura; a existência de liame matrimonial; o parentesco prova). Era, assim, um regime de separação de bens.
(fosse adotivo ou consanguíneo na linha reta em qualquer No casamento cum manu, o patrimônio da mulher se
grau, ou na linha colateral até o terceiro grau); a diferença agregava ao patrimônio do marido.
de classes; as posições política, militar e/ou tutelar. Os cônjuges não podiam propor ações penais e infa-
3. Dissolução do matrimônio mantes um contra o outro.
O matrimônio é um ato consensual contínuo de con- 6. Doações entre cônjuges
vivência, dissolvendo-se com o desaparecimento do con- Eram proibidas as doações entre cônjuges.
senso: pela vontade dos cônjuges, ou por fatores externos
Porém, considerando a situação desfavorável da mu-
— a morte ou perda da capacidade jurídica ou de fato de
lher na relação sucessória, costumava-se garantir a subsis-
um dos cônjuges (pela capitis deminutio maxima).
tência dela, quando a dissolução do casamento se dava sem
A dissolução do matrimônio pela vontade dos cônjuges culpa sua, por meio de uma doação feita pelo marido à mu-
(o “divórcio”) ocorreria pelo dissenso (acordo de vonta- lher antes do casamento (a “doação antes das núpcias”
des pela dissolução) ou pelo repúdio (vontade unilateral funcionava como garantia até ser efetivada na dissolução).
de um deles). O dissenso ocorria pelo consentimento co-
No direito justinianeu, foi permitido fazer “doação em
mum (no casamento sine manu), ou pelas solenidades da
razão das núpcias” durante o casamento.
diffarreatio e da remancipatio (no casamento cum manu).

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CURSO ELEMENTAR DE DIREITO ROMANO
THOMAS MARKY

7. Dote CAP. 25 – TUTELA E CURATELA


O dote originou-se do casamento cum manu. Se a mu-
Em Roma, tutela e curatela eram duas instituições pa-
lher fosse sui iuris, todos os seus bens passavam a perten-
recidas, com a finalidade de proteger pessoas juridica-
cer ao marido; se fosse alieni iuris, ela entrava para a fa-
mente incapazes e cuidar de seus interesses.
mília do marido, perdendo seus laços de parentesco agna-
tício com a família original e, consequentemente, seus di- No direito romano, a diferenciação ocorria pelas pes-
reitos hereditários na sucessão do pai. Assim, costumava- soas que eram representadas ou assistidas:
se dar à filha o equivalente àquilo que seria sua parte he- a) Tutela: protege interesses da família — incapacidades
reditária — esse era o valor do dote. comuns (idade e sexo);
No casamento sine manu, porém, não havia obrigação b) Curatela: protege interesses patrimoniais — incapaci-
do dote. A mulher poderia contribuir para sustentar a fa- dades excepcionais (loucura, prodigalidade e, posteri-
mília; nesse caso, o dote poderia ser: ormente, outros casos).
• Dote profetício (dos profecticia): prometido pelo as- 1. Tutela
cendente masculino da mulher (sendo ela alieni iuris);
Na tutela, o tutor funciona como um protetor do indi-
• Dote adventício (dos adventicia): prometido por ela víduo na falta do paterfamilias (logo, alieni iuris, que têm
mesma (sendo ela sui iuris), ou por terceiros. pater familias, não têm tutela). Mulheres e impúberes não
Embora integrassem o patrimônio do marido, os bens podiam exercer a tutela.
dotais destinavam-se à família toda. Ocorria pelos fatores de:
a) Constituição do dote • Idade: impúberes de até 14 anos, sem paterfamilias; os
O dote podia constar de coisa corpórea ou incorpórea. absolutamente incapazes eram representados, e os rela-
A constituição do dote poderia ocorrer por dotis ditio tivamente incapazes eram assistidos pelo tutor;
(mera promessa unilateral) ou por dotis promissio (pro- ❖ Prioridade dos tutores: tutores testamentários (pelo
messa solene por stipulatio). O dote era, então, transferido testamento do paterfamilias) > tutores legítimos
por mancipatio, in iure cessio ou traditio. (nomeados pela lei – o parente agnatício mais pró-
b) Restituição do dote ximo) > tutores dativos (nomeados pelo pretor);
Inicialmente, a restituição dos bens dotais só ocorria • Sexo: mulheres sui iuris, sem paterfamilias; elas admi-
quando o marido expressamente o prometera. Posterior- nistravam seu patrimônio, mas exigia-se a assistência
mente, o pretor concedeu meios para exigir a restituição do tutor, acompanhando e autorizando seus atos;
ainda que o marido não a prometera. Em regra: ❖ Embora a tutela fosse perpétua, a atividade pretori-
a) Quando a dissolução do matrimônio se dava pelo di- ana permitiu que a mulher trocasse de tutor quando
vórcio ou pela morte do marido, a restituição devia ser quisesse.
pleiteada pela mulher ou por seu paterfamilias com o 2. Curatela
consentimento dela;
Na curatela, o curador funciona como um protetor do
b) Quando a dissolução do matrimônio se dava pela morte patrimônio do indivíduo, representando-o (no caso de ab-
da mulher, somente o dote profetício era restituível; o solutamente incapaz) ou assistindo-o (no caso de relativa-
dote adventício ficava com o marido. mente incapaz) na sua prática de atos jurídicos.
Caso fosse obrigado a restituir, o marido restituiria as Ocorria pelos fatores de:
coisas tais como foram recebidas. Ele não poderia alienar
• Loucura: os “loucos furiosos” precisavam de anuência
ou onerar os fundos dotais sem o consentimento da mulher
do curador, que era legítimo ou dativo;
— se o fizesse, deveria restituir o valor dos bens alienados.
Os frutos, porém, ficavam com o marido. • Prodigalidade: os “pródigos” precisavam da anuência
do curador, que era legítimo ou dativo;
• Outros foram instituídos pela atividade pretoriana:
— Idade: púberes entre 14 e 25 anos;
— Nascituro, surdos-mudos, ausentes, etc.

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