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DEFIS/GTRJA
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O atual processo de globalização é, de longe, e quase unanimemente,


considerado não apenas como uma marca distintiva do mundo contemporâneo, mas,
igualmente, como um divisor de águas capaz de separar, cronologicamente falando,
a história das sociedades em dois períodos distintos: um anterior ao referido
processo, caracterizado tanto pela bipolarização ideológica quanto por uma série de
conceitos estanques, auto-excludentes e, quase sempre, dicotômicos referentes a
esferas de atuação social (público YHUVXV privado; social YHUVXV econômico; nacional
YHUVXV internacional, etc.), e outro posterior à globalização, caracterizado justamente
pela diluição e pelo esgarçamento de tais conceitos. A conseqüente liberação de
energias represadas por compartimentações muitas vezes artificiais e injustificadas
possibilitou um uso mais intensivo e racional de numerosas forças produtivas e
tecnologias de ponta, gerando, assim, novas oportunidades as quais foram, no geral,
amplamente aproveitadas, engendrando, globalmente, um crescimento econômico
que em muito vem excedendo todas as expectativas e desafiando mesmo antigos
postulados. Contudo, ao lado de todo esse conjunto de oportunidades, o abandono
(ou, se se quiser, a superação) dos antigos limites, alguns dos quais durante tantas
gerações guiaram os passos da sociedade na senda da prosperidade, vem criando
um clima de maiores incertezas e, inevitavelmente, uma atmosfera de riscos mais
adensada.

Desse modo, a atual sociedade (e, portanto, o atual mercado financeiro, que
é o objeto especial de nossas atenções) equilibra-se, numa série de cambiantes
delicados, entre a tentação de oportunidades inauditas (e tanto mais inauditas
quanto mais façam dos antigos limites WDEXOD UDVD) e o espectro de riscos jamais
sonhados (e, igualmente, tanto mais ameaçadores quanto mais se afastem dos
padrões até aqui geralmente aceitos). Ainda é cedo para se poder afirmar,
categoricamente, se o atual equilíbrio entre oportunidades e riscos há de ser
superado, a partir da construção de novos limites, ou se o mercado financeiro, a
partir daqui, tenderá a trabalhar comumente dentro desse novo conceito de equilíbrio
dinâmico. Qualquer que seja o futuro, porém, o certo é que, ao menos nos próximos
anos, é sumamente improvável que um novo conjunto de valores, ou de limites, se
erga como consenso e se robusteça a ponto de passar a se constituir num novo
paradigma; dessarte, é perfeitamente razoável supor-se, para o curto prazo ao
menos (e aqui entende-se curto prazo como um período inferior a cinco anos), um
comportamento por assim dizer errático das forças do mercado, tateando numa
infinidade de testes, de tensões, de tentativas e erros, na busca de paradigmas e de
balizadores. Tal atmosfera há de se caracterizar por atuações fortemente
competitivas, pelo desprezo de quaisquer limites na busca de maior lucratividade,
bem como no retorno desordenado a esses mesmos limites por ocasião dos
inevitáveis acidentes de percurso. Nesse ambiente de sucesso potencial e incerteza
sub-reptícia, sem limites claros para balizamentos, é a transparência e a
credibilidade das ações que podem fornecer, ao menos em linhas gerais, pontos de
apoio para a avaliação e a interpretação dos fenômenos.

Quanto a isso, nunca poderá ser considerado desnecessário o correto


entendimento de todos os conceitos em jogo, ou, ao menos, dos mais importantes,

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mesmo que tais conceitos digam respeito a atuações superadas, ou em vias de


superação, ou que são, hoje, consideradas como, possivelmente, superáveis no
futuro. Porque mesmo as antigas definições, limites e conceitos tiveram uma origem
histórica e uma razão de ser que, se compreendidas, podem lançar uma luz mais
potente sobre aquilo que se está alijando e, portanto, indiretamente, sobre aquilo
que se pode vir a alcançar no futuro. Dentro de tal espírito, o presente trabalho
procura restringir-se a um subconjunto específico dos aspectos econômicos que
mais de perto se refletem no comportamento das instituições financeiras, dentro
desse cenário de progressivo esgarçamento de idéias outrora tidas como
incontestes e, nos dias de hoje, diluídas pelo acelerado processo de interligação dos
mercados, característico da globalização.

Tal subconjunto centra-se no conceito fundamental do mundo corporativo, em


geral, e das instituições financeiras, em particular, qual seja, na personalidade
jurídica. De fato, é elemento basilar do mercado financeiro (como de todo o mundo
corporativo) que as empresas (instituições) são capazes de, por si sós, serem
titulares de direitos e de deveres, comportando-se de modo distinto do do conjunto
de seus sócios, administradores ou funcionários; dá-se, assim, a uma empresa
(instituição) uma personalidade jurídica própria, diferente daquelas das pessoas que
a constituem, administram e operam. Nos dias de hoje, tal idéia parece óbvia,
normal, indisputável, mas nem sempre foi assim, ou seja, nem sempre o mundo dos
negócios funcionou dessa forma. A personalidade jurídica não é uma idéia inata, é,
antes de tudo, uma burilada criação social, e pode variar, se variar a sociedade que
a criou. Não é, portanto, uma cláusula pétrea do Direito Empresarial (deve-se
lembrar que, para a sociedade globalizada, não existem mais cláusulas pétreas, ou,
se existem, logo o mercado munir-se-á de uma conveniente marreta para as
transformar em pó), um GHXVH[PDFKLQD aposto no palco das relações corporativas,
sem o qual elas não existiriam. É apenas mais um daqueles limites, contestáveis e
contestados, que podem ou não ser retidos pela nova sociedade que se desenha a
cada instante diante de nossos olhos.

Portanto, todo o presente trabalho estudará esse fundamento (até aqui) do


mercado financeiro: a instituição financeira como um ente dotado de personalidade
jurídica. Procurar-se-á comparar o instituto da personalidade jurídica, de índole
eminentemente legal, com o instituto da entidade, de matiz eminentemente
patrimonial, ou seja, contábil; os dois conceitos são muito próximos, tocam-se muitas
vezes, mas nunca deixam de ser distintos, sendo que o conceito da entidade
afigura-se, como se há de mostrar, em mais antigo, mais forte e mais coerente que o
da personalidade jurídica. Assim no Capítulo II, a seguir, analisar-se-á a origem e a
evolução do conceito de personalidade jurídica, a fim de que seus contornos e
limitações possam ser melhor apreendidos. No Capítulo III, mostrar-se-á que as
técnicas contábeis de avaliação patrimonial são, no geral, mais antigas do que a
personalidade jurídica, e, mais importante, que o princípio contábil da entidade não é
o mesmo que o da personalidade jurídica, ou seja, ele pode ser mantido
integralmente mesmo que se atenue aquele. No Capítulo IV, analisar-se-á o caso
interessante da nacionalidade das pessoas jurídicas (já que empresas são dotadas
de personalidade, elas também, como as pessoas físicas, são dotadas de
nacionalidade, e, ao contrário do que usualmente ocorre com as pessoas físicas, as

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pessoas jurídicas podem, se quiserem, escolher convenientemente a que


nacionalidade pertencem; ou, ao menos, podiam). No Capítulo V, para concluir o
presente estudo, falar-se-ão dos limites, nem sempre visíveis, que a transparência e
a credibilidade impõem à personalidade jurídica. Para tal, inicialmente, abordar-se-
ão seus limites intrínsecos, ou seja, os seus limites próprios, dedutíveis de sua teoria
(o principal deles é a dissociação entre acionistas e administradores, de tal forma
que a empresa seja, efetivamente, dotada de personalidade própria); a seguir,
elencar-se-ão alguns abusos da personalidade jurídica, quando se a usa para
encobrir fraudes, fazendo-a parecer o que não é, isto é, fazendo-a passar por uma
empresa com vontade própria quando tal não ocorre; enfim, listar-se-ão alguns dos
remédios que existem contra tais fraudes, quando a personalidade jurídica é,
simplesmente, ignorada, por, na prática, não existir. Dar-se-ão exemplos na
normatização do Banco Central do Brasil (como a conceituação de Conglomerado
Financeiro na nova Resolução referente a participações societárias no exterior), no
Código de Defesa do Consumidor (para o qual as instituições financeiras se obrigam
a obedecer no que se refere a suas relações com os clientes), e outros casos mais,
inclusive no âmbito do Direito Internacional Privado.

%UHYH+LVWyULFRGR&RQFHLWRGH3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

2/HJDGR5RPDQR

Considerar uma empresa como titular, perante a ordem jurídica, de direitos e


de deveres, de forma análoga a um indivíduo, dotando-a, assim, de personalidade
distinta daquelas das pessoas que a constituíram, administram e/ou
operacionalizam, embora possa parecer algo normal nos dias de hoje, é o resultado
de uma longuíssima evolução, na qual os interesses da sociedade, corporificada
pelo Estado, nunca estiveram ausentes. Nas sociedades da Antigüidade pré-
clássica, e, mesmo, na sociedade grega, o instituto da personalidade jurídica não
existia, mesmo em forma embrionária. É certo que se encontram, tanto no Código
de Hamurábi quanto no Direito Grego, disposições sobre contratos de sociedade,
quer para um determinado tipo de negócios, quer para uma operação específica,
mas a sociedade sempre estava ligada indelevelmente às pessoas de seus sócios,
não possuindo qualquer resquício de vontade própria. De fato, num ambiente
jurídico ainda poderosamente influenciado pelo princípio do talião, ou seja, o da
retribuição teoricamente igual dos danos sofridos, os objetos finais das sanções
seriam sempre as pessoas físicas.

É, assim, na sociedade romana que se devem buscar as origens dos


conceitos de personalidade jurídica, e, quanto a isso, podem ser analisados dois
casos distintos que muita influência iriam ter na futura elaboração do conceito da
empresa como um ente dotado de personalidade: as associações e as sociedades.

$V$VVRFLDo}HV

As associações (FROOHJLD, singular FROOHJLXP, também chamadas, às vezes, de


XQLYHUVLWDWHV, “universalidades” e mesmo, em alguns casos, VRFLHWDWHV,

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“sociedades”) são, indubitavelmente, os primeiros entes que encontram-se


relativamente próximos da atual idéia de coletividades dotadas de personalidade
jurídica. A palavra latina FROOHJLXP referia-se inicialmente a qualquer conjunto de
pessoas reunido, ou agindo coordenadamente, para um fim específico. Assim, os
sacerdotes de determinado culto, o conjunto de todos os magistrados de
determinado escalão e denominação, os funcionários de determinada repartição,
todos constituíam, entre si, FROOHJLD. A partir dessas origens, os FROOHJLD evoluíram
para abarcar primeiramente associações religiosas e cultuais em geral; depois,
associações funerárias; por fim, clubes profissionais. Entretanto, e isso deve ser
bastante frisado, nunca incluíram corporações com cunho comercial, econômico ou
técnico: podia haver (e havia inúmeras) associações formadas por pessoas que
professavam um determinado ofício (por exemplo, associações de ourives, de
barqueiros, de ferreiros, etc.), mas tais FROOHJLD devem ser sempre entendidos como
sociedades recreativas e de mútua ajuda, e não como corporações que passavam
adiante os segredos e técnicas das profissões envolvidas, ou como instituições de
cunho econômico, muito menos como sindicatos.

As pessoas que, ao abrigo da lei, formavam uma associação passavam a


“constituir um corpo” (FRUSXVKDEHUH), e esse “corpo” passou a se chamar FRUSRUDWLR
(origem de nossa palavra “corporação”). De longe, as associações mais populares
eram as funerárias (FROOHJLD IXQHUDWLFD, ou FROOHJLD WHQXLRUXP, literalmente
“associações dos pobres”), cujos objetivos eram, mediante modesta contribuição
mensal dos membros, oferecer um banquete anual a todos os associados e
assegurar-lhes um funeral decente, ao qual todos os membros compareceriam e no
qual todos chorariam a partida do companheiro.

As associações possuíam estatutos próprios, que eram votados por seus


membros, estatutos esses que regulavam suas atividades, bem como as relações da
associação com seus membros. As associações eram livres para estabelecer os
estatutos que julgassem mais convenientes, desde que não ferissem a lei do Estado.
Além de estatutos, podiam os FROOHJLD possuir patrimônio próprio, quer em dinheiro
(DUFD), quer em bens de raiz (UHVFRPPXQHV), patrimônio esse que não se confundia
com o patrimônio dos membros. Podiam também agir legalmente, receber
heranças e legados, processar e serem processadas, atuando em nome do
FROOHJLXP um representante, chamado V\QGLFXV ou DFWRU. Em muitas dessas
associações (especialmente as profissionais e funerárias) albergaram-se os cristãos,
que, a partir delas, disseminaram na sociedade romana suas crenças.

Mais importante, a associação tinha existência legal reconhecida e separada


da de seus membros: estes morriam, mas os FROOHJLD continuavam a funcionar por
gerações e gerações. Essa existência independente era a essência da expressão
FRUSXV KDEHUH: havia um corpo distinto, com vida própria, pairando acima dos
associados.

Vê-se, assim, que os FROOHJLD possuíam muitas das características que hoje
são atributos usuais das pessoas jurídicas, mas o passo teórico decisivo jamais foi
dado, quer pelas autoridades romanas, quer pelos juristas; de fato, se a constituição

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das associações era relativamente livre desde a Lei das Doze Tábuas (c. 450 a.C.),
o uso demagógico que os vários competidores pelo poder, a partir dos finais da
República, fizeram delas (que podiam ser econômica ou eleitoralmente
poderosíssimas e influentes, especialmente quando congregavam membros de uma
mesma profissão) fez com que, desde a ditadura de Júlio César, a mão do Estado
caísse poderosamente sobre a organização das associações. De fato, procurou
César cassar o funcionamento de associações por ele consideradas sediciosas; e o
primeiro Imperador romano, o sobrinho e filho adotivo de César, Augusto (reinou de
30 a.C. a 14 d.C.) tomou medidas mais duras, abrangentes e coerentes para regular
o funcionamento das associações; de fato, lê-se na obra do historiador Suetônio,
“Vida dos Césares”, na biografia de Augusto, parágrafo 32:

³(OH FRUULJLX LQ~PHUDV SUiWLFDV QRFLYDV DR LQWHUHVVH H DR EHP S~EOLFRV
TXHU DV TXH KDYLDP VREUHYLYLGR GR SHUtRGR GDV JXHUUDV FLYLV TXHU DV
UHFHQWHPHQWHVXUJLGDV  SXOXODYDPLQ~PHUDVRUJDQL]Do}HVIDFLQRURVDV
DOEHUJDQGRVH VRE R PDQWR GH DVVRFLDo}HV H D HVVH SUHWH[WR
SHUSHWUDQGRWRGDDVRUWHGHYLODQLDV  HQWmRWRGDVDVDVVLPFKDPDGDV
DVVRFLDo}HV IRUDP GLVVROYLGDV H[FHWR DTXHODV GH DQWLJD WUDGLomR H
DPSDUDGDVSRUOHL´

Há, de fato, inúmeros indícios de uma legislação imperial específica, nessa


época, referente às associações e ligada ao nome de Augusto, mais especialmente
uma “lei Júlia sobre as associações´ OH[,XOLDGHFROOHJLLV). Para além da indicação
de caráter completamente geral dada por Suetônio mais acima, há evidências tanto
literárias quanto epigráficas a esse respeito. Com efeito, lê-se no Digesto, livro 47,
título 22, fragmento 1º, de Marciano, Introdução:

³1DV LQVWUXo}HV LPSHULDLV RV JRYHUQDGRUHV GDV SURYtQFLDV VmR


DGPRHVWDGRVDQmRDXWRUL]DURIXQFLRQDPHQWRGHDVVRFLDo}HVEHPFRPR
DQmRSHUPLWLUDRVVROGDGRVDFRQVWLWXLomRQRVDFDPSDPHQWRV GH FOXEHV
RXIUDWHUQLGDGHV&RQWXGRSRUGHFUHWRGR6HQDGRpSHUPLWLGRjVSHVVRDV
KXPLOGHV ID]HUHP FRQWULEXLo}HV PHQVDLV GHVGH TXH VH UH~QDP VRPHQWH
XPDYH]SRUPrVHGHVGHTXHQHQKXPDDVVRFLDomRLOHJDOVHFRQVWLWXDVRE
WDO SUHWH[WR  $GLFLRQDOPHQWH DV SHVVRDV QmR HVWmR SURLELGDV GH VH
UHXQLUHPSRUSURSyVLWRVUHOLJLRVRVGHVGHTXHHPWDLVUHXQL}HVQDGDRFRUUD
HPFRQWUDYHQomRDRGHFUHWRGR6HQDGRTXHEDQLXDVVRFLDo}HVLOtFLWDV8P
UHVFULWRGR,PSHUDGRU6HSWtPLR6HYHUR [reinou 193-211 d.C., nota do Autor]
FRQILUPRXDYDOLGDGH GHWDLVGLVSRVLo}HVQmRDSHQDV SDUD5RPDH SDUDD
,WiOLDPDVLJXDOPHQWHSDUDWRGRR,PSpULR´

Adicionalmente, há as duas conhecidas inscrições, as de códigos ILS 4966


(época de Augusto, encontrada em Roma) e ILS 7212 (época de Adriano,
encontrada em Lanúvio, Itália). A primeira é suficientemente importante (e breve)
para merecer uma citação literal:

DIS MANIBVS
COLLEGIO SYMPHONIACORVM
QVI SACRIS PVBLICIS
PRAESTV SVNT QVIBVS
SENATVS CCC PERMISIT E
LEGE IVLIA EX AVCTORITATE
AVG LVDORVM CAVSA

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³$RV GHXVHV 0DQHV [i.e., aos espíritos dos mortos e dos antepassados.
Nota do Autor]  HVWH PRQXPHQWR p  GHGLFDGR SHOD DVVRFLDomR GRV
P~VLFRVTXHWRFDPHPRUTXHVWUDVHTXHHQFRQWUDPVHGLVSRQtYHLVSDUDRV
VDFULItFLRV S~EOLFRV H SDUD RV HVSHWiFXORV GRV MRJRV DVVRFLDomR HVVD
DXWRUL]DGD SRU GHFUHWR GR 6HQDGR D RUJDQL]DU UHXQL}HV D FRQYRFDU SDUD
DVVHPEOpLDVHDUHDOL]DUWRGRVRVGHPDLVDWRVVRFLDLVGHDFRUGRFRPDOHL
-~OLDSRUDXWRULGDGHGH$XJXVWR´

A segunda, datada do quinto dia antes dos idos de junho, sob o consulado de
Lúcio Ceiônio Cômodo e Sexto Vetuleno Cívica Pompeiano (9 de junho de 136 d.C.),
muito mais extensa, mostra os detalhados estatutos de uma associação funerária
que combinava também o duplo culto de Diana e de Antínoo (favorito do Imperador
Adriano, afogado no Nilo); novamente, lê-se que a associação foi autorizada por um
decreto do Senado.

O que o texto legal do Digesto (bem como as duas evidências epigráficas)


mostra, nas entrelinhas, além da estrita vigilância que o governo imperial impunha às
associações, são as próprias limitações vocabulares utilizadas para a definição da
existência das sociedades; note-se que, no texto do Digesto, fala-se mais da ação
das pessoas se reunirem do que da existência de um ente abstrato chamado
“associação”. E, nos testemunhos epigráficos, a lei de Augusto e o decreto do
Senado não criam uma entidade abstrata, mas apenas permitem a uma associação
“organizar reuniões, convocar para assembléias e realizar todos os demais atos
sociais” (na inscrição romana dos músicos, mostrada acima, toda essa expressão
está presente nas três letras CCC da antepenúltima linha, que são a abreviatura de
FRLUH FRQYRFDUL FRJL: as faculdades de organizar reuniões; de convocar os
associados para tais reuniões; de praticar os demais atos FROHWLYRV referentes à vida
social). A personalidade jurídica, embora longe de embrionária, ainda não está
plenamente desenvolvida.

2&RQWUDWRGH6RFLHGDGH

Conforme se pôde demonstrar ao longo de todo o item anterior, as


associações, que representam indubitavelmente, no ordenamento jurídico ocidental,
a origem, mesmo que embrionária, da personalidade jurídica, não possuíam
conotação econômica específica, quer comercial, quer industrial. Na sociedade
romana o antepassado da atual empresa deve ser esquadrinhado no contrato de
sociedade. A sociedade (VRFLHWDV), no Direito Romano, era um contrato consensual,
sinalagmático e de boa-fé. Consensual porque, para a sua eficácia legal, devia
haver o entendimento entre pessoas capazes acerca de um objeto lícito;
sinalagmático porque fazia nascer obrigações recíprocas para as partes
contratantes; de boa fé porque pressupunha sempre o total consentimento (e
conhecimento) das partes acerca de seu teor e responsabilidades. Nesse contrato
de sociedade, duas ou mais pessoas, chamadas sócios (VRFLL) se obrigavam a
colocar, em comum, bens (UHV) ou esforços (RSHUDH) para alcançar um fim
patrimonial lícito que lhes fosse proveitoso.

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As sociedades constituídas por tal contrato podiam ser perpétuas,


condicionais ou temporárias; todas eram, contudo, personalíssimas (LQWXLWX
SHUVRQDH), isto é, levavam explicitamente em consideração as pessoas que as
constituíam; portanto, a morte de um dos sócios acarretava automaticamente a
dissolução da sociedade, a não ser que a sua continuidade, ocorrendo tal evento,
estivesse explicitamente prevista no contrato de constituição, não podendo os
herdeiros do sócio falecido tomar seu lugar, conforme se pode inferir diretamente do
Digesto, livro 17, título 2, fragmento 65, de Paulo, parágrafo 9º:

³$ PRUWH GH XP GRV VyFLRV GLVVROYH D VRFLHGDGH [no original: morte unius
societas dissolvitur] SRLV VH p QHFHVViULR R FRQVHQVR GH WRGRV SDUD D
IRUPDU D SHUPDQrQFLD GH WDO FRQVHQVR p LQGLVSHQViYHO SDUD VXD
VXEVLVWrQFLD D QmR VHU TXH SDFWXDGR GH RXWUD IRUPD SRU RFDVLmR GD
FRQVWLWXLomR GD VRFLHGDGH [nisi in coeunda societate aliter convenerit]  (
QHP PHVPR RV KHUGHLURV GR VyFLR ILQDGR OKH SRGHP VXFHGHU FRPR
VyFLRV ´

Mais ainda, não possuíam as sociedades, nem sequer embrionariamente,


personalidade jurídica: elas eram um contrato, não um ente. Seus direitos ou
obrigações para com terceiros eram tidos como direitos ou obrigações dos sócios,
considerados como pessoas; para terceiros, não havia sociedades, mas sim as
pessoas dos sócios. Ocorriam, desse modo, situações especialíssimas e
complicadas tanto no relacionamento dos sócios entre si quanto no relacionamento
dos sócios com terceiros, situações essas que o Direito Romano detalhada e
escrupulosamente distinguia e regulava. Assim, por exemplo:

a) na ausência de uma disposição específica no contrato de sociedade, cabia


a qualquer dos sócios gerir os negócios, como mandatário (QHJRWLRUXP
JHVWRU) dos demais, sendo-lhe obrigatória a FRPPXQLFDWLR OXFUL HW GDPQL
(relatório dos lucros ou perdas resultantes das atividades);

b) as obrigações dos sócios entre si estavam estipuladas no, e eram


decorrentes do, contrato de sociedade, sendo sancionadas por um único
tipo de ação judicial, a DFWLR SUR VRFLR. Tal ação possuía três
características particularíssimas: em primeiro lugar, somente podia ser
intentada por um sócio (ou conjunto de sócios) contra outro (ou outros),
em decorrência de descumprimento de obrigações estipuladas no contrato
de sociedade, ou malversação dos recursos sociais, ou usurpação dos
lucros; em segundo lugar, o sócio réu somente podia ser condenado
proporcionalmente aos recursos que havia empatado na sociedade
(condenação dita LQ LG TXRG IDFHUH VRFLXV SRWHVW; chamava-se a isso
EHQHILFLXPFRPSHWHQWLDH); enfim, em terceiro lugar, a DFWLR SUR VRFLR não
podia ser intentada durante a vigência da sociedade, e isso porque os
romanos consideravam que um requisito indispensável para a existência
do contrato de sociedade era a confiança que os sócios nutriam entre si
(LXVIUDWHUQLWDWLV), não se concebendo a possibilidade de existência de um
processo entre eles; a ausência da IUDWHUQLWDV (e o recurso à DFWLR SUR
VRFLR), assim, automaticamente dissolvia o contrato de sociedade;

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c) não se concebia a existência de obrigações da sociedade para com


terceiros; essas eram sempre consideradas como obrigações dos sócios
para com terceiros, e classificáveis em três grupos: obrigações entre um
dos sócios (na gestão dos negócios) e terceiros; ou entre todos os sócios
e terceiros; ou entre alguns dos sócios e terceiros. Na primeira hipótese, a
relação, à luz jurídica, surgia apenas entre a pessoa do sócio gestor e o
terceiro, sendo os lucros ou perdas resultantes regulados separada e
internamente entre todos os sócios; na segunda hipótese, as obrigações,
para os sócios, eram de natureza fracionária, ou seja, o terceiro, quando
credor, somente podia exigir de cada sócio uma parte proporcional, e,
quando devedor, somente estava igualmente obrigado a pagar a cada
sócio uma parte proporcional, a não ser que a solidariedade fosse
explicitamente estipulada, ou então nos casos em que a solidariedade
fosse imposta por lei, como era o caso nas sociedades formadas por
banqueiros (DUJHQWDULL); na terceira hipótese, por fim, as regras das duas
hipóteses anteriores se combinavam para regular as relações entre
terceiros e alguns dos sócios.

A característica personalíssima do contrato de sociedade torna-se, assim,


evidente.

Os contratos de sociedade podiam ser de quatro tipos: D VRFLHWDV RPQLXP


ERQRUXP (sociedade universal de todos os bens, na qual os sócios colocavam em
comum todos os seus bens, presentes e futuros, para a consecução do objetivo
social); E VRFLHWDV XQLYHUVRUXP TXDH H[ TXDHVWX YHQLXQW (sociedade universal de
ganhos auferidos, na qual os sócios somente colocavam em comum o produto de
seu trabalho e o rendimento de seus bens); F VRFLHWDV XQLXV UHL (sociedade de
operação única, na qual os sócios se concentram numa operação específica, ou na
exploração de um único bem); G VRFLHWDV DOLFXLXV QHJRWLDWLRQLV (sociedade de
negócios, na qual os sócios objetivam a realização de uma série de operações de
natureza comercial). Nesse último tipo de contrato de sociedade está a origem das
empresas comerciais.

Havia, contudo, uma espécie particular de sociedade de negócios, DVRFLHWDV


YHFWLJDOLXP ou VRFLHWDVSXEOLFDQRUXP (sociedade de tributos, ou de publicanos), que
possuía uma série de características próprias as quais em muito a aproximavam de
entes dotados de personalidade jurídica.

Publicanos eram cidadãos romanos que obtinham do Estado autorização para


arrecadar tributos (YHFWLJDOLD), mediante adiantamento de determinada soma ao
Tesouro. De fato, não dispondo o governo da República, com suas magistraturas
civis anuais não remuneradas, de aparato administrativo adequado à arrecadação
dos tributos de um Império em expansão, alugava (terceirizava) o recolhimento dos
impostos a particulares. Desse modo, resolvia (ou, se se quiser, postergava a
solução de) uma série de problemas: mantinha o aparato administrativo enxuto;
recolhia de antemão, e com garantia, as somas em dinheiro oriundas dos tributos (os
contratos de recolhimento de impostos eram ofertados publicamente a todos, ou
seja, eram licitados, sendo contratados os proponentes que oferecessem as

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condições mais vantajosas ao Estado, isto é, que se dispusessem a pagar a maior


quantia pelo direito de recolher os impostos de uma certa região, ou província, num
determinado exercício fiscal); enfim, as disputas entre os publicanos e os
contribuintes eram resolvidas pelas leis processuais civis comuns, não interferindo
nelas o Estado, já que se tratava, a seu ver, de questão entre particulares.

Tendo em vista o pagamento antecipado, os publicanos deviam ser homens


de posses; era muito comum a íntima associação entre publicanos (SXEOLFDQL) e
banqueiros (DUJHQWDULL ), embora as duas categorias fossem
distintas. Muitos confiavam suas economias a banqueiros, que as investiam em
VRFLHWDWHVSXEOLFDQRUXP, na expectativa dos lucros (os publicanos eram famosos, e
odiados, pela sua crua eficiência na cobrança, pois quanto mais conseguissem
recolher, maior seria o seu lucro). As altas somas envolvidas exigiam, quase
sempre, que os publicanos atuassem em conjunto, ou seja, que constituíssem uma
VRFLHWDV. Tais VRFLHWDWHVeram regidas pelas leis gerais concernentes aos contratos
de sociedade, já citadas anteriormente; contudo, e no interesse exclusivo do Estado,
havia nelas três características singulares.

A primeira delas residia no fato de tais sociedades irem além de um simples


contrato, sendo corporificadas, aproximando-se assim dos FROOHJLD no sentido de
que, como os FROOHJLD, constituíam um ente suprapessoal reconhecido por lei. De
fato, conforme explicitado na legislação (Digesto, livro 3º, título 4º, fragmento 1º, de
Gaio, Introdução):

³1HQKXPD FRUSRUDomR RX DVVRFLDomR GH TXDOTXHU WLSR SRGH VH FRQVWLWXLU
LQGLVFULPLQDGDPHQWH GHYHQGR REHGHFHU jV H VH FRQIRUPDU FRP DV
SUHVFULo}HVGDVOHLVGRVGHFUHWRVGR6HQDGRHGDVFRQVWLWXLo}HVLPSHULDLV
eHVVDFRQIRUPLGDGHHHVVDREHGLrQFLDTXHOKHVDVVHJXUDDH[LVWrQFLDHD
FRUSRULILFDomR'DPHVPDIRUPDjVVRFLHGDGHVGHSXEOLFDQRVpSHUPLWLGD
D H[LVWrQFLD FRUSRULILFDGD [ut ecce, vectigalium publicanorum sociis
permissum est corpus habere]´

A segunda delas ligava-se ao fato de que tais sociedades não se extinguiam


com a morte de um dos sócios, podendo sua parte, inclusive, passar em herança; ou
seja, a VRFLHWDV SXEOLFDQRUXP não era mais um simples contrato LQWXLWX SHUVRQDH,
mas, para todos os efeitos práticos, uma autêntica sociedade de capital; essa
característica é também explícita e cristalina na lei (Digesto, livro 17, título 2º,
fragmento 59, de Pompônio, Introdução):

³3DUDWRGRVRVHIHLWRVFRPDPRUWHGRVyFLRGLVVROYHVHDVRFLHGDGH[adeo
morte socii solvitur societas] H QHP PHVPR TXDQGR FRQYHQFLRQDGR
LQLFLDOPHQWHSRGHRKHUGHLURVXFHGHUDRVyFLRIDOHFLGR7DOpFRPHIHLWRR
SURFHGLPHQWR QDV VRFLHGDGHV SULYDGDV  1DV VRFLHGDGHV GH SXEOLFDQRV
FRQWXGRDPRUWHGHXPVyFLRQmRLQWHUURPSHDVXDH[LVWrQFLDHVHDSDUWH
GRVyFLRPRUWRpDGVFULWDDVHXKHUGHLURpOtFLWRTXHHOHDWRPH FRPRVXD
SURSULHGDGH ´

Essa transferência de responsabilidades para os herdeiros, por ocasião da


morte de um sócio numa VRFLHWDV SXEOLFDQRUXP, era, por assim dizer, quase
compulsória, conforme se pode constatar na passagem do Digesto, livro 17, título 2º,
fragmento 63, de Ulpiano, parágrafo 8º:

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³$ actio pro socio FRPSHWH LJXDOPHQWH DR KHUGHLUR GR VyFLR [in heredem
quoque socii pro socio actio competit] DLQGD TXH HVVH KHUGHLUR QmR VHMD
VyFLRSRLVPHVPR QmRVHQGRVyFLRpVXFHVVRU GRV GLUHLWRV  'R PHVPR
PRGRQDVVRFLHGDGHVGHSXEOLFDQRVQHVWDVDSHVDUGHRKHUGHLURGRVyFLR
QmRVHFRQVWLWXLUHPVyFLRDQmRVHUTXHGLYHUVDPHQWHSDFWXDGRWRGRVRV
JDQKRV H SHUGDV GHFRUUHQWHV GD KHUDQoD OKH VmR DXWRPDWLFDPHQWH
WUDQVPLWLGRVWDQWRDTXHOHVRULJLQDGRVTXDQGRRVyFLRDLQGDYLYLDTXDQWRRV
SRVWHULRUHVjVXDPRUWH´

A terceira característica dizia respeito às quotas, que, por assim dizer,


possuíam vida própria, podendo um sócio alienar sua participação, tendo inclusive o
sócio mais abonado o direito de exigir que lhe fosse transferida a parte do sócio
menos idôneo. Mais ainda, a sociedade de publicanos sequer se dissolvia (como
ocorria com as demais sociedades) quando um dos sócios era condenado ou sofria
confisco dos bens.

Todas essas características tornavam, assim, a sociedade de publicanos


muitíssimo próxima do conceito atual de pessoa jurídica. Contudo, suas
características especiais prendiam-se aos serviços especiais que prestavam ao
Estado, e tais serviços ligavam-se à virtual ausência de aparelho estatal para a
cobrança de impostos. Com a constituição do regime imperial, o progressivo
surgimento de uma estrutura administrativa estável (isto é, de uma autêntica
burocracia estatal) fez com que fossem lentamente perdendo importância. As
relações tributárias passaram a se dar, cada vez mais, entre os conselhos
municipais e os procuradores da casa imperial. Por volta do século IV, as VRFLHWDWHV
YHFWLJDOLXP já tinham, praticamente, desaparecido, o que prova mais uma vez que
haviam sido constituídas como uma concessão do Estado, sendo sua atividade
restrita àquilo que o Estado julgava conveniente para si.

Desse modo, o Império Romano legou às sociedades que o sucederam dois


conceitos distintos referentes a agrupamentos de pessoas que unem seus esforços
para um fim específico: as associações, de cunho assistencial, recreativo e religioso,
e os contratos de sociedade, de cunho comercial mas ligados especificamente às
pessoas que os constituíam.

$,GDGH0pGLDHD(PHUJrQFLDGDV6RFLHGDGHV&RPHUFLDLV

Os conceitos distintos de associações e contratos de sociedade, embora


seguindo ainda caminhos substancialmente diferentes ao longo de toda a Idade
Média e período pré-capitalista, começaram, contudo, a se aproximar em muitas de
suas vertentes, gerando entidades corporificadas de tipo inteiramente novo e não
encontradas nem na antiga sociedade romana, nem nas sociedades não-européias
contemporâneas. Seria na sua progressiva aproximação que se desenharia todo o
arcabouço teórico (e jurídico) da personalidade jurídica e, nela, da responsabilidade
limitada. Tal gestação, em si um processo fascinante e esclarecedor, pode ser
acompanhada didaticamente em três linhas principais de desenvolvimento, as quais,
no raiar da Idade Moderna, haviam já tornado possível a evolução futura. Essas três
linhas serão analisadas nos itens a seguir.

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$0mR(FOHVLiVWLFDD(YROXomRGD$VVRFLDomRHDV³3HVVRDV)LFWtFLDV´

O desmoronamento da estrutura política e administrativa imperial no Ocidente


fez com que a Igreja, relutantemente a princípio, assumisse muitas das funções
outrora acometidas ao Estado. Onde antes havia o poder civil imperial pairando
acima de tudo, agora havia a fragmentação política. Mais complicado ainda, agora,
pairando acima das frágeis unidades políticas recém-constituídas, estava a Igreja
como uma inequívoca “corporação”, paralela (e, às vezes, antagônica) aos inúmeros
Estados ou feudos. Mas a Igreja não era uma simples corporação, e sim a união de
todos os fiéis (o “corpo místico” de Cristo), sendo, ela própria, constituída por uma
série de elementos distintos: arcebispados, bispados, paróquias, ordens religiosas e
associações piedosas. Os princípios dos antigos FROOHJLD da lei romana foram, no
geral, e abstraindo-se algumas situações particulares ou complicadas, aplicados a
cada um desses entes constituintes do grande Corpo Místico de Cristo, e, portanto,
cada elemento do universo eclesiástico passou a constituir, para todos os efeitos
práticos, um ente dotado de personalidade própria, análogo aos antigos FROOHJLD
inclusive na faculdade de poder possuir propriedade em seu nome.

Tal processo, o qual, para efeitos meramente didáticos, chamar-se-á neste


trabalho de “micro-corporificação” da Igreja teve, evidentemente, seus altos e baixos,
seus avanços e recuos, e, sem dúvida, originou-se do problema dos testamentos:
muitos, ao morrer, deixavam bens “a Deus”, “à Igreja”, “a Cristo”, ou a determinado
santo. Condições locais variavam, mas, a princípio, nunca se considerou que um
legado a Deus, à Igreja, a Cristo ou a um santo pertencesse a um “fundo comum” de
todo o corpo eclesiástico; a destinação tinha que ser específica. Inicialmente,
apenas eram consideradas corporificadas, e associadas a FROOHJLD, as comunidades
cristãs representadas por seus bispos, isto é, os bispados, sendo todas as doações
e legados administradas pelos titulares das sés; Justiniano, em seu Código (livro 1º ,
título 2º, capítulo 25), foi além, reconhecendo às paróquias e aos mosteiros a
capacidade de receber doações e legados especificamente a eles destinados
(determinando adicionalmente que, se o legado fosse efetuado em nome de um
determinado santo, deveria reverter à paróquia mais próxima que atendesse pela
invocação daquele santo). Os precedentes, assim, estavam criados; podendo ter
propriedades em seu nome, receber em seu nome doações e heranças e,
obviamente, administrá-los, os bispados, as paróquias, as ordens religiosas e as
associações pias (confrarias, fraternidades, sodalícios, etc.) se corporificaram de
fato, e, com o tempo, de direito, recebendo dos canonistas medievais a
denominação de SHUVRQDH ILFWDH (literalmente: “pessoas fictícias”, ou seja, entes
capazes de exercer direitos e deveres como se pessoas fossem, e cuja vida
transcendia a vida de seus membros constituintes). A existência corporativa, assim,
esteve unida, desde o início, à capacidade de possuir, adquirir e gerir propriedade.

O primeiro passo na gênese do moderno conceito da personalidade jurídica,


assim, foi a “micro-corporificação” da Igreja. O segundo passo ainda se deu na
esfera eclesiástica, e consistiu no rompimento da barreira econômica. Nunca é
demais recordar que os FROOHJLD da época romana não eram associações de cunho
econômico. A Igreja, porém, o era; os mosteiros e ordens religiosas, principalmente,
eram entes econômicos tanto quanto religiosos, alargaram as fronteiras agrícolas da

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Europa, implementaram novas tecnologias do cultivo do solo, compravam, vendiam,


administravam. Algumas ordens, como a dos Templários, exerceram mesmo
atividades financeiras e de câmbio, nisso se tornando especialistas e acumulando
enormes fortunas (tal foi, aliás, a razão de sua posterior ruína: os cavaleiros do
Templo chegaram a se constituir como que num banco internacional, com sede em
Jerusalém, em 1128, até serem extintos pelo Papa em 1313, a pedido do rei de
França). As SHUVRQDH ILFWDH da própria Igreja mostraram, assim, que era possível
dar um cunho econômico ao conceito das associações.

O terceiro passo se deu fora da esfera eclesiástica, embora amparado e


influenciado pelas próprias autoridades eclesiásticas, e consistiu no desenvolvimento
das assim chamadas “guildas”. Eram análogas aos antigos FROOHJLD, mas devem sua
origem à influência eclesiástica e à índole associativa e coletivista que a
evangelização espalhou nos países do norte da Europa. De fato, no princípio
constituíram-se em associações voluntárias leigas, de cunho beneficente e nas quais
o atendimento religioso era preponderante, sendo como tais registradas na
Inglaterra anglo-saxã desde as leis de Ina, no séc. VII, sofrendo uma primeira grande
codificação sob Aethelstan (925-940). A própria palavra “guilda” provém do anglo-
saxão JLOGDQ, significando “pagar”, “submeter-se”, e tinha o sentido de um grupo a
cujas regras um conjunto de pessoas se submetia. O mesmo fenômeno repetiu-se
na França e nos Países Baixos (no Continente, a palavra “guilda” aparece pela
primeira vez numa capitulária de 779). Em todos os lugares, a feição era a mesma:
os membros constituintes de uma guilda sustentavam um fundo comum e
comprometiam-se a cuidar dos órfãos e viúvas dos companheiros falecidos, bem
como zelar pela celebração periódica de missas por suas almas. Logo tais guildas
transcenderam o cunho meramente beneficente: desde finais do séc. X, com a
estabilização política que se seguiu às invasões normandas, houve um sensível
desenvolvimento das atividades econômicas e, conseqüentemente, do comércio em
toda a Europa, especialmente na Flandres, na Ilha-de-França, no sul da Inglaterra e
no norte da Itália. Em todas as grandes cidades da Flandres e da Ilha-de-França,
como Ruão, Paris, Bruges, Arras e Saint-Omer, surgiu um novo tipo de guilda, a
guilda mercantil, que logo se espalhou até à Alemanha e à Itália do Norte; em
Londres, a primeira de que se tem notícia é um pouco posterior, e data do primado
de Santo Anselmo como arcebispo da Cantuária (1093-1109). As guildas mercantis
arrancavam das autoridades municipais, ou do senhor feudal, o monopólio, para os
seus membros, do comércio de determinado item nos limites de jurisdição de sua
cidade. Apenas o monopólio da venda de produtos alimentícios era proibido pela
Igreja; todos os demais artigos (vestuário, especiarias, produtos artesanais em geral)
logo tiveram o seu comércio açambarcado por essas guildas mercantis. Os
governos cobravam às guildas polpudas somas para conceder (e renovar) tais
privilégios, e a constituição de guildas mercantis logo passou a ser mais uma fonte
de receita para os sempre necessitados reis e senhores feudais.
Compreensivelmente, as guildas mercantis eram, muitas vezes, odiadas pela
população urbana, pois cobravam pelas mercadorias objeto de seus monopólios
preços exorbitantes. O seu próprio sucesso engendraria o seu desmantelamento.

Das guildas mercantis, enfim, surgiram, a partir do século XII, as corporações


de ofício, como guildas que congregavam os artesãos de determinado ofício (por

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exemplo, ferreiros, carpinteiros, sapateiros, pisoeiros, etc.), não apenas para fins
beneficentes e religiosos, mas também, e principalmente, objetivando zelar pela
qualidade dos produtos, bem como passar adiante as técnicas do ofício. Seus
membros eram cuidadosamente hierarquizados em mestres, companheiros e
aprendizes. Como os antigos FROOHJLD, tinham existência reconhecida pelo Estado,
podiam ser proprietários e receber legados; possuíam suas bandeiras, distintivos e
sedes próprias, seus santos protetores e seus dias de festa particulares.
Espalharam-se por toda a Europa, sendo particularmente poderosas na Flandres, na
Itália e na Alemanha (isto é, nos países mais fragmentados politicamente). Na
Inglaterra, tomaram a dianteira na luta contra as guildas mercantis, obtendo de
Eduardo III, em 1335, uma lei que permitia a mercadores estrangeiros comerciar
livremente no país.

A partir dos séculos XV e XVI, o sistema de guildas iniciou um lento mas


visível declínio, padecendo de progressiva esclerose. Passaram a se constituir nas
cidadelas dos direitos adquiridos e dos métodos de produção ultrapassados,
cuidando mais em manter seus privilégios e impor preços abusivos do que em inovar
ou desenvolver novas técnicas. Haviam, contudo, sido de importância capital
(muitas vezes negligenciada) na formulação do conceito de personalidade jurídica,
ligando os conceitos de corporificação e de atividade econômica num conjunto
coerente.

$V6RFLHGDGHV&RPHUFLDLV

No item anterior, pôde-se mostrar que a grande contribuição eclesiástica para


a gestação do moderno conceito de personalidade jurídica prendeu-se à
FRUSRULILFDomR GH HQWHV HFRQ{PLFRV, ainda influenciada, contudo, pela velha idéia
romana do FROOHJLXP; tais entes econômicos, na acepção da Igreja (ou seja, dentro
dos princípios do Direito Canônico), estavam sempre ligados a uma atividade
produtiva proveitosa a todo o corpo social; assim, puderam os canonistas aceitar,
dentro de sua conceituação de SHUVRQDH ILFWDH, não apenas entes de cunho
religioso, mas também as guildas mercantis e, mesmo, as corporações de ofício,
como corpos que zelavam pela qualidade da produção, regulavam a competição
exacerbada e mantinham um alto padrão moral nas transações econômicas (ao
menos, essa era a teoria). As atividades de comércio, bem como as atividades
econômicas de cunho meramente lucrativo, eram toleradas, mas não incentivadas.
Nas mentes dos canonistas, jamais se poderia pensar em retirar daqueles cujos
ganhos advinham da mera intermediação da circulação de valores a sua
responsabilidade integral e pessoal por todos os seus atos de comércio. Assim
sendo, quando, a partir da segunda metade do séc. X, o comércio voltou a animar-
se na Europa, ligando os dois grandes pólos Flandres e Ilha-de-França, de um lado,
com o norte da Itália, de outro, os comerciantes atuavam individualmente, como
pessoas; sua atividade consistia em organizar o transporte das mercadorias de uma
cidade a outra, de uma guilda mercantil de origem a uma guilda mercantil de destino.
Eventualmente, com o enfraquecimento das guildas mercantis, a partir da
emergência das corporações de ofício, no séc. XII (conforme visto no item anterior),
passaram admitir filiais e/ou representantes em várias cidades. O crescimento e a
complexidade dos negócios passou a exigir, assim, que atuassem em conjunto, e

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esse conjunto de mercadores constituía uma FRPSDQKLD, porque estavam todos


juntos numa empreitada, ou seja, comiam todos do mesmo pão (FXP SDQLV).
Conscientemente ou não, tais companhias modelavam-se à imagem e semelhança
do antigo contrato de sociedade romano, sendo LQWXLWX SHUVRQDH e regulando-se
para uma única empreitada (é de se notar que muito da nomenclatura das
sociedades comerciais, e que chegou até aos dias atuais, deriva diretamente do
antigo contrato de sociedade romano, inclusive o termo técnico específico “sócio”
para cada um de seus membros constituintes; isso não deve ser apenas
coincidência). Como no caso da corporificação da Igreja e das guildas, contudo, a
situação evoluiu. Inicialmente, as companhias passaram a ter um caráter mais
permanente, menos esporádico; tais companhias, contudo, não possuíam
personalidade jurídica, sequer corporificação, e os sócios eram integralmente
responsáveis, inclusive com seu patrimônio pessoal, por todos os prejuízos advindos
de sua ação. Essa é a origem da VRFLHGDGHHPQRPHFROHWLYR, ainda presente no
Código Comercial brasileiro. Os lucros obtidos com o comércio, porém,
principalmente nas cidades do norte da Itália, atraíram muitos não-comerciantes
para esse novo filão. Muitos eram nobres, ou altos funcionários municipais, ou
mesmo dignitários eclesiásticos, que possuíam capital, mas nenhum conhecimento
das técnicas comerciais; mais ainda, não queriam se ver envolvidos num eventual
fracasso ou falência. Em suma: não queriam correr os riscos da solidariedade
ilimitada pressuposta nas companhias; contudo, legalmente, não havia outro modo
de participarem dos ganhos do comércio; para tal, era mister participarem
integralmente de seus riscos. Quando se trata de dinheiro, porém, para tudo há
jeito, e surgiu um tipo peculiar de sociedade, tangenciando a lei e os costumes, a
comandita. Nela, um grupo de sócios (chamados comanditados) se apresenta como
sócios em nome coletivo, gerenciando todas as atividades da sociedade;
oficialmente, a sociedade somente se constitui deles, e de ninguém mais; há,
contudo, um segundo grupo de sócios (chamados comanditários), os quais,
oficialmente, não participam da sociedade (eis a razão de se chamarem “sócios
ocultos”), e não o fazem porque estipulam com os comanditados que a sua
participação em lucros será proporcional à quantia que empataram no negócio, bem
como que seu eventual prejuízo jamais será superior a essa mesma quantia, sendo
resguardados seus bens particulares e sua reputação. São “ocultos” porque se a
sua ligação com a sociedade fosse descoberta seriam automaticamente
considerados como sócios em nome coletivo. Desse modo, a primeira efetiva
limitação de responsabilidade em sociedades comerciais originou-se de um logro à
lei e aos costumes; apesar disso, a comandita possibilitou a alocação de uma
grande quantidade de capital às atividades comerciais, e, depois, às atividades
industriais. Via de regra, os comanditários respondiam pela maior parte do capital, e
esse arranjo (o qual, inicialmente proibido, foi depois tolerado, e finalmente
reconhecido legalmente) viabilizou o uso produtivo de largas somas de dinheiro
anteriormente empatadas em empreendimentos meramente patrimoniais ou
suntuários. Ainda que de forma incompleta e inconclusiva, representou uma nova
etapa no desenvolvimento do moderno conceito da personalidade jurídica: a
responsabilidade de uma pessoa diante de um contrato de sociedade podia, na
prática inicialmente, no próprio ordenamento jurídico depois, ser limitada à quantia
empatada no empreendimento, proporcionando-lhe segurança em caso de prejuízos
ou falências. Via-se nisso, aliás, um equilíbrio de direitos e deveres: sendo limitado

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o risco, limitada era a participação nos lucros, e nula a participação na gerência do


empreendimento, que sempre ficava nas mãos dos comanditados. Foi esse
equilíbrio que justificou, finalmente, a aceitação da comandita no ordenamento
jurídico da época.

2)LVFRHDV6RFLHGDGHVGH&DSLWDO

Nos dois itens anteriores, falou-se da “micro-corporificação” da Igreja (a qual


resultou na aceitação de aspectos econômicos inequívocos dentro do conceito
canônico da SHUVRQD ILFWD) e do desenvolvimento progressivo dos contratos de
sociedade (o qual resultou em sociedades mais estáveis e que acabaram
incorporando, pela primeira vez, a noção da responsabilidade limitada, nas
comanditas). Uma terceira vertente no processo de maturação do conceito de
personalidade jurídica, bem mais específica, surgiu a partir dos finais da Idade
Média, nas duas grandes repúblicas mercantis da época: as cidades italianas de
Veneza e de Gênova. Trata-se do surgimento das primeiras VRFLHGDGHVGHFDSLWDO,
os bancos públicos, que foram os primeiros corpos dotados inequivocamente de
personalidade jurídica; ligados exclusivamente a atividades comerciais ou
financeiras, exigiam apenas responsabilidade limitada de seus sócios. Quase todos
os ingredientes da moderna empresa dotada de personalidade jurídica, e, mesmo,
de limitação de personalidade, neles estavam presentes, e legalmente definidos. A
origem de tais entes revolucionários ligou-se, como é costume, às prementes
necessidades dos Estados por dinheiro, e suas atividades estavam intimamente
ligadas às prioridades do Estado; nelas, o público e o privado se confundiam.

Deve-se começar pela análise do caso mais antigo, o de Veneza. A história


do Banco do Estado, nessa cidade, é bastante complexa, e somente pôde ser
razoavelmente reconstituída a partir do relato de Clairac, advogado em Bordéus, na
França, que escreveu em 1657 e que dispunha de informações bastante precisas e
fidedignas. O Banco do Estado constituiu-se a partir da união de três
estabelecimentos diferentes: o primeiro foi o 0RQWH9HFFKLR (Antigo Monte), fundado
em 1156, sob o doge Vital Michiel; o segundo foi o 0RQWH 1XRYR (Novo Monte),
estabelecido em 1390, sob o doge Antônio Vernier; o terceiro, enfim, foi o 0RQWH
1RYLVVLPR (Novíssimo Monte), que data de 1410, no tempo do doge Leonardo
Loredan. Todos esses três estabelecimentos foram criados por disposição
governamental para suprir prementes exigências de caixa por parte da República. O
esquema era simples: determinada soma em dinheiro era emprestada ao Estado por
um conjunto de capitalistas; essa soma era chamada usualmente PRQV, “monte”;
como se destinava a um uso comercial, isto é, não religioso, recebia a denominação
de PRQV SURIDQXV (“monte profano”, ou seja, um monte não ligado a atividades
piedosas), para distingui-la de subscrições semelhantes de cunho meramente
religioso ou beneficente (PRQVSLXV, monte ligado a atividades de cunho piedoso, daí
a palavra montepio). Em troca da subscrição de capital, os capitalistas recebiam
uma certa quantidade de títulos representativos da dívida, igualmente fracionados
(chamados ORFD PRQWL, “lugares no Monte”, ou simplesmente ORFD), negociáveis e
transferíveis, bem como privilégios diversos, usualmente de três tipos: participação
nas receitas alfandegárias do Estado; permissão oficial para receber depósitos e
emprestar a juros; garantia do Estado de salvaguarda sobre as propriedades

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privadas dos detentores dos ORFD, sendo sua responsabilidade ante o Banco limitada
à fração do monte representado por seus respectivos ORFD. A dívida estatal, assim,
era metamorfoseada numa sociedade corporificada e privilegiada, e os ORFD
rapidamente adquiriram todas as características das modernas ações,
transformando seus detentores em acionistas e o Banco numa sociedade de capital:
eram comprados, vendidos, dados em garantia e passados em herança. Como se
vê, a Sereníssima República de Veneza por três vezes constituiu tais Montes, que
acabaram se reunindo, pelas leis de 1584 e 1587, num único estabelecimento, o
Banco do Estado (apesar do nome, era de particulares). Em outras ocasiões, ao
invés de constituir mais um Monte, o Estado, se tivesse crédito, podia pedir
emprestado ao próprio Banco, fornecendo como garantias receitas alfandegárias
adicionais ou de impostos, direitos de exploração comercial e privilégios diversos. O
Banco do Estado continuou operando nessas linhas, ininterruptamente, até 1797,
quando desapareceu ao mesmo tempo que a República, no torvelinho das guerras
napoleônicas.

O caso de Gênova foi mais singular. A 6LJQRULD de Veneza era famosa por
sua administração financeira escrupulosa; a austeridade e a estabilidade tanto das
contas públicas quanto do valor intrínseco de sua moeda, o ducado de ouro, eram
proverbiais, e foram mantidas por, pelo menos, seiscentos anos, até 1797, quando a
República foi extinta por Napoleão e seus fundos saqueados pelos franceses. A
sua grande rival, a República de Gênova, por outro lado, embarcou desde o séc. XII
num ambicioso programa de endividamento público, a fim de financiar a construção
do império comercial de sua oligarquia. Tais empréstimos davam aos credores
direito a rendas perpétuas ou vitalícias, sob a forma de títulos transferíveis,
igualmente fracionados (ORFD, como em Veneza), e garantidos por fundos
específicos. As perdas com as Cruzadas e os ataques dos turcos ao comércio
oriental fizeram a situação da dívida pública genovesa deteriorar-se
progressivamente a partir de finais do séc. XIII; nos inícios do séc. XIV, os próprios
credores tomaram a si a incumbência de gerir os fundos garantidores dos títulos
(PRQWHV). Em 1407, enfim, sem ter como pagar as antigas dívidas, e diante da
necessidade urgente de mais dinheiro para financiar outra guerra contra Veneza, o
governo genovês barganhou com os seus credores uma consolidação de todas as
dívidas antigas, bem como de um novo empréstimo destinado à guerra veneziana,
transformando todos os títulos da dívida pública em poder de particulares (ORFD
PRQWL) em títulos, igualmente fracionados, livremente negociáveis e alienáveis (ORFD
FRPSHUDUXP, ou seja, ações) de uma nova sociedade, o assim denominado Banco
de São Jorge (&DVDGL6DQ*LRUJLR, depois %DQFDGL6DQ*LRUJLR), ao qual concedia
privilégios iguais aos gozados pelo Banco do Estado de Veneza, mais o direito de
emitir títulos de crédito, garantidos pelas receitas aduaneiras e de impostos da
República, bem como pela posse da ilha da Córsega. Converteu-se o Banco de São
Jorge em virtual emprestador do Estado, e a um ponto tal que chegou a controlar-lhe
totalmente as finanças, os projetos coloniais e a própria política externa. Funcionou
ininterruptamente até 1799, quando foi fechado, outra vítima das guerras de
Napoleão.

Nota-se, assim, que todos os conceitos necessários à formulação da moderna


teoria da personalidade jurídica de responsabilidade limitada estavam já

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perfeitamente delineados no final da Idade Média (corporificação de entes


econômicos; responsabilidade limitada dos sócios; noção de sociedade de capital,
com quotas alienáveis e negociáveis representativas do capital, e não pessoas
investidoras de recursos); restava apenas juntá-los, tarefa que coube à progressiva
evolução do sistema capitalista, a partir do séc. XVI.

2&DSLWDOLVPRHD3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

O panorama descortinado a partir do séc. XVI era, ao mesmo tempo, de crise


e de oportunidades. A noção de personalidade jurídica andava já bastante
avançada, abarcando inclusive entes puramente econômicos, e mesmo financeiros,
ligados às necessidades do Estado. Por outro lado, para as empresas comerciais e
industriais, não se tinha evoluído além das comanditas. O enfraquecimento dos
antigos entes corporificados de índole econômica, nomeadamente as guildas
mercantis e as corporações de ofício, acompanharam o eclipse progressivo,
respectivamente, dos antigos monopólios comerciais locais e da antiga produção
artesanal. Os novos empreendedores, tanto no campo da indústria quanto do
comércio, estavam fora do ambiente das guildas, e não dispunham de nenhuma
possibilidade legal de constituírem companhias corporificadas, salvo se fossem
sócios comanditários. Em toda a parte, o contrato de sociedade nem de longe
conferia características de corporificação, muito menos de limitação de
responsabilidade. Como sempre, e no interesse exclusivo do Estado, a exceção
ficava por conta de sociedades ligadas ao recolhimento de impostos ou outras
rendas estatais, numa repetição, nos séculos XV a XVII, das condições que haviam
outrora engendrado as VRFLHWDWHV SXEOLFDQRUXP na antiga Roma. Com efeito, os
Estados Nacionais surgidos a partir do séc. XV não dispunham, como outrora a
República Romana, de um aparato arrecadador próprio, e, muitas vezes arrendavam
a particulares tal empreitada. As determinações de Filipe II (III de Espanha, rei de
Portugal e Espanha 1598-1621) nas 2UGHQDo}HV )LOLSLQDV, livro 4º, título 44, “Do
Contrato de Sociedade e Companhia”, servem de exemplo perfeito da legislação da
época, não apenas na Espanha e em Portugal, mas em toda a Europa; deve-se
notar que as determinações das referidas Ordenações (emitidas em 1603 e
confirmadas pelo novo governo independente português em 1643) continuaram em
vigor, no Brasil, no campo comercial, até à promulgação do Código Comercial de
1850, e, na área civil, até à promulgação do Código Civil de 1916 (a grafia do texto
original foi atualizada):

³ PDV DLQGD TXH VH IDoD VHP OLPLWDomR GH WHPSR (a constituição da
sociedade, nota do Autor) PRUUHQGR TXDOTXHU GRV FRPSDQKHLURV ORJR
DFDEDUi RFRQWUDWRGD&RPSDQKLD HQmR SDVVDUi D VHXV KHUGHLURV SRVWR
TXHQRFRQWUDWRVHGHFODUHTXHSDVVHDHOHVVDOYRVHD&RPSDQKLDIRVVH
GH DOJXPD UHQGD QRVVD RX GD 5HS~EOLFD TXH DOJXPDV SHVVRDV
KRXYHVVHPWRPDGRMXQWDPHQWHSRUTXHQHVWHVFDVRVDLQGDTXHDOJXPGRV
FRPSDQKHLURV QD UHQGD IDOHoD SDVVDUi R WDO DUUHQGDPHQWR D VHXV
KHUGHLURVSHORWHPSRTXHHOHGXUDUVHDVVLPIRLQRGLWRFRQWUDWRGHFODUDGR
H R KHUGHLUR p SHVVRD GLOLJHQWH H LG{QHD SDUD SHUVHYHUDU QD GLWD
&RPSDQKLD´

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 19
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As novas realidades econômicas, contudo, logo se fizeram sentir, e


produziram duas tendências que, lentamente, foram convergindo: por um lado, a
constituição das sociedades de ações, ditas anônimas, livres de aprovação prévia do
Estado, oriundas da evolução dos bancos públicos nos moldes do Banco do Estado
de Veneza e do Banco de São Jorge de Gênova; por outro, a evolução do contrato
de sociedade, com a sua personificação jurídica e limitação de responsabilidade.
Tais tendências serão analisadas a partir de agora.

'RV%DQFR3~EOLFRVjV6RFLHGDGHV³$Q{QLPDV´

Uma primeira etapa consistiu na proliferação de companhias comerciais nos


moldes dos bancos públicos de Veneza e de Gênova, e criados em vários Estados
por razões muito semelhantes. Tal foi o caso do Banco de Amsterdã, do Banco da
Inglaterra e do Banque Royale, de John Law, na França (que soçobrou numa
escandalosa falência em 1720). Todas essas instituições eram sociedades de
capital de responsabilidade limitada, ou, como passaram a ser depois conhecidas,
DQ{QLPDV, porque não estavam especificamente ligadas a pessoas, estando seu
capital dividido em parcelas iguais, alienáveis e negociáveis; desde 1608 tais
parcelas já eram denominadas comumente de “ações”. Igualmente, todas essas
instituições existiam por decreto do Estado, ou seja, não era lícita a sua constituição
sem a aprovação das autoridades, e isso porque era tido como certo que somente o
Estado lhes podia conceder o privilégio da corporificação e da responsabilidade
limitada. Todas, assim, estavam umbilicalmente ligadas ao Estado: o Banco de
Amsterdã financiava o comércio e a expansão colonial das Províncias Unidas da
Holanda, em simbiose com as Companhias das Índias Ocidentais e Orientais (das
quais falar-se-á mais adiante); o Banco da Inglaterra, à semelhança do Banco de
São Jorge de Gênova, absorveu as dívidas do governo inglês após a Revolução
Gloriosa; o Banque Royale fez o mesmo com as dívidas do governo francês durante
a Regência, na menoridade de Luís XV, embora de um modo menos eficiente.
Todos acabaram se associando com outro tipo de sociedades anônimas, as
companhias comerciais privilegiadas.

Tais companhias representaram uma extensão do conceito de sociedade


anônima ao mundo do comércio. Eram em tudo semelhantes aos bancos públicos,
carecendo também de autorização explícita do Estado para a sua constituição, e
dele recebendo os seus privilégios, que, aliás, eram muitos: além dos privilégios e,
usualmente, monopólio, de comércio com determinada área geográfica, da
personalidade jurídica reconhecida oficialmente, da divisão do capital em ações
alienáveis e negociáveis e da responsabilidade limitada dos acionistas à proporção
do capital social representado pelas ações de sua propriedade, recebiam
usualmente o poder de celebrar contratos e tratados com governos estrangeiros,
organizar e manter esquadras e forças armadas próprias, construir e administrar
feitorias comerciais no ultramar e lá constituir tribunais e aduanas, contratar
funcionários, tripulações e soldados e demiti-los a seu exclusivo critério, emitir títulos
de crédito e mesmo, em alguns casos, moeda – enfim, eram verdadeiros Estados
dentro do Estado. Sua estrutura administrativa era proporcionalmente complexa:
aparecem, pela primeira vez, os administradores profissionais, muitas vezes distintos
dos acionistas, as prestações de contas aos acionistas, os conselhos fiscais e as

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assembléias de acionistas, enfim, todas as características hoje presentes numa


sociedade anônima. Tais companhias privilegiadas pulularam na primeira metade
do séc. XVII: a Companhia Inglesa das Índias Orientais (1600), a Companhia
Holandesa das Índias Orientais (1602), a Companhia Inglesa das Índias Ocidentais
(1612), a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (1621), as Companhias
Francesas das Índias Ocidentais e Orientais (1664), a Nova Companhia das Índias
(criada por Law em 1717, e que acabou sofrendo o mesmo destino de seu Banco).
A partir de meados do séc. XVIII, contudo, começaram a se enfraquecer.

De fato, tais companhias privilegiadas eram como que braços do Estado,


existiam por delegação específica dele, e subordinavam-se a seus fins. Os
privilégios que ostentavam não lhes eram garantidos gratuitamente; ligavam-se às
necessidades de caixa do Estado, ou às suas esperanças de expansão colonial
(veja-se, por exemplo, o caso da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que
patrocinou as duas invasões no Brasil). Tiveram importância capital no
desenvolvimento da noção de personalidade jurídica e na limitação da
responsabilidade social, quando aliada à livre negociação de ações, mas, a partir de
meados do séc. XVIII, com as novas transformações pelas quais passava a
economia internacional, ou seja, com a Revolução Industrial e sua demanda por
mercados livres (isto é, sem monopólios), sua existência estava condenada.

Na Inglaterra, o escândalo provocado pela falência da Companhia dos Mares


do Sul, constituída em 1710 (a 6RXWK6HD%XEEOH, “bolha dos mares do Sul”, alusão
a companhias privilegiadas que, num clima de intensa especulação, incham como
bolhas de sabão, e, como bolhas de sabão, estouram repentinamente) pareceu dar
razão àqueles que consideravam arriscado conceder a companhias comerciais a
limitação da responsabilidade, e fez com que o Parlamento votasse o chamado
%XEEOH $FW, definido como ³DQ DFW WR UHVWUDLQ WKHH[WUDYDJDQW DQG XQZDUUDQWDEOH
SUDFWLFH RI UDLVLQJ PRQH\ E\ YROXQWDU\ VXEVFULSWLRQV RI FDUU\LQJ RQ SURMHFWV
GDQJHURXV WR WKH WUDGH DQG VXEMHFWV RI WKLV .LQJGRP´. Os comerciantes (e
industriais) ficavam, assim, reduzidos às SDUWQHUVKLSV (sociedades em nome
coletivo). Como se vê, a exuberância irracional não é, de modo algum, algo novo.
Por seus termos, nenhuma nova sociedade que implicasse responsabilidade limitada
a seus sócios poderia ser constituída, e todas aquelas constituídas a partir de 1718
deveriam ser extintas. O %XEEOH $FW permaneceu em vigor até 1825, mas foi
somente em 1834, sob Guilherme IV (1830-1837) que o 7UDGLQJ &RPSDQLHV $FW
atribuiu novamente à Coroa o direito de conceder certos privilégios às companhias,
independentemente de intervenção do Parlamento.

Em 1837, sob Vitória (1837-1901), a Coroa foi autorizada a conceder às


companhias os privilégios da personalidade jurídica, da limitação da
responsabilidade dos sócios e da cessibilidade das ações. Em 1844, contudo, pelo
-RLQW 6WRFN &RPSDQLHV $FW, foi abandonado o princípio de que uma companhia
somente poderia adquirir personalidade jurídica mediante ato governamental,
podendo a partir de então corporificar-se, bem como transferir livremente a
propriedade de suas ações, mediante simples registro numa repartição competente,
em Londres; a autorização governamental foi mantida apenas para a aquisição de
responsabilidade limitada, e isso até 1855, quando finalmente a legislação inglesa

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permitiu que, por simples registro, a responsabilidade dos sócios de uma sociedade
anônima fosse limitada ao valor proporcional do capital social representado por suas
ações, exceto para os bancos e companhias de seguro. A evolução para as
sociedades anônimas modernas estava praticamente concluída.

Na França, o governo revolucionário houve por bem suprimir, em 1793, todas


as sociedades por ações; reviveriam no Código Comercial de 1807, que instituiu dois
tipos de sociedades, as comanditas por ações, cuja constituição não carecia de
prévia autorização governamental (já que pelo menos um de seus sócios arcaria
com responsabilidade ilimitada), e as sociedades por ações, ou anônimas, as quais
somente se poderiam constituir com autorização governamental prévia (art. 37, “/D
VRFLpWpDQRQ\PHQHSHXWH[LVWHUTX¶DYHFO¶DXWRULVDWLRQGXJRXYHUQHPHQWHWDYHFVRQ
DSSUREDWLRQSRXUO¶DFWHTXLODFRQVWLWXH”; foi essa a primeira vez, aliás, que se usou
oficialmente a expressão “sociedade anônima” para denominar uma sociedade por
ações e com responsabilidade limitada). O processo de autorização exigido para as
anônimas, contudo, era longo e complicado: sua constituição dependia de
autorização final expressa do Conselho de Estado, autorização essa que podia ser
revogada a qualquer tempo. Isso fez com que, especialmente entre 1820 e 1840,
proliferassem as comanditas por ações (a assim denominada “febre das
comanditas”). A concorrência inglesa acabou por modificar a situação. De fato, pelo
tratado anglo-francês de 1862, as companhias inglesas por ações (as quais, desde
as leis de 1844 e 1855, conforme notado no parágrafo anterior, não dependiam de
autorização governamental para a sua constituição) podiam livremente atuar em solo
francês. O óbvio ocorreu: comerciantes e industriais franceses passaram a constituir
companhias em Londres, sob a égide da lei inglesa, para atuar na França; o
governo, assim, viu-se na contingência de liberar as sociedades por ações da prévia
autorização governamental, e o fez pela lei de 1867 (art. 21, ³¬O¶DYHQLUOHVVRFLpWpV
DQRQ\PHV SRXUURQW VH IRUPHU VDQV O¶DXWRULVDWLRQ GX JRXYHUQHPHQW´ ). A partir de
então, nos dois mais importantes países da Europa, passavam a ter existência livre
entes dotados de personalidade jurídica e limitação de responsabilidade.

Nos Estados Unidos, a evolução foi em tudo semelhante à verificada na


Inglaterra e na França. Inicialmente, a constituição de sociedades por ações
dependia de autorização legislativa de cada Estado (6SHFLDO$FW). Foi o Estado de
Nova York o primeiro a permitir a livre incorporação de sociedades por ações, com
fins industriais ou comerciais, e isso ainda em 1811 (6HOI,QFRUSRUDWLRQ/DZ). Outros
Estados acabaram seguindo o modelo nova-iorquino, inicialmente para sociedades
anônimas ligadas a determinados fins, depois para quaisquer sociedades com fins
lícitos. A generalização de tais dispositivos, contudo, somente se completou em
1875.

$V6RFLHGDGHVSRU4XRWDVGH5HVSRQVDELOLGDGH/LPLWDGD

No item anterior, examinou-se a progressiva constituição do primeiro ente


dotado de personalidade jurídica plena, associada à responsabilidade limitada dos
sócios que o constituíam: a sociedade por ações, ou anônima. A limitação da
responsabilidade dos sócios somente pôde ser aceita pelo ordenamento jurídico a
partir da assunção do divórcio entre os sócios, donos das ações, e os

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administradores da sociedade; a própria pressuposição desse fato era, em si, uma


novidade revolucionária, porque as mentes, ainda imbuídas dos conceitos do antigo
contrato de sociedade romano, não podiam entender (nem aceitar) que aqueles que
empatavam dinheiro numa sociedade pudessem estar divorciados da sua condução.
O terreno foi, sem dúvida, preparado pelas sociedades em comandita, e, desde a lei
francesa de 1807, pelo seu tipo mais evoluído, a comandita por ações; mas, mesmo
nas comanditas, sempre havia, ao menos, um sócio que era pessoal e
ilimitadamente responsável. O grande receio que perpassava todas as mentes era
(e os inúmeros escândalos, como o da 6RXWK 6HD %XEEOH, pareciam corroborar tal
tese) duplo: tanto o mau uso que se podia fazer da responsabilidade limitada, por
meio de fraudes na gestão da sociedade, quanto o prejuízo dos credores por
ocasião de uma falência, mesmo que não fraudulenta. Daí a grande reticência do
poder público em permitir tal tipo de sociedade; e, mesmo ao permiti-la, cercava-a de
uma série de formalidades de publicidade, herdadas, aliás, pelas modernas
sociedades anônimas.

De fato, a existência de Conselhos Fiscais para monitorar os atos da


administração, de Assembléias de Acionistas para eleger os administradores e
confirmar todos os seus atos mais importantes e que colocassem em jogo a
continuidade da sociedade, e de toda uma plétora de formalidades, principalmente
ligadas ao modo de apresentar as suas demonstrações contábeis e ao grau de
publicidade exigido, tudo isso somente se torna compreensível num ambiente de
completa despersonalização da sociedade, com as suas ações podendo ser
livremente negociadas e, portanto, com a total irrelevância das pessoas dos sócios
(daí, aliás, a denominação “sociedade anônima”). Não estando diretamente ligados
à condução dos negócios, na maioria das vezes nem sequer conhecendo seus
detalhes técnicos, usando as ações como um mero investimento, como qualquer
outro (imóveis, por exemplo), esse acionista tinha que ser protegido; mais do que
isso, tinha que ser incentivado. Ao criar a figura das sociedades anônimas com
responsabilidade limitada, puderam ser canalizadas enormes somas da economia
popular para o investimento no setor produtivo.

A questão, porém, continuava em aberto no que se refere a sociedades que


não as sociedades por ações; em todos os lugares, quando um grupo de
negociantes, ou industriais, queria constituir uma sociedade, mas não queria abdicar
de seus direitos de gestão (ou seja, quando os sócios e os administradores se
confundiam, e não havia Do}HV, mas TXRWDV), ainda vigorava, na prática, o velho
conceito romano do contrato de sociedade; o mais longe que se podia ir era uma
comandita. O fecho final da construção da moderna teoria da personalidade jurídica
seria a extensão da limitação da responsabilidade às sociedades de pessoas.
Nesse mister, houve um desenvolvimento paralelo na Inglaterra e na Alemanha,
sendo que o modelo alemão tornou-se o mais perfeito e pode ser, com justiça,
considerado o protótipo de tal tipo de sociedade.

Na Inglaterra, toda a evolução das sociedades por ações havia passado ao


largo das sociedades em nome coletivo (chamadas SULYDWH SDUWQHUVKLSV, ou
simplesmente SDUWQHUVKLSV), as quais eram regidas pelo direito consuetudinário
(FRPPRQ ODZ). Basicamente, com relação a tais sociedades, o direito

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consuetudinário determinava três características básicas: responsabilidade solidária


e ilimitada dos sócios; consentimento expresso dos demais sócios para transferência
da parte de um dos sócios para terceiros; ausência de personalidade jurídica.

As leis de 1844 e de 1855, que, conforme visto anteriormente, resultaram na


liberdade total para as sociedades por ações, foram consolidadas no &RPSDQLHV
$FW, de 1862. Tal lei não mencionou as SDUWQHUVKLSV, dividindo simplesmente as
sociedades em ilimitadas e limitadas. As sociedades ilimitadas podiam ou não ter
seu capital social dividido em ações. Quanto às limitadas, podiam ser limitadas por
ações (FRPSDQLHVOLPLWHGE\VKDUHV) ou limitadas por garantia (FRPSDQLHVOLPLWHGE\
JXDUDQWHH), sendo que, nas últimas (as quais podiam ou não ter seu capital dividido
em ações), os sócios eram obrigados, no caso de liqüidação, a pagar as dívidas
sociais até um montante fixado por ocasião de sua constituição. Para todas essas
sociedades estabelecia-se um regime de ampla liberdade, podendo ser constituídas
sem necessidade de prévia autorização governamental, apenas mediante o registro
de seus estatutos e a obediência a determinadas condições legais.

Sentindo-se discriminados, os comerciantes associados em SDUWQHUVKLSV (e


sujeitos à responsabilidade ilimitada) passaram, simplesmente, a transformar suas
empresas em FRPSDQLHV. A esse tipo de sociedade se denomina SULYDWHFRPSDQLHV
(em oposição às sociedades reguladas pela lei de 1862, conhecidas por SXEOLF
FRPSDQLHV, não por pertencerem ao Estado, mas por negociarem publicamente suas
ações, ou por subscreverem publicamente seu capital). A existência dessas SULYDWH
FRPSDQLHV foi inicialmente reconhecida pela FRPPRQ ODZ, até ser oficialmente
legalizada pelos atos de 1900 e 1907, culminando no &RPSDQLHV&RQVROLGDWLRQ$FW,
de 1929.

Na Inglaterra, assim, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada foi


um subproduto das sociedades anônimas, e sua gestação foi longa e laboriosa. Na
Alemanha, contudo, a evolução foi mais rápida e contundente. O país unificou-se
em 1870, após a Guerra Franco-Prussiana, e começou a experimentar um
crescimento industrial inigualado no continente europeu. Em 1884, foi promulgada
para o Império uma lei sobre sociedades anônimas, uma das mais rigorosas e
formais da Europa, cujo uso era inviabilizado às pequenas empresas. Os pequenos
empresários ou aceitavam a responsabilidade solidária e ilimitada ou se submetiam
aos demorados e custosos trâmites burocráticos para a constituição de uma
sociedade anônima.

O ritmo do crescimento industrial e a pressão de pequenos e médios


comerciantes e empreiteiros acabou forçando o governo à criação de um novo tipo
de sociedade. Em 1888, o deputado Oechelhaeuser, defensor entusiástico da
constituição de uma sociedade por quotas (isto é, uma sociedade de pessoas) de
responsabilidade limitada, dirigiu à Câmara de Comércio Imperial um notável
memorial, no qual apresentava as vantagens do sistema que propunha:

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³$VIRUPDVGHFRQVWLWXLomRGDVVRFLHGDGHVFRPHUFLDLVHPYLJRUQR,PSpULR
QmRPDLVDWHQGHPjVQHFHVVLGDGHVHFRQ{PLFDVpYLWDOTXHQHODVVHLQFOXD
R  SULQFtSLR GD UHVSRQVDELOLGDGH OLPLWDGD R TXDO DYDQoD FRP IRUoD
LUUHVLVWtYHOQDYLGDHFRQ{PLFDHQDVVRFLHGDGHVGHEDVHLQGLYLGXDOQHVWDV
RFDSLWDOHDLQWHOLJrQFLDHQWUDPHPFRQWDFWRGLUHWRFRPRYLJRUGRFDSLWDO
DOLDGR jV IRUoDV KXPDQDV DV VRFLHGDGHV GH SHVVRDV WRUQDPVH PHVPR
VXSHULRUHVjVVRFLHGDGHVGHFDSLWDO´

Um projeto foi encaminhado ao Congresso do Império, sendo aprovado a 21


de março e sancionado pelo Imperador Guilherme II aos 29 de abril de 1891.
Portugal adotou tal tipo de sociedade em 1901, e a Monarquia Dual Austro-Húngara,
num projeto consideravelmente melhorado em relação ao modelo alemão, em 1906
(essa lei foi republicada em 1924, com nova redação, para a recém-constituída
República da Áustria).

A Grande Guerra de 1914-1918 contribuiu sobremaneira para a disseminação


desse tipo de sociedade, e fornece também, quanto a isso, material
interessantíssimo para reflexões acerca da territorialidade das leis. De fato, muitos
governos dos novos países que emergiram do conflito, com a dissolução dos
Impérios Russo e Austro-Húngaro, foram forçados a adotar a sociedade por quotas
de responsabilidade limitada, para não prejudicar os habitantes de territórios
incorporados que já a conheciam. Três casos merecem ser analisados: o da
Polônia, o da Tchecoslováquia e o da França.

Reconstituída com territórios outrora pertencentes à Rússia (Grão-Ducado de


Varsóvia), à Alemanha (Posnânia) e à Monarquia Dual Austro-Húngara (Galícia), a
nova Polônia exibia um mosaico de legislações; o coração do país, o antigo Grão-
Ducado de Varsóvia, não possuía juridicamente sociedades por quotas de
responsabilidade limitada, ao contrário dos antigos territórios alemães e austríacos,
porque o Império Russo não reconhecia esse tipo de sociedade. Leis em 1919,
1921 e 1923 instituíram nesse território tal tipo de sociedade, num esquema híbrido
entre os modelos alemão e austríaco, até que, em 1934, o novo Código Comercial
finalmente unificou toda a legislação. Na Tchecoslováquia, formada por territórios da
Monarquia Dual (Boêmia e Morávia, da antiga Áustria; Eslováquia, da antiga
Hungria) e da Rússia (Ucrânia Sub-Carpática), a antiga legislação austríaca foi, em
1920, estendida a todo o país. Enfim, o caso mais célebre foi o da França. Ela
adquiriu, do Império Alemão, a Alsácia-Lorena, onde havia cerca de 400 sociedades
por quotas de responsabilidade limitada, tipo de sociedade que não existia no Direito
francês. Apesar de toda a oposição nacionalista (diga-se, mesmo, chauvinista), o
regime da Alsácia-Lorena foi estendido, em 1925, a todo o território francês.

$(YROXomRQR%UDVLO

Foi também o Brasil palco de atuação de companhias comerciais


privilegiadas, estatuídas nos moldes da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais. Assim, aqui atuaram a Companhia de Comércio do Brasil (criada em
1649, extinta em 1720), a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (constituída
em 1755, extinta em 1778; nela se usa, pela primeira vez, a expressão “acionistas”),

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e a Companhia Geral das Capitanias de Pernambuco e Paraíba (criada em 1779,


extinta em 1780).

A primeira sociedade anônima brasileira digna de tal nome foi, contudo, o


primeiro Banco do Brasil, instituído por alvará régio do Príncipe Regente d. João
datado de 12 de outubro de 1808. Aí, pela primeira vez, usa-se a palavra “estatuto”
como sinônimo da lei reguladora da vida jurídica da sociedade.

Mesmo após a independência (1822), e até 1849, a criação de sociedades


anônimas no país dependia integralmente de uma lei específica do poder público; na
maioria das vezes, tais leis serviam ou para conceder privilégios aos apaniguados,
ou para dar a existência a sociedades de cunho meramente especulativo. O Decreto
nº 575, de 10 de janeiro de 1849, pela primeira vez regulou oficialmente as
sociedades anônimas, sendo semelhante, quanto às suas disposições, à lei francesa
de 1807. Cabia ainda ao governo imperial autorizar o funcionamento de tais
sociedades, bem como aprovar seus estatutos; nenhuma modificação podia ser
efetuada nos estatutos sem o prévio consentimento do Governo. As preocupações
do Governo são discerníveis no relatório do Ministério da Justiça a respeito do
referido decreto:

³$OHJLWLPLGDGHGHVVDLQWHUYHQomRGDDXWRULGDGHGHULYDQmRGDQDWXUH]DGD
LQG~VWULDTXHVHSUHWHQGHH[HUFHUPDVGDIRUPDGDVRFLHGDGHDQ{QLPDGD
QHFHVVLGDGH TXH WHP R S~EOLFR GH FHUWLILFDUVH VH R ILP GD VRFLHGDGH p
OtFLWRVHRVFDSLWDLVDQXQFLDGRVH[LVWHPUHDOPHQWHVHVmRSURSRUFLRQDLVj
HPSUHVDDTXHVHGHVWLQDPVHRVHVWDWXWRVGHWDLVDVVRFLDo}HVRIHUHFHP
DRV DFLRQLVWDV FXMR &RQFXUVR UHFODPDP JDUDQWLDV PRUDLV H PHLRV
VXILFLHQWHVGHILVFDOL]DomR´

Seguiram-se uma série de aperfeiçoamentos de detalhes no Código


Comercial (de 1849, que entrou em vigor a 1º de janeiro de 1850) e na lei 1.083, de
1860. Esta última determinava que o exame a ser levado a efeito pelo governo por
ocasião da autorização de funcionamento de uma sociedade anônima devia levar
explicitamente em consideração se o fim social era contrário à moral e aos bons
costumes; se a companhia tinha por fim, ou tendia a, monopolizar determinado ramo
do comércio ou da indústria, com especial destaque para o comércio de alimentos;
enfim, no caso de parte do capital ser integralizado em bens móveis ou de raiz, se
tais bens haviam sido corretamente avaliados. A autorização ficava a cargo do
Poder Legislativo, sujeita a exame e consulta da Seção de Fazenda do Conselho de
Estado, bem como de qualquer outra que o Ministro de Estado julgasse conveniente.

As leis de 1849/1850 (fixando, pela primeira vez, critérios definidos), bem


como o novo clima de expansão econômica, favoreceram a constituição de
sociedades anônimas, quase todas ligadas a atividades bancárias e à exploração de
serviços públicos (estradas de ferro, navegação marítima e fluvial, transportes
urbanos, iluminação pública a gás, etc.). Somente no ano de 1851, onze
sociedades anônimas foram constituídas, das quais sete integralizaram capital,
incluindo-se aí o novo Banco do Brasil, responsável, aliás, por ¾ do capital total
integralizado. A cautela do Estado, porém, pareceu justificar-se a partir dos meados

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dos anos 1860, quando faliram os bancos de Antônio José Alves Souto & Ciª, Bahia
& Irmãos e o do próprio Visconde de Mauá. Esse clima retardou sensivelmente a
recepção, no país, da influência da lei francesa de 1867, que liberara a constituição
das sociedades anônimas da prévia autorização do Estado. A posição do governo
tornou-se, mesmo, mais e mais prudente, como se pode confirmar pelo caso (em
1875) da Companhia Mirim, que se constituíra para explorar a navegação a vapor
entre os portos de Rio Grande e Santa Vitória, no Rio Grande do Sul. O Conselho
de Estado do Império opinava pelo indeferimento do pedido de autorização, pelo fato
de a referida sociedade anônima se constituir com apenas cinco acionistas. Os
argumentos do Conselho de Estado, mesmo nos dias de hoje, são de molde a
convidar à reflexão. De fato, asseverava o Conselho que:

³HPERUDDFLWDGDOHJLVODomRQmRIL[DVVHRQ~PHURGHDFLRQLVWDVFRPTXH
GHYHP RUJDQL]DU H IXQFLRQDU DV FRPSDQKLDV RX VRFLHGDGHV DQ{QLPDV
GHSUHHQGHVH GR FRPSOH[R GH VXDV GLVSRVLo}HV H SULQFLSDOPHQWH GD
QHFHVVLGDGHGHVHUHPILVFDOL]DGRVRVDWRVGDJHUrQFLDSHODVDVVHPEOpLDV
JHUDLV TXH HVWH Q~PHUR QmR GHYH VHU WDO TXH HOLPLQDGRV RV DFLRQLVWDV
VHXV DGPLQLVWUDGRUHV RV TXDLV QmR SRGHP MXOJDU RV SUySULRV DWRV WRUQH
LPSRVVtYHODUHXQLmRGDVPHVPDVDVVHPEOpLDV´

Foi somente com a lei 3.150, em 1882, que, finalmente, se dispensaram as


anônimas da prévia autorização governamental, lei essa que foi, por mais de meio
século, a norma legal básica para as sociedades anônimas no país. Para a
constituição de sociedades por ações, a partir de então, passou a bastar que fossem
cumpridas determinadas prescrições e formalidades legais. A própria constituição e
a vida da sociedade, igualmente, passou a transcorrer num clima de ampla
publicidade, tendo em vista, principalmente, a garantia de terceiros. Somente para
as sociedades anônimas estrangeiras que pretendessem se estabelecer no país foi
mantida a necessidade da prévia autorização do Governo.

Mas a própria lei de 1882, contudo, previa a possibilidade de exceções à


liberdade de constituição das anônimas; com o passar dos anos, o número de tais
exceções aumentou, e, no final do Império, as sociedades por ações que se
dedicavam a operações bancárias, seguros e capitalização voltaram a ser
estritamente controladas pelo poder público.

A tendência à liberalização, contudo, já estava estabelecida, e, como sempre,


as necessidades financeiras prementes do Estado fizeram a sua parte. A década de
1880 foi um período de transição e, portanto, de crise potencial; vivia-se o ocaso do
escravismo, e, antes que se pudesse constituir uma nova ordem econômica, a crise
do sistema escravista, culminando na Abolição (lei de 13 de maio de 1888), causou
rupturas e descontinuidades na produção em algumas das mais importantes
províncias (como a província fluminense e algumas regiões do Nordeste) e,
conseqüentemente, gerou dificuldades de caixa ao governo imperial. Não
surpreende, assim, que, aos 24 de novembro de 1888, a lei 3.403 permitisse às
sociedades anônimas bancárias, mediante prévia autorização do governo imperial, a
emissão de bilhetes ao portador e à vista (ou seja, para todos os efeitos, papel-
moeda), desde que fosse depositada na Caixa de Amortização, como garantia, um
determinado valor em apólices da dívida pública do Império.

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Pouco tempo depois, vem a República (novembro de 1889), e as tendências


se consolidam, talvez numa velocidade rápida demais, em reação ao que se
considerava como excessiva interferência do antigo regime na condução dos
negócios econômicos. Sempre pressionado por necessidades de caixa, o novo
governo republicano, por um lado, intensificou os incentivos à criação de institutos
bancários, e, por outro, adotou uma legislação por demais vaga e frouxa para as
sociedades anônimas, em geral. O resultado foi inevitável: entre 1889 e 1892,
constituiu-se um número assustadoramente grande de sociedades anônimas;
apenas no ano de 1890 foram constituídos, na praça do Rio de Janeiro, 316 bancos
e companhias, com capitais totais de quase mil e setecentos contos de réis. Essa
euforia especulativa (mais uma EROKD) foi conhecida como “Encilhamento”, e
ninguém conseguiu melhor captar a atmosfera da época do que Machado de Assis,
no capítulo 73 de sua obra “Esaú e Jacó”:
³$ FDSLWDO RIHUHFLD DLQGD DRV UHFpPFKHJDGRV XP HVSHWiFXOR PDJQtILFR
9LYLDVH GRV UHVWRV GDTXHOH GHVOXPEUDPHQWR H DJLWDomR HSRSpLD GH RXUR
GDFLGDGHHGRPXQGRSRUTXHDLPSUHVVmRWRWDOpTXHRPXQGRLQWHLURHUD
DVVLPPHVPR&HUWRQmROKHHVTXHFHVWHRQRPHHQFLOKDPHQWRDJUDQGH
TXDGUDGDVHPSUHVDVHFRPSDQKLDVGHWRGDHVSpFLH4XHPQmRYLXDTXLOR
QmR YLX QDGD &DVFDWDV GH LGpLDV GH LQYHQo}HV GH FRQFHVV}HV URODYDP
WRGRVRVGLDVVRQRUDVHYLVWRVDVSDUDVHID]HUHPFRQWRVGHUpLVFHQWHQDV
GHFRQWRVPLOKDUHVPLOKDUHVGHPLOKDUHVPLOKDUHVGHPLOKDUHVGHPLOKDUHV
GHFRQWRVGHUpLV7RGRVRVSDSpLVDOLiVDo}HVVDtDPIUHVFRVHHWHUQRVGR
SUHOR (UDP HVWUDGDV GH IHUUR EDQFRV IiEULFDV PLQDV HVWDOHLURV
QDYHJDomR HGLILFDomR H[SRUWDomR LPSRUWDomR HQVDTXHV HPSUpVWLPRV
WRGDV DV XQL}HV WRGDV DV UHJL}HV WXGR R TXH HVVHV QRPHV FRPSRUWDP H
PDLV R TXH HVTXHFHUDP 7XGR DQGDYD QDV UXDV H SUDoDV FRP HVWDWXWRV
RUJDQL]DGRUHV H OLVWDV /HWUDV JUDQGHV HQFKLDP DV IROKDV S~EOLFDV RV
WtWXORVVXFHGLDPVHVHPTXHVHUHSHWLVVHPUDURPRUULDHVyPRUULDRTXH
HUDIURX[RPDVDSULQFtSLRQDGDHUDIURX[R&DGDDomRWUD]LDDYLGDLQWHQVD
H OLEHUDO DOJXPD YH] LPRUWDO TXH VH PXOWLSOLFDYD GDTXHOD RXWUD YLGD FRP
TXHDDOPDDFROKHDVUHOLJL}HVQRYDV1DVFLDPDVDo}HVDSUHoRDOWRPDLV
QXPHURVDVTXHDVDQWLJDVFULDVGDHVFUDYLGmRHFRPGLYLGHQGRVLQILQLWRV
3HVVRDV GR WHPSR TXHUHQGR H[DJHUDU D ULTXH]D GL]HP TXH R GLQKHLUR
EURWDYDGRFKmRPDVQmRpYHUGDGH4XDQGRPXLWRFDtDGRFpX´

Nas palavras de Heitor Malheiros, ³WRGRVMRJDUDPRQHJRFLDQWHRPpGLFR


R MXULVFRQVXOWR R IXQFLRQiULR S~EOLFR R FRUUHWRU R ]DQJmR FRP SRXFR SHF~OLR
SUySULRFRPPXLWRSHF~OLRDOKHLRFRPDVGLIHUHQoDVGRiJLRHTXDVHWRGRVFRP D
FDXomR GRV SUySULRV LQVWUXPHQWRV GR MRJR´. O colapso ocorreu, como usualmente
em tais casos, repentinamente, em 1892; processos judiciais se arrastaram
penosamente por muitos anos, já que as sociedades anônimas não eram
submetidas ao regime falimentar, mas a um instituto próprio da lei de 1882,
denominado “liqüidação forçada”. Depois da tempestade, alguns ajustes foram
efetuados na legislação: a emissão de debêntures foi regulada (1893); as
sociedades anônimas foram, finalmente, submetidas ao regime falimentar (1908),
mas, no geral, a lei de 1882 continuou gerindo a matéria. Após a promulgação do
Código Civil, em 1916, houve que se esperar até à edição do Decreto-Lei 2.627, de
1942, para que os principais pontos referentes às sociedades anônimas fossem
atualizados e adaptados às novas tendências da industrialização que avançava; tal

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decreto teve vida longa, pois somente cessou de vigir com a nova lei das S.A.’s, a lei
6.404, de 1976.

A sombria herança do Encilhamento, de certa forma, ainda domina as


sociedades que, no Brasil, se denominam “anônimas”; a questão da confiabilidade
das demonstrações contábeis, bem como o problema crucial da separação entre os
sócios e os administradores, para todos os efeitos, fez com que as sociedades
anônimas no país fossem muito mais uma forma do que uma real substância; a idéia
do público em geral de que as ofertas de ações tinham, quase sempre, o intuito de
enganar os investidores (pode-se considerar isso como algo incrustado no
inconsciente coletivo a partir da terrível experiência que o público sofreu por ocasião
do Encilhamento), a atração que os títulos da dívida pública exerciam (e ainda
exercem), a mentalidade patrimonialista e, mesmo, a constituição da sociedade por
quotas de responsabilidade limitada (a qual forneceu aos empreendedores
segurança aliada à possibilidade de gestão do negócio), tudo isso foi responsável
pela deformação do conceito de sociedade anônima, a qual, no Brasil, muitas vezes,
nada tem de anônima.

A desconfiança com relação às anônimas e a necessidade que sentiam os


pequenos e médios empreendedores (principalmente comerciantes, mas também, e
crescentemente, os industriais, muitos deles imigrantes, nos novos pólos do Rio de
Janeiro e de São Paulo) fez com que a definição legal das sociedades por quotas de
responsabilidade limitada seguisse um ritmo relativamente rápido e coerente. As leis
alemã (de 1892), portuguesa (de 1901) e austro-húngara (de 1906), bem como o
reconhecimento das SULYDWHFRPSDQLHV inglesas (1900 e 1907) fizeram com que, em
setembro de 1918, o deputado gaúcho Joaquim Luís Osório apresentasse à Câmara
dos Deputados um projeto de lei versando sobre o assunto, ³D H[HPSOR GR TXH Mi
H[LVWH HP OHJLVODo}HV HVWUDQJHLUDV QRWDGDPHQWH QD ,QJODWHUUD 3RUWXJDO H
$OHPDQKD´. Argumentou ainda que não se devia esperar para que o assunto fosse
tratado por ocasião do novo Código Comercial, porque a aprovação daquele seria
fatalmente demorada. O projeto de Osório, aprovado pela Câmara e pelo Senado
sem emendas e sem discussão, converteu-se no decreto nº 3.708, de 10 de janeiro
de 1919.

7pFQLFDV&RQWiEHLVHR3ULQFtSLRGD(QWLGDGH

O autor deste trabalho crê ter podido demonstrar, nos itens anteriores, que o
conceito da personalidade jurídica, tal como entendido modernamente, não se
constituiu nem numa idéia inata, evidente desde o princípio dos tempos, e nem
numa construção jurídica H[QLKLOR, mas sim no resultado final de uma longuíssima
evolução histórica, sempre burilada pelas condições sociais e econômicas vigentes
em cada época. Ou seja, crê-se ter-se podido demonstrar que o conceito de
personalidade jurídica é relativo, subjacente e subserviente ao tecido social, nem
existindo de forma independente e nem (muito menos) se opondo às necessidades
do corpo social. Foram, com efeito, as necessidades sociais que engendraram seu
desenvolvimento, e as inumeráveis inovações em relação ao senso comum que são
implícitas em seu conceito somente podem se sustentar quando são úteis ao
progresso da sociedade.

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Se, assim, a personalidade jurídica em sua forma mais abstrata é o resultado


de evoluções sucessivas, constituindo-se em delicada construção teórica, as
técnicas de registro patrimonial das atividades desses entes corporificados
encontram-se, desde há muito, codificadas e aceitas em suas linhas gerais. Não se
quer aqui insinuar a ausência de evolução nas técnicas contábeis, o que seria um
erro grosseiro; contudo, os SULQFtSLRV EDVLODUHV da escrituração das variações
patrimoniais ocorridas ao longo da vida operacional das sociedades, fossem ou não
fossem elas reconhecidas como entes corporificados, quedam-se já estabelecidos e
substancialmente inalterados desde há muito. Essa característica, a qual
procuraremos demonstrar a partir de agora, fornece, surpreendentemente, uma base
mais genérica em que se pode assentar o funcionamento das empresas.

Da mesma forma que é na sociedade romana que se buscam os primeiros


elementos formativos do conceito da personalidade jurídica, é nela também que se
encontra um arcabouço já complexo de técnicas de escrituração patrimonial. Em
muitos casos, os registros contábeis possuíam fé pública, mesmo quando
confeccionados por particulares. A partir de agora, analisar-se-ão as práticas
contábeis romanas, os contratos chamados “literais” e o papel dos banqueiros
(DUJHQWDULL) no estabelecimento de padrões de escrituração contábil; logo após, à
guisa de conclusão, falar-se-á da ulterior evolução dos conceitos das partidas
dobradas e do princípio da entidade.

$&RQWDELOLGDGH5RPDQD

Ao menos os chefes-de-família importantes, os comerciantes, os publicanos e


os banqueiros possuíam, em Roma, um cuidadoso acompanhamento dos atos e
fatos que alteravam o seu patrimônio e/ou negócio, devotando cuidado e importância
àqueles documentos os quais já podem ser denominados de livros contábeis.

Sobre o diligente e cuidadoso acompanhamento das variações patrimoniais


tem-se um testemunho simples e direto, por exemplo, na obra de Catão, o Censor
(234 – 149 a.C.), “Sobre as Coisas do Campo” ('H5H5XVWLFD); em seu capítulo 2º,
faz notar que:

³'HYHUiVHUFRQIHFFLRQDGRR UHODWyULR GR QXPHUiULR GR WULJR DUPD]HQDGR


GHWRGDVDVSURYLV}HVGHIRUUDJHPGRVYLQKRVHGRD]HLWHWRPDUVHiQRWD
GH WXGR R TXH IRL YHQGLGR EHP FRPR GH WXGR R TXH VH SDJRX GH WXGR R
TXHVHWHPSDUDUHFHEHUHGDSURGXomRDVHUDLQGDYHQGLGD´

Sobre a importância atribuída à escrituração contábil, basta citar Cícero (106


– 43 a.C.), que, no seu discurso contra Verres, o corrupto governador da Sicília, para
dirigir-lhe o ataque e, com fina ironia, insinuar sua improbidade, asseverou que
³RXYLPRVIDODUGHDOJXpPTXHMDPDLVFRQIHFFLRQRXVHXVOLYURVFRQWiEHLV” (“DXGLPXV
DOLTXXPWDEXODVQXPTXDPFRQIHFLVVH”). Mas que livros, ou registros (WDEXODH), eram
esses?

A partir de uma série de evidências, a maioria delas literárias e legais, podem


ser reconstituídos tais livros, ao menos em suas linhas gerais. Um deles, com

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certeza, era o assim denominado /LEHOOXP )DPLOLDH, ou, às vezes, /LEHU 3DWULPRQLL
(“Registro Familiar”, ou “Registro Patrimonial”, que mais não era do que um
inventário, tornado obrigatório pela reforma tributária do ano 67 a.C., utilizado para o
cálculo da incidência dos impostos sobre propriedades); em outros dois podem ser
percebidos claramente os antepassados do Diário e do Razão. Mais uma vez,
recorre-se a Cícero, e a uma de suas arengas, “Em Defesa de Quinto Róscio, o Ator
Cômico” 3UR4XLQWR5RVFLR&RPPRHGR), pronunciada em 77 a.C.; pela sua clareza
e importância no esclarecimento do assunto, citam-se os parágrafos 5º a 7º da
referida obra:

³>@(OHDOHJDHVWDUHXGHPDVLDGRSUHRFXSDGRFRPRVUHJLVWURV>WDEXOLV@H
FRQIHVVD TXH HPERUD WDO VRPD QmR FRQVWH HP VHX OLYUR GH HQWUDGDV H
VDtGDV HOD HVWi UHJLVWUDGD HP VHX GLiULR >QRQ KDEHUH VH KRF QRPHQ LQ
FRGLFHP DFFHSWLHWH[SHQVL UHODWXP FRQILWHWXU VHG LQ DGYHUVDULLV SDWHUH
FRQWHQGLW@  2UD DFDVR pV WX WmR VHJXUR GH WL RX WHQV GH WL XPD LGpLD WmR
PDJQtILFD D SRQWR GH QRV SHGLUHV GLQKHLUR QmR EDVHDQGRWH HP WHXV
UHJLVWURVPDVDSHQDVHPWXDVDQRWDo}HV"$SHODUDUHJLVWURVDRLQYpVGH
IRUQHFHU WHVWHPXQKDV Mi p DOJR WHPHUiULR EDVHDUVH WmRVRPHQWH HP
PHUDVDQRWDo}HVMi EHLUDDORXFXUD>@ 6H R GLiULR WHP R PHVPR JUDX GH
DXWRULGDGHHpFRQIHFFLRQDGRFRPRPHVPRFXLGDGRTXHRVUHJLVWURVSDUD
TXr PDQWHU XP OLYUR GH HQWUDGDV H VDtGDV" 3DUD TXr FRQIHFFLRQDU
FXLGDGRVDPHQWH OLVWDJHQV" 3DUD TXr PDQWHU QRV HVFULWRV XPD RUGHP
FULWHULRVDRXFRQVHUYDUDUTXLYDGRVRVUHJLVWURVGDVWUDQVDo}HVSDVVDGDV"
6H DGRWDPRV R FRVWXPH GH FRQIHFFLRQDU OLYURV GH HQWUDGDV H VDtGDV p
SRUTXHQmRSRGHPRVQRVILDUWmRVRPHQWHHPUHJLVWURVGLiULRVHVHUiTXH
DTXLORTXHpFRQVLGHUDGRWHPHUiULRSRUVLPSOHVLQGLYtGXRVSRGHVHUOHYDGR
DVpULRSRUMXt]HV">@3RLVTXDODUD]mRGHFRQIHFFLRQDUPRVRVGLiULRVGH
IRUPD TXDVH QHJOLJHQWH DR SDVVR TXH VRPRV WmR ULJRURVRV QRV QRVVRV
OLYURVGHHQWUDGDVHVDtGDV"4XDODUD]mR"$UD]mRpTXHDVDQRWDo}HVGRV
GLiULRV VmR IHLWDV SDUD GXUDU XP PrV DR SDVVR TXH DV GRV OLYURV GH
HQWUDGDV H VDtGDV VmR SDUD WHPSR LQGHWHUPLQDGR DTXHODV VmR
GHVFDUWiYHLVHVWDVVmRSHUPDQHQWHVDTXHODVUHIHUHPVHDFXUWRVSHUtRGRV
GHWHPSRHVWDVDWRGDXPDYLGDKRQHVWDDTXHODVDRILPGHXP SHUtRGR
VmR HOLPLQDGDV HVWDV VmR PDQWLGDV HP RUGHP  3RUWDQWR QmR Ki UD]mR
SDUD VH OHYDU HP FRQWD RV GLiULRV FRPR SURYDV GLDQWH GH XP WULEXQDO
VRPHQWH RV UHJLVWURV FXLGDGRVRV H DV HQWUDGDV QRV OLYURV SRGHP VHU
FRQVLGHUDGRV´

A situação torna-se, assim, clara: os registros patrimoniais (WDEXODH), além de


inventários de bens (OLEHOOL ou OLEUL), incluíam livros (ou melhor, coleções) de
anotações de entradas individuais, DGYHUVDULD, claramente os antepassados do livro
Diário, e, mais importante de todos, o livro de entradas e saídas (FRGH[ DFFHSWL HW
H[SHQVL), mais claramente ainda o antepassado do livro Razão. Os próprios nomes
empregados são bastante sugestivos. /LEHU é a palavra latina para um rolo de
papiro, ou de pergaminho, um documento finito e não muito extenso; OLEHOOXP é o
diminutivo de OLEHU (assim, o Registro Patrimonial era uma enumeração, um rol,
passado a limpo, do patrimônio da família, ou da associação, ou da sociedade, isto
é, dos bens adscritos a uma família, FROOHJLXP ou VRFLHWDV); DGYHUVDULD, um plural
neutro, sem a indicação de um conjunto unificador, denota uma mera coleção ou
enumeração DG KRF, não passada a limpo (e, portanto, sem ser um OLEHU, ou um
OLEHOOXP), mas orgânica, continuamente alimentada com dados mais recentes e
também continuamente expurgada dos dados mais antigos, à medida em que estes
deixavam de ter utilidade, pela extinção de suas obrigações; enfim, FRGH[,

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tecnicamente, é a palavra que denotava não papiro ou pergaminho enrolados, mas


pergaminho cortado (o tamanho de pergaminho padrão, nesses casos, era
usualmente cortado em quatro partes, daí a denominação TXDWHUQLXP, origem da
palavra FDGHUQR; um FRGH[ formava-se a partir de vários TXDWHUQLD), constituindo-se
numa enumeração cuidadosa, ordenada e progressiva, enfim, um rol cronológico
extenso, passado a limpo e ao qual, progressivamente, acrescentavam-se novos
TXDWHUQLD. A própria nomenclatura empregada esclarece o formato e a função
desses registros patrimoniais, e coadunam-se perfeitamente com as informações
que são obtidas a partir do discurso de Cícero citado mais acima.

Eis, pois, que, na sociedade romana, antes mesmo do regime imperial, já se


encontravam, não em forma embrionária, mas em estágio bastante evoluído, os
inventários, os relatórios diários e os livros de entradas e saídas (antepassados do
Razão). Nesses livros de entradas e saídas eram anotados, em colunas distintas,
tudo aquilo que resultasse em aumento patrimonial (coluna das entradas, ou dos
recebimentos, ou das quantias tomadas emprestado, $FFHSWD) e tudo aquilo que
resultasse em diminuição patrimonial (coluna das saídas, ou dos pagamentos, ou
das quantias emprestadas, ([SHQVD). Dessarte, quando alguém, por exemplo,
emprestasse dez sestércios a Tício, anotava na coluna dos ([SHQVD: ([SHQVXP
7LWLR+6GHFHPH[PXWXR. Se, por acaso, recebia de Mévio cem sestércios por uma
venda efetuada, anotava na coluna dos $FFHSWD: $FFHSWXPD0DHYLR+6FHQWXPH[
YHQGLWR. Tais operações comuns, realmente efetuadas, que correspondiam a
entradas e saídas efetivas de numerário, eram denominadas QRPLQD DUFDULD
(literalmente: “anotações referentes a numerário”); tais operações não geravam
obrigações, sendo apenas de índole comprobatória; mas não eram essas operações
simples, contudo, as únicas registradas nos FRGLFHVDFFHSWLHWH[SHQVL.

2V&RQWUDWRV/LWHUDLVQR'LUHLWR5RPDQR

De fato, além das operações reais (QRPLQD DUFDULD) descritas acima, eram
registradas nos livros de entradas e saídas operações de caixa fictícias (QRPLQD
WUDQVFULSWLFLD, literalmente “anotações referentes a transferências escritas”) as quais,
ao contrário das operações reais, davam origem a obrigações. Esses lançamentos
fictícios, verdadeiros jogos contábeis, constituíam os assim denominados contratos
literais (OLWWHUDUXPREOLJDWLRQHV), isto é, contratos que se originavam de um conjunto
de lançamentos escriturais. De acordo com o Direito Romano, uma vez havendo
correspondência entre os lançamentos nos FRGLFHV DFFHSWL HW H[SHQVL das duas
partes envolvidas, estabelecia-se uma relação jurídica de cunho totalmente abstrato,
que podia ser celebrada inclusive entre ausentes (bastava que ambas as partes
registrassem devidamente, em seus livros contábeis, os lançamentos convenientes;
uma podia estar em Roma, outra em Alexandria, e a avença realizava-se, mesmo
assim), susceptível de termo, mas não de condição. Tais características,
principalmente o fato de poderem ser celebradas entre ausentes, tornou interessante
a muitos, principalmente negociantes, transformar uma série de contratos comuns
em obrigações literais; tal metamorfose era efetuada mediante artifícios contábeis,
que podiam ser de dois tipos.

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O primeiro era denominado WUDQVFULSWLR D UH LQ SHUVRQDP, e, por ele,


transformava-se um contrato não-literal num contrato literal. Assim: “B” devia a “A”,
por um contrato de compra e venda, determinada quantia em dinheiro, “X”. Sem
receber nada de “B”, “A” inscrevia na sua coluna $FFHSWD um recebimento de “X” da
parte de “B”, proveniente de um contrato de compra e venda, e, ao mesmo tempo,
registrava na sua coluna ([SHQVD um empréstimo de “X” ao próprio “B”. O primeiro
lançamento anulava o empréstimo original de compra e venda; o segundo criava um
contrato literal de empréstimo; desse modo, um contrato de compra e venda
transformava-se num contrato literal de igual valor.

O segundo denominava-se WUDQVFULSWLRDSHUVRQDLQSHUVRQDP, e possibilitava


a substituição de um devedor por outro. Assim: “B” devia a “A” uma quantia “X”; por
outro lado, “C” devia a “B” essa mesma quantia “X”. Sem receber de “B” a quantia
devida, “A” registrava na sua coluna de $FFHSWD o recebimento dessa quantia “X” de
“B”; esse lançamento anulava a dívida de “B” para com “A”. Imediatamente, “A”
registrava na sua coluna de ([SHQVD um empréstimo dessa mesma quantia “X” a
“C”. Desse modo, “A”, que antes era credor de “B”, tornava-se agora credor de “C”,
e “B” desembaraçava-se de sua dívida para com “A” transferindo-lhe seu crédito
para com “C”.

Os contratos literais tiveram uma história semelhante à das VRFLHWDWHV


SXEOLFDQRUXP: experimentaram uma lenta decadência a partir do séc. II, conforme se
depreende dos fragmentos conservados das “Instituições” de Gaio, estando
virtualmente já extintos no séc. IV, de acordo com o informado pelo escoliasta de
Cícero conhecido como o “pseudo-Ascônio”, no seu comentário a respeito do
discurso “Contra Verres”.

Deve-se, porém, ter em mente que tal declínio dizia respeito ao aspecto
jurídico do contrato, não às técnicas de registro patrimonial, ou seja, às técnicas
contábeis; as REOLJDWLRQHV OLWWHUDUXP caíram paulatinamente em desuso devido ao
desenvolvimento, inicialmente fora do âmbito do Direito Romano, dos chamados
contratos literais estrangeiros, que podiam ser de dois tipos: as V\QJUDSKDH
( , literalmente “escritos em conjunto”, subentendendo-se “escritos em
várias cópias”) e os FKLURJUDSKD ( , literalmente “escritos a mão”,
subentendendo-se “escritos com a própria mão”). Esses dois tipos de documentos
originaram-se no Oriente helênico, onde o grego era a língua da cultura, do comércio
e das comunicações, como indicam os seus nomes, que os jurisconsultos romanos
nem sequer se deram ao trabalho de traduzir, mas apenas de transliterar. Eram,
como se chamariam hoje, contratos particulares, sem o formalismo que o Direito
Romano exigia na celebração dos contratos, a VWLSXODWLR (pacto solene, com
testemunhas, em presença do magistrado); à luz do Direito Romano, quando se
celebrava um contrato sem as formalidades da VWLSXODWLR, tal avença tinha apenas
valor comprobatório, mas não era gerador de direitos e nem de obrigações. A
questão, contudo, era diferente no que tocava aos estrangeiros, isto é, aos que não
eram cidadãos romanos; os jurisconsultos romanos admitiam que, entre eles, as
simples declarações escritas, sem as formalidades da VWLSXODWLR, podiam revestir-se
não apenas de caráter comprobatório, mas também gerar efetivamente direitos e
obrigações.

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Gaio (Instituições, livro 3º, parágrafo 134) menciona tanto as V\QJUDSKDH


quanto os FKLURJUDSKD, admitindo-os como geradores de obrigações e notando
serem apenas próprios de estrangeiros (SHUHJULQL), mas não explica a diferença entre
esses dois tipos de contratos. É ao pseudo-Ascônio, no já citado comentário ao
discurso de Cícero “Contra Verres”, que se deve a distinção, confirmada por vários
achados papirológicos no Egito. As V\QJUDSKDH eram documentos formais,
redigidos na terceira pessoa, e que listavam detalhadamente o objeto do contrato e
os direitos e obrigações de todas as partes, ficando cada parte com uma cópia; os
FKLURJUDSKD eram documentos redigidos na primeira pessoa, pelo próprio punho do
devedor, ou, ao menos, por ele assinados, nos quais este confessava uma dívida;
possuíam apenas uma via, que ficava em poder do credor, e o objeto ou a razão da
dívida não precisavam ser discriminados, mas tão-somente o valor da dívida e a
data (ou datas) e formas de pagamento.

O destino desses dois institutos foi diferente: as V\QJUDSKDH desapareceram


após a Constituição Antoniniana, de 212 d.C., quando a cidadania romana foi
estendida a todos os homens livres do Império, passando os contratos a ser regidos
exclusivamente pelo Direito Romano; os FKLURJUDSKD, por outro lado, foram aceitos e
absorvidos pelo Direito Romano, sendo igualados à VWLSXODWLR e funcionando como
notas promissórias, dando origem a partir daí aos títulos de crédito. A expressão
“credores quirografários”, ainda hoje utilizada, surgiu de tal evolução.

Desse modo, os lançamentos contábeis foram perdendo terreno no campo


jurídico, não porque o registro patrimonial se tornasse menos importante ou menos
sofisticado, mas porque aos registros contábeis aliaram-se os títulos de crédito
(FKLURJUDSKD), que muito agilizaram as transações. Que o grau de complexidade e
de sofisticação dos registros patrimoniais (inventários, diários e livros de entradas e
saídas) não apenas se manteve, mas até mesmo avançou, é confirmado pela
reforma tributária levada a efeito pelo Imperador Diocleciano (284 – 305 d. C.): os
impostos deixaram de ser cobrados em valores absolutos, mas em função da
qualidade do solo e do tipo de cultivo nele desenvolvido, bem como em função do
tipo e da complexidade do serviço prestado. Novos cadastros foram levantados, nos
quais toda a técnica dos inventários e dos livros de entradas e saídas foi aplicada
para o equilíbrio entre receitas (DFFHSWD) e despesas (H[SHQVD). A própria
manutenção das técnicas contábeis ao longo de todo o Império é também
confirmada não apenas nos novos usos burocráticos (que, sem dúvida, após as
grandes invasões bárbaras que, no Ocidente, desmantelariam o Estado imperial
centralizado, legar-se-iam aos administradores dos bens eclesiásticos, os quais,
posteriormente, as transmitiriam aos novos governos locais e aos novos
comerciantes), mas também pela atividade ininterrupta, ao longo de todo o Império,
e até aos inícios da Idade Média, dos banqueiros

23DSHOGRV%DQTXHLURV $UJHQWDULL

Quando, no presente trabalho, apresentou-se a VRFLHWDV SXEOLFDQRUXP,


comentou-se rapidamente acerca dos banqueiros ( em grego;
DUJHQWDULL ou WUDSH]LWDH, essa última palavra simples transliteração, em latim), como

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homens de negócios que se dedicavam à administração do dinheiro; na ocasião,


fez-se questão de diferenciar DUJHQWDULL de SXEOLFDQL, embora o inter-relacionamento
entre as duas categorias fosse bastante freqüente. Esses DUJHQWDULL eram
empresários privados, que, via de regra, realizavam, concomitantemente, quatro
tipos distintos de serviços: D SHUPXWDWLR, ou câmbio, trocando moeda romana por
moeda estrangeira, ou moeda emitida pelo governo romano por moeda emitida
pelas várias cidades ou reinos-clientes que tinham tal privilégio, e vice-versa; E
guarda e administração de recursos de terceiros, do qual falar-se-á mais abaixo; F
SUREDWLR QXPPRUXP, ou seja, verificação do teor de metal precioso nas moedas,
atestando-lhes o valor intrínseco; o veredicto de um DUJHQWDULXV, a esse respeito, era
reconhecido como o parecer de um especialista; G VROLGRUXP YHQGLWLR, ou seja, a
obrigação que o Estado lhes impunha de trocarem o numerário antigo pelo recém-
cunhado, fazendo-o circular pelo público; seria como que um serviço de renovação
do meio circulante.

Essa última obrigação, em tempos difíceis, podia gerar situações


constrangedoras. Na crise do séc. III, com a rápida e contínua desvalorização da
moeda (redução do teor de prata do denário), os banqueiros recusavam-se a trocar
as moedas antigas pelas novas, a não ser com ágio, o que sempre acabavam
conseguindo. Mas, de todas as atividades dos DUJHQWDULL, a mais importante era a da
guarda e administração dos recursos de terceiros.

De fato, uma pessoa podia confiar uma determinada soma à guarda de um


DUJHQWDULXV, como um depositário seguro, ou para que este fizesse um pagamento
futuro, em seu nome; nesse caso, a soma chamava-se GHSRVLWXP, não havia
pagamento de juros, podendo mesmo o banqueiro cobrar uma taxa de
administração, geralmente muito pequena. Ou então (o que era mais comum) uma
pessoa podia confiar a um DUJHQWDULXV determinada soma, para que ele a aplicasse.
Nesse caso, a quantia chamava-se FUHGLWXP; o banqueiro pagava ao depositante
juros pactuados de antemão, e tinha o direito de empregar o dinheiro em qualquer
atividade lucrativa lícita que julgasse conveniente. Enfim, um DUJHQWDULXV, na
administração do dinheiro de seus depositantes, podia emprestá-lo a outros,
mediante pagamento de juros. Nota-se que, para levar a efeito todas essas
operações, tinha que possuir uma escrita contábil cuidadosa, ordenada e detalhada.
Muitos autores romanos (Cícero, Suetônio, Plínio o Velho, Aulo Gélio, Aurélio Vítor,
apenas para citar alguns) repetidamente fazem menção aos seus registros contábeis
(WDEXODH) meticulosos e confiáveis, bem como elogiam a sua honestidade, prudência
e eficiência ao lidar com os recursos a eles confiados. Tudo isso soaria incrível nos
dias de hoje, se não se dispusesse, além desses testemunhos literários dos autores
clássicos, confirmações adicionais de outras duas fontes: a legislação e os Padres
da Igreja.

De fato, os registros contábeis (WDEXODH) mantidos pelos DUJHQWDULL eram


considerados documentos de fé pública, servindo como meios comprobatórios
inquestionáveis de uma dívida; mais ainda, a apresentação desses registros em
tribunal, quando solicitados ou citados por alguém (mesmo que não fosse cliente de
um DUJHQWDULXV), tendo por objetivo a sua defesa numa causa, era obrigatória (o
banqueiro não podia negar-lhes publicidade), e o ato de defender-se com uma prova

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assim apresentada era chamado HGHUH (Digesto, livro 2º, título 13, fragmento 1º, de
Ulpiano, parágrafo 1º) ou SURIHUUHFRGLFHP (Digesto, livro 2º, título 13, fragmento 6º,
de Ulpiano, parágrafos 7º e 8º).

No próprio Evangelho de Mateus, na parábola do homem rico que confia


dinheiro a seus empregados, para que o apliquem, o serviçal preguiçoso, que
simplesmente enterra a soma a ele confiada, é asperamente recriminado pelo
patrão, na sua volta, com a lembrança de que bastava-lhe confiar a quantia a um
banqueiro, para que a recebesse depois com juros (Mateus, cap. 25, vers. 27; ver
também Lucas, cap. 19, vers. 23). Essa confiança perpassa igualmente em vários
dos escritos dos Padres da Igreja, quer gregos, quer latinos, e de várias épocas: São
Jerônimo (c. 347-420 d.C.) a eles se refere como SUREL WUDSH]LWDH (“banqueiros
honestos”) e SUXGHQWLVVLPL WUDSH]LWDH (“os muitíssimo prudentes banqueiros”); São
Cirilo de Alexandria (c. 380-444 d.C.) usa a expressão
(“banqueiros sensatos”); o místico São João
Clímaco (c. 525-606 d.C.), mestre da perfeição espiritual, fala do
O O (“banqueiro excelente”); São João de Damasco
(morreu c. 749 d.C.) os chama (“banqueiros
honestos”); São Teodoro, abade do mosteiro de Estúdio, em Constantinopla (759-
826 d.C.), a eles se refere como (“banqueiros
confiáveis”); esses exemplos devem bastar.

$(PHUJrQFLDGD0RGHUQD&RQWDELOLGDGHHR3ULQFtSLRGD(QWLGDGH

Crê-se ter demonstrado no item anterior, quase à exaustão, o fato de que as


técnicas contábeis já se encontravam singularmente evoluídas na sociedade
romana; desde o séc. III a.C. há evidências de cuidado e método na elaboração de
registros que espelhem as mutações patrimoniais; no séc. I a.C., época de Cícero, já
dispunha a sociedade romana de livros contábeis específicos e bastante próximos
dos atuais (inventários, ocorrências diárias, livro de entradas e saídas); essa técnica
e esses registros passaram progressivamente dos comerciantes e banqueiros à
burocracia estatal que se constituiu a partir do estabelecimento do regime imperial,
sob Augusto, e evidencia-se no fato de, logo após a superação da crise do séc. III, o
Imperador Diocleciano poder realizar uma profunda reforma fiscal, tornando a
máquina arrecadadora mais profissional e mais técnica. Paralelamente, a
ininterrupta atividade dos banqueiros, com seus registros contábeis complexos,
detalhados, confiáveis e mesmo reconhecidos juridicamente como meios de prova,
atividade essa que se estendeu desde, pelo menos, o séc. II a.C. até ao séc. VIII ou
IX d.C., mostra que tais técnicas puderam ser não apenas mantidas, mas também
passadas adiante no início da Idade Média.

Assim, as técnicas contábeis já estavam suficientemente maduras numa


época em que a personalidade jurídica ainda engatinhava e se mostrava, na melhor
das hipóteses, embrionária. De fato, todos os seus elementos constituintes já se
encontravam bastante desenvolvidos no final do Império Romano. A grande
contribuição do período seguinte foi a união de todas essas técnicas num novo
princípio, o da entidade, o qual desenvolveu-se paralela e distintamente ao conceito
da personalidade jurídica dos entes corporificados.

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Se, em geral, os registros (WDEXODH) de um negociante comum podiam se


confundir (e, de fato, quase sempre se confundiam) com o seu patrimônio pessoal,
todas as inferências parecem se dar em sentido contrário com relação aos DUJHQWDULL,
e isso porque seus registros diziam respeito, quase que exclusivamente, a dinheiro
de terceiros a eles confiados. Essa separação potencial entre os bens pessoais dos
DUJHQWDULL e os seus registros, essa posição dos livros contábeis dos banqueiros
numa posição neutra e não tendenciosa com relação a seus clientes, é que
justificava, no fundo, a confiança de que gozavam (e da qual se forneceram vários
testemunhos no item anterior) e a faculdade de servirem como meio de prova
inconteste nos tribunais. Nos registros dos DUJHQWDULL, bem como, indubitavelmente,
nos dos FROOHJLD, mantidos por seus membros ou elaborados em seu nome por
DUJHQWDULL (não se deve esquecer que os FROOHJLD podiam possuir propriedades e
receber legados, bem como coletar contribuições de seus membros; nada mais
natural que pusessem seus recursos monetários para render, utilizando os serviços
de DUJHQWDULL; os banqueiros, aliás, tinham permissão do Estado para se reunirem
num FROOHJLXP, suficientemente rico para construir um monumento no Velabro, em
Roma: um arco de mármore conhecido como 3RUWD$UJHQWDULRUXP) – enfim, nesses
registros e nos das associações encontra-se a origem e o desenvolvimento, já
bastante adiantado, do conceito de um corpo econômico como DOJRTXHH[LVWH (isto
é, uma HQWLGDGH) de pleno direito e que pode, da mesma forma que uma pessoa, e
de maneira independente de seus membros, ou clientes, possuir WDEXODH. Muito
antes que se pudesse sonhar com a personalidade jurídica, finca raízes o princípio
de que um ente corporificado, ao existir, pode possuir registros próprios para
controlar suas variações patrimoniais – ou seja, registros contábeis.

Destruído o Império no Ocidente, dispersada sua burocracia, eliminados os


seus cadastros fiscais, desorganizado o comércio, cessada ou muito reduzida a
atividade dos banqueiros, a transição dos processos de registro contábil passa para
a Igreja; o processo de “micro-corporificação” de seus vários entes constituintes abre
amplo campo à aplicação das velhas regras. Não pode ser simples coincidência o
fato de, mesmo na Alta Idade Média, mesmo nos séculos VIII e IX, as ordens
religiosas se constituírem nos agentes econômicos mais eficientes e organizados,
administrando a escassez de modo extraordinariamente eficaz, sabendo quanto
plantar e quanto colher, investindo no longo prazo no aumento das fronteiras
agrícolas, na construção de pontes, moinhos e lagares. Mais ainda, não pode ser
simples coincidência a manutenção, mesmo nessas épocas de escassez de metal
precioso e de cunhagens caóticas e nada confiáveis, de um sistema fictício de conta
baseado em moedas virtuais, definidas em termos de múltiplos e sub-múltiplos de
pesos em ouro (o sistema libra-soldo-dinheiro). Assim, não pode ser apenas
coincidência a manutenção de tantas técnicas sofisticadas numa época tão
turbulenta.

Da Igreja, as técnicas de registro das variações patrimoniais percolaram para


a administração civil, bem como para os comerciantes, os novos comerciantes que,
a partir do séc. XI, estavam se associando em companhias em nome coletivo e,
depois, em comanditas. Não mais agindo individualmente, mas em conjunto,
passaram a ter a necessidade de separar o patrimônio da companhia do patrimônio

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pessoal: DQWHV GH VHTXHU YLVOXPEUDU D SRVVLELOLGDGH GH UHFRQKHFLPHQWR GD


SHUVRQDOLGDGH MXUtGLFD D FRPSDQKLD SDVVRX D FRQWDU FRP UHJLVWURV FRQWiEHLV
SUySULRVHGLVWLQWRVGRVUHODWLYRVDRSDWULP{QLRGHVHXVVyFLRVPXLWRDQWHVGHVHU
XPD SHVVRD MXUtGLFD IRL XPD HQWLGDGH. Esse processo, evidentemente, não
seguiu sem altos e baixos, mas sua tendência é inequívoca.

Também não pode ser simples coincidência o fato de tal processo se dar com
mais rapidez na região que aliava um desenvolvimento comercial e econômico
dinâmico a uma herança profunda da antiga civilização romana, mediatizada pela
Igreja: a Itália do Norte. Lá, principalmente na região da Toscana, da qual Florença
era a mais importante cidade, bem como na Sereníssima República de Veneza, já se
encontram nos governos municipais livros de receitas e despesas organizados, que
permitem inclusive que sejam efetuadas previsões orçamentárias, e, nas
companhias, OLEUL GHOOH UDJJLRQL (“livros de contas”, que registravam os aportes de
capital, os ganhos, as retiradas e os empréstimos; eram livros de interesse exclusivo
dos sócios, e por isso também denominados OLEUL VHJUHWL, “livros secretos”), OLEUL
GHOO¶HQWUDWHHGHOO¶XVFLWD (“livros de entradas e saídas”: a expressão é uma tradução
literal do antigoFRGH[DFFHSWLHWH[SHQVL romano; seria isso mais uma coincidência?)
a partir da segunda metade do séc. XIII, dos quais logo se separaram os OLEULGHOOH
FRPSHUHHYHQGLWH (“livros de compras e vendas”, para controle das mercadorias, ou,
nas indústrias, das matérias-primas).

A partir dos inícios do séc. XIV, aparecem, pela primeira vez, evidências de
registros contábeis que separam os direitos das obrigações, as origens dos recursos
das suas aplicações, enfim, o $WLYR (aquilo que estava ativado, isto é, empregado) e
o 3DVVLYR (aquilo que estava disponível, inerte, passivo, para aplicação); o que se
pode afirmar com alguma certeza é que, por volta de 1300, Rinieri Fini,
representante de uma casa bancária florentina nas feiras da Champanha, bem como
os comerciantes toscanos que operavam através de Nîmes, no sul da França, já
separavam o Ativo e o Passivo; começava a surgir a escrituração por partidas
dobradas. As contas do Ativo eram contas GHYHGRUDV, porque deviam sua existência
a uma origem de recursos; as contas do Passivo eram FUHGRUDV, pois elas
representavam a origem dos recursos, acreditavam em outras contas, por assim
dizer, fornecendo-lhes recursos. Pelos meados do séc. XIV, os algarismos arábicos
passam, cada vez mais, a ser utilizados nos registros contábeis, logo deixando de
lado os números romanos e a escrituração narrativa. Em 1366, os cambistas de
Bruges passaram a dispor o Ativo e o Passivo em colunas paralelas, lado a lado,
disposição essa que, muito provavelmente, copiaram dos italianos, já que, em
Florença, tal método de disposição do Ativo e do Passivo era conhecido como DOOD
YHQH]LDQD (“ao modo de Veneza”). Pelos finais do séc. XIV, a escrituração em
partidas dobradas já era comum na Itália do Norte e na Flandres.

Assim, quando o frade franciscano Lucas Pacioli publicou, em Veneza, no ano


de 1494, sua célebre 6XPPD GH $ULWKPHWLFD *HRPHWULD 3URSRUWLRQL H
3URSRUWLRQDOLWi, já estava pisando terreno firme, sedimentado e conhecido. Sua
contribuição foi a de um compilador e consolidador, não a de um inventor, o que,
aliás, em nada diminui o seu mérito. Na parte que tratava de escrituração contábil,
Pacioli fazia iniciar o registro contábil pelo inventário completo dos bens e direitos,

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registrando-se todas as variações patrimoniais subseqüentes em três livros, o livro


de apontamentos (que consistia num livro a ser sempre deixado sobre o balcão, e no
qual seriam transcritas todas as transações, com o maior número de detalhes
possível), o livro diário (uma enumeração datada, cronológica e simplificada do livro
de apontamentos, com todas as transações expressas numa mesma moeda) e o
livro razão (onde se realizava a escrituração por partidas dobradas, sendo cada
ocorrência do livro diário lançada duplamente). O inventário ligava-se DR OLEHOOXP
SDWULPRQLL romano; o livro de apontamentos e o diário ligavam-se aos DGYHUVDULD,
sendo o diário um DGYHUVDULXP retocado e melhorado, um elo intermediário entre o
simples registro e a escrituração; enfim, o livro razão ligava-se ao FRGH[DFFHSWL HW
H[SHQVL, embora, obviamente, fosse muito mais complexo e poderoso do que o seu
antecessor. Mas a ligação existia, e estava lá, até mesmo no modo como as
transações eram registradas, com o uso da preposição denotando a origem dos
recursos (antepondo-se às contas credoras), da mesma forma que, nos dias
romanos, a preposição era usada, nos $FFHSWD, denotando a origem das entradas
de caixa.

Toda a moderna técnica contábil estava já estabelecida nos inícios do séc.


XVI, resultado de uma evolução ininterrupta e coerente desde a época romana.
Além disso, não apenas os entes legalmente corporificados, mas também as
empresas ainda despersonalizadas legalmente eram entidades, seres especiais com
vida própria, que podiam possuir (e possuíam) uma contabilidade distinta daquela
que pudessem ter as suas pessoas físicas constituintes. Quando se recorda que as
sociedades anônimas apenas se libertaram da tutela do Estado nos meados do séc.
XIX, e que as sociedades por quota de responsabilidade limitada somente surgiram
a partir dos finais daquele mesmo século, pode-se perceber o quão mais antigo,
mais poderoso e mais coerente é o princípio da entidade, reconhecendo entes
econômicos como seres dotados de patrimônio e capazes de registrar metódica e
ordenadamente as suas mutações. As empresas não deixaram de existir, por
séculos, apesar de lhes ser negada a personalidade jurídica e/ou a responsabilidade
limitada a seus sócios; sem o registro contábil, contudo, por mais simples ou
primitivo que fosse, nenhuma delas sobreviveria por muito tempo.

$1DFLRQDOLGDGHGDV3HVVRDV-XUtGLFDV

Quando se associa a uma empresa a personalidade jurídica, a ela igualmente


se associam, por analogia, uma série de características oriundas de seu protótipo, a
pessoa física. As pessoas físicas nascem: as empresas são constituídas, ou
incorporadas; as pessoas físicas morrem: as empresas são dissolvidas, ou
liqüidadas. E, da mesma forma que uma pessoa física, a pessoa jurídica também
possui uma nacionalidade.

A nacionalidade é, para uma pessoa física, a garantia de direitos e a fonte de


deveres para com o Estado. Muito mais do que numa pessoa física, porém, a
nacionalidade, numa pessoa jurídica, deriva diretamente do reconhecimento de sua
personalidade por um Estado. Assim sendo, o princípio geral referente à
nacionalidade das empresas é o seguinte: VRPHQWHVHSRGHDWULEXLUDXPDHPSUHVD
D QDFLRQDOLGDGH GH XP (VWDGR FXMDV OHLV D UHFRQKHoDP. À luz desse princípio, é

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possível que uma pessoa jurídica possua várias nacionalidades, ou nenhuma, tendo
em vista os diferentes critérios que os vários Estados podem utilizar para fixar a
nacionalidade. Igualmente à luz desse princípio, um determinado Estado pode
reconhecer a uma sociedade nacionalidade estrangeira, o que é algo extremamente
interessante, e que não ocorre no caso das pessoas físicas. O Estado “X” pode
definir quem é cidadão desse país, mas não pode atribuir a determinada pessoa
uma outra nacionalidade; ele dirá apenas se alguém é ou não cidadão de “X”; tem
liberdade, tem autoridade, tem soberania, para definir, do modo que julgar mais
conveniente, a quem concederá a cidadania; no caso de uma empresa, contudo,
dependendo das circunstâncias, o Estado “X” pode não apenas decidir se
determinada empresa tem ou não a nacionalidade de “X”, mas, igualmente, TXH
QDFLRQDOLGDGH a empresa possui.

Tome-se um exemplo simples: um país “A” define a nacionalidade de uma


empresa através do local de constituição e registro dos atos constitutivos; um país
“B”, por outro lado, define a nacionalidade de uma empresa a partir da nacionalidade
de seus sócios. Considere-se agora uma empresa “E”, formada por cidadãos de “B”,
mas constituída em “A”. Essa empresa “E” será considerada, quer por “A”, quer por
“B”, quer por um terceiro Estado “C”, como portando a nacionalidade do Estado “A”,
porque lá se constituiu, e as leis de “A” definem a nacionalidade em termos de
constituição; também será considerada, quer por “A”, quer por “B”, quer por um
terceiro Estado “C”, como portando igualmente a nacionalidade do Estado “B”,
porque seus sócios são cidadãos de “B”, e as leis de “B” definem a nacionalidade em
termos de nacionalidade dos sócios; a empresa “E” teria, no caso, duas
nacionalidades. Suponha-se agora que a empresa “E”, ao contrário, fosse formada
por cidadãos de “A”, mas constituída em “B”. Ela não poderia ser considerada, por
nenhum Estado, como nacional de “A”, porque ela não se constituiu em “A”, e as leis
de “A” definem a nacionalidade em termos de constituição, e não de nacionalidade
dos sócios; igualmente, ela também não poderia ser considerada, por nenhum
Estado, como nacional de “B”, porque seus sócios não são cidadãos de “B”, e as leis
de “B” definem a nacionalidade em termos da nacionalidade dos sócios, e não de
local de constituição; nesse caso, a empresa “E” não teria nenhuma nacionalidade,
porque nenhum Estado pode considerar uma empresa nacional de um outro em
contrariedade às leis desse outro.

Vários são os critérios utilizados para a fixação, por parte de um Estado, da


nacionalidade de uma empresa; todos eles têm pontos positivos e negativos. Três
deles, contudo, costumam ser os mais referidos e utilizados na prática: o critério da
incorporação, o critério da sede social e o critério do controle. Tais critérios serão
analisados a partir de agora.

2&ULWpULRGD,QFRUSRUDomRRX&RQVWLWXLomRRX6HGH

De acordo com esse critério, a nacionalidade de uma sociedade é definida


pelo local onde a sociedade se constituiu, ou seja, onde foi incorporada e legalmente
registrada (e onde, usualmente, embora nem sempre, foram realizadas as
subscrições de capital e elaborados os estatutos) . Esse princípio deriva,
principalmente, da noção de que uma sociedade, embora podendo ser dotada de

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personalidade jurídica, é um ente fictício, que somente existe ao abrigo da lei (teoria
dita “da ficção”, e cujo principal representante foi Friedrich Karl von Savigny,
professor em Berlim e membro do Instituto de França; suas considerações a respeito
da personalidade jurídica encontram-se no 8º e último volume de sua obra 6\VWHP
GHV KHXWLJHQ 5|PLVFKHQ 5HFKWV, “Sistema do Direito Romano Atual”, de 1849).
Sendo um ente fictício, cuja existência liga-se umbilicalmente a um ordenamento
jurídico, a existência de uma empresa prende-se indelevelmente ao local onde se
constituiu, onde foi incorporada (isto é, onde ganhou corpo, onde passou a existir
dentro do ordenamento jurídico). O Reino Unido e os Estados Unidos, com seus
respectivos matizes, seguem, em linhas gerais, esse critério.

No Reino Unido, a noção de nacionalidade ligada a uma empresa é bastante


antiga, sendo considerada nacional qualquer sociedade que tenha sido constituída
(incorporada) de acordo com as leis inglesas. Desde inícios do séc. XVIII, o Direito
inglês reconhece, para fins postulatórios ativos nas cortes inglesas, a existência de
sociedades estrangeiras (somente em fins do séc. XIX, contudo, estendeu-se-lhes a
capacidade postulatória passiva). Mais ainda, como a ligação a um determinado
ordenamento jurídico define a existência da sociedade, se esta é extinta no país em
que se constituiu, automaticamente cessa de existir também no Reino Unido. Deve-
se notar, contudo, que, na lei inglesa, os direitos pessoais derivam muito mais do
domicílio do que da nacionalidade; uma empresa incorporada de acordo com as leis
de um país “X” é considerada como residente nesse país, mas criou-se a noção de
“domicílio comercial”, como o lugar (ou lugares) onde a empresa realiza seus
negócios. Assim sendo, uma empresa estrangeira (isto é, incorporada no
estrangeiro) pode ter “domicílio comercial” no Reino Unido, se lá realiza negócios, e
considera-se que a capacidade de uma empresa realizar negócios é regida através
da combinação de suas disposições estatutárias com as da lei do local onde se
realizavam as transações. O fato de uma empresa possuir domicílio comercial no
Reino Unido é fator importante para que ela tenha que se sujeitar à legislação
tributária britânica.

Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passou-se a se levar em


consideração o controle na fixação do domicílio comercial, conforme se mostrará
mais adiante.

O estudo da posição norte-americana a respeito da nacionalidade da pessoa


jurídica é bastante interessante e esclarecedor, não apenas pela importância do seu
sistema econômico, mas também pela maneira com que esse sistema vem podendo
se adaptar a sucessivas mudanças, sem abandonar seus princípios.

De acordo com a FRPPRQ ODZ norte-americana, considera-se uma empresa


como SHUVRQ (pessoa), mas não como FLWL]HQ (cidadã), do modo como esses termos
são empregados na Constituição Federal. Apenas em certas ocasiões, tendo entre
seus sócios cidadãos, pode ser equiparada aos cidadãos. Assim sendo, via de
regra uma empresa jamais gozará dos privilégios que a Constituição dos Estados
Unidos, ou as dos Estados, outorgam aos cidadãos; contudo, poderá fruir de todas
as garantias que a Constituição Federal, bem como as diversas constituições

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estaduais, garantem às pessoas, inclusive as cláusulas do GHYLGR SURFHVVR e da


LJXDOSURWHomR da 14ª Emenda Constitucional.

Partindo da teoria ficcional da personalidade jurídica, a FRPPRQ ODZ norte-


americana postula que a existência de uma sociedade não ultrapassa as fronteiras
do Estado (Estado federado, membro dos Estados Unidos) em que ela se constituiu.
Conforme o precedente do juiz Taney, da Suprema Corte, no caso %DQNRI$XJXVWD
YV(DUOH (1839):

³,W LV YHU\ WUXH WKDW D FRUSRUDWLRQ FDQ KDYH QR OHJDO H[LVWHQFH RXW RI WKH
ERXQGDULHV RI WKH VRYHUHLJQW\ E\ ZKLFK LW LV FUHDWHG  ,W H[LVWV RQO\ LQ
FRQWHPSODWLRQRIODZDQGE\IRUFHRIWKHODZDQGZKHQWKDWODZFHDVHVWR
RSHUDWHDQGLVQRORQJHUREOLJDWRU\WKHFRUSRUDWLRQFDQKDYHQRH[LVWHQFH
,W PXVW GZHOO LQ WKH SODFH RI LWV FUHDWLRQ DQG FDQQRW PLJUDWH WR DQRWKHU
VRYHUHLJQW\´

Esse pronunciamento, chamado “voto Taney”, consagra os quatro princípios


fundamentais que, até hoje, regem a nacionalidade para o ordenamento jurídico
norte-americano: ž a empresa não existe além das fronteiras do Estado em que se
constituiu; ž os atos de uma empresa limitam-se àqueles contemplados por seus
estatutos ou pelas leis do Estado em que se constituiu; ž um Estado da federação
pode recusar o seu reconhecimento a uma empresa estrangeira (isto é, uma
empresa constituída em outro Estado da federação), bem como proibi-la de atuar em
seu território; ž um Estado da federação pode recusar a uma empresa privilégios
que normalmente concede a pessoas físicas que sejam cidadãs, já que uma
empresa é SHUVRQ, mas não é FLWL]HQ.

Pelo fato de existir juridicamente apenas no Estado em que é criada, lá, e


somente lá, possuirá a sociedade o seu domicílio: pois, não tendo existência
reconhecida em nenhum outro lugar, em nenhum outro lugar poderá ter domicílio;
dentro do mesmo princípio, exigia a FRPPRQ ODZ que todos os atos societários
fossem efetuados no seu domicílio, ou seja, no Estado em que havia sido
incorporada. O ato de negociar no território de um Estado não torna uma empresa
residente desse Estado; tem aí um mero “domicílio comercial”, adquirido pelo fato de
realizar negócios num determinado local, mas que não é o verdadeiro domicílio da
sociedade.

Uma empresa autorizada por um dos Estados federados é considerada


estrangeira (IRUHLJQ) com relação a todos os outros Estados. No caso do governo
federal, deve-se notar que o Congresso Nacional norte-americano pode autorizar a
criação de companhias quer atuando como o corpo legislativo do Distrito de
Colúmbia, quer como corpo legislativo da Federação; no primeiro caso, a empresa é
considerada estrangeira diante de todos os Estados federados; no segundo caso, é
considerada nacional (GRPHVWLF) em todos os Estados federados. Entretanto, para
fins processuais, admite-se que uma empresa possa ser alcançada pela jurisdição
de outro Estado que não o de sua incorporação, se lá possui domicílio comercial, ou
se, de algum modo, possa lá ser achada (IRXQG). De fato, assim se pronunciou o
juiz Curtis, da Suprema Corte, no caso 7KH /DID\HWWH ,QVXUDQFH &R YV 0D\QDUG
)UHQFK RWKHUV (1855):

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³$ FRUSRUDWLRQ FUHDWHG E\ ,QGLDQD FDQ WUDQVDFW EXVLQHVV LQ 2KLR RQO\ ZLWK
WKH FRQVHQW H[SUHVV RU LPSOLHG RI WKH ODWWHU 6WDWH  7KLV FRQVHQW PD\ EH
DFFRPSDQLHGE\VXFKFRQGLWLRQVDV2KLRPD\WKLQNILWWRLPSRVHDQGWKHVH
FRQGLWLRQVPXVWEHGHHPHGYDOLGDQGHIIHFWXDOE\RWKHU6WDWHVDQGE\WKLV
FRXUW SURYLGHG WKH\ DUH QRW UHSXJQDQW WR WKH FRQVWLWXWLRQ RU ODZV RI WKH
8QLWHG 6WDWHV RU LQFRQVLVWHQW ZLWK WKRVH UXOHV RI SXEOLF ODZ ZKLFK VHFXUH
WKHMXULVGLFWLRQDQGDXWKRULW\RIHDFK6WDWHIURPHQFURDFKPHQWE\DOORWKHUV
RU WKDW SULQFLSOH RI QDWXUDO MXVWLFH ZKLFK IRUELGV FRQGHPQDWLRQ ZLWKRXW
RSSRUWXQLW\IRUGHIHQVH´

O mesmo espírito perpassa no pronunciamento do juiz Waite, da Suprema


Corte, no caso 5DLOURDG&RUSRUDWLRQYV.RRQW] (1872):

³$FRUSRUDWLRQFDQQRWFKDQJHLWVUHVLGHQFHRULWVFLWL]HQVKLS,WFDQKDYHLWV
OHJDOKRPHRQO\DWWKHSODFHZKHUHLWLVORFDWHGE\RUXQGHUWKHDXWKRULW\RI
LWV FKDUWHU EXW LW PD\ E\ LWV DJHQWV WUDQVDFW EXVLQHVV DQ\ZKHUH XQOHVV
SURKLELWHG E\ LWV FKDUWHU RU H[FOXGHG E\ ORFDO ODZV  8QGHU VXFK
FLUFXPVWDQFHV LW VHHPV FOHDU WKDW LW PD\ IRU WKH SXUSRVH RI VHFXULQJ
EXVLQHVVFRQVHQWWREHµIRXQG¶DZD\IURPKRPHIRUWKHSXUSRVHRIVXLWDV
WRPDWWHUVJURZLQJRXWRILWVWUDQVDFWLRQV´

Tradicionalmente, não se admitia a existência jurídica de uma empresa fora


de seu Estado de incorporação; a tendência moderna, contudo, é reconhecer a
existência da pessoa jurídica em todo o território nacional, uma vez que tenha sido
incorporada num dos Estados da federação; esse reconhecimento da existência
jurídica, contudo, é ato meramente formal, que não interfere com a aplicação dos
princípios do “voto Taney”, nem com o VWDWXV de estrangeira que uma empresa
possui fora de seu Estado de incorporação. Note-se também que, modernamente,
vem sendo admitida a possibilidade de uma empresa incorporar-se em vários
Estados da federação (multi-incorporação), desde que obedeça, simultaneamente,
às leis de todos no que se refere a organização societária, finalidade social,
membros e condução dos negócios.

Uma empresa que tenha sido incorporada (constituída) fora dos Estados
Unidos é denominada DOLHQFRUSRUDWLRQ; ela é considerada FLGDGmdo país onde foi
constituída; a ela se aplicam todos os princípios discriminados anteriormente, com o
detalhe adicional de que é considerada residente, para fins processuais, em
qualquer Estado da federação norte-americana no qual possua escritório ou realize
negócios.

A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, em 1917, levou à


promulgação, seis meses depois, em outubro, do 7UDGLQJZLWKWKH(QHP\$FW, o qual
proibiu aos residentes ou empresas norte-americanas o comércio com pessoas ou
empresas inimigas, impondo-lhe severas penalidades. Na definição de “inimigo”,
mais uma vez, o critério da incorporação predominou; os princípios então definidos
foram os seguintes: D uma companhia constituída nos Estados Unidos jamais
poderia ser considerada inimiga, mesmo que seus sócios ou administradores fossem
súditos de país inimigo; E qualquer empresa constituída em país inimigo seria
considerada inimiga, independentemente da nacionalidade de seus sócios ou
administradores; F qualquer companhia constituída fora dos Estados Unidos, mas

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que comercializasse com inimigos, passaria a ser considerada como inimiga. Essa
legislação permaneceu em vigor mesmo depois da guerra.

Para terminar esta brevíssima exposição, deve-se notar que considerações


acerca da nacionalidade dominante dos sócios controladores e/ou da administração
vêm ganhando força na legislação norte-americana a partir da Segunda Guerra
Mundial. A própria seção 213 do 5HVWDWHPHQW 7KLUG  RI )RUHLJQ 5HODWLRQV /DZ
(1986), que estabelece como critério de nacionalidade o Estado onde a sociedade
se constituiu, reconhece que o controle acionário e/ou administrativo é um
fundamento alternativo para a definição da nacionalidade, e isso vem sendo levado
em consideração numa série de leis regulatórias versando sobre comunicações,
aviação, navegação costeira e bancos.

2&ULWpULRGD6HGH6RFLDORX5HDO

De acordo com esse critério, a nacionalidade de uma sociedade é definida


pelo local onde ocorrem os seus atos sociais, onde se reúne a sua diretoria, onde se
encontra a sua administração, onde, enfim, são tomadas as decisões referentes à
sua vida. Tal local é definido como a sede social, ou real, para distingui-la da sede
legal, que é o lugar onde foi constituída, incorporada. Os defensores de tal critério
apontam-lhe como vantagens o realismo, a sinceridade e a previsibilidade. Tratar-
se-ia de um critério realista por unir a nacionalidade e, portanto, o ordenamento
jurídico a ser aplicado, ao efetivo centro de decisões da empresa; seria igualmente
um critério sincero, já que evitaria manipulações com o objetivo de se fraudar a lei,
principalmente as normas fiscais; enfim, seria um critério previsível, já que o elo
entre a sociedade e a sua nacionalidade seria simples e estável. Essas mesmas
pessoas apresentam o critério da incorporação como não sendo nem realista e nem
sincero, muitas vezes divorciado das realidades econômicas ou operacionais.
Igualmente, fazem notar a superioridade de tal critério sobre aquele que define a
nacionalidade da companhia como ligada ao local onde se encontra sua principal
atividade ou exploração, já que tal local pode ser modificado com o tempo, sendo,
além disso, muitas vezes, múltiplo e, portanto, imprevisível. A França, com alguns
matizes importantes, principalmente referentes a considerações de controle, segue,
em geral, este critério.

Na França, nem o Código Comercial de 1807 e nem a legislação posterior


haviam estabelecido critérios para que se definisse a nacionalidade de uma
companhia, estes foram construídos progressivamente, pela jurisprudência. Esta,
inicialmente, inclinou-se pela teoria do centro de exploração do negócio das
empresas, mas, paulatinamente, o critério da sede social foi ganhando terreno,
passando a ser, a partir de cerca de 1890, o principal critério para a determinação da
nacionalidade de uma empresa; o local da exploração e o controle não foram
abandonados, mas relegados a um papel secundário.

Sendo a pedra de toque para a determinação da nacionalidade, a “sede


social” de uma empresa tinha que ser cuidadosamente pesquisada. Os tribunais
franceses insistiam em que deveria ser uma sede social “real” e “séria”, de onde os
negócios fossem efetivamente comandados, geridos e administrados. Para garantir

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a autenticidade da sede social, uma série de itens passaram a ser levados em


consideração: local da gerência, origem do capital, nacionalidade dos fundadores,
lugar de emissão das ações, entre outros.

Desde a Primeira Guerra Mundial, o critério do controle ganhou terreno,


conforme analisar-se-á mais adiante, sendo hoje um importante elemento auxiliar na
determinação da nacionalidade das pessoas jurídicas. O critério da sede social,
contudo, ainda permanece dominante. A lei de 1966 que rege as sociedades
comerciais dispõe, no seu art. 3º, que qualquer empresa cuja sede social se situe
em território francês está submetida às leis francesas; o art. 1.837 do Código Civil
francês, com a redação dada pela lei de 1978, repete a mesma frase. Embora não
se refiram especificamente à nacionalidade, essas disposições são interpretadas
tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência francesas como atribuindo às
sociedades a nacionalidade do país de sua sede social.

2&ULWpULRGR&RQWUROHRXGD1DFLRQDOLGDGHGRV6yFLRVHRX$GPLQLVWUDGRUHV

De acordo com esse critério, a nacionalidade de uma sociedade é definida


pelos interesses nacionais que a dominam, caracterizando-se o controle quer pela
nacionalidade dos sócios, quer pela dos administradores (o primeiro critério é mais
indicado para as sociedades de pessoas, enquanto o segundo o é para as
sociedades de capital). Os defensores de tal critério argumentam que ele é o único
que permite, efetivamente, testar a lealdade da sociedade, salvaguardando o Estado
dos riscos resultantes do influxo desordenado de capitais estrangeiros na economia
nacional.

Deve-se notar que, até à Primeira Guerra Mundial, o critério do controle foi
muito pouco utilizado; esse conflito bélico, e, mais especialmente, a Segunda Guerra
Mundial, com os seus imperativos de segurança nacional e a necessidade real de se
identificarem as sociedades controladas por potências inimigas, as quais podiam
atuar como “quintas colunas” e comprometer o esforço de guerra, em muito
contribuíram para a emergência desse critério, o qual manteve influência mesmo
após cessadas as hostilidades. Assim, por exemplo, o art. 297 do Tratado de
Versalhes (1919) autorizou as potências aliadas a liqüidar e a dispor dos bens das
sociedades que, domiciliadas em qualquer uma delas, estivessem controladas por
capitais alemães; mesmo no Brasil, as empresas de súditos das potências do Eixo
foram expropriadas, sendo sua direção entregue a brasileiros. Analisar-se-á, a partir
de agora, a influência do critério do controle na França, no Reino Unido e nos
Estados Unidos, a partir das duas conflagrações mundiais, e em que grau
permaneceram ou influenciaram seus ordenamentos jurídicos após a cessação das
hostilidades.

Na França, logo após o início das hostilidades, foi baixado um decreto pelo
Executivo, aos 27 de setembro de 1914, que: D proibia o comércio com súditos ou
residentes da Alemanha e da Monarquia Dual Austro-Húngara, proibindo igualmente
que súditos ou residentes desses Estados comerciassem em território sujeito à
autoridade francesa, mesmo que por pessoa interposta (art. 1º); E considerava nulo
qualquer contrato concluído após o início das hostilidades com súditos ou residentes

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desses países, até ao fim da guerra (art. 2º); F considerava nula, até ao fim das
hostilidades, a execução de qualquer obrigação derivada de contratos concluídos
com o inimigo, mesmo que tivessem sido celebrados antes do início das hostilidades
(art. 3º). Apesar desse decreto referir-se apenas a pessoas físicas (súditos ou
residentes), foi logo interpretado pelos tribunais franceses como referente também a
pessoas jurídicas. Indo além, os juristas utilizaram a figura da “pessoa interposta”
presente no decreto para aplicar as suas disposições às sociedades que, não
obstante fossem consideradas francesas, por possuírem sede social na França,
exibiam, quer entre os sócios, quer entre os administradores, súditos dos, ou
residentes nos, Estados com os quais a França se encontrava em beligerância.
Desse modo, as sociedades eram consideradas como formalmente francesas (por
possuírem sede social na França), mas, sendo controladas e/ou administradas por
inimigos, tenderiam fatalmente a favorecer os interesses inimigos, não mais se
constituindo, em realidade, do que em meras pessoas interpostas, servindo apenas
para que súditos inimigos comerciassem na França, burlando o espírito da lei.

Assim, embora o conceito da sede social continuasse dominante, e definisse


a nacionalidade da sociedade à luz da lei francesa, o critério do controle assumiu
uma nova importância, chegando-se, muitas vezes, à liqüidação e à expropriação
dos bens de sociedades com sede social na França (e, portanto, de nacionalidade
francesa) mas consideradas sob influência inimiga, quer pelo controle acionário
exercido por inimigos, quer pela nacionalidade dos diretores.

Mesmo após a guerra, as considerações acerca do controle mantiveram


alguma importância, embora subsidiária, para a definição da nacionalidade das
empresas. A Segunda Guerra Mundial não mais fez do que fortalecer tal tendência,
robustecendo-se a legislação da época da Primeira Guerra, numa série de decretos
(1939); o país não teve muito tempo, contudo, para aplicá-los, visto ter sido invadido
e ocupado pelos alemães em 1940; a libertação da França, em 1944, trouxe de volta
toda essa legislação, que, dessa vez, exerceu uma influência bem maior mesmo
após o fim do conflito.

Com efeito, foi sendo elaborada toda uma construção doutrinária e, mesmo,
jurisprudencial, a qual assevera cindir-se a nacionalidade em dois aspectos: o
primeiro deles define qual a lei aplicável para o funcionamento da sociedade (critério
da sede social, definindo a nacionalidade da empresa e o ordenamento jurídico ao
qual teria de se submeter), ao passo que o segundo disciplina determinados
aspectos do funcionamento da sociedade, tendo em vista a existência de atividades
vedadas aos estrangeiros, no interesse nacional (critério do controle, definindo o
escopo possível das atividades da companhia, tendo em vista o resguardo dos
interesses nacionais). Na prática, essa tendência vem tendo ocmo resultado dividir
as sociedades consideradas de nacionalidade francesa em dois grupos: um de
sociedades plenamente francesas, e outro de sociedades que não gozam de todos
os privilégios concedidos às primeiras, em razão do controle.

Também na Inglaterra, a Grande Guerra de 1914-1918 levou considerações


relativas a controle ao critério de incorporação até então exclusivamente utilizado.
Como na França, foi editado, logo no início das hostilidades (18 de setembro de

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1914) o 7UDGLQJZLWKWKH(QHP\$FW, proibindo a súditos britânicos ou residentes no


Reino Unido ou no Império o comércio com inimigos; suas disposições, contudo,
eram muito vagas:

³)RUWKHSXUSRVHRIWKLV$FWDSHUVRQVKDOOEHGHHPHGWR KDYHWUDGHGZLWK
WKHHQHP\LIKHKDVHQWHUHGLQWRDQ\WUDQVDFWLRQRUGRQHDQ\DFWZKLFKZDV
DW WKH WLPH RI VXFK WUDQVDFWLRQ RU DFW SURKLELWHG E\ RU XQGHU DQ\
SURFODPDWLRQLVVXHGE\+LV0DMHVW\GHDOLQJZLWKWUDGLQJZLWKWKHHQHP\IRU
WKHWLPHEHLQJLQIRUFHRUZKLFKDWFRPPRQODZRUE\VWDWXWHFRQVWLWXWHVQD
RIIHQFH RI WUDGLQJ ZLWK WKH HQHP\ SURYLGHG WKDW DQ\ WUDQVDFWLRQ RU DFW
SHUPLWWHG E\ RU XQGHU DQ\ VXFK SURFODPDWLRQ VKDOO QRW EH GHHPHG WR EH
WUDGLQJZLWKWKHHQHP\´

A jurisprudência iria arcar com o ônus de definir melhor a situação, sendo um


marco nesse aspecto o caso &RQWLQHQWDO7\UH 5XEEHU&RPSDQ\/WGYV'DLPOHU
&RPSDQ\ /WG julgado no Tribunal de Apelação em janeiro de 1915, sendo a
decisão reformada pela Câmara dos Lordes em junho de 1916. A &RQWLQHQWDO7\UH
era uma companhia incorporada na Inglaterra, com sede em Londres, contudo
controlada de uma empresa alemã, e dedicava-se a vender no Reino Unido pneus
de fabricação alemã. Das 25.000 quotas em que se dividia o seu capital, 23.398
eram possuídas pela empresa controladora alemã; 1.600 eram de propriedade de
três cidadãos alemães, residentes na Alemanha; as duas últimas quotas eram
propriedade, respectivamente, de um indivíduo alemão residente na Inglaterra e do
secretário da companhia, alemão que se havia naturalizado britânico em 1910. O
secretário, em outubro de 1914 (a guerra havia começado em agosto), embora sem
procuração dos controladores (devido à cessação das comunicações), entrou com
ação contra a 'DLPOHU, para que a &RQWLQHQWDO dela recebesse uma dívida comercial
que a 'DLPOHU se recusava a pagar; a 'DLPOHU alegava que a &RQWLQHQWDO era, de
fato, uma empresa estrangeira, e pagar a dívida eqüivaleria a comerciar com o
inimigo, o que era proibido pelo 7UDGLQJZLWKWKH(QHP\$FW. Além disso, argüía que
o secretário não possuía procuração dos controladores que lhe conferisse poder
para entrar com a ação. A Corte de Apelação deu razão à &RQWLQHQWDO,
considerando que, sendo sociedade incorporada no Reino Unido, era britânica,
mesmo que seus sócios fossem estrangeiros. A Câmara dos Lordes, contudo,
reverteu a decisão: asseverou, inicialmente, que o secretário não possuía, pelos
estatutos da sociedade, poder de entrar com a ação, e impôs o princípio de que,
embora fosse de nacionalidade britânica, por ter sido incorporada no Reino Unido, a
residência comercial era explicitada pelo controle.

Os lordes, aqui, iam além do já estabelecido no 7UDGLQJ ZLWK WKH (QHP\


$PHQGPHQW$FW, de 27 de janeiro de 1916, que definia um súdito inimigo como ³D
VXEMHFW RI D 6WDWH IRU WKH WLPH EHLQJ DW ZDU ZLWK +LV 0DMHVW\ DQG LQFOXGHV D ERG\
FRUSRUDWH FRQVWLWXWHG DFFRUGLQJ WR WKH ODZV RI VXFK D 6WDWH”. Tal entendimento
passou à legislação, no novo 7UDGLQJ :LWK WKH (QHP\ $FW, de 1918, que definiu
como inimiga qualquer sociedade que possuísse em sua direção maioria de súditos
inimigos, ou que tivesse controle acionário de súditos inimigos, ou que tivesse como
dirigentes uma corporação controlada pelo inimigo, ou por ele apontada.

Enfim, o 7UDGHZLWKWKH(QHP\$FW de 1939 exarou os seguintes princípios: D


uma companhia é residente onde possui seu domicílio comercial; assim, é

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considerada inimiga se tem domicílio comercial em país inimigo, ou ocupado pelo


inimigo; E uma companhia com sede em território ocupado pelo inimigo, mas que
transferiu seu domicílio legal e a direção de seus negócios para território amigo ou
neutro não é considerada inimiga; F uma companhia incorporada no Reino Unido aí
possui seu domicílio e nacionalidade, não os perdendo mesmo que controlada por
inimigos, o que não a exime do cumprimento das leis inglesas.

Mesmo nos Estados Unidos, as numerosas e criativas técnicas utilizadas


pelos inimigos para esconder sua propriedade ou o controle que exerciam sobre
companhias ensejaram o )LUVW :DU 3RZHUV $FW, no ano de 1941, emendando as
seções 5ª e 6ª do 7UDGHZLWKWKH(QHP\$FW, concedendo ao Presidente o poder de
confiscar propriedade de qualquer país ou nacional estrangeiro no interesse da
segurança nacional. Enquanto no texto original do 7UDGH ZLWK WKH (QHP\ $FW (de
1917) o VWDWXV de inimigo baseava-se na residência em território inimigo ou ocupado,
o )LUVW:DU3RZHUV$FW levantou a bandeira do controle: companhias que estivessem
em território inimigo, ou ocupado, seriam tidas como inimigas, se fossem de
nacionalidade inimiga, ou se fossem controladas ou agissem em favor dos mesmos,
ou se o interesse nacional assim as considerasse.

2&DVR%UDVLOHLUR

No Brasil, a questão da nacionalidade de uma companhia somente recebeu


uma primeira resposta do ordenamento jurídico no Código Civil, de 1916; de fato, a
legislação anterior, quando tratava da matéria (lei nº 1.083, de 1860; lei nº 3.150, de
1882; decreto nº 164, de 1890; decreto nº 434, de 1891), estabelecia apenas, para
as sociedades anônimas estrangeiras que quisessem atuar no país, a necessidade
de autorização governamental (implicitamente, isso significava que o governo
reconhecia qualquer sociedade que se tivesse constituído segundo as leis de um
outro país; a autorização dizia respeito à permissão de funcionamento no país, não
ao reconhecimento da existência da sociedade).

Na Lei de Introdução do Código Civil, de 1916, dispunha-se que “são


reconhecidas as pessoas jurídicas estrangeiras” (art. 19) e que “a lei nacional das
pessoas jurídicas determina-lhes a capacidade” (art. 21). Por outro lado, eram
usualmente tidas como brasileiras, seguindo uma longa tradição, as sociedades que
no país possuíssem sede, registradas nas juntas comerciais, e que aqui exercessem
a sua atividade.

Tendia-se a se definir, assim, um tanto vagamente, a empresa brasileira em


termos da sede social no Brasil; a capacidade da empresa estrangeira, contudo, era
definida em termos de sua “lei nacional”, expressão aliás totalmente vaga, pois não
se determinava um critério objetivo para o estabelecimento da nacionalidade da
pessoa jurídica: postulava-se que a pessoa jurídica derivaria sua capacidade de sua
lei nacional, mas não se forneciam ferramentas para que sua nacionalidade fosse
inquestionavelmente determinada.

Como em outros países, a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial


(1917) resultou numa maior importância do critério do controle. A lei 3.393, de 16 de

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novembro de 1917, chegou mesmo a ser draconiana: estatuía em seu art. 6º que “os
estabelecimentos comerciais ou industriais, associações, sociedades, inclusive as
anônimas, bancos, usinas ou armazéns, serão considerados de propriedade inimiga
sempre que a totalidade do respectivo capital, ou a sua maior parte, pertencer a
súditos inimigos, qualquer que seja a respectiva sede, no Brasil ou no estrangeiro”.
Isso significaria uma aceitação total do critério do controle, mas o entendimento
posterior foi o de que a citada lei tratava não da nacionalidade das companhias, mas
simplesmente da definição de seu caráter de inimiga.

No período que se estende da promulgação do Código Civil (1916) até à


edição do Decreto-Lei 2.627, de 1940 (que, até à lei 6.404/76, regulou as
sociedades por ações), a doutrina e a jurisprudência tendiam a aplicar os seguintes
princípios para definir uma sociedade como brasileira: D as sociedades de pessoas
constituídas no Brasil; E as sociedades de pessoas estabelecidas por brasileiros no
exterior, mas com contratos arquivados e firmas inscritas no Brasil, além de gerente
brasileiro; F as sociedades de capital constituídas no Brasil; G as sociedades de
capital organizadas no exterior, desde que, autorizadas pelo governo brasileiro a
aqui funcionarem, mudassem a sua sede para o Brasil, e tivessem brasileiros como
diretores ou sócios-gerentes.

O Decreto-Lei 2.627, de 1940, consagrou, em suas linhas gerais, o


entendimento doutrinal; suas disposições quanto à nacionalidade das sociedades
por ações são as seguintes:

$UW 6mRQDFLRQDLVDVVRFLHGDGHVRUJDQL]DGDV QDFRQIRUPLGDGH GD OHL


EUDVLOHLUD H TXH WrP QR SDtV D VHGH GH VXD DGPLQLVWUDomR 3DUiJUDIR
ÒQLFR4XDQGRDOHLH[LJLUTXHWRGRVRVDFLRQLVWDVRXFHUWRQ~PHURGHOHV
VHMDPEUDVLOHLURVDVDo}HVGDFRPSDQKLDRXVRFLHGDGHDQ{QLPDUHYHVWLUmR
IRUPD QRPLQDWLYD  1D VHGH GD VRFLHGDGH ILFDUi DUTXLYDGD XPD FySLD
DXWrQWLFDGRGRFXPHQWRFRPSUREDWyULRGDQDFLRQDOLGDGH

$UW  $V VRFLHGDGHV DQ{QLPDV RX FRPSDQKLDV HVWUDQJHLUDV TXDOTXHU


TXH VHMD R VHX REMHWR QmR SRGHP VHP DXWRUL]DomR GR *RYHUQR )HGHUDO
IXQFLRQDU QR SDtV SRU VL PHVPDV RX SRU ILOLDLV VXFXUVDLV DJrQFLDV RX
HVWDEHOHFLPHQWRV TXH DV UHSUHVHQWHP SRGHQGR WRGDYLD UHVVDOYDGRV RV
FDVRVH[SUHVVRVHPOHLVHUDFLRQLVWDVGHVRFLHGDGHVDQ{QLPDVEUDVLOHLUDV
DUW 

$UW$VVRFLHGDGHVDQ{QLPDVHVWUDQJHLUDVDXWRUL]DGDVDIXQFLRQDUVmR
REULJDGDV D WHU SHUPDQHQWHPHQWH UHSUHVHQWDQWHV QR %UDVLO FRP SOHQRV
SRGHUHV SDUD WUDWDU GH TXDLVTXHU TXHVW}HV H UHVROYrODV GHILQLWLYDPHQWH
SRGHQGR VHU GHPDQGDGR H UHFHEHU FLWDomR LQLFLDO SHOD VRFLHGDGH
3DUiJUDIR ÒQLFR 6y GHSRLV GH DUTXLYDGR QR 5HJLVWUR GR &RPpUFLR R
LQVWUXPHQWR GH VXD QRPHDomR SRGHUi R UHSUHVHQWDQWH HQWUDU HP UHODomR
FRPWHUFHLURV

$UW  $V VRFLHGDGHV DQ{QLPDV HVWUDQJHLUDV DXWRUL]DGDV D IXQFLRQDU


ILFDUmR VXMHLWDV jV OHLV H DRV WULEXQDLV EUDVLOHLURV TXDQWR DRV DWRV RX
RSHUDo}HVTXHSUDWLTXHPQR%UDVLO

48
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9 e 10 de novembro de 2000

$UW$VRFLHGDGHDQ{QLPDHVWUDQJHLUDDXWRUL]DGDDIXQFLRQDUQRSDtV
SRGH PHGLDQWH DXWRUL]DomR GR *RYHUQR )HGHUDO QDFLRQDOL]DUVH
WUDQVIHULQGRDVXDVHGHSDUDR%UDVLO

Tais artigos são importantes, e merecem citação especial, pelo fato de


continuarem em vigor, já que o art. 300 da lei 6.404/76 (que substituiu o Decreto-Lei
2.627/40 como lei das sociedades anônimas) manteve explicitamente todo o
Capítulo VII (que inclui os artigos 59 a 73) do antigo Decreto-Lei de 1940, disposição
não modificada pela Lei 9.457/97, que alterou vários pontos da lei das S.A.’s.

Entretanto, a nova Lei de Introdução do Código Civil, Decreto-Lei 4.657, de


1942, que substituiu a de 1916, estabeleceu, em seu art. 11, FDSXW e parágrafo 1º,
critérios para a atribuição da nacionalidade a uma sociedade:

$UW $V RUJDQL]Do}HV GHVWLQDGDV D ILQV GH LQWHUHVVH FROHWLYR FRPR


DV VRFLHGDGHV H DV IXQGDo}HV REHGHFHP j OHL GR (VWDGR HP TXH VH
FRQVWLWXtUHP3DUiJUDIRž1mRSRGHUmRHQWUHWDQWRWHUQR%UDVLOILOLDLV
DJrQFLDV RX HVWDEHOHFLPHQWRV DQWHV GH VHUHP RV DWRV FRQVWLWXWLYRV
DSURYDGRVSHOR*RYHUQREUDVLOHLURILFDQGRVXMHLWDVjOHLEUDVLOHLUD

Apesar de não se referir explicitamente a “pessoas jurídicas”, como o art. 21


da antiga Lei de Introdução, a perífrase “organizações destinadas a fins de interesse
coletivo, como as sociedades e as fundações” é unanimemente interpretada como
sinônimo de “pessoa jurídica”. Desse modo, a Lei de Introdução ao Código Civil
considera que o reconhecimento da personalidade jurídica e a determinação da
capacidade das empresas decorre da sua lei nacional, sendo a nacionalidade
determinada pelo país de sua constituição; é um sistema idêntico ao britânico. Além
disso, separa, como coisas distintas, o reconhecimento da pessoa jurídica
estrangeira e o seu funcionamento no Brasil: o reconhecimento deriva
exclusivamente da lei de sua nacionalidade, reconhecendo-se automaticamente no
Brasil quaisquer sociedades que tenham sido registradas no país de sua
incorporação; o funcionamento no Brasil, contudo, liga-se à aprovação de seus
estatutos por parte do governo brasileiro, bem como à sua submissão às leis
brasileiras (ou seja, à autorização, por parte do governo brasileiro, para que aqui
funcione, implicando tal autorização a subordinação total às leis brasileiras). O
parágrafo único do art. 11 do Decreto-Lei 4.657/42 liga-se, assim, ao art. 68 do
Decreto-Lei 2.627/40.

No que tange à nacionalidade da pessoa jurídica, o disposto no art. 11 da Lei


de Introdução do Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42), aparentemente, contraria o
estatuído no art. 60 da (antiga) lei das sociedades por ações (Decreto-Lei 2.627/40).
De fato, o art. 11 utiliza cristalinamente o critério da LQFRUSRUDomR para fixar a
nacionalidade de uma pessoa jurídica estrangeira, ao passo que o art. 60 (ao exigir
que a VHGHGDDGPLQLVWUDomR se situe no Brasil) utiliza claramente o critério da VHGH
VRFLDO para definir uma sociedade como brasileira. Após prolongadíssimos debates,
a tendência tanto da doutrina quanto da jurisprudência foi no sentido de não
considerar as duas normas como conflitantes, conciliando-as da forma que segue:
as disposições dos artigos 11 e 60 não devem ser encaradas como conflitantes, mas
sim como complementares; o art. 11 fixa a nacionalidade da pessoa jurídica no plano
do Direito Internacional Privado, adotando o critério da incorporação; o art. 60

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estabelece que, para ser considerada brasileira, a empresa, além de se constituir no


Brasil, deverá estabelecer em território nacional a sede de sua administração.
Assim, por exemplo, uma empresa que se tenha incorporado no país “A” mas que
estabeleça sua sede social no país “B” será considerada, pelo Brasil, como uma
sociedade do país “A”, daí derivando sua nacionalidade e sua capacidade; contudo,
uma sociedade que se constitua no Brasil mas que aqui não possua a sua sede
social não será considerada brasileira, e esse raciocínio se coaduna com a
constatação de que as autoridades brasileiras jamais registrarão uma sociedade no
Brasil se ela não fixar sua sede social em território nacional. Há, assim, um critério
dualista que, por um lado, define a nacionalidade das pessoas jurídicas, em geral,
de acordo com o critério da incorporação, e, por outro, outorga a nacionalidade
brasileira à empresa que no Brasil se constitua e aqui tenha a sua sede social. Tal
entendimento foi confirmado pela posterior legislação, visto a nova lei das
sociedades por ações (lei 6.404/74), em seu art. 300, manter expressamente em
vigor os artigos 59 a 73 do antigo Decreto-Lei de 1940.

Note-se apenas que o parágrafo único do art. 60 do Decreto-Lei de 1940


perdeu seu objetivo diante da nova legislação nacional, que não mais admite ações
ao portador.

Além do duplo critério mencionado acima, o do local de incorporação para


definir a nacionalidade de uma sociedade estrangeira e o da sede social para
considerar uma sociedade como brasileira, estão presentes na legislação nacional
uma série de dispositivos relativos ao critério do controle. Tais dispositivos podem
ser, didaticamente, divididos em dois conjuntos: um com o objetivo de impedir ou
restringir a atividade de empresas controladas por capitais estrangeiros em
determinadas áreas consideradas como imprescindíveis à segurança nacional; outro
com o objetivo de mitigar possíveis abusos que uma aceitação incondicional do
critério da incorporação poderia trazer à correta determinação do PRGXVRSHUDQGL de
uma sociedade, tendo em vista coibir fraudes à lei ou abusos de direito.

Do segundo conjunto falar-se-á no Capítulo V. Com relação ao primeiro,


deve-se notar que muitas de suas disposições vêm sendo erodidas pelas novas
realidades econômicas de um mundo globalizado, bem como pela necessidade
sempre premente do país de investimentos estrangeiros, especialmente os de infra-
estrutura e de longo prazo, tais que impulsionem e sustentem de maneira equilibrada
o seu desenvolvimento. O mais contundente exemplo dessa nova tendência diz
respeito ao art. 171, parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal de 1988, onde se
fixavam regras de proteção e benefícios às empresas brasileiras de capital nacional,
distinguindo-as das empresas brasileiras cujo capital era controlado por estrangeiros
(situação análoga à tendência jurisdicional francesa): a Emenda Constitucional nº 6,
de 15 de agosto de 1995, revogou o art. 171, terminando tal distinção.

$1DFLRQDOLGDGHFRPR3HUFHSomRGR0HUFDGR

Ao longo do presente Capítulo, ao se tratar da nacionalidade da pessoa


jurídica, sempre se a ligou à interpretação soberana do Estado, que poderia
escolher, para definir a nacionalidade de uma companhia, qualquer critério que

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 51
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julgasse razoável (incorporação, sede social, controle, ou qualquer outro); mais


ainda, uma determinada sociedade poderia possuir várias nacionalidades, ou
nenhuma. Quer-se aqui falar brevissimamente acerca de um novo ator, igualmente
capaz de conceder a uma pessoa jurídica uma nacionalidade: o mercado, mais
especificamente o mercado transnacional globalizado.

Tal “ente” (e trata-se de um ente, já que existe, embora não se tenha ainda
corporificado – eis aí mais uma entidade sem personalidade...) opera por consenso,
mas é dotado de uma percepção da realidade que, de longe, ultrapassa a de
qualquer instituição, ou mesmo governo, mercê da estupenda interligação dos
mercados e do espantoso desenvolvimento das tecnologias de informação e de
previsão. Lida corriqueira e quotidianamente com uma imensidade de dados, os
quais rápida e rotineiramente organiza numa enorme quantidade de informações. É,
assim, perfeitamente capaz de atribuir, se quiser, nacionalidade às pessoas
jurídicas; e há de querer, porque, mesmo sendo supra e transnacional, a percepção
da maioria das pessoas que o compõem ainda é moldada por ordenamentos
jurídico-político-ideológicos de índole nacional; de tal herança não se escapa
facilmente, como as guerras e os preconceitos dos dias atuais tão tristemente
confirmam.

Partindo-se da racionalidade e do pragmatismo que caracteriza o mercado no


seu conjunto (ao menos nos seus bons momentos), parece ser razoável supor-se
que este seguirá dois princípios basilares no estabelecimento da nacionalidade da
pessoa jurídica:

ž (VWDEHOHFHUi XPD~QLFDQDFLRQDOLGDGH SDUD FDGD HPSUHVD SRUTXH


VHQGRHVWDFRQWURODGDSRUVHUHVKXPDQRV VyFLRVRXDGPLQLVWUDGRUHV H
VHQGRVHPSUHRVVHUHVKXPDQRVDQLPDLVVRFLDLVKDYHUiXPDIRUPDomR
VRFLDO TXH PHOKRU UHSUHVHQWD RV DQVHLRV H RV LQWHUHVVHV GHVVHV
FRQWURODGRUHVHSRUWDQWRRVGDSHVVRDMXUtGLFD

ž  $R FRQWUiULR GR (VWDGR TXH DWULEXL QDFLRQDOLGDGH D XPD SHVVRD


MXUtGLFD D ILP GH GHOLPLWDUOKH GLUHLWRV H GHYHUHV DJUHJDQGRD D XP
RUGHQDPHQWR MXUtGLFR HVSHFtILFR R PHUFDGR DWULEXLUi QDFLRQDOLGDGH D
XPD SHVVRD MXUtGLFD FRPR XP FULWpULR DGLFLRQDO SDUD DYDOLDUOKH RV
ULVFRV

Por agora, será suficiente o lançamento desta idéia, a qual espera-se


explicitar no próximo Capítulo.

2V/LPLWHVj3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

Até ao presente instante, pôde-se apresentar a personalidade jurídica em


toda a sua evolução e com todas as suas características, inclusive com
comparações geográficas, contrapondo-se tal conceito ao da entidade dotada de
patrimônio próprio e, portanto, de escrituração distinta. Toda a exposição anterior
procurou mostrar que o conceito contábil da entidade é não apenas distinto do da
personalidade jurídica, mas mais geral do que ele, sendo capaz, por si só, de
permitir a vida das sociedades comerciais; mostrou-se, igualmente, que a
personalidade jurídica é uma construção teórica de tessitura muito mais delicada e

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artificial do que o robusto princípio do ente econômico corporificado dotado de


escrituração própria para o registro de seu patrimônio e de suas variações. Para
concluir o presente trabalho, analisar-se-ão, a partir de agora, os limites aos quais se
deve submeter o instituto da personalidade jurídica, em razão da sua história
constitutiva e das concessões que os Estados houveram por bem lhe conceder.

/LPLWHV,QWUtQVHFRVj3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

Um primeiro grupo constitui-se de limites que são intrínsecos às pessoas


jurídicas, e de tal modo aderentes ao seu corpo social que, muitas vezes, passam
despercebidos. Todos esses limites podem ser definidos numa única frase: D
HPSUHVD GRWDGD GH SHUVRQDOLGDGH MXUtGLFD GHYH VHU GH IDWR DTXLOR TXH SURFODPD
VHUDILPGHFXPSULURVHXSDSHOQR(VWDGRTXHDDOEHUJD.

VI.1.a) Um Princípio Geral: a Relevância Social das Empresas, o Predomínio da


Forma sobre o Conteúdo e a Submissão à Lei:

Aqueles que defendem a separação entre a personalidade das empresas e a


dos seus sócios sempre começam suas arengas por citar o art. 20 da Lei de
Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42), FDSXW: “as pessoas jurídicas têm
existência distinta da dos seus membros”. Tal princípio é verdadeiro, e, espera-se,
sempre aplicável nas condições normais; contudo, não é, e nem pode ser, um
princípio absoluto, pois nessa mesma lei, no art. 5º, pode-se ler que “na aplicação da
lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum”. Assim sendo, toda lei tem um fim social (isto é, tem que atender a uma
demanda do corpo social, da nação), e sempre objetiva o bem comum. Quando o
ordenamento jurídico (em última análise, o Estado) outorga às pessoas jurídicas
uma existência separada e distinta da dos seus sócios e/ou administradores, não o
faz graciosamente, mas para que utilizem tal prerrogativa contribuindo para o
desenvolvimento da nação e para o aprimoramento do bem comum. Desse modo,
qualquer uso da personalidade jurídica que prejudique o desenvolvimento da nação,
ou comprometa o bem comum, não pode ser tolerado; nesses casos, a mesma mão
que concedeu retira a concessão mal utilizada. A personalidade jurídica não é um
dom gratuito, assim como a limitação da responsabilidade não é uma dádiva do céu
– ambos configuram-se como concessões condicionais das nações, personificadas
pelo Estado concedente.
Tanto é assim, tanto se devem subordinar as empresas às suas funções na
sociedade que as alberga, que inúmeros dispositivos legais, no caso em que as
empresas mostram-se incapazes de cumprir as obrigações para com o bem comum,
dissolvem as fronteiras da personalidade jurídica e da responsabilidade limitada;
podem ser considerados, a título meramente ilustrativo, os exemplos elencados a
seguir.

Na Consolidação das Leis do Trabalho, reza o parágrafo 2º do art. 2º:

³6HPSUH TXH XPD RX PDLV HPSUHVDV WHQGR HPERUD FDGD XPD GHODV
SHUVRQDOLGDGH MXUtGLFD SUySULD HVWLYHUHP VRE D GLUHomR FRQWUROH RX
DGPLQLVWUDomR GH RXWUD FRQVWLWXLQGR JUXSR LQGXVWULDO FRPHUFLDO RX GH
TXDOTXHU RXWUD DWLYLGDGH HFRQ{PLFD VHUmR SDUD RV HIHLWRV GD UHODomR GH

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HPSUHJRVROLGDULDPHQWHUHVSRQViYHLVDHPSUHVDSULQFLSDOHFDGDXPDGDV
VXERUGLQDGDV´

Na Lei de Falências (Decreto-Lei nº 7.661/45, atualizado até à lei 9.462/97):

³$UW ž $ UHVSRQVDELOLGDGH VROLGiULD GRV GLUHWRUHV GDV VRFLHGDGHV


DQ{QLPDV H GRV JHUHQWHV GDV VRFLHGDGHV SRU FRWDV GH UHVSRQVDELOLGDGH
OLPLWDGD HVWDEHOHFLGD QDV UHVSHFWLYDV OHLV D GRV VyFLRV FRPDQGLWiULRV
&yGLJR &RPHUFLDO DUW   H D GR VyFLR RFXOWR &yGLJR &RPHUFLDO DUW
 VHUmRDSXUDGDVHWRUQDUVHmRHIHWLYDVPHGLDQWHSURFHVVRRUGLQiULR
QRMXt]RGDIDOrQFLDDSOLFDQGRVHDRFDVRRGLVSRVWRQRDUWSDUiJUDIR
ž  3DUiJUDIR ÒQLFR 2 MXL] D UHTXHULPHQWR GR VtQGLFR SRGH RUGHQDU R
VHTHVWURGHEHQVTXHEDVWHPSDUDHIHWLYDUDUHVSRQVDELOLGDGH´

No âmbito fiscal, dispõe o Código Tributário Nacional, no inciso II de seu art.


135, que “... são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a
obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou
infração da lei, contrato social ou estatutos (...) os diretores, gerentes ou
representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”

Na esfera previdenciária, dispõe o art. 13 da lei 8.620/93, com seu parágrafo


único, que “... o titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de
responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos
débitos junto à Seguridade Social. (...) Os acionistas controladores, os
administradores, os gerentes e os diretores respondem solidariamente e
subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto a inadimplemento das
obrigações para com a Seguridade Social, por dolo ou culpa.”

A lei 8.884/94 (Lei de Proteção da Concorrência, ou Lei Antitruste, ou Lei


contra o Abuso do Poder Econômico) exibe uma série de dispositivos da mesma
ordem:

$UW ž (VWD /HL GLVS}H VREUH D SUHYHQomR H D UHSUHVVmR DV LQIUDo}HV
FRQWUD D RUGHP HFRQ{PLFD RULHQWDGD SHORV GLWDPHV FRQVWLWXFLRQDLV GH
OLEHUGDGHGHLQLFLDWLYDOLYUHFRQFRUUrQFLDIXQomRVRFLDOGDSURSULHGDGH
GHIHVD GRV FRQVXPLGRUHV H UHSUHVVmR DR DEXVR GR SRGHU HFRQ{PLFR
3DUiJUDIRÒQLFR$FROHWLYLGDGHpDWLWXODUGRVEHQVMXUtGLFRVSURWHJLGRV
SRUHVWD/HL

$UW ž $SOLFDVH HVWD /HL VHP SUHMXt]R GH FRQYHQo}HV H WUDWDGRV GH
TXHVHMDVLJQDWiULRR%UDVLOjVSUDWLFDVFRPHWLGDVQRWRGRRXHPSDUWH
QRWHUULWyULRQDFLRQDORXTXHQHOHSURGX]DPRXSRVVDPSURGX]LUHIHLWRV
3DUiJUDIR ÒQLFR 5HSXWDVH VLWXDGD QR 7HUULWyULR 1DFLRQDO D HPSUHVD
HVWUDQJHLUD TXH RSHUH RX WHQKD QR %UDVLO ILOLDO DJHQFLD VXFXUVDO
HVFULWyULRHVWDEHOHFLPHQWRDJHQWHRXUHSUHVHQWDQWH

$UW  (VWD /HL DSOLFDVH jV SHVVRDV ItVLFDV RX MXUtGLFDV GH GLUHLWR
S~EOLFRRXSULYDGREHPFRPRDTXDLVTXHUDVVRFLDo}HVGHHQWLGDGHVRX
SHVVRDVFRQVWLWXtGDVGHIDWRRXGHGLUHLWRDLQGDTXHWHPSRUDULDPHQWH
FRPRXVHPSHUVRQDOLGDGHMXUtGLFDPHVPRTXH H[HUoDPDWLYLGDGHVRE
UHJLPHGHPRQRSyOLROHJDO

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$UW$VGLYHUVDVIRUPDVGHLQIUDomRGDRUGHPHFRQ{PLFDLPSOLFDPD
UHVSRQVDELOLGDGH GD HPSUHVD H D UHVSRQVDELOLGDGH LQGLYLGXDO GH VHXV
GLULJHQWHVRXDGPLQLVWUDGRUHVVROLGDULDPHQWH

$UW  6HUmR VROLGDULDPHQWH UHVSRQViYHLV DV HPSUHVDV RX HQWLGDGHV


LQWHJUDQWHV GH JUXSR HFRQ{PLFR GH IDWR RX GH GLUHLWR TXH SUDWLFDUHP
LQIUDomRGDRUGHPHFRQ{PLFD

$UW$SHUVRQDOLGDGHMXUtGLFDGRUHVSRQViYHOSRULQIUDomRGDRUGHP
HFRQ{PLFD SRGHUi VHU GHVFRQVLGHUDGD TXDQGR KRXYHU GD SDUWH GHVWH
DEXVRGHGLUHLWRH[FHVVRGHSRGHULQIUDomRGDOHLIDWRRXDWRLOtFLWRRX
YLRODomR GRV HVWDWXWRV RX FRQWUDWR VRFLDO $ GHVFRQVLGHUDomR WDPEpP
VHUi HIHWLYDGD TXDQGR KRXYHU IDOrQFLD HVWDGR GH LQVROYrQFLD
HQFHUUDPHQWR RX LQDWLYLGDGH GD SHVVRD MXUtGLFD SURYRFDGRV SRU PD
DGPLQLVWUDomR

Por fim, tem-se a disposição do art. 25 (FDSXW e parágrafo 5º) do Código de


Defesa do Consumidor (lei 8.078/90):

³2 -XL] SRGHUi GHVFRQVLGHUDU D SHUVRQDOLGDGH MXUtGLFD GD VRFLHGDGH


TXDQGRHPGHWULPHQWRGRFRQVXPLGRUKRXYHDEXVRGHGLUHLWRH[FHVVRGH
SRGHU LQIUDomR GD OHL IDWR RX DWR LOtFLWR RX YLRODomR GRV HVWDWXWRV RX
FRQWUDWR VRFLDO $ GHVFRQVLGHUDomR WDPEpP VHUi HIHWLYDGD TXDQGR KRXYHU
IDOrQFLD HVWDGR GH LQVROYrQFLD HQFHUUDPHQWR RX LQDWLYLGDGH GD SHVVRD
MXUtGLFDSURYRFDGRVSRUPiDGPLQLVWUDomR3DUiJUDIRž7DPEpPSRGHUi
VHUGHVFRQVLGHUDGDDSHVVRDMXUtGLFDVHPSUHTXHVXDSHUVRQDOLGDGHIRUGH
DOJXPD IRUPD REVWiFXOR DR UHVVDUFLPHQWR GH SUHMXt]RV FDXVDGRV DRV
FRQVXPLGRUHV´

Deve-se notar a progressiva sedimentação do entendimento do Superior


Tribunal de Justiça a respeito de a relação entre os bancos e seus clientes também
se submeter ao Código de Defesa do Consumidor, conforme julgamento do Recurso
Especial nº 57.974-0, publicado no Diário da Justiça aos 29 de maio de 1995, bem
como outros julgados posteriores. De fato, entendeu o Superior Tribunal de Justiça
que “... os bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no
art. 3º, parágrafo 2º, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do
Consumidor. A circunstância de o usuário dispor do bem recebido através de
operação bancária, transferindo-a a terceiros, em pagamento de outros bens ou
serviços, não o descaracteriza como consumidor final dos serviços prestados pelo
banco.”

$'LVVRFLDomRHQWUH$FLRQLVWDVH$GPLQLVWUDGRUHVQDV6RFLHGDGHVGH&DSLWDO

Quando a pessoa jurídica é caracterizada como uma sociedade de capital, ou


seja, no caso brasileiro, quando é uma sociedade anônima regida pela lei 6.404/76,
com as modificações nela introduzidas pela lei 9.457/97, o elemento basilar de sua
constituição é a distinção entre os acionistas, detentores dos títulos livremente
negociáveis (ações) e os administradores, que são os que conduzem os negócios da
sociedade. Tal distinção, aliada à relativa pulverização de ações que se espera
ocorrer, à constatação de que os sócios não interferem, via de regra, na condução
do dia-a-dia dos negócios, sendo, além disso, muitas vezes, pouco versados nos
assuntos técnico-administrativos da operação social, é que justifica a limitação de

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9 e 10 de novembro de 2000

sua responsabilidade ao montante das ações por eles adquiridas (art. 1º da lei
6.404/76). É, aliás, essa característica que lhe justifica o nome “anônima”. Numa
sociedade anônima, muito mais importantes para a condução dos negócios são os
administradores e fiscais, e suas responsabilidades são, assim, proporcionalmente
elevadas. Deve-se notar, contudo, que a distinção entre acionistas e
administradores, embora a razão de ser da sociedade anônima, não impede que
acionistas sejam membros da administração; nesse caso, suas responsabilidades
serão as dos administradores.

Prevendo a possibilidade, mesmo nas sociedades anônimas, da concentração


das ações, ao invés da desejada pulverização, a lei 6.404/76 criou a figura do
acionista controlador, o qual responde também por danos causados por abuso de
poder (art. 117), quais sejam, entre outros: o desvio da finalidade da companhia,
levando-a para fim estranho ao objeto social, ou lesivo ao interesse nacional; a
liqüidação de sociedade próspera; a eleição de administrador ou fiscal que saiba
inepto, moral ou tecnicamente, ou que deveria saber, pela notoriedade do fato, etc.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência estabelecem que, nesse campo, também o
contorno à lei caracteriza-se como abuso do poder. A doutrina, adicionalmente,
entende que a responsabilização do acionista controlador por abuso de poder
independe de prova de intenção.

O administrador de uma sociedade anônima não é pessoalmente responsável


pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de
gestão (art. 158); contudo, responde civilmente pelos atos que praticar quando
proceder com culpa ou dolo, mesmo dentro de suas atribuições e poderes, ou
quando proceder com violação à lei ou aos estatutos da companhia (art. 158, incisos
I e II). Adicionalmente, o administrador de uma sociedade anônima está preso ao
chamado 'HYHU GH 'LOLJrQFLD (art. 153), devendo empregar, no exercício de suas
funções, “... o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar
na administração dos seus próprios negócios”; no exercício do Dever de Diligência,
determina a lei que o administrador “... exerça suas atribuições com vistas à
realização dos fins e interesses da companhia, VDWLVIHLWDV DV H[LJrQFLDV GR EHP
S~EOLFRHGDIXQomRVRFLDOGDHPSUHVD” (art. 154, grifos nossos).

Além do Dever de Diligência, está o administrador de uma sociedade anônima


preso ao 'HYHUGH/HDOGDGH (art. 155), não podendo utilizar, em proveito próprio ou
de terceiro, informação pertinente aos planos ou interesse da Companhia, aos quais
possa ter tido acesso em virtude do cargo que ocupa, agindo sempre com lealdade
para com aquela; deve ainda (art. 156) abster-se de intervir em qualquer operação
social em que tiver interesse conflitante com o da Companhia, bem como na
deliberação que a respeito tomar o órgão no qual tenha assento.

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$5HVSRQVDELOLGDGH/LPLWDGDGRV6yFLRVFRPR&RQFHVVmR(VSHFLDOGR(VWDGR
QDV6RFLHGDGHVGH3HVVRDV

No caso das sociedades de pessoas, interessa ao presente estudo a


sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Nesse tipo de sociedade, não
há dissociação entre os sócios e os administradores; teoricamente falando, todas as
vezes que um sócio quiser manter controle pessoal, bem como atuar diretamente, na
condução dos negócios de uma companhia, a ela ligando o prestígio de seu nome,
deve optar pela constituição de uma sociedade por quotas de responsabilidade
limitada. E, não havendo dissociação entre propriedade e administração, a sua
limitação de responsabilidade afigura-se muito mais claramente do que nas
anônimas como uma concessão do Estado, a ser utilizada, além do lucro individual e
continuidade da companhia, para o bem comum.

Formalmente, a responsabilidade da companhia para com dívidas ou


obrigações assumidas é ilimitada; a responsabilidade dos sócios, contudo, é limitada
ao total do capital social, desde que este tenha sido totalmente integralizado; se este
tiver sido totalmente integralizado, nada mais se poderá exigir dos sócios para
pagamento das dívidas sociais (Decreto 3.708/19, art. 2º).

Tal sociedade é administrada por um ou mais sócios, que são denominados


sócios-gerentes, cabendo-lhes executar a vontade da pessoa jurídica como se
fossem órgãos sociais; se o contrato social nada dispuser a respeito, todos os sócios
são considerados gerentes. Não é permitido que pessoas estranhas à sociedade
exerçam a gerência. O sócio-gerente é responsabilizado pessoalmente (ou seja,
transforma-se num sócio de responsabilidade ilimitada) quando praticar atos
contrários aos seus deveres, à lei ou ao contrato social, e que não foram autorizados
ou ratificados pelos demais sócios, isto é, quando violar a lei ou o contrato social, ou
extrapolar os poderes que lhe foram confiados.

$EXVRVGD3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

O conceito da personalidade jurídica distinta da dos sócios e/ou


administradores não é absoluto, conforme os poucos exemplos listados no item
anterior devem ter deixado claro. Às limitações que o ordenamento jurídico impõe
às atividades das empresas, procurando direcioná-las para o bem comum, somam-
se as várias medidas de relativização de sua independência como entes distintos
entre si, ou com relação a seus controladores ou administradores, em situações
especiais. As precauções da legislação não são exageradas; neste item, analisar-
se-ão os tipos mais comuns de abusos que podem ser cometidos sob a égide das
pessoas jurídicas, com especial ênfase às instituições financeiras, por serem estas
as que, mais expostas à globalização da economia e ao extraordinário crescimento
dos fluxos monetários transnacionais, expõem-se mais facilmente a assumir um
comportamento anti-social e comprometedor da própria prosperidade do Estado.
Com efeito, se é difícil, por exemplo, a uma indústria (seja ela extrativa, seja de bens
de produção, seja de bens de consumo), ou a um empreendimento agro-pastoril,
parecerem algo diferente daquilo que são, empresas não diretamente ligadas ao que
se convencionou chamar “setor produtivo”, muito mais por sua própria flexibilidade e

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suas características operacionais do que por qualquer maldade intrínseca, podem vir
a se utilizar do instituto da personalidade jurídica para fins não previstos no
ordenamento jurídico. Quanto a isso, os abusos a serem analisados são,
usualmente, de três tipos.

3ULPHLUR7LSRGH$EXVRRX$EXVR,QWUtQVHFR
D)RUPD&RQVWLWXWLYDFRPR,UUHDOLGDGH

Um primeiro tipo de abuso é constituir-se uma pessoa jurídica de uma


determinada forma apenas por simulacro. A principal modalidade de tal abuso são
as sociedades anônimas que se comportam como sociedades por quotas de
responsabilidade limitada, ou, mais ainda, como comanditas. Nunca é demais
lembrar que as sociedades anônimas têm tal nome por se constituírem em
sociedades de capital, e não de pessoas; nelas, há uma nítida clivagem entre os
sócios e os administradores. Dentro de tal óptica, a sociedade anônima que mais se
aproxima do arquétipo para o qual foi criada, e que representa o mais sublime esteio
da livre iniciativa, é aquela com o capital pulverizado e negociado em Bolsas de
Valores, e com administradores profissionais, que não são sócios; quanto mais ela
se afasta desse arquétipo, mais a forma se torna uma casca oca, um simulacro sem
substância. Elas, com efeito, deixam de ser anônimas, passam a ficar, mais e mais,
ligadas a nomes, a pessoas, e não administradores, mas sócios-administradores.
Quando tal ocorre, todo o complexo e delicado edifício legislativo, erguido para
salvaguardar os interesses dos sócios, em contraposição aos possíveis abusos da
administração, bem como para informar o público potencialmente investidor
(assembléias, conselhos, forma de publicidade e publicação dos demonstrativos
contábeis, etc.) perde a razão de ser: para quê assembléias, se um pequeno grupo
sempre decidirá o que quiser, e há de eleger quem achar conveniente para os
órgãos da administração? Para quê ampla publicidade das demonstrações, se as
ações, muitas vezes, nem sequer são negociadas em Bolsa? Para quê conselhos
fiscais, se eles, muitas vezes, são formados pelos próprios acionistas-controladores-
administradores, ou por pessoas de sua inteira confiança? São anônimas no nome,
e em mais nada. Ouve-se, amiúde, a expressão “sócios minoritários”, e sempre se
alardeia que tudo é feito para os proteger. Esquece-se que a melhor proteção para
os minoritários é que todos sejam minoritários, é que o capital seja pulverizado.
Qualquer medida efetiva para a proteção dos minoritários, se é isso que se quer,
passa por incentivos sérios à pulverização e à abertura do capital, bem como à
profissionalização da administração – em suma, passa por fazer com que a
sociedade anônima realmente opere como uma sociedade anônima.

Pode-se sempre argumentar que não há nada de absolutamente ilegal numa


sociedade anônima de capital fechado, constituída de poucos sócios que, em
conjunto, controlam a maioria das, ou todas as, ações com direito a voto; mais ainda,
pode-se argüir que, muitas vezes, a forma anônima é imposta por lei, e independe
do desejo daqueles que a constituem. Tudo isso é certo, mas cumpre ressaltar que:
D o silêncio da lei, ou a sua tolerância, não significa, necessariamente, a aprovação
ilimitada; quando uma coisa tem a aparência daquilo que não é, perde-se muito da
sua transparência e credibilidade, para não falar dos mecanismos de controle que a
sociedade possa vir a ter sobre tal ente; e E se a legislação impôs, para certas

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atividades, que as empresas haveriam de se constituir como anônimas, não o fez,


certamente, com a intenção de criar aberrações, mas sim para que, nesses campos,
julgados de vital importância para a nação, as empresas que neles atuassem
pudessem se constituir dentro das formas mais modernas e transparentes que o
sistema capitalista e o regime da livre iniciativa pudessem vir a oferecer.

No seu comportamento, muitas dessas anônimas mais se remetem às antigas


sociedades por nome coletivo, ou às comanditas, do que, mesmo, às sociedades por
quotas de responsabilidade limitada. Se é possível tolerar tal prática em condições
normais da atividade econômica (e o Estado que o faz, o faz por sua conta e risco),
em condições de crise essas sociedades de índole teratológica são um perigo e uma
ameaça muito maiores que as suas congêneres antecessoras, porque passam por
aquilo que não são, gerando uma falsa impressão de segurança e de conformidade
às determinações do ordenamento jurídico.

Pois, numa sociedade em nome coletivo, as coisas são claras: é uma


sociedade em que há tudo a ganhar e tudo a perder; ao menos esta última
possibilidade serve, de algum modo, como freio. Nas comanditas, o comanditário
sabe exatamente qual é o seu lugar, o que pode e o que não pode esperar; ele não
é enganado nem aliciado; é um sócio de segunda classe, e sabe disso; não interfere
nos negócios da empresa, e, em contrapartida, sua responsabilidade é limitada. Se,
diante da responsabilidade ilimitada, muitos ainda cometiam loucuras, quanto mais
não cometerão quando podem erguer entre si e a sociedade o muro de
“personalidades” distintas?

E agora, nos dias de hoje, há sociedades que se apodam de “anônimas”, mas


que são formadas por um pequeno grupo de pessoas (ou, pior, de empresas de
participação, ligadas, por sua vez, a outras empresas de participação, e assim até ao
infinito, sem que, muitas vezes, se consigam vislumbrar as pessoas físicas por trás
disso), as quais controlam virtualmente todas as ações com poder de voto, bem
como, muitas vezes, uma parte não negligenciável das ações sem direito a voto,
ditas preferenciais; e uma plétora de “sócios” com pequenas participações
individuais em ações preferenciais, sem direito a voto. Isso, diga-se o que se quiser
dizer, para todos os efeitos práticos é uma comandita, não uma sociedade anônima.
Numa crise, comportar-se-á como uma sociedade de pessoas; de fato, está
totalmente à mercê de um grupo de pessoas. O mínimo que se poderia esperar,
nesses casos, é que sua responsabilidade fosse ilimitada.

6HJXQGR7LSRGH$EXVRRX$EXVR2SHUDFLRQDO&RQJORPHUDGRVH
3DUWLFLSDo}HVFRPR/DELULQWRVVHP6DtGDV

Um labirinto é uma construção cuja finalidade é enganar; sua arquitetura


subordina-se inteiramente a essa função. Assim, encontram-se corredores que dão
em outros corredores, sem levar a nenhum destino; becos sem saída além dos quais
é impossível prosseguir; inúmeras simetrias em salas, escadas e passagens, não
para fins estéticos, mas para enganar e tornar difícil saber-se exatamente em que
parte se está.

58
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Um segundo tipo de abuso ao princípio da personalidade jurídica é entretecer


uma série de empresas num labirinto ao qual se dá o nome de Conglomerado;
nesses Conglomerados não hão de se encontrar apenas empresas efetivamente
ligadas entre si, e que para isso possuam uma boa e sólida razão, unindo esforços
para a consecução mais eficaz de finalidades lícitas (empresas coligadas; empresas
controladas e controladoras; subsidiárias integrais e suas controladoras integrais),
mas também empresas que participam umas nas outras, e as outras nas primeiras,
passando por várias intermediárias; e, até mesmo, essa quintessência do nada, as
“holdings” puras, empresas cujo único objeto social é a participação no capital de
outras, quaisquer que sejam elas. Lá também podem se albergar empresas que não
são formalmente ligadas a outras (sejam coligadas, controladas ou subsidiárias
integrais), mas cujo vínculo se dá apenas pela figura de sócios comuns, sócios
esses que também podem ser empresas, inclusive “holdings” puras; mais ainda,
podem também lá aninhar-se empresas que, formalmente, não são ligadas entre si
nem formalmente, nem por sócios comuns, nem sequer por administradores
comuns, mas sim por sócios que, por sua vez, são indiretamente ligados, por algum
instrumento legal (promissórias, empréstimos, ou o que seja), aos sócios das
primeiras... As possibilidades são infinitas, como infinita é a criatividade daqueles
que constróem essas redes.

Quando a legislação não impõe nenhuma limitação à constituição de


conglomerados (por exemplo, quando a legislação permite que empresas financeiras
e não-financeiras possam fazer parte de um mesmo Conglomerado), a situação
torna-se proporcionalmente muito mais complexa. Deve-se notar que, se a
legislação não impõe limites ao modo como serão constituídos Conglomerados, e
nem ao tipo de empresas que os podem compor, não o faz, certamente, para
estimular a confusão e a simulação, mas sim para incentivar a livre iniciativa,
dotando-a de poderosos instrumentos com os quais possa promover a prosperidade
da nação e o bem social, mercê de união de esforços e economias de escala.

No caso específico das instituições financeiras, e tendo em vista a liberdade


que vem sempre caracterizando, no país, a constituição de Conglomerados, nos
quais podem coexistir instituições financeiras, empresas não-financeiras, “holdings”
puras e empresas ligadas apenas por sócios e/ou administradores comuns, tanto o
legislador quanto a autoridade monetária sempre procuraram certificar-se de que
esses conjuntos cumprissem a sua função social, quer limitando alguns tipos de
transações entre empresas ligadas, quer procurando sempre mapear tais conjuntos
da forma mais fiel possível.

De fato, a legislação pertinente ao Sistema Financeiro Nacional sempre


proibiu o empréstimo a ligadas, no interesse não apenas da transparência do
Sistema, mas também como um meio eficaz de controlar riscos indesejáveis e
injustificáveis. Entende-se por “empréstimo a ligada”, a conduta tipificável por uma
dupla capitulação legal, nomeadamente a da lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro
Nacional), art. 34, incisos IV e V, e a da lei 7.492/86 (Lei dos Crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional, dita Lei do Colarinho Branco), artigos 17 e 25. Os
incisos IV e V do art. 34 da lei 4.595/64 vedam às instituições financeiras conceder
empréstimos ou adiantamentos às pessoas jurídicas de cujo capital participem com

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mais de 10% (dez por cento) elas mesmas, ou quaisquer dos diretores ou
administradores da própria instituição financeira, bem como seus cônjuges e
respectivos parentes, até ao segundo grau. O art. 17 da lei 7.492/86 define como
um dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (com pena de reclusão de dois
a seis anos, e multa) tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art.
25 daquela lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a
controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário, aos respectivos
cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até ao
segundo grau, consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela
exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas; o art. 25,
adicionalmente, assevera que são penalmente responsáveis o controlador e os
administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores e
gerentes, e que se equiparam aos administradores de instituição financeira o
interventor, o liqüidante ou o síndico.

Deve-se notar, adicionalmente, que os empréstimos a ligadas ferem,


potencialmente, três outros dispositivos da lei 7.492/86, configurando, para aqueles
que os tornaram possíveis, três crimes contra o Sistema Financeiro Nacional:
divulgação de informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição
financeira (art. 3º); gerência fraudulenta de instituição financeira (art. 4º); indução em
erro a sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação
ou situação financeira, sonegando-lhes informação ou prestando-a falsamente (art.
6º). Com efeito: D ao se não caracterizar, nas demonstrações financeiras ou nas
informações prestadas ao público, a receptora do empréstimo como ligada (e,
obviamente, tal não será feito), divulga-se informação prejudicialmente incompleta
acerca das operações da instituição financeira; E ao se deferirem empréstimos a
ligadas, atitude, para além de ilegal, arriscada a um nível insuportável para a
harmonia do Sistema Financeiro Nacional (e ilegal justamente por ser
demasiadamente arriscada), arma-se um ardil (elemento subjetivo da fraude) cujo
objetivo último é lesar a poupança popular (elemento objetivo da fraude), estando
presentes, assim, tanto o HYHQWXVGDPQL quanto o FRQVLOLXPIUDXGLV; enfim, F como
conseqüência de informações incompletas e gestão fraudulenta, são induzidos a
erro (por falsa apreensão da realidade operacional da instituição) não apenas sócios
ou a autoridade monetária, mas, principalmente, os que investem seus recursos na
instituição (ou seja, põe-se a risco a poupança popular). Adicionalmente, é de se
notar que a concessão de empréstimo a ligadas constitui-se claramente em abuso
de poder (art. 117 da lei 6.404/76) e em falta ao Dever de Diligência (art. 153 do
citado diploma legal), já comentados.

Essa preocupação está presente nos normativos emanados da autoridade


monetária, eis que a alínea “a” do item IX da Resolução 1.559/88 veda às
instituições financeiras a realização de operações que não atendam aos princípios
de seletividade, garantia, liqüidez e diversificação de riscos; o empréstimo a ligadas,
obviamente, fere tal dispositivo.

A aplicação dos princípios legais e normativos citados supra sofreria


irreparavelmente se não se dispusesse de um aparato normativo adicional que
possibilitasse à autoridade monetária efetivamente mapear os Conglomerados, a fim

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de identificar as empresas, financeiras ou não, que pudessem ser consideradas


ligadas entre si. Tal preocupação, fundamental para a transparência e credibilidade
do Sistema Financeiro Nacional, vem sendo perseguida de há muito; de fato, desde
a confecção das Normas Básicas do Plano Contábil das Instituições do Sistema
Financeiro Nacional, conhecidas como COSIF. O item 21 de tais normas, daqui em
diante denominado COSIF 1.21, versa sobre justamente sobre a Consolidação
Operacional das Demonstrações Financeiras, ou seja, sobre o modo de se obter um
único conjunto de demonstrações contábeis que espelhem a situação patrimonial de
um Conglomerado; de fato, nas palavras do próprio COSIF, tal consolidação tem por
objetivo (COSIF 1.21.1.1) “... apurar informações contábeis de duas ou mais
instituições integrantes de conglomerado financeiro, como se em conjunto
representassem uma única entidade”; logo a seguir (COSIF 1.21.1.2) é definido o
Conglomerado Financeiro, para os fins da referida consolidação operacional:

³&RQJORPHUDGR ILQDQFHLUR SDUD R ILP GD FRQVROLGDomR RSHUDFLRQDO GDV


'HPRQVWUDo}HV )LQDQFHLUDV p R FRQMXQWR GH HQWLGDGHV ILQDQFHLUDV
YLQFXODGDVGLUHWDPHQWH RXQmR SRU SDUWLFLSDomR DFLRQiULD RX SRU FRQWUROH
RSHUDFLRQDO HIHWLYR FDUDFWHUL]DGR SHOD DGPLQLVWUDomR RX JHUrQFLD FRPXP
RXSHODDWXDomRQRPHUFDGRVREDPHVPDPDUFDRXQRPHFRPHUFLDO´

Tal definição é por demais clara, tendo sido, inclusive, objeto de estudo de
trabalho anterior. Deve-se notar que os contornos de atuação dados à supervisão
bancária pelo COSIF 1.21, no que se refere a Conglomerados, são abrangentes
tanto no tipo de instituição (conforme se depreende da definição acima) quanto na
área geográfica; de fato, o COSIF 1.21.1.4, reportando-se ao art. 8º da Circular
2.397/93 e ao art. 2º da Circular 2.571/95, estabelece que “... as demonstrações do
consolidado operacional devem ser elaboradas incluindo dependências e
participações societárias em instituições financeiras, subsidiárias e controladas, no
país e no exterior”. Como principal fonte de informações a esse respeito, dispõe a
supervisão bancária do item 17 do Anexo II da Circular 2.502/94. Tal item obriga,
para os casos de permissão de funcionamento de nova instituição financeira,
transferência de controle acionário, fusão, cisão ou incorporação, que seja informada
à autoridade monetária a existência de participação societária do(s) controlador(es)
e/ou administradores em outras empresas, quando superior a 10% (dez por cento)
do capital votante. A abrangência de tal item é geral, ou seja, compreende, para
cada controlador ou administrador, as participações tanto no país quanto no exterior.

Como se pode depreender de todas as considerações traçadas neste item até


ao presente ponto, ao conceder plena liberdade de constituição aos Conglomerados,
tanto a legislação quanto o arcabouço normativo sob a guarda do Banco Central do
Brasil, responsável pelo mapeamento dos mais complexos e arriscados de todos, os
Conglomerados Financeiros, ou Econômico-Financeiros (sendo estes últimos
considerados como aqueles nos quais se encontra presente ao menos uma
instituição financeira, como tal definida pela lei 4.595/64, ou uma empresa que, para
fins penais, a ela se possa equiparar, conforme estatuído pela lei 7.492/86),
procuraram inequivocamente erigir, de modo simultâneo, leis e normativos que
procurassem impedir ou, ao menos, minorar até ao limite do aceitável, o uso de

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complexas estruturas com o fito de fraude à lei. Quanto a isso, a situação torna-se
mais complexa, mas, ao mesmo tempo, infinitamente mais fascinante e digna de
aprofundados estudos, quando partes do Conglomerado encontram-se no
estrangeiro, isto é, potencialmente fora do alcance das medidas profiláticas da
autoridade monetária brasileira e beneficiando-se, muitas vezes, de concessão de
nacionalidade alienígena pelo critério da incorporação; tal situação será analisada no
item a seguir.

7HUFHLUR7LSRGH$EXVRRX$EXVR*HRJUiILFR
D7HUULWRULDOLGDGHGDV/HLVFRPR(VFXGRGD,OHJDOLGDGH

Tal tipo de abuso vem se tornando mais freqüente, devido à dificuldade que
as supervisões bancárias possuem, no mundo todo, de detectá-lo e, detectando-o,
suprimi-lo. De fato, não se estendendo a autoridade do Estado além de suas
fronteiras, sua mão não poderia alcançar empresas constituintes de Conglomerados
que se situassem no exterior. Se uma dessas empresas pudesse estabelecer-se
num país cujo critério para determinação da nacionalidade fosse a incorporação, e
se as leis desse país proibissem a abertura, para quaisquer autoridades
estrangeiras, das informações referentes às suas captações e aplicações, ter-se-ia
ela transformado, legalmente, numa inacessível “caixa preta”. Países que registram
empresas nesses termos são usualmente conhecidos como “paraísos fiscais”.

Deve-se notar que, nesse caso, a empresa sequer existe fisicamente no


paraíso fiscal, mas nele é somente incorporada (a fim de lhe ganhar a
nacionalidade). No caso brasileiro, tal situação é potencialmente grave, pois,
conforme já se demonstrou neste trabalho, a nacionalidade de uma empresa
estrangeira é aqui determinada pelo critério da incorporação, sendo a capacidade da
pessoa jurídica definida por sua nacionalidade. A título de exemplo, imaginem-se
duas empresas financeiras, “A” e “B”. A empresa “A” tem sua sede no Brasil; seus
sócios decidem criar uma nova empresa, “B”, escolhendo para sede um paraíso
fiscal “X”. Tendo sido incorporada em “X”, preenchendo todas as formalidades
legais, “B” passa a ter, aos olhos da lei brasileira, a nacionalidade de “X”, sendo sua
capacidade regida pelas leis daquele paraíso fiscal. A partir de tal situação, criam-se
infinitas possibilidades de fraude. Se os sócios se dignarem informar à autoridade
monetária brasileira a existência de “B” (pois podem simplesmente não o fazer), nos
termos do disposto no item 17 do Anexo II da Circular 2.502/94, fazendo-a constar
do Conglomerado, ainda assim podem se negar a prestar certas informações aos
encarregados da inspeção bancária, alegando necessidade de obediência à
legislação de “X”. Está criado um impasse.

Note-se que, no exemplo acima citado, há, teoricamente, duas empresas, “A”
e “B”, de nacionalidades distintas e de distintas personalidades jurídicas, regidas
inclusive por leis distintas. Na prática, o que existe é um mero braço de “A”
incorporado em “X”, mas sequer aí presente (usualmente sua presença em “X”
restringe-se a uma caixa-postal e a um procurador local), cuja única função, além de
se beneficiar de eventuais incentivos fiscais, é acobertar uma série de operações
ilícitas à luz da legislação brasileira, ou lesivas ao interesse nacional. Um outro
aspecto, mais terrível, dessa situação diz respeito à proveniência dos recursos de

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“B”: não sendo objeto de investigação por parte da autoridade monetária brasileira,
não há sequer como validar a sua proveniência.

Diante de uma situação tão ingrata, os responsáveis pela supervisão do


sistema financeiro, em todos os países, bem como a autoridade monetária brasileira,
não se têm em absoluto mostrado inertes. No âmbito geral, podem ser citadas as
novas análises e interpretações dos princípios da área criminal e penal do Direito
Internacional Privado, bem como as atividades do Comitê de Supervisão Bancária
da Basiléia, ligado ao Banco Internacional de Compensações; no âmbito nacional, é
digna de menção a absorção dessas tendências na edição de normativos de
fundamental importância para o mapeamento de Conglomerados Econômico-
Financeiros de índole transnacional, nomeadamente a Resolução 2.302/96,
substituída (e melhorada) pela Resolução 2.674/99.

Inicialmente, podem ser sucintamente apresentadas e analisadas as novas


tendências concernentes aos princípios de jurisdição territorial, no âmbito do Direito
Internacional Privado. A comunidade internacional compõe-se de um conjunto de
Estados soberanos; a cada um deles podem ser aplicados uma série de princípios
referentes à sua jurisdição, isto é, à sua capacidade de impor o seu ordenamento
jurídico; tais princípios podem ser subdivididos em duas grandes áreas: os princípios
ligados à jurisdição territorial e os ligados à jurisdição extraterritorial. O primeiro
grupo analisa a ligação entre um ato ilícito, um crime, e o local (ou locais) onde tal
crime se desenrola, em todas as suas etapas: do seu início (aí incluído o
planejamento do mesmo, bem como todas as condições que propiciaram ou
facilitaram tal planejamento) até à sua execução ou consumação (aí incluídas,
igualmente, todas as condições que tornaram-na possível ocorrer onde ocorreu).
Compõe-se tal grupo de três princípios, um geral e de mais antiga feitura, ligado à
autoridade absoluta de um Estado soberano dentro de suas fronteiras, e dois
relativos, que contemplam crimes iniciados e/ou planejados num país e terminados
e/ou executados em outro; esses dois últimos derivaram, em última análise, do
instituto da cortesia internacional, e relativizam o exclusivismo territorial do primeiro:

3ULQFtSLR *HUDO RX GD 7HUULWRULDOLGDGH $EVROXWD Cada Estado soberano


tem o direito de impor suas leis em todo o seu território, exigindo também que,
dentro de suas fronteiras, apliquem-se tão-somente as suas leis.
Conseqüentemente, cada Estado soberano tem competência para punir crimes
cometidos em seu território, de forma exclusiva e absoluta.

3ULQFtSLR GD 7HUULWRULDOLGDGH 6XEMHWLYD Cada Estado soberano tem


competência jurisdicional para punir um crime que tenha sido iniciado em suas
fronteiras territoriais, mesmo que se tenha completado ou consumado além delas

3ULQFtSLR GD 7HUULWRULDOLGDGH 2EMHWLYD Cada Estado soberano tem


competência jurisdicional para punir um crime que tenha sido consumado dentro de
suas fronteiras territoriais, mesmo que tenha sido iniciado além delas.

De fato, a relativização do rígido princípio da territorialidade não é nova;


desde há muito as cortes de justiça possuem prerrogativas de extraterritorialidade

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em casos como traição, assassinado e bigamia, além de inúmeros outros crimes; a


noção de que todo o crime é local, assim, nunca foi absoluta no âmbito do Direito
Internacional. De fato, no chamado &DVR /RWXV, envolvendo França e Turquia
(1927), a Corte Permanente Internacional de Justiça, embora explicitamente
reconhecesse o princípio de que a primeira e maior restrição que a lei internacional
impunha a um Estado soberano era a incapacidade de este exercer sua autoridade
além de suas fronteiras nacionais, também estatuía que:

³  QmRVHFRQFOXLGDtTXHHVVDPHVPDOHLLQWHUQDFLRQDOSURtEDXP(VWDGR
GHH[HUFHUMXULVGLomRHPVHXWHUULWyULR DUHVSHLWR GH TXDOTXHUFDVRTXH VH
UHILUD D Do}HV SUDWLFDGDV QR H[WHULRU    /RQJH GH LPSRU XPD SURLELomR
FDWHJyULFDDTXH (VWDGRVVREHUDQRVQmR SRVVDP HVWHQGHUD DSOLFDomR GH
VXDV OHLV H D MXULVGLomR GH VXDV FRUWHV D SHVVRDV SURSULHGDGHV H Do}HV
IRUDGHVHXWHUULWyULRDOHL LQWHUQDFLRQDODHVVHUHVSHLWROKHVGHL[DDPSOR
JUDX GH GLVFULFLRQDULHGDGH DSHQDV OLPLWDGR HP FHUWRV FDVRV    $SHVDU
GRIDWRGHHPWRGRVRVVLVWHPDVOHJDLVRSULQFtSLRWHUULWRULDOGRFULPHVHU
IXQGDPHQWDOpLJXDOPHQWHYHUGDGHLURTXHWRGRVHVVHVVLVWHPDVHVWHQGHP
VXD DomR D DWRV LOtFLWRV FRPHWLGRV IRUD GH VXDV UHVSHFWLYDV IURQWHLUDV
WHUULWRULDLV H ID]HPQR GH YiULRV PRGRV TXH YDULDP GH (VWDGR SDUD
(VWDGR  $ WHUULWRULDOLGDGH GD OHL FULPLQDO SRUWDQWR QmR p XP SULQFtSLR
DEVROXWR GR 'LUHLWR ,QWHUQDFLRQDO H QHP VHTXHU FRLQFLGH FRP D VREHUDQLD
WHUULWRULDO´

Note-se, aliás, que os princípios da Territorialidade Absoluta e Relativa


encontram-se presentes no art 2 º da lei 8.884/94 (lei antitruste).

O segundo grupo diz respeito a princípios de jurisdição extraterritorial, quando


a comunidade internacional, como um todo, é afetada; não se consideram, aqui, os
limites ou extensões da jurisdição de um determinado Estado soberano, mas sim o
simples fato de que determinados atos ilícitos são, por suas próprias características,
crimes internacionais, cuja apuração e punição não podem ser restringidas por
considerações nacionais – já que afetam toda a comunidade dos Estados
soberanos. Nesse grupo, há quatro princípios:

3ULQFtSLR GD 1DFLRQDOLGDGH Sendo a nacionalidade uma marca inequívoca


de demonstração, ou de escolha, de fidelidade, cada Estado soberano tem jurisdição
sobre os seus nacionais, sem qualquer limite territorial; por extensão, pode vir a ter,
igualmente, jurisdição sobre estrangeiros que, em virtude de residência prolongada,
sub-repticiamente tornam-se obrigados a essa mesma fidelidade.

3ULQFtSLR GD 3HUVRQDOLGDGH 3DVVLYD Cada Estado soberano tem o direito


de punir estrangeiros por atos ilícitos, mesmo praticados no estrangeiro, que
atentem contra os seus nacionais. Muitos têm visto nesse princípio um abuso de
direito, mas tal não é o caso, já que ele aplica-se apenas a atos ilícitos.

3ULQFtSLRGD3URWHomRRXGD6HJXUDQoD1DFLRQDO Cada Estado soberano


tem o direito de exercer jurisdição extraterritorial no caso de ilícitos praticados por
estrangeiros que atentem à sua segurança nacional, crédito, soberania ou
integridade territorial, tendo em vista que não se pode tomar por garantido que todos
os Estados soberanos possuam em seus respectivos ordenamentos jurídicos leis
próprias que restrinjam, nos seus territórios, atividades subversivas contra seus

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vizinhos, ou contra quaisquer outros Estados soberanos. A pedra de toque de tal


princípio foi a decisão de uma corte inglesa (caso -R\FHYV'33, 1946) segundo a
qual um estrangeiro que deixou o Reino Unido munido de um passaporte britânico
foi culpado de traição, por ter, subseqüentemente, espalhado propaganda anti-
britânica para o inimigo, em tempo de guerra.

3ULQFtSLRGR,QWHUHVVH8QLYHUVDO Toma-se como presunção absoluta o fato


de que a supressão do crime é desejada por todos os Estados soberanos, bem
como por toda a Humanidade. Desse modo, crimes contra a Humanidade, quer os
diretamente afetando as pessoas físicas (como o genocídio, a escravidão, o tráfico
de mulheres ou crianças, ou o tráfico de drogas), quer os que afetam a própria
ordem econômica mundial e, portanto, o equilíbrio entre as nações, são,
intrinsecamente, de jurisdição supranacional.

O posicionamento dos responsáveis pela supervisão das instituições


financeiras, internacionalmente, vem seguindo nitidamente tais tendências; a
emergência de um mercado financeiro global em muito aumentou as dimensões e a
complexidade dos Conglomerados Financeiros, ou Econômico-Financeiros, de
índole transnacional. Tendo em vista o conseqüente aumento dos riscos globais
envolvidos, tanto pela referida complexidade das teias organogramáticas e de fluxos
de recursos quanto pela emergência de novos tipos de operações financeiras
(nomeadamente, as ligadas a mercados derivativos), o Comitê de Supervisão
Bancária do Banco Internacional de Compensações, também conhecido por Comitê
da Basiléia (pelo fato de a sede do Banco Internacional de Compensações situar-se
nessa cidade da Suíça) emitiu, em setembro de 1997, sua publicação de nº 30,
intitulada “Regras Gerais para uma Supervisão Bancária Eficaz” (&RUH3ULQFLSOHVIRU
(IIHFWLYH%DQNLQJ6XSHUYLVLRQ), na qual elenca e comenta vinte e cinco princípios a
serem seguidos nas atividades de supervisão bancária com o objetivo de fortalecer o
sistema financeiro internacional e diminuir-lhe o risco, tendo em vista a constatação
de que ³ Z HDNQHVVHVLQWKHEDQNLQJV\VWHPRIDFRXQWU\ZKHWKHUGHYHORSLQJRU
GHYHORSHGFDQWKUHDWHQILQDQFLDOVWDELOLW\ERWKZLWKLQWKDWFRXQWU\DQGLQWHUQDWLRQDOO\
7KH QHHG WR LPSURYH WKH VWUHQJWK RI ILQDQFLDO V\VWHPV KDV DWWUDFWHG JURZLQJ
LQWHUQDWLRQDOFRQFHUQ” (op. cit, Preâmbulo). O vigésimo princípio do referido elenco
lida diretamente com a necessidade de conhecimento dos Conglomerados
Financeiros: “Um elemento essencial na supervisão bancária é a capacidade dos
supervisores de analisar os Conglomerados numa base consolidada” ³$QHVVHQWLDO
HOHPHQW RI EDQNLQJ VXSHUYLVLRQ LV WKH DELOLW\ RI WKH VXSHUYLVRUV WR VXSHUYLVH WKH
EDQNLQJ JURXS RQ D FRQVROLGDWHG EDVLV´). O comentário tecido a respeito desse
princípio é ainda mais esclarecedor:

³$QHVVHQWLDOHOHPHQWRIEDQNLQJVXSHUYLVLRQLVWKHDELOLW\RIWKHVXSHUYLVRUV
WRVXSHUYLVHWKHFRQVROLGDWHGEDQNLQJRUJDQLVDWLRQ7KLVLQFOXGHVWKHDELOLW\
WRUHYLHZERWKEDQNLQJDQGQRQEDQNLQJDFWLYLWLHVFRQGXFWHGE\WKHEDQNLQJ
RUJDQLVDWLRQHLWKHUGLUHFWO\RULQGLUHFWO\ WKURXJKVXEVLGLDULHVDQGDIILOLDWHV 
DQG DFWLYLWLHV FRQGXFWHG DW ERWK GRPHVWLF DQG IRUHLJQ RIILFHV 6XSHUYLVRUV
QHHGWRWDNHLQWRDFFRXQWWKDWQRQILQDQFLDODFWLYLWLHVRIDEDQNRUJURXSPD\
SRVH ULVNV WR WKH EDQN 6XSHUYLVRUV VKRXOG GHFLGH ZKLFK SUXGHQWLDO
UHTXLUHPHQWVZLOOEHDSSOLHGRQDEDQNRQO\ VROR EDVLVZKLFKRQHVZLOOEH
DSSOLHG RQ D FRQVROLGDWHG EDVLV DQG ZKLFK RQHV ZLOO EH DSSOLHG RQ ERWK
EDVHV,QDOOFDVHVWKHEDQNLQJVXSHUYLVRUVVKRXOGEHDZDUHRIWKHRYHUDOO

65
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9 e 10 de novembro de 2000

VWUXFWXUH RI WKH EDQNLQJ RUJDQLVDWLRQ RU JURXS ZKHQ DSSO\LQJ WKHLU
VXSHUYLVRU\ PHWKRGV  %DQNLQJ VXSHUYLVRUV VKRXOG DOVR KDYH WKH DELOLW\ WR
FRRUGLQDWHZLWKRWKHUDXWKRULWLHVUHVSRQVLEOHIRUVXSHUYLVLQJVSHFLILFHQWLWLHV
ZLWKLQWKHRUJDQLVDWLRQ
VVWUXFWXUH´

A preocupação do Comitê da Basiléia com relação ao tema, bem como a


importância que a ele atribui, justificou a emissão (fevereiro de 1999) da publicação
nº 47, intitulada “Supervisão em Conglomerados Financeiros” (6XSHUYLVLRQ RI
)LQDQFLDO &RQJORPHUDWHV), em conjunto com a Organização Internacional das
Comissões de Valores Mobiliários (,QWHUQDWLRQDO 2UJDQLVDWLRQ RI 6HFXULWLHV
&RPPLVLRQV,26&2) e com a Associação Internacional de Supervisores de Seguros
,QWHUQDWLRQDO $VVRFLDWLRQ RI ,QVXUDQFH 6XSHUYLVRUV ,$,6). Enfim, em outubro de
1999, o Comitê lançou a público sua publicação nº 61, “Metodologia dos Princípios
Gerais” (&RUH3ULQFLSOHV0HWKRGRORJ\), explicitando, para cada um dos vinte e cinco
princípios, condições tanto essenciais quanto adicionais que devem estar presentes
no ambiente de supervisão bancária, objetivando a plena e correta aplicação dos
referidos princípios; tais condições referem-se tanto aos padrões de atuação a
serem exigidos dos próprios órgãos de supervisão quanto aos meios e poderes,
especialmente legais e normativos, que a esses órgãos devem ser fornecidos, a fim
de que possam cumprir a contento suas funções. Quanto ao princípio nº 20, citado
acima, referente à supervisão consolidada, oito condições essenciais são elencadas:

 A supervisão deve conhecer a estrutura do Conglomerado, bem com


suas atividades, inclusive das partes eventualmente sob supervisão de
outros agentes;

 A supervisão deve ter condições de avaliar o grau de risco das


atividades não-financeiras conduzidas pelo Conglomerado;

 A supervisão deve ter autoridade legal para examinar todas as


atividades de uma instituição financeira, tanto aquelas por ela
diretamente conduzidas (incluindo as agências no exterior) quanto as
conduzidas por intermédio de subsidiárias ou afiliadas;

  Não deve haver impedimento à fiscalização de afiliadas ou


subsidiárias, quer se trate de supervisão direta, quer de indireta;

 Deve ser estabelecido explicitamente na legislação, ou à supervisão


deve ser delegada autoridade para, a imposição de padrões
prudenciais de comportamento a todo o Conglomerado, em base
consolidada, tais que incluam adequação de capital, exposição ao
risco e limites de endividamento;

 Deve ser possível a coleta de informações financeiras consolidadas


para cada instituição;

 Deve haver, se relevante, relacionamento entre os órgãos de


supervisão e a auditoria interna das instituições, de modo a agilizar o

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 67
9 e 10 de novembro de 2000

recebimento de informações concernentes à sua saúde financeira e à


adequação do seu gerenciamento de risco;

 A supervisão deve ter autoridade para limitar ou circunscrever o


espectro de atividades do Conglomerado além das suas fronteiras
nacionais, assegurando-se de que as atividades permitidas sejam
adequadamente supervisionadas, não comprometendo a segurança e
a hidigez do mesmo.

Além disso, listam-se condições adicionais, a serem implementadas nos


casos em que for permitido que empresas (pessoas jurídicas) sejam sócias, ou
controladoras, de instituições financeiras (caso do Brasil):

D a supervisão deve ter autoridade para analisar as atividades das


controladoras, bem como as relações das controladoras com suas
subsidiárias, a fim de aferir a segurança e a solidez das instituições
financeiras;

E a supervisão deve ter autoridade para tomar as medidas corretivas


necessárias, tanto nas instituições financeiras quanto nas suas
subsidiárias não financeiras, com o objetivo de garantir a segurança e
a solidez das instituições financeiras;

F a supervisão deve ter autoridade para estabelecer e exigir padrões


apropriados aos quais devam se submeter sócios e administradores de
alto escalão das instituições financeiras.

A possibilidade de, acoplando-se o conceito da personalidade jurídica (como


ente distinto de seus sócios e/ou administradores) com o da territorialidade das leis,
encobrirem-se condutas ilícitas, arriscadas e nocivas ao interesse público é, assim,
explicitamente reconhecida no âmbito do Direito Internacional Privado, bem como
pelos organismos internacionais representantes das agências encarregados da
supervisão bancária (aqui subentendendo-se supervisão bancária como fiscalização
do sistema financeiro). Quanto a isso, editou a autoridade monetária brasileira,
sucessivamente, dois normativos, inicialmente a Resolução 2.302/96, e depois a
Resolução 2.674/99, que a substituiu e aperfeiçoou, mas que não alterou a
sistemática e nem o escopo da consolidação exigida para os Conglomerados
Financeiros, conforme se verá a seguir.

A Resolução 2.302/96 estabelecia normas e procedimentos para a instalação


de dependências e para a participação societária, direta ou indireta, no exterior, de
instituições financeiras. No que se referia ao controle dos Conglomerados, suas
principais disposições eram as que se seguem:

 A instalação de dependência e a participação societária, direta ou indireta,


no exterior, continuavam a depender de prévia autorização do Banco Central do
Brasil (art. 2º, FDSXW);

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 68
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 O Banco Central do Brasil somente autorizaria a instalação de dependência


e a participação societária, direta ou indireta, no exterior, mediante a declaração da
autoridade de supervisão estrangeira garantindo o acesso do Banco Central do
Brasil, para fins de supervisão global consolidada, a informações, dados e
documentos referentes às operações e aos registros contábeis da dita dependência
ou participação, se se tratasse de instituição financeira ou assemelhada (art. 2º,
inciso III, alínea “a”), ou de declaração, firmada por quem de direito, garantindo o
fornecimento, sempre que solicitado pelo Banco Central do Brasil, de informações
referentes às operações e aos registros contábeis, se se tratasse de participação em
empresa não-financeira (art. 2º, inciso III, alínea “b”), bem como, em ambos os
casos, de apresentação de estudo de viabilidade econômico-financeira da
dependência a ser instalada ou do investimento a ser efetuado (art 2º, inciso III,
alínea “c”);

 Era tornada explicitamente obrigatória a elaboração e o envio ao Banco


Central do Brasil, na forma que este solicitasse, das demonstrações financeiras
consolidadas, nos termos do COSIF 1.21, de todas as instituições integrantes do
Conglomerado Financeiro, inclusive as instituições financeiras e assemelhadas das
quais participasse a instituição, direta ou indiretamente, com 25% ou mais do capital
social (art. 3 º, inciso IV).

Nota-se que as regras de consolidação das demonstrações contábeis por


parte dos Conglomerados Financeiros eram obtidas a partir da aplicação simultânea
do COSIF 1.21 e da Resolução 2.302/96; uma primeira leitura das disposições da
Resolução poderia levar à interpretação de que a consolidação das dependências
ou participações no exterior dava-se apenas via participações de empresas em
empresas, já que a referência ao COSIF 1.21 no art. 3º era oblíqua: referia-se ao
modo de se realizar a consolidação ou à própria definição de Conglomerado
Financeiro (COSIF 1.21.1.2)? Obviamente, a referência era a todo o COSIF 1.21,
logo, incluía a lata definição de Conglomerado Financeiro nele contida; de fato, o
efeito principal da Resolução 2.302/96 foi estender inequivocamente os conceitos e
processos consolidativos do COSIF 1.21 às participações societárias, diretas ou
indiretas, mantidas por instituições financeiras nacionais no exterior.

No bojo da nova edição dos Princípios da Comissão da Basiléia (1997), bem


como da edição da Metodologia dos Princípios Gerais (publicada em outubro de
1999, mas em estudo e maturação desde há muito), tornou-se oportuna uma revisão
da Resolução 2.302/96, não para modificar a sua linha de atuação, que era,
conforme se comentou no parágrafo anterior, a extensão do COSIF 1.21 às
participações societárias, diretas ou indiretas, mantidas por instituições financeiras
nacionais no exterior, mas sim para tornar mais explícita tal relação, aproveitando-se
igualmente a ocasião para incluir num único normativo as dependências e
participações societárias no país. Dentro desse espírito foi publicada, aos 21 de
dezembro de 1999, a Resolução 2.674/99, mais ampla em seu escopo, pois passou
a estabelecer normas, FRQGLo}HV e procedimentos para a instalação de
dependências e para a participação societária, direta ou indireta, QR SDtV RX QR
H[WHULRU, de instituições financeiras. No que tange especificamente ao mapeamento
dos Conglomerados Financeiros, suas principais disposições são as que seguem:

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 69
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 A instalação de dependência e a participação societária, direta ou indireta,


no país ou no exterior, continuam a depender de prévia autorização do Banco
Central do Brasil (art. 2º, FDSXW);

 As instituições financeiras devem elaborar demonstrações financeiras de


forma consolidada, incluindo as participações em empresas localizadas no país e no
exterior em que detenham, direta ou indiretamente, isoladamente ou em conjunto
com outros sócios, inclusive em função da existência de acordo de votos, direitos de
sócio que lhes assegurem, isolada ou cumulativamente: I – preponderância nas
deliberações sociais; II – poder de eleger ou destituir a maioria dos administradores;
III – controle operacional, caracterizado pela administração ou gerência comum, ou
pela atuação no mercado sob a mesma marca ou nome comercial; IV – controle
societário, representado pelo somatório das participações detidas pela instituição,
independentemente de percentual, com as de titularidade de seus administradores,
controladores e empresas ligadas, bem como daquelas adquiridas, direta ou
indiretamente, por intermédio de fundos de investimento (art. 3º, FDSXW e I-IV);

 O Banco Central do Brasil somente concederá autorização para instalação


de dependências no exterior, e a participação societária, direta ou indireta, em
instituições financeiras ou assemelhadas, no exterior, se puder dispor de
informações, dados e documentos necessários à avaliação das operações ativas e
passivas daqueles investimentos no exterior, de forma a assegurar a supervisão
global consolidada (art. 2º, parágrafo 2º); tal autorização implica a autorização de
acesso livre e irrestrito, por parte do Banco Central do Brasil, às informações no que
se refere aos riscos assumidos pelas participações, independentemente de sua
atividade operacional. (art. 2º, parágrafo 3º);

 Somente serão admitidas participações societárias em empresas sediadas


em países com tributação favorecida, conforme definição da legislação tributária, nos
casos em que fique assegurado o controle por parte da instituição participante (art.
2º, parágrafo 4º).

O simples exame dos itens elencados acima, comparando-se-os com os itens


respectivos da antiga Resolução 2.302/96 e com os ditames do COSIF 1.21, já
comentados, mostram que, em essência, nada mudou; apenas os termos ficaram
mais explícitos, e mais clara e imediata a sua aplicação. Relendo-se com cuidado e
atenção as quatro disposições elencadas supra a respeito da Resolução 2.674/99, e
comparando-as com o vigésimo princípio do Comitê da Basiléia, bem como com os
seus comentários e condições de aplicação, tanto essenciais quanto adicionais,
nota-se claramente que o normativo da autoridade monetária nacional mais não faz
do que operacionalizar, no ambiente específico do Sistema Financeiro Nacional, o lá
preconizado. Adicionalmente, uma leitura bastante atenta das disposições da
Resolução 2.674/99 à luz das novas tendências a respeito da jurisdição territorial e
extraterritorial mostra que ela possibilita, se necessário, que o Estado soberano
brasileiro, a partir de seus órgãos de supervisão bancária, exerça de modo efetivo as
prerrogativas que lhe são próprias referentes aos Princípios da Territorialidade
Subjetiva, Territorialidade Objetiva, Segurança Nacional e Interesse Universal.

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 70
9 e 10 de novembro de 2000

Desse modo, todo um arcabouço normativo está construído, pelo menos


desde 1996, o qual impede que qualquer membro de um Conglomerado Financeiro,
nos termos do art. 3º da Resolução 2.674/99, se negue a realizar a consolidação de
seus demonstrativos contábeis, nos termos do COSIF 1.21, ou a permitir ao Banco
Central do Brasil acesso a todas as informações, dados e documentos necessários à
avaliação de suas operações ativas e passivas, de forma a assegurar a supervisão
global consolidada, trate-se de que instituição for, esteja onde estiver, diga o que
disser a legislação do país onde se encontre (condições necessárias nº 5 e nº 8, e
condições adicionais, para a aplicação do vigésimo Princípio do Comitê da Basiléia;
princípios da Segurança Nacional e do Interesse Universal referentes à jurisdição
extraterritorial sobre ilícitos no âmbito do Direito Internacional Privado); a negativa,
ou a procrastinação, configuram claramente embaraço à Fiscalização
(descumprimento do art. 37 da lei 4.595/64, que assim determina: “As instituições
financeiras [...] ficam obrigadas a fornecer ao Banco Central, na forma por ele
determinada, os dados ou informes julgados necessários para o fiel cumprimento de
suas obrigações”), bem como crime contra o Sistema Financeiro Nacional (art. 6 º da
lei 7.492/86, que define como um dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional
“induzir ou manter em erro sócio, investidor ou repartição pública competente,
relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou
prestando-a falsamente”): não se podem escudar em prescrições de legislação
alienígena, pois têm as instituições a obrigação de conhecer tanto a legislação do
Brasil quanto a do país onde pretendem estabelecer uma dependência, ou adquirir
uma participação, direta ou indireta, ligada por controle operacional ou societário (já
que é um princípio universalmente aceito que ninguém pode deixar de cumprir uma
lei alegando ignorância da mesma); assim, deve ser presumido que conhecem tanto
as normas da autoridade monetária brasileira quanto as da autoridade monetária do
país onde se querem instalar; se há conflito entre tais normas, ou tomam as
providências para resolver tais conflitos ou, se isso é impossível, optam ou por não
instalar a dependência, ou adquirir a participação, ou por abandonar as atividades
no Brasil e transferirem suas operações para o citado país.

Crê-se já se ter comentado o suficiente acerca dos diferentes tipos de abusos


do instituto da personalidade jurídica, bem como uma série de remédios para os
combater. Tais remédios são todos de índole especificamente legal ou normativa,
ou seja, estão explicitamente presentes na legislação ou nas normas, e todos
apontam na mesma direção, qual seja, a da relativização do conceito da
personalidade jurídica, da responsabilidade limitada de seus sócios e/ou
administradores e do caráter local, ou territorial, do ilícito. Para concluir o presente
trabalho, analisar-se-á a seguir o remédio mais radical que pode ser utilizado,
quando a personalidade jurídica não é apenas relativizada, é ignorada.

$ÒOWLPD)URQWHLUDD'HVFRQVLGHUDomRGD3HUVRQDOLGDGH-XUtGLFD

A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto segundo o qual a


personalidade jurídica de uma empresa é momentaneamente ignorada, para um
caso concreto e durante um período determinado, a fim de se alcançar diretamente a
pessoa do sócio, seja ele pessoa física ou jurídica, responsabilizando-o por fraudes

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 71
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ou outros ilícitos praticados em nome da instituição. Tal instituto não anula, nem
extingue, uma pessoa jurídica, mas apenas trata-a como se não existisse, e isso
apenas no limite necessário para que sejam extintas fraudes, ou remediadas
injustiças.

Tal instituto, de origem norte-americana, é conhecido no Direito norte-


americano como GLVUHJDUG RI OHJDO HQWLW\ (desconsideração da personalidade
jurídica); como OLIWLQJWKHFRUSRUDWHYHLO (levantamento do véu corporativo) no Reino
Unido; FRPR GXUJKJULII GHU MXULVWLVFKHQ 3HUVRQ (penetração da pessoa jurídica) na
Alemanha; como WHRUtDGHODSHQHWUDFLyQ (teoria da penetração) na Argentina; como
VXSHUDPHQWR GHOOD SHUVRQDOLWi JLXULGLFD (superação da personalidade jurídica) na
Itália. Decorre como aplicação de um princípio conhecido como Regra da
Instrumentalidade (,QWUXPHQWDOLW\ 5XOH): a partir do momento em que uma
determinada empresa (dita “subsidiária”) é de tal modo organizada e controlada em
seus assuntos por um grupo de sócios ou, mais comumente, por uma outra empresa
(dita “mãe” ou “matriz”) de modo a torná-la tão-somente um apêndice, um
instrumento desse grupo de sócios, ou empresa-mãe, sendo, na realidade, deles, ou
dela, indistinta, então a personalidade jurídica da subsidiária é desconsiderada, se a
sua retenção significar a manutenção de uma fraude ou de uma injustiça. O jurista
norte-americano Wormser (1912), o primeiro a desenvolver tal idéia, expressou-se
nesses termos:

³4XDQGR R FRQFHLWR GH SHVVRD MXUtGLFD [corporate entity] p XWLOL]DGR SDUD


IUDXGDU RV FUHGRUHV SDUD GHVHPEDUDoDUVH GH XPD REULJDomR H[LVWHQWH
SDUD GHVYLDUVH GD DSOLFDomR GD OHL SDUD FRQVWLWXLU RX FRQVHUYDU XP
PRQRSyOLRRXSDUDSURWHJHUYHOKDFRVRXGHOLQTHQWHVRVWULEXQDLVSRGHUmR
LJQRUDU D SHUVRQDOLGDGH MXUtGLFD H FRQVLGHUDU TXH D VRFLHGDGH p XP
FRQMXQWR GH SHVVRDV ItVLFDV TXH SDUWLFLSDP DWLYDPHQWH GH WDLV DWRV
ID]HQGRDMXVWLoDHQWUHSHVVRDVUHDLV´

Deve-se notar que já existem, no ordenamento jurídico brasileiro, duas


hipóteses explícitas de desconsideração da personalidade jurídica, ambas já citadas
no presente trabalho: art. 25 (FDSXW e parágrafo 5º) do Código de Defesa do
Consumidor (lei 8.078/90) e o art. 18 da Lei de Proteção da Concorrência (lei
8.884/94). Ao que se diz, tal instituto está previsto, igualmente, no projeto do novo
Código Civil.

Especial atenção tem sido dada à determinação de que tipos de ocorrências


ensejariam, ao menos potencialmente, a desconsideração da pessoa jurídica.
Quanto a isso, o abuso mais comum tem sido o uso da distinção da personalidade
jurídica de uma subsidiária com relação à personalidade jurídica da controladora
para permitir a essa controladora uma série de atos que, comumente, não poderia
praticar; no âmbito dos Conglomerados Financeiros brasileiros, o campo potencial
de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica liga-se a um membro
não-formal (isto é, não reconhecido) do Conglomerado Financeiro, usualmente
situado no exterior, utilizado para transações que a legislação pátria e as normas do
Sistema Financeiro Nacional não permitem nem a uma empresa sediada no Brasil,
nem a ligadas, partes relacionadas ou subsidiárias formais, e nem a membros do
mesmo Conglomerado Financeiro.

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 72
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A análise dos inúmeros casos de desconsideração da personalidade jurídica,


especialmente nos tribunais norte-americanos, permite que se elenque uma relação
(não exaustiva) de situações que poderiam sugerir indícios de validade de aplicação
da Regra da Instrumentalidade:

 A controladora e a controlada têm os mesmos, ou quase os mesmos,


acionistas, em proporções iguais ou muito próximas; uma situação extrema desse
item seria a controlada ser dominada por um único acionista;

 O capital social da controlada é insuficiente para o fim social a que esta se


destina, ou inadequado ao nível de risco do negócio, ou então não é totalmente
integralizado, nesse estado permanecendo indefinidamente;

 A controladora e a controlada possuem os mesmos, ou quase os


mesmos, diretores ou administradores;

 A controladora e a controlada possuem departamentos comerciais


idênticos ou quase idênticos;

 A controladora e a controlada utilizam-se de forma indistingüível, ou


quase, de um mesmo nome ou marca comercial, tornando, aos olhos do público
consumidor de bens e/ou serviços, difícil distinguir uma da outra;

 A controladora financia, direta ou indiretamente, todos os, ou a maioria


dos, negócios da controlada;

 A controlada foi constituída pela controladora;

 A controladora paga certas despesas da controlada, como folha salarial;

 Os negócios da controlada lhe são dados, totalmente ou em grande parte,


pela controladora;

 A controladora usa bens da controlada como se fossem seus, e vice-


versa;

 A controlada não obedece a uma série de requisitos formais ligados a


uma existência própria, como manutenção de livros contábeis, atas de reuniões ou
assembléias, etc.

 As operações usuais quotidianas da controladora e da controlada não são


registradas de modo separado e individualizado, tornando difícil estabelecer sua
origem;

 A controlada é criada com o fim de a controladora furtar-se a alguma


obrigação, ou para perpetrar uma fraude.

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Evidentemente, a mera existência de um, de alguns ou mesmo de muitos dos


itens listados acima (com a exceção do nº 13) não significa que se está diante de um
caso em que se deva desconsiderar a personalidade jurídica; conforme visto, tal
desconsideração é específica e temporária, e a relação acima apenas fornece uma
primeira idéia do grau de probabilidade de se estar lidando não com duas pessoas
jurídicas distintas, mas com um fantoche comandado por hábeis mãos
manipuladoras, com o intuito de se furtar à lei.

&RQFOXV}HVH5HFRPHQGDo}HV

01. O instituto da pessoa jurídica não é uma criação teórica H[QLKLOR, mas
o resultado de uma lenta evolução, na qual sempre estiveram presentes as
necessidades do bem comum; pode ser considerado, com muito mais acerto, como
uma concessão do Estado que objetiva incentivar o crescimento econômico e
promover o bem-estar da sociedade.

02. Tanto a personalidade jurídica quanto o princípio contábil da entidade


desenvolveram-se a partir da progressiva corporificação de entes econômicos,
ocorrida a partir dos finais do Império Romano; a personalidade jurídica, por um
lado, ligava-se ao reconhecimento de tais entes corporificados possuírem existência
própria no plano da aquisição de direitos e de deveres, ao passo que o princípio da
entidade, por outro, dizia respeito ao fato de tais entes corporificados possuírem
registro próprio da evolução de sua situação patrimonial; dentro dessa necessidade,
as técnicas contábeis evoluíram de modo consistente, já possuindo alta
complexidade e sofisticação desde a época romana.

03. A existência e o desenvolvimento das pessoas jurídicas, especialmente


das sociedades comerciais, não foram impedidos pela ausência do reconhecimento
de tais corpos como pessoas. Desse modo, os conceitos da personalidade jurídica e
da entidade não apenas configuram-se como efetivamente distintos, mas o princípio
da entidade alça-se como condição VLQH TXD QRQ para a própria existência das
empresas, ao passo que o princípio da personalidade jurídica e, posteriormente, da
limitação de responsabilidade dos sócios/administradores quedou-se como elemento
assessório, embora importante.

04. Em todas as suas características fundamentais, já estava o princípio da


entidade, bem como as técnicas contábeis que lhe davam suporte, desenvolvido e
plenamente operante nos inícios do séc. XVI; por contraste, as sociedades por
ações somente alcançariam independência com relação à autorização estatal nos
meados do séc. XIX, ao passo que as sociedades por quotas de responsabilidade
limitada somente surgiriam nos finais do séc. XIX.

05. A partir do instante em que tiveram reconhecida a personalidade


jurídica, ganharam também as empresas o atributo da nacionalidade. No ponto-de-
vista tradicional, a nacionalidade de uma pessoa jurídica lhe é reconhecida pelo
Estado, que utiliza, consoante sua vontade, critério de incorporação, sede social ou
controle. Pode haver, assim, empresas com várias nacionalidades, ou com
nenhuma. Deve-se notar que o próprio mercado, considerado globalmente, também

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 74
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tem a possibilidade de atribuir nacionalidade a uma empresa que nele atue, devendo
guiar-se, quanto a isso, por critérios de racionalidade econômica, atribuindo uma
única nacionalidade a cada empresa. As recentes crises, em que o governo
brasileiro sofreu descrédito por causa de empresas financeiras que, tecnicamente,
pelo critério da incorporação, não gozariam da nacionalidade pátria, fez ver que o
critério comumente utilizado pelo consenso do mercado é o da sede social,
mesclado com o do lugar da principal atividade econômica e com o do controle; mas
QXQFD o da incorporação.

06. Como qualquer outro instituto, o da personalidade jurídica e o da


responsabilidade limitada dos sócios e/ou administradores presta-se igualmente a
abusos se o seu uso for indiscriminado, ilimitado e descontrolado; diante disso, a
legislação vem repetidamente suavizando e relativizando tais conceitos,
aumentando a responsabilidade de sócios ou controladores, ou mesmo tornando-as
ilimitadas, numa série de eventos, principalmente quando os sócios e/ou
administradores podem vir a exercer, de direito ou de fato, poderes absolutos ou
discricionários no seio da organização.

07. Os abusos ao instituto da personalidade jurídica podem ser,


usualmente, abusos ligados à forma, quando a empresa se constitui de um modo
mas opera de outro; ligados à confecção de complexos Conglomerados, com
miríades de empresas entretecidas entre si; enfim, ligados ao uso da territorialidade
das leis para escapar à jurisdição e à supervisão das autoridades monetárias
nacionais, albergando-se em paraísos fiscais com o intuito de praticar o mal. Os
dois últimos tipos, quase sempre, se misturam, e são bastante freqüentes nos
Conglomerados Financeiros de índole transnacional.

08. Dispõe a supervisão bancária nacional de todo um arcabouço legal e


normativo para mapear e consolidar os Conglomerados Financeiros, por mais
complexos que sejam; tal arcabouço teve por base as novas tendências da
jurisdição criminal extraterritorial, no âmbito do Direito Internacional Privado, que
vêm progressivamente matizado o rígido princípio territorial de que a jurisdição dos
atos ilícitos é local. Também se baseia nos novos princípios de supervisão bancária
postos à luz pelo Comitê da Basiléia, bem como os comentários e análises levados a
cabo por esse mesmo Comitê, e resultou na Resolução 2.674/99, plenamente
suficiente para o correto mapeamento de tais estruturas, ao menos em suas linhas
gerais.

09. Como arma complementar, pode-se utilizar a desconsideração da


personalidade jurídica, quando se ignora a própria pessoa jurídica a fim de se
alcançar diretamente a pessoa do sócio, seja ele pessoa física ou jurídica,
responsabilizando-o diretamente por fraudes ou outros ilícitos praticados em nome
da instituição. A utilização de tal instituto liga-se à chamada Regra da
Instrumentalidade, quando se pode demonstrar não passar a subsidiária de mero
LQVWUXPHQWR para a consecução da vontade da controladora; se tal vontade segue
pelas sendas do ilícito, da fraude ou do abuso do poder, a retenção do princípio da
personalidade jurídica poderia levar a injustiças, razão pela qual a jurisprudência
internacional vem, mais e mais, admitindo que se a ignore, embora de forma

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6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 75
9 e 10 de novembro de 2000

temporária e apenas na exata extensão necessária para remediar os males


detectados.

10. Nota-se, assim, que, após um período de estabelecimento e de


fortalecimento do princípio da personalidade jurídica e da responsabilidade limitada
dos sócios/administradores, a tendência atual é a da relativização desses conceitos,
tendo em vista a diluição das próprias fronteiras nacionais num mundo globalizado,
fazendo com que vários dos pressupostos sustentadores de tais princípios
encontrem-se ou esgarçados ou sob constante contestação.

11. É necessário que a próxima etapa de calibração normativa desenvolva-


se a partir de uma modificação no conceito brasileiro de nacionalidade, passando-o
do conceito da incorporação para o da sede social, subsidiado pelo do controle,
critério esse mais coerente e mais apto a aumentar a transparência e a credibilidade
do próprio instituto da personalidade jurídica, fortalecendo igualmente, no Sistema
Financeiro Nacional, as atividades de supervisão bancária; igualmente, são
necessários estudos mais profundos concernentes à possível incorporação, na
ambiência normativa da supervisão bancária brasileira, do princípio da
desconsideração da personalidade jurídica, não apenas diante de fatos
consumados, como no Código de Defesa do Consumidor ou na Lei Antitruste, mas,
principalmente, numa forma preventiva, a partir da identificação precisa da
possibilidade de se aplicar, num Conglomerado, a Regra da Instrumentalidade. Tais
são, do ponto de vista do Autor deste trabalho, os próximos desafios com os quais
defrontar-se-á a supervisão bancária na sua luta contínua para garantir a saúde do
Sistema Financeiro Nacional, dentro de um clima de transparência e de
credibilidade.

75
6HPDQDGH&RQWDELOLGDGHGR%DQFR&HQWUDOGR%UDVLO 76
9 e 10 de novembro de 2000

%LEOLRJUDILD

 BASEL Committee on Banking Supervision, Publ. 30, Core Principles for


Effective Banking Supervision, BIS, Basiléia, setembro de 1997

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