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Revista das Faculdades Integradas Claretianas – N.

5 – janeiro/dezembro de 2012

Literatura e História Africanas: Implicações para a Formação de


Professores, no Contexto da Lei 10.639/03

Claudionor Renato da Silva.


Docente do ITES - Instituto Taquaritinguense de Ensino Superior.
claudionorsil@gmail.com

Resumo
No ano de 2009, na sede da ONG Fonte (Frente Organizada para a para a Temática Étnica) em Araraquara (SP)
foi realizado o curso “Literaturas Africanas e a História da África no contexto da lei 10.639/03” voltado para
líderes comunitários/movimentos sociais, universitários (áreas da educação e ciências sociais) e professores da
educação básica. O curso foi organizado pela ONG Fonte em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura do
Estado SP (Programa de Ação Cultural – PROAC). As reflexões aqui apresentadas discutem as implicações desse
curso, particularmente, para os professores. Para essa construção reflexiva, foram utilizados os métodos da
observação participante e da pesquisa documental para apontamentos dos resultados advindos desse curso em
seus desdobramentos enquanto processo e enquanto finalização. Os resultados indicam as contribuições do
referido curso, quais sejam: (1) a ampliação da dimensão das literaturas africanas na constituição da cultura e
da história dos brasileiros e, (2) o “manejo” dessas literaturas nos contextos curriculares escolares, afirmando,
assim a diversidade pautada na diferença, na educação das relações étnico-raciais.
Palavras-chave: Literaturas Africanas, História da África, Formação de Professores, Lei 10.639/03.

1 Introdução
A Lei 10.639/03 estabelece para os currículos das escolas da educação básica, públicas e privadas, o
ensino da história e da cultura africanas e suas contribuições na constituição da sociedade brasileira,
particularmente, nos componentes curriculares de história, literatura e artes, pautados na diversidade (BRASIL,
2006; MUNANGA, 2005; GOMES e SILVA, 2006).
Esse foco na diversidade (étnico racial) vem se constituindo no grande desafio do professorado em
atividade, bem como dos formandos nas licenciaturas - especialmente, nos cursos de pedagogia.
Uma vez que toda pedagogia exige competências (Perrenoud, 2000), a Lei 10.639/03 constitui-se, num
desafio ao professorado.
No momento atual, segundo Amâncio, Gomes e Jorge (2008) há o descompasso entre pesquisas na
temática história e cultura da África, nos campos da antropologia e da história, principalmente à emergente
necessidade demandada à área da educação, na formulação de
uma pedagogia em relações étnicas raciais, o que implica em discussões de modelos curriculares, de
preparo (formação) dos professores, elaboração e “testagem” de material didático, o trato da questão do negro
e a relação com todas as demais culturas e povos que constituem o povo brasileiro, enfim. É um momento de
encontro(s) de saberes e diálogos interdisciplinares.
Sobre os desafios da aplicação dessa lei, as autoras Amâncio, Gomes e Jorge (2008) classificam que
este desafio citado no parágrafo anterior é um “desafio a mais” dentre outros que se instalam:
a implementação da Lei 10.639/03 e suas respectivas diretrizes curriculares apontam mais um
desafio, especificamente, no que se refere aos estudos sobre história e cultura africana (...) Este
se refere ao distanciamento entre os produtores de conhecimento científico sobre a temática
africana e as questões étnico raciais no Brasil e a formação de professores da Educação Básica. A
relação pedagógica, a dimensão didática e a capacidade de transposição didática dos resultados
das pesquisas articuladas às práticas pedagógicas em sala de aula demandam uma competência
pedagógica específica (...) (AMÂNCIO, GOMES e JORGE, 2008, p. 21, grifo nosso).

Temos, portanto, um desafio tríplice ao professorado em exercício e em formação inicial: (1)


“articular”/aproximar os estudos históricos e culturais do continente africano à realidade da situação do negro
no Brasil; (2) posicionar essa “articulação” na complexa formação de professores no Brasil; (3) aflorar esse
posicionamento de formação docente em práticas de sala de aula, promovendo a diversidade.

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Diante disso, a ONG Fonte em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (Programa
de Ação Cultural – PROAC) e outras parcerias locais da cidade de Araraquara (Centro de Referência Afro de
Araraquara e Prefeitura Municipal de Araraquara, através da Secretaria Municipal da Educação), organizaram
um curso de formação para professores, voltado às literaturas africanas e a história da África com a
intenção/proposta de fornecer subsídios/aportes didático pedagógicos a professores, universitários e líderes de
comunidades/representantes do movimento negro, já que a sociedade, as pessoas

exigem da escola – mais do que as demais instituições - posicionamento e a adoção de práticas


pedagógicas que contribuam para a superação do racismo e da discriminação (...) é necessária
uma formação político-pedagógica que subsidie um trabalho efetivo com a questão racial na
instituição escolar. Boa vontade só não basta! (GOMES,1995, p.188-189, acréscimo do autor).

O artigo apresenta e discute este curso de formação, de caráter continuado e inicial, e algumas
reflexões sobre suas implicações para a formação desses professores em exercício e em formação inicial. Se
justifica, sobretudo, em duas considerações contextuais: a primeira, por se tratar de uma “mobilização” em
torno de uma lei educacional1, que (nos) obriga a adaptabilidade ou a busca de uma(s) pedagogia(s)
diferenciada(s); a segunda por se tratar de um espaço de formação no terceiro setor.
Seu objetivo é, portanto, apresentar a estrutura, o processo e as continuidades do Curso “Literaturas
africanas e história da África” apontando as implicações dessa formação para o atendimento à Lei 10.639/03 e
o foco na formação (inicial e continuada) de professores da educação básica na educação das relações étnico-
raciais.
Estrutura, por referir-se ao projeto pedagógico, ao corpo docente, aos autores e obras literárias
estudadas. Processo, pois é delineado, o desenvolvimento do referido curso, a metodologia das aulas, as
discussões de grupo, enfim. Continuidades, porque (1) trata-se da operacionalização das literaturas africanas
estudadas, em práticas de sala de aula da educação infantil, dos anos iniciais e finais do ensino fundamental e
do ensino médio; e (2) possibilita a indicação de um itinerário de “multiplicadores” do referido curso, como a
formação de um grupo de estudos permanente e a possibilidade de geração de “núcleos/embriões da
diversidade”, a partir das relações estabelecidas pelos integrantes do curso de formação.

Caminhos metodológicos da observação participante e da pesquisa documental


Para a organização e desenvolvimento desta pesquisa utilizamos o método qualitativo da observação
participante, conforme proposta de Mayer e Jaccoud (2008) e Marcon e Elsen (2000).
Para Mayer e Jaccoud (2008)
A observação, enquanto procedimento de pesquisa qualitativa implica a atividade de um
pesquisador que observa pessoalmente e de maneira prolongada situações e comportamentos
pelos quais se interessa, sem reduzir-se a conhecê-los somente por meio de categorias utilizadas
por aqueles que vivem essas situações (MAYER E JACCOUD, 2008, p. 255).

Pesquisas de observação participante permitem “descobrir as essências, os sentimentos, atributos,


significados e aspectos teleológicos ou filosóficos de um fenômeno de estudo” (MARCON e ELSEN, 2000, p.637
).
Assim, no acompanhamento das aulas, na observação das ações, representações e produções dos
participantes, bem como dos palestrantes, pôde-se detectar pontos relevantes do processo das construções das
literaturas africanas PALOP e o fundo histórico desses países, “realizando” pontes de pensamento e reflexão
(links) à realidade do Brasil e a questão do negro. Nesse percurso reflexivo, transposições à docência, para as
salas de aula da educação básica.

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As observações perpassaram também leituras de documentos nessas construções de dados
interpretativos. Documentos como o planejamento do curso e, particularmente, o projeto pedagógico. Para
isso, a método da pesquisa documental possibilitou uma leitura reflexiva da estrutura do curso.
Segundo Severino (2007), a pesquisa documental, tratando-se de documento que não recebeu
nenhuma análise ou julgamento acadêmico, constitui-se numa fonte importante para compreensão do
mecanismo/dinamização do objeto investigado e sua relação, conexão com o todo.

3 Apresentação e discussão dos resultados


O curso apresentou uma oferta limitada de 50 vagas: 30 para professores, 20 para graduandos (sociais
pedagogia e letras).
A alta procura de líderes de comunidades e integrantes dos movimentos sociais negros abriu
possibilidade de seu ingresso. Assim o curso pode se constituir em um número considerável de líderes de
instituições, grupos artísticos, etc.
Isso permitiu, acima de tudo, uma diversidade de público participante e uma riqueza de trocas e
aprendizagens mútuas, especialmente, aquelas que se dão entre a academia, a práxis social e o senso comum.
A figura 1 apresenta essa distribuição do público inscrito.

FIGURA 1 – Distribuição do público inscrito

Cada um desses grupos com suas “buscas”: os professores, já atuantes na rede de ensino, buscam uma
maior capacitação para lidar com as temáticas da diversidade por meio das literaturas africanas para as
transpor/adaptar às suas práticas educativas de salas de aula; os estudantes/pesquisadores, suas buscas
priorizam uma habilitação ou aprofundamento quanto ao educar na diversidade, bem como a um melhor
preparo para atuação profissional futura; já os integrantes de movimentos e instituições que participaram do
curso colocam suas intenções sobre o curso no que tange ao fortalecimento das identidades afrodescendentes,
contribuindo, dessa forma, com suas instituições e/ou comunidades.
Estas buscas articulam-se ao foco do curso que se propôs a trazer para a formação de professores
(inicial e em serviço) e outros agentes multiplicadores, um aparato intelectual (literário) que se caracterizasse
por um contato com uma literatura específica (a africana) e uma história específica (a história dos povos, das
tribos, dos países da África, PALOP).

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Dessa forma, trazendo as imagens e mensagens dessas produções artístico literárias, identificar traços
e marcas “aparentes” e aproximadas à nossa própria história, a brasileira.
E, ao lado do aparato literário, construir (im)possibilidades de ações didático-pedagógicas nos currículos
escolares no crivo da diversidade étnico racial. Impossibilidades, entendidos aqui como desafios à formação e à
prática docente. São os desafios com a temática da diversidade:

O desafio para o campo da didática e da formação dos professores no que se refere à diversidade
é pensá-la na sua dinâmica e articulação com os processos educativos escolares e não escolares e
não transformá-la em metodologias e técnicas de ensino (...) para se trabalhar com as diferenças
é preciso, antes, que os educadores e as educadoras reconheçam a diferença enquanto tal,
compreendam-na à luz da história e das relações sociais, culturais e políticas da sociedade
brasileira (...) (GOMES e SILVA, 2006, p. 19-20)

Nas discussões, foi presente essa consideração de Gomes e Silva (2006), pois os agentes de mudança
ou reprodução das imagens sociais – como nos indica, Adorno (2006) ao falar sobre a barbárie – são os
educadores, a escola. Estes mais do que ninguém, seja nos espaços formais ou não, devem promover a
reflexão e a mudança.
Entendemos, e esse é um dos pressupostos do curso, que a literatura e a arte são veículos para a
“desbarbarização” social e educativa das questões étnico-raciais.
Sobre as transposições das literaturas africanas para os currículos escolares, o grande ganho dessas
produções é que elas

Criam muitas oportunidades de inovação para a prática pedagógica de professores(as) de vários


segmentos da Educação Básica e da Educação Infantil. Inovam por trazer uma temática que por
muito tempo tem sido ignorada ou marginalizada nas práticas escolares. Inovam por permitir que
alunos(as) e professores(as) assumam novos papéis na escola: são pesquisadores, poetas,
bailarinos, debatedores, sempre críticos e sensíveis aos elementos que nos unem à África e sua
literatura. Inovam por possibilitar novas relações entre a escola e a comunidade, que pode ser
co-participante na promoção de eventos que celebram a riqueza da cultura negra (JORGE e
AMÂNCIO, 2008, p.107-108).

O estudo dessas literaturas em contextos de formação de professores fornece, como nos afirma Leite
(1998), riquíssimos conteúdos a serem transpostos à formalização de atividades em sala de aula visando à
instituição de motivadores para discussões das temáticas étnico-raciais, que superem os erros do passado e
construam pontes de diálogo e cidadania plenos. Que se discuta e se formalize, por meio dessas literaturas,
ações e práticas docentes na temática étnico racial.
Em sua coordenação, ministração de aulas e palestras, pós doutores, doutores, e mestres das áreas de
literatura, sociologia e educação.
As aulas foram expositivas e tiveram diversas modalidades de interação como: leituras e trabalhos em
grupo para discussões e debates; seminários de apresentação de obras; filmes e musicais referentes à cultura
africana e suas relações com a literatura, bem como entroncamentos com a política e a história.
O Módulo I apresentou uma “viagem” pelas “Áfricas”, identificando suas particularidades, não somente
em termos de continente, mas em termos de “nação”, onde, por exemplo, há diferenças marcantes no que
dizem respeito a aspectos sociais e culturais num mesmo espaço territorial geográfico.
Os temas desenvolvidos nesse primeiro módulo foram: Breves considerações acerca da História da
África, de Angola, Cabo Verde. Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau, Marcas de África do lado de
cá: A América Afro-Latina.
Esse contexto histórico e social foi imprescindível para compreensão das obras literárias que foram
estudadas no segundo módulo das atividades, onde se desenvolveu a temática das literaturas africanas,
propriamente.

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O Quadro 1 apresenta os autores e obras estudados durante o curso, bem como as temáticas
desenvolvidas nas aulas.

AUTOR OBRA(S) TEMA


José Craveirinha Xigubo Imbricamento entre
Karingana ua karingana Literatura e História:
Craveirinha e
White trilhas em busca de
uma identidade
Ruy Duarte de Carvalho Lavra. Poesia reunida de Periodos literarios e
1970/2000 "Introdução a poética de
Ruy Duarte de Carvalho"
Eduardo White Amar sobre o Índico Eduardo White: um lirismo
(1984) entre asas e sonhos e
“País de Mim (1990) Eduardo White: a história
Poemas da Ciência de e o seu tempo. Literatura
Voar e da Engenharia de e Imprensa. White
Ser Ave (1992)
Mia Couto O Gato e o Escuro Literatura Africana Infantil
em África: construindo
identidades*
Mia Couto Terra Sonâmbula Romance em Mia Couto

Luis Carlos Patraquim Monção O exílio na poética de Luís


Carlos Patraquim" E " O
erotismo e as viagens
espaço-temporais na
poética patraquiana".
Paulina Chiziane Balada do Amor ao vento Amor. História das
identidades.
Peter Fry O Espírito Santo contra o Relações da literatura com
feitiço e os espíritos as religiões africanas
revoltados: "civilização" e tradicionais.
"tradição" em Moçambique
(Texto auxiliar)
Mia Couto Terra Sonambula Escritos pós coloniais
Paulina Chiziane O Alegre Canto da Perdiz Erotismo em Ana Paula
Tavares
Ana Mafalda Leite Livro das Encantações A poesia de Ana Mafalda
Leite
Ana Paula Tavares A cabeça de Salomé Estudando Ana Paula
Ritos de Passagem Tavares
O Lago da Lua
Paulina Chiziane Balada de Amor ao Vento A questão do feminino em
Balada de amor ao vento,
de Paulina Chiziane
Quadro 1 – Autores, suas obras e temáticas discutidas em aula.

O estudo dessas obras literárias foram o centro e o principal momento do curso, inter-relacionados com
pesquisas de fundo histórico, político e social.
As obras literárias e seus respectivos autores centram-se nos países de Angola e Moçambique e o que
caracteriza essas literaturas é o confronto entre o discurso de persuasão imposto pelo colonizador e o discurso
inteligente que o colonizado convoca. (CEZERILO, 2008; LEITE, 2008).
Invocando o imaginário cultural de seus países, os escritores angolanos, moçambicanos e demais que
compõem os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), redefinem sua identidade calcada na
diferença (CEZERILO, 2008).
A oralidade é a marca dessas literaturas, como destaca Lacerda (2005); é caracteristicamente híbrida,
segundo Leite (2003, 2008). Isso faz das literaturas africanas um diferencial, no quadro das demais literaturas:

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Tratando da transposição das marcas da oralidade (símbolos, estruturas textuais e linguísticas)


introduzidas no texto escrito (...) faz notar a especificidade da literatura africana ao integrar as
“estruturas mentais do mito dentro da escrita”, enquanto os ocidentais se limitam a contar o mito
(LACERDA, 2005, p.85).

Nas obras estudadas destacaram-se dois momentos de produção literária: o colonial (o sonho e a utopia
da liberdade) e o pós-colonial (desencantamentos e novas buscas) (CEZERILO, 2008; LEITE, 1998, 2003).
No Colonial, o clamor por liberdade. Um país que se espera ver, viver. O pós-colonial caracteriza-se por
desencanto, revolta e frustração, pois nesses países, mesmo independentes de Portugal ainda atravessam um
período de guerras internas e calamidades como miséria, morte, invasões territoriais de países vizinhos, prisões
arbitrárias, dentre outras situações de repressão que se refletem na obra literária, como nos aponta Cezerilo
(2008).
A professora Ana Mafalda Leite nos indica possíveis temáticas de estudo para o estudo dessas
literaturas no período pós colonial tendo como pano de fundo esses acontecimentos sóciopolíticos internos:
O termo post-colonial studies abrange questões tão complexas, variadas e interdisciplinares,
como representação, sentido, valor, cânone, universalidade, diferença, hibridação, etnicidade,
identidade, diáspora, nacionalismo, zona de contacto, pós modernismo, feminismo, educação,
história, lugar, edição, ensino, etc., abarcando aquilo que se pode designar como uma poética da
cultura e criando alguma instabilidade no domínio dos estudos literários tradicionais (LEITE, 2003,
p.6).

Entre os representantes dessa produção post-colonial, no caso de Angola e Moçambique estão Ana
Mafalda Leite, Luis Carlos Patraquim, Paulina Chiziane, Mia Couto, Luiz Cezerilo, dentre outros.
Todos esses autores foram estudados no Curso, com destaque para a professora Dra. e poetisa, Ana
Mafalda Leite, e o poeta moçambicano Luis Carlos Patraquim que realizaram uma vídeoconferência no Curso de
Formação na ONG Fonte, direto de Lisboa, Portugal, intermediados pelo professor, pesquisador e poeta Luis
Abel Cezerilo.
As vídeoconferências eram iniciadas com a apresentação dos trabalhos dos referidos autores por três ou
quatro participantes. Em seguida, eram feitos apontamentos de questões aos conferencistas. Os conferencistas
respondiam às colocações e acrescentavam observações finalizando a aula virtual com algumas considerações
finais.
As conferências foram significantes e enriquecedoras. Momentos proporcionados pelo curso que
solidificaram ainda mais as aprendizagens das literaturas africanas, pois este contato direto com os escritores
configurou-se num momento de estudo em que os participantes tiveram que aprofundar-se nas temáticas
desenvolvidas por esses autores em suas respectivas obras, pois o dinamismo da aula virtual era dado pelos
participantes.
Foram organizados dois saraus literários em que se apresentaram as obras literárias estudadas e
diversas manifestações artístico-culturais como contação, música, dança, cenicidades e declamações poéticas.
Espaços e tempos para auto conhecimento uns dos outros. Acima de tudo, descobertas de grandes talentos
entre o grupo participante do curso.
Foram propostos desde o início do curso opções de autores e obras para realização do trabalho de
conclusão que seria voluntário e poderia ser individual ou em grupo de no máximo três pessoas.
Esses trabalhos seriam organizados da seguinte forma: o participante (individual ou o grupo)
escolheriam uma obra literária, das elencadas e trabalhadas no decorrer do curso; seria realizado sobre essa
obra uma análise crítica abordando, primeiramente, os contextos históricos, políticos e sociais e, num segundo
momento, realizando a análise formal (literária) da obra e possivelmente; por, último, mas não
obrigatoriamente, se fizessem uma reflexão sobre a realidade do contexto brasileiro, à luz dessas literaturas,

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bem como apontamentos para a prática da sala de aula. (Vale lembrar, que tal atividade dispunha de
orientações para sua formatação).
Dessa forma, o curso saiu de um momento abstrato, reflexivo para o dia a dia da sala de aula. De fato,
compreender e apreender as relações étnico raciais não se faz sem a vivência relacional gente/gente, como
afirma Gomes (2005):

Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/realidade social/diversidade
étnico-cultural é preciso que os(as) educadores(as) compreendam que o processo educacional
também é formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade (...) ter
a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da nossa formação humana se
manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano escolar (GOMES, 2005, p.147).

As sugestões e orientações do trabalho de conclusão de curso, os autores, as obras e as temáticas de


discussão possíveis, constam no quadro 2.

AUTOR OBRA(S) TEMÁTICAS POSSÍVEIS


Xigubo
José Craveirinha
Karingana ua karingana
Luis Abel Cezerilo Geometria das Metáforas
Amar sobre o Índico
(1984)
“País de Mim (1990)
Eduardo White
Poemas da Ciência de
Voar e da Engenharia de
Sonho
Ser Ave (1992)
Liberdade
Luis Carlos Patraquim Monção
Identidade
Balada do Amor ao vento
Paulina Chiziane Erotismo
O Alegre Canto da Perdiz
Lirismo
Vozes Anoitecidas
Feminisno
Estórias Abensonhadas O lúdico
O Fio das Missangas O infantil
Mia Couto
Terra Sonâmbula
O Último Voo do Flamingo
O Gato e o Escuro
Ana Mafalda Leite Livro das Encantações
A cabeça de Salomé
Ana Paula Tavares Ritos de Passagem
O Lago da Lua
Quadro2 – Autores e obras elencadas para o trabalho de conclusão do curso.

Esse exercício foi fundamental para a sedimentação de informações apreendidas ao longo do curso e
também serviu como um parâmetro/fator avaliativo.
A Figura 2 apresenta a quantidade de participantes concluintes do curso e sua distribuição enquanto
público-alvo.

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FIGURA 2 – Distribuição do público participante, concluinte do curso

A distribuição dos inscritos que efetivamente cumpriram todas as etapas do curso mostram-nos o
empenho, especialmente dos professores, em se habilitar para adquirir competências que lhes são exigidas
hoje, que não constaram em suas formações iniciais e que, portanto, esses espaços e tempos de aprendizagem
em serviço configuram-se em ganhos profissionais imensuráveis e de um grande ganho para os alunos sob seus
cuidados.
É importante que se diga, que no âmbito dos professores da rede municipal, constaram participantes
tanto da cidade de Araraquara como da região (Américo Brasiliense, São Carlos, Rincão e outras). Professores
atuantes na Educação Infantil ao Ensino Médio.
A participação de líderes de movimentos e estudantes de graduação demonstram também a
mobilização dos agentes de transformação sociais e futuros professores em promover educação com qualidade
e fazer nascer discussões importantíssimas para a cidadania plena, no que concernem as questões étnico
raciais pautadas na diversidade.
Os apontamentos do perfil dos participantes contribuem para a análise não só avaliativa do curso como
também seu potencial multiplicador visando às transformações sociais tão urgentes para o nosso contexto local
e regional em se tratando das temáticas da diversidade em contextos escolares e não escolares .
Em se tratando de aspectos avaliativos, podemos destacar alguns parâmetros para compor uma
possível e mensurável avaliação, quais sejam: (1) frequência dos participantes, (2) abordagens e intervenções
nas vídeoconferências, (3), comunicações via e-mail e, (4) produções temático-analíticas dos trabalhos de
conclusão de curso. Isso demonstra que os propósitos não foram somente alcançados, mas ultrapassados.

4 Conclusão - Continuidades
Caminhando para as continuidades que caracterizam o presente artigo - e caracterizaram o próprio
curso da ONG Fonte, visto que o estudo das obras literárias durante o curso foi a todo instante conduzido a fim
de que os participantes transponham para a sua prática, as leituras das literaturas estudadas, considerando as
especificidades de público-alvo da educação básica ou outro espaço de socialização/educação em que atuam -
essas literaturas estudadas permitiram a descoberta das “Áfricas” e das particularidades/individualidades de
cada país dos PALOP. As poesias e romances, especialmente, demonstram essa característica única: as
histórias dos povos da África, suas especificidades, suas oralidades e riquezas culturais e intelectuais.

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Ademais, verificam-se como as questões raciais são tratadas nas literaturas desses países e como
diferem das circunstâncias que caracterizaram e, ainda caracterizam o Brasil. Diferente dos países africanos
colonizados por Portugal em que a população é eminentemente negra, no Brasil, onde a relação-quantidade,
brancos e negros, é quase pareada, prevalece - ainda que “silenciosamente” - posições ideológicas da
subalternidade do negro, representados, fundamentalmente, no mito da democracia racial e na ideologia do
embranquecimento (SILVA, 2009).
Desconstruções dessas ideologias são importantíssima para a formação de professores e foi um detalhe
– missão - bem observado em todo o curso: o de desbarbarizar3 a sociedade a partir do ambiente escolar e por
meio da linguagem literária. E, nesse sentido, a condução de discussões voltadas sempre para a prospecção e a
construção de um (novo) presente e futuro das relações sociais, religiosas, étnicas e raciais marcadas pela
diversidade e o respeito a ela.
Isso posto, o fator multiplicativo dos participantes do curso – continuidades - é o de estabelecer uma
educação multicultural de valorização à contribuição dos povos e nações africanas na constituição de nossas
identidades nacionais brasileiras e, portanto, numa dimensão de ato político freireano, na atenção das
produções africanas na arte, na culinária, na cultura, etc., (AMÂNCIO, GOMES E JORGE, 2008).
As continuidades, portanto, centram-se na temática étnico-racial na escola e em outros espaços, bem
como em esforços de estudos de pesquisas e práticas em sala de aula nas Literaturas Africanas, que
atualmente se desdobram em Literatura Angolana, Moçambicana, etc.
Tais continuidades são lançadas aos professores e líderes de comunidades e instituições, como já nos
referimos ao longo desse artigo, na possível comunicação, difusão e sensibilização das literaturas africanas ao
contexto social e escolar brasileiro, tendo como parâmetro de implementação as obras “Orientações e ações
para a educação das relações étnico-raciais”, desenvolvida pelo MEC/SECAD (Brasil, 2006) e “Literaturas
africanas e afro-brasileira na prática pedagógica” (Amâncio, Gomes e Jorge, 2008).
Outra continuidade resultante do curso de formação de professores é a proposta da instituição de um
grupo de estudos permanente em literaturas africanas, orientado diretamente de Moçambique, pelo Prof. Dr.
Luis Abel dos Santos Cezerilo, onde serão trabalhados temas específicos das literaturas africanas voltando-se
para as particularidades dos matizes das literaturas moçambicanas, angolanas, caboverdianas, etc.,
desenvolvendo os diversos gêneros: poesias, contos, romances, cartas e outros.
Confirma-se assim, o efeito multiplicador e de continuidades imediatas do curso Literaturas Africanas e
História da África organizado pela ONG Fonte cuja preocupação repousa na reflexão e na promoção de uma
ação frente às questões educacionais étnico-raciais.
Estudar as literaturas africanas de língua portuguesa teve e tem, assim, um significado especial tanto
para os pesquisadores/estudantes como para os professores que estão dia a dia diante do grande desafio de
educar, promover cidadania e “desbarbarizar” - como já nos referimos anteriormente - a sociedade, já que tal
estudo permitiu a ampliação e aprofundamento da compreensão “daquela” história e de “nossa” própria
história, fornecendo subsídios valiosos para uma reflexão acerca dos fatos que marcam a identidade cultural do
país e, que, portanto, devem ser implementadas não apenas por haver uma lei, mas, porque, se faz necessário
um novo discurso ação que supere a hipocrisia e a ideologia da separação pelo véu. Aquela a que se referiu
W.E.B Du Bois, que separava (ou separa?) dois mundos, o dos negros e os dos não negros (DU BOIS, 1999).

Notas:
1 Outras legislações concernentes à temática étnico-racial são também contempladas: o Parecer 003/04
do Conselho Nacional de Educação e a Resolução CNE/CP 01/2004 (AMÂNCIO, GOMES e JORGE, 2008). Ver
também LDB (Lei 9394/96), Artigo 26-A, § 1°.

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Implicações para a Formação de Professores, no Contexto da Lei 10.639/03
2 Foram destinadas 50 vagas: 30 para professores, 20 para graduandos (sociais, pedagogia e letras) e
vagas remanescentes para líderes de instituições e movimentos.
3 Conceito de Theodor Adorno. Desbarbarização da sociedade, como fundamental missão da educação.
(ADORNO, 2006).
4 Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Ver: Brasil
(2006).

5 Referências Bibliográficas
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