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FORÇAS
DESENCADEADAS

Autor
KURT BRAND

Tradução
S. PEREIRA MAGALHÃES

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Experiências monstruosas... e
com elas se destrói um planeta...

Perry Rhodan e seus fiéis seguidores tiveram que percorrer um


longo e árduo caminho, desde os dias da “Terceira Potência” até a
unificação política de toda a Humanidade terrana.
Utilizando-se da fabulosa tecnologia arcônida, os terranos abriram,
ainda mais, o caminho para o espaço, não obstante enorme oposição e
duros reveses internos e externos. E, exatamente por não conhecerem as
palavras “resignação” ou “desistência”, mesmo em situações
dificílimas, conseguiram criar e manter e até ampliar o Império Solar.
Entrementes, chegamos na Terra ao ano 2.045. A situação está
tranqüila e Gucky, o elemento mais competente do Corpo de Mutantes
de Rhodan, embora o menos disciplinado, resolve visitar, depois de
tantos anos de serviço em prol do Império Solar, seu planeta de origem,
Vagabundo. Gucky obtém suas férias — aliás, mais do que merecidas
— e parte sozinho num Space-Jet e vai cair no caos das Forças
Desencadeadas.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Reginald Bell — Amigo de Rhodan desde longa data.
Gucky — Rato-castor mutante que tem saudade de seu planeta
pátrio.
Walter Grimpel — Chefe do Serviço de Rastreamento em
Terrânia.
Joe Pasgin — Comandante do cruzador Burma.
Macintosh — Radiotelegrafista da espaçonave mercante Potomac.
Dr. Innogow — Nunca ouviu falar em Ogros, mas suas pesquisas
giram em torno deles.
1

Não eram apenas parecidos com monstros, eram verdadeiros monstros.


Suas cabeças de Jano tinham a forma típica da gota d’água, terminando numa
extremidade pontiaguda de uns vinte e cinco centímetros, que lhes servia
simultaneamente de antena receptora e transmissora para os impulsos de sua mente.
Apesar disso, não possuíam nenhum dom telepático, como também não eram
absolutamente humanóides.
A cabeça com a forma de gota d’água estava equipada com quatro glóbulos oculares
colocados em sentido oposto. Através de uma vértebra dupla, com uma espécie de
articulação esférica, a cabeça de rosto duplo passava para um tronco quase de inseto, de
dois metros de comprimento, recoberto por escamas escuras, sendo que na parte superior
deste corpo pendiam quatro braços. Todo este conjunto horrível era sustentado por três
pernas telescópicas.
Quando um destes monstros se movimentava, via-se então que, sem articulação, as
pernas trabalhavam como amortecedores, fazendo com que o tronco demasiadamente
delgado, de apenas trinta centímetros de diâmetro, bamboleasse para frente, para trás ou
para os lados.
Fazia poucas horas que eles haviam descido das espaçonaves de sua frota, enquanto
que os primitivos habitantes do planeta por eles ocupado — ratos-castores, de mais ou
menos um metro, divertidos e curiosos — olhavam-nos interessados, sem suspeitarem
que, na figura destes monstros, a morte e a destruição estava penetrando em seu planeta.
Estes estranhos seres, com mais de duzentas espaçonaves, invadiram o planeta
deserto e frio, em muito semelhante a Marte. Os terranos lhe davam o nome de
Vagabundo.
Vagabundo era o único planeta de um sol em vias de extinguir-se, realizando suas
rotações a uma distância de 0,78 unidades astronômicas. Comparado com a Terra, o
planeta Vagabundo teria um raio de 0,6 e sua gravidade seria de 0,53G.
Vagabundo não possuía mares, nem montanhas propriamente ditas. Três quartos de
sua superfície era um deserto ferruginoso de coloração tendente para o avermelhado.
Neste deserto, mais ou menos na zona equatorial, foi onde desceram os monstros
com suas esquisitas naves.
Com a cabeça em forma de uma gota d’água, os monstros possuíam dois rostos,
como o deus romano Jano. E o mais singular é que refletiram em suas naves o estranho
formato de suas cabeças, construindo-as, não com duas frentes, mas com duas fuselagens
iguais, formando um só aparelho.
Com a serenidade de conquistadores habituados a dominar qualquer ambiente,
desceram calmamente de suas estranhas naves, que em geral não tinham mais de
duzentos metros de comprimento. Tudo indicava que, ao pisarem em terra firme, cada um
deles já sabia o que tinha de fazer. E por mais monstruosa que fosse sua aparência, mais
monstruoso ainda era o que estavam fazendo. De um momento para o outro, movidas e
dirigidas por forças ocultas, enormes peças de máquinas, de formato grotesco, saídas das
naves, flutuaram no ar, como folhas ao vento. Os ratos-castores, que de seus esconderijos
acompanhavam tudo, sentiram despertar em si o arraigado instinto da brincadeira, que
junto com o comer e dormir era o resumo de sua vida. Em geral, bons telecinetas,
aproveitaram-se de suas faculdades e seguraram as peças metálicas a fim de brincarem,
atirando-as para o ar como se fossem petecas.
No mesmo instante, algumas dúzias de ratos-castores rolaram pelo chão, soltando
chiados lancinantes. Em poucos segundos, estavam todos mortos.
Pelo menos a metade dos animais que estavam olhando presenciou a horrível morte
de seus colegas. Mas nenhum deles podia supor que houvesse alguma ligação entre a
morte e a brincadeira empreendida pelos ratos-castores.
Que havia demais em brincar com aqueles objetos enormes que pareciam também
estar brincando no espaço?
E os enormes blocos metálicos continuavam saindo do bojo das naves esquisitas,
sem o menor ruído, plainando no ar e depois dirigindo-se para o local onde antes
estiveram alguns monstros, fazendo qualquer coisa.
Do drama desenrolado a uns cem metros na frente — a morte repentina de algumas
dúzias de ratos-castores — nem tomaram conhecimento. Viram a brincadeira telecinética
dos pequenos animais, como simples expressão de curiosidade, que fora punida por um
choque mortal desferido pelo Ogro, que era quem pensava e agia independentemente,
transferindo com seus poderes superiores as peças de máquinas do bojo das naves para o
local determinado. As antenas orgânicas, que faziam parte de sua horrorosa cabeça, lhes
haviam trazido a notícia da ação punitiva do Ogro. E por alguns instantes, era-lhes
impossível qualquer comunicação entre si, devido às ondas mais fortes emitidas pela
explicação do Ogro, que supervisionava tudo.
No momento, o Ogro-1 chamava por sua antena orgânica o Ogro-214. Um dos
monstros, que estava um pouco mais longe, aos pés da última colina, era o 214. Uma das
características da mentalidade destes monstros era o fato desses indivíduos não terem
nome próprio, mas apenas um número. O 214 tinha que antepor ao seu número o título de
Ogro, cada vez que se encontrasse com um elemento de outro grupo, ou caso quisesse
apenas se identificar.
Um grupo nunca passava do número 317, mas também não podia ter menos de 109
indivíduos. Número 1 seria sempre o líder do grupo, chefe autônomo, que só tinha de
prestar contas ao Gal, o chefe supremo. Sua jurisdição era delimitada por leis, leis estas
que lhe conferiam uma margem de ação bem ampla, dando-lhe até poderes sobre a vida e
a morte.
— 214, por que não iniciou ainda os movimentos telúricos?
O órgão de transmissão e de recepção do 214 trabalhava só com uma fase para as
duas operações. Enquanto o receptor encaminhava ao seu cérebro a pergunta do Ogro-1 e
convertia os impulsos elétricos em correntes de pensamento, seu transmissor orgânico
irradiava a resposta através da antena da cabeça:
— Um dos Ogros não manteve a ordem certa na entrega das peças mecânicas, Ogro-
1. Já transmiti o pedido de controle ao Nebu-56.
Nebu-56, numa das duzentas naves de carga daqueles monstros, já constatara a
razão do erro do Ogro. Chamou um líder de grupo.
— Aqui fala 56, Nebu-1. A intervenção dos ratos-castores disritmou um Ogro. Vou
me pôr em contato com ele.
O Ogro, que pensava e agia independentemente, ouviu a advertência de Nebu-1.
Nas vibrações auditivas do Nebu-1 ecoou a resposta do Ogro.
— Falha de três membranas celulares devido ao ataque telecinético dos ratos-
castores. O prosseguimento da ação só foi possível depois da mudança de ligação para a
peça Gel. Desta maneira, o depósito sete foi esvaziado antes do seis. O prejuízo só poderá
ser reparado quando terminar todo o descarregamento. Tenho de insistir que um novo
ataque dos telecinetas deve ser impedido a todo custo.
Isto foi a sentença de morte para muitos ratos-castores em Vagabundo. Até mesmo
um líder de grupo tinha que se submeter às ordens de um Ogro.
Através de seu rádio orgânico, Nebu-1 chamou Cul-1, que era o responsável pela
segurança de todos os Ogros.
— Aqui fala Nebu-1. Nosso Ogro exige que se impeça a qualquer custo um novo
ataque telecinético dos ratos-castores.
É claro que os monstros não conheciam o conceito brincadeira ou divertimento. O
único objeto de sua comunicação era exclusivamente o trabalho. A palavra pessoal ou
individual não existia para eles. O que valia era só o grupo. De acordo com as missões
atribuídas ao grupo, formavam-se também os respectivos monstros...
Com exceção dos druufs, a Via Láctea jamais vira monstros daquele tipo.
Logo depois, Cul-1 se pôs em contato com o Ogro que não conseguira fazer a
descarga de sua nave, conforme estava programado, devido à intervenção inesperada dos
animais brincalhões.
O líder do grupo, Cul-1, ficou então sabendo das providências de proteção que o
Ogro havia tomado. Não havia mais dúvida de que os atrevidos animais pagariam com a
vida qualquer brincadeira.
Neste exato momento, um grupo de ratos-castores, reunidos no lado sul do deserto,
onde começavam as suaves colinas, tentava iniciar uma brincadeira com as peças da
maquinaria que iam flutuando no ar, até se alojarem no lugar determinado. Cinco
daqueles interessantes animais escolheram uma peça que vinha a boa altura e iam se
divertir com ela, levando-a para outra direção. A um dado sinal do rato-castor mais velho,
os cinco atacaram ao mesmo tempo o grande bloco de metal.
Flutuando no ar, numa linha quase vertical, a enorme máquina deu, de repente, uma
guinada para o alto, num salto de uns trinta metros, iniciando depois uma curva. Os cinco
animais quase simultaneamente soltaram um grito de dor, enquanto a pesada máquina se
precipitou no solo.
Os monstros que se encontravam no local da queda se afastaram rapidamente,
saltitando com suas três pernas telescópicas. Os cinco ratos-castores já estavam mortos,
quando começou um grande rebuliço no local da queda. Havia um corre-corre entre os
Ogros. Deviam ter recebido um comando qualquer, através de seu rádio orgânico. Seu
rosto duplo, com o nariz de cebola achatada, a três dedos abaixo do único olho neste
trecho, não deixava transparecer a menor excitação, muito menos qualquer sentimento
humano. Apenas a pressa desmesurada para escapar do local dava sinal de que havia
perigo iminente.
Os demais ratos-castores se entreolhavam desatinados. Não podiam compreender a
morte de seus irmãos de raça e jamais imaginariam que estivesse ligada às brincadeiras
telecinéticas. De repente, surgiu do nada um clarão amarelado, atingindo-os com seus
raios. Um outro clarão semelhante ofuscou um grupo de ratos-castores, que estava no
outro lado onde morreram os primeiros. Assim foram todos dizimados, sem saberem o
porquê.
Através de uma freqüência comum, o líder — Cul-1, responsável pela segurança de
todos os Ogros — deu um aviso urgente: todos tinham que se afastar imediatamente do
local onde foram descarregadas as peças de máquinas.
Das profundezas do local da queda da grande máquina surgia um ruído, que se
intensificava cada vez mais.
Tão rápido como surgiu, desapareceu o clarão amarelado que destruíra todos os
ratos-castores presentes à estranha chegada dos monstros. Não havia o menor indício de
onde viera aquela onda de destruição.
Já não existiam os fluxos energéticos que descarregaram as naves de fuselagem
dupla sob o comando de um Ogro. Não se viam mais as misteriosas peças de máquina
pairando no ar e nem aquelas figuras grotescas, saltitando desajeitadamente com as três
pernas telescópicas, correndo na direção de suas naves.
Pela atmosfera rarefeita do planeta reboou em todos os sentidos um estampido
assustador. Ali, onde uma máquina se precipitara no solo, abrindo um grande sulco,
irrompia agora um vulcão de forças estranhas.
Da fenda cavada no chão se projetava com violência um fluxo amarelado, para se
espalhar depois com incrível velocidade em todos os sentidos.
Entre os monstros em fuga desabalada e o fluxo energético devorando tudo que
encontrava à sua frente, parecia haver uma aposta de quem corria mais, corrida esta cuja
meta eram as naves de transporte de dupla fuselagem. Além disso, as labaredas que se
abriam em leque subiam verticalmente alguns quilômetros no céu de Vagabundo e, da
pequena cratera, jorrava aquela torrente de fogo, num crescendo constante de violência.
De tudo que fora descarregado tão soberbamente, através de forças invisíveis, das
muitas naves, não restava mais nada. Uma centena daquele bando de monstros já havia
caído vítima da onda avassaladora do fogo. Agora, porém, parecia que as labaredas
estavam farejando a massa metálica das espaçonaves dos monstros, pois as línguas de
fogo, que pareciam se espalhar para os lados, tomaram, subitamente, a direção do local
onde estavam as naves.
O mais interessante é que todas as línguas de fogo convergiram para a mesma
direção e aquele fluxo ígneo, que lambia o chão a uma altura de meio metro, não
produzia calor. O fluxo, que até então varria o solo pobre do planeta desértico, tinha uma
espécie de correnteza que seguia uma determinada direção, mas a certa altura começou a
se formar um remoinho, sinal de que a violência crescia ainda mais.
Os monstros apavorantes, que, num desesperado bale de três pernas, procuravam
chegar a tempo até suas naves, foram a maior vítima de sua avançada tecnologia.
Os cinco ratos-castores, que, no seu instinto natural de brincar com tudo, tentaram
se divertir com os estranhos objetos, não morreram inutilmente. O acaso ou um poder
superior fez com que eles fossem se divertir exatamente com uma peça que era o coração
de uma gigantesca instalação supersofisticada, que iria dar vida a um enorme parque
industrial.
Desesperados, os monstros de duas faces olhavam estarrecidos para o fruto de suas
pesquisas. As chamas, como se quisessem vingar a morte dos inocentes animais,
avançavam sôfregas para a montanha de metal, representada pelas naves de fuselagem
dupla. Três não mais existiam.
Como se a destruição das três primeiras espaçonaves fosse o sinal de partida para o
ataque definitivo, o clarão amarelado invadiu o areai onde estavam estacionados mais de
duzentos aparelhos para transporte pesado. Sua destruição se processou sem o menor
ruído.
A carcaça metálica, em contato com o clarão amarelado, perdia toda a consistência,
escorrendo como massa amorfa, desaparecendo em seguida entre as chamas que
consumiam a nave vizinha.
Houve apenas três testemunhas oculares da catastrófica destruição da grande frota
espacial, no pequeno planeta Vagabundo. Mas estes três ratos-castores não podiam
compreender que esta destruição salvou sua raça do extermínio.
Dezoito transportes de carga, com sua forma bizarra de duas gotas d’água
justapostas, conseguiram escapar. Sem nenhum ruído decolaram. O décimo nono já havia
se desprendido do chão, quando o clarão amarelado atingiu-lhe a fuselagem; e como se
possuísse garras de um gigantesco guindaste, o fez cair no mar de chamas. E, tal qual os
demais, o metal se fundiu como cera, tornando-se uma massa escura.
Durante cinco dias, o clarão amarelado continuou intenso naquele mundo frio e
pobre, para acabar desaparecendo no sexto, sem deixar qualquer vestígio.
Vagabundo voltou a ser Vagabundo — frio e pobre como Marte — e os ratos-
castores continuaram levando sua vida despreocupada e simples. Não sabiam que sua
raça escapara, quase que por milagre, do extermínio total.
2

Macintosh era radiotelegrafista na Potomac, trinta e cinco anos e casado.


A Potomac era uma espaçonave mercante do Império Solar e estava viajando a
sessenta e oito anos-luz do planeta Vagabundo, na direção do planeta Abeis, para fazer
um carregamento de lysir.
Lysir era um tipo de resina que só existia naquele planeta, resina esta muito
procurada na Terra, principalmente para a fabricação dos uniformes espaciais, mais
exatamente para sua impermeabilização no tocante às irradiações espaciais, tornando
assim tais uniformes superiores aos de fabricação arcônida.
Sentado na sua cabina de rádio, Macintosh não pensava nem em lysir, nem no
planeta Vagabundo, terra de Gucky, nem em nada referente à navegação espacial. O que o
preocupava mesmo eram seus dois filhos Charles e Ben. O primeiro tinha dezoito anos e
o caçula dezessete. O mais velho aprontava cada uma... e era em tudo ajudado pelo mais
moço.
“E o quê que devem ter arranjado neste meio tempo?”, perguntou-se Macintosh, já
antevendo novidades desagradáveis, quando chegasse à Terra.
Depois que a Potomac pousasse no espaçoporto de Terrânia, costumava ter três dias
de descanso. Mas era exatamente nestes dias que tinha de passar pelos maiores
aborrecimentos e geralmente quem mais sofria era seu bolso, pela obrigação de pagar os
estragos causados pelos dois garotos.
“E se os malandros pintaram o caneco de novo e a intimação de pagamento já
estiver lá em casa, então...”
Seus pensamentos foram interrompidos. A tela do rastreador começou a dar sinais
diferentes. E no mesmo instante, as preocupações com as peraltices dos dois rapazes
cederam lugar ao radiotelegrafista consciente de seus deveres.
Macintosh passou a observar o oscilógrafo do rastreador. Na metade superior
apresentava uma terrível confusão de amplitudes e, na parte de baixo, tinha apenas um
diagrama.
Macintosh, o homem de pequena estatura, modesto, mantendo-se sempre atrás dos
bastidores, cuja única vaidade era um cavanhaque bem cuidado, indiferente às caçoadas
dos colegas, neste momento arregalou os olhos. Com a respiração acelerada, postou-se
imóvel diante do oscilógrafo, como se desse instrumento viesse a solução dos grandes
mistérios do espaço.
— Santa Via Láctea! — exclamou assustado. — O que é isto? Nunca vi coisa assim!
Embora soubesse que o computador de sua cabina de rádio armazenava tudo que o
rastreador registrava, sentiu-se na obrigação de verificar pessoalmente se isto estava
mesmo acontecendo. Esta confusão de amplitude, este diagrama completamente estranho,
impossível de ser lido, pareciam-lhe tão importantes que, embora tivesse a certeza de que
o pequeno computador de bordo registrava tudo, levantou-se, foi até a positrônica, vendo
com os próprios olhos o funcionamento automático do cérebro eletrônico.
Somente depois disso, voltou ao seu lugar na radiotelegrafia. Mais por instinto do
que mesmo por reflexão, ligou o Telecom e chamou a estação de rastreamento de
Terrânia.
— Aqui fala da nave cargueira Potomac, registro O-34, radiotelegrafista Macintosh.
Forte rastreamento energético na direção do planeta Vagabundo, provavelmente oriundo
do mencionado planeta. Nossa distância de Vagabundo, no momento, é de sessenta e oito
anos-luz. O quadro de amplitudes e o diagrama do meu oscilógrafo estão de tal maneira
indecifráveis e misteriosos, que me vejo obrigado a solicitar o controle central do
rastreamento energético.
A resposta de Terrânia não tardou:
— Muito obrigado pela comunicação. Já fizemos o rastreamento energético na
direção do planeta Vagabundo, com os nossos aparelhos ultrapotentes. Chamaremos de
novo, caso nos surjam dúvidas.
Mas os cientistas de Terrânia não voltaram a chamar o radiotelegrafista Macintosh.
A Potomac aterrissou no planeta Abeis. Ali, recebeu das mãos dos semi-inteligentes
rikkers, uma raça de anões humanóides, a cobiçada carga de lysir e já estava se
preparando para decolar rumo à Terra, quando lhe chegou, via Telecom, uma ordem de
Terrânia. Tal ordem dizia para que não viessem diretamente até a Terra, mas que
passassem antes pelo planeta Vagabundo e dessem algumas voltas, a fim de observar bem
este mundo quase idêntico a Marte.
Antes que Macintosh pudesse fazer qualquer pergunta, o possante hiper-rádio de
Terrânia cortou a ligação.
O comandante Hodkin, que mais parecia um campeão de box peso pesado, começou
a esbravejar, quando o radiotelegrafista Macintosh lhe transmitiu a ordem de Terrânia
para fazer vôos de inspeção no horroroso planeta de Gucky.
— Você é o único culpado por esta volta enorme que vamos dar, Macintosh. Prepare
desde já seu espírito, pois quando chegarmos à Terra, não haverá três dias de folga para
ninguém. Por que você tem que transmitir para Terrânia qualquer coisinha que vê no
rastreador?
Meia hora depois, a Potomac entrou em transição, vindo parar entre o fraco e
bruxuleante sol e seu planeta Vagabundo, já no espaço normal.
Sete dias já se haviam passado desde o rádio de Macintosh para Terrânia. A Potomac
sobrevoara por sete vezes aquele planeta quase deserto e, por acaso, passara três vezes a
mil quilômetros de altura sobre o local, onde o solo, numa extensão de dois quilômetros
quadrados, estava completamente vitrificado, fluorescendo brandamente num azulado de
aço.
Mas, no oscilógrafo do rastreador da Potomac não mais apareceu aquela confusão
de amplitudes... Já no dia anterior, sobre o planeta Abeis, não se via mais nada. Para
Macintosh, as gigantescas fontes de energia, de onde se originou toda aquela erupção, já
se haviam fechado.
— Comandante — atreveu-se Macintosh a dar um palpite — não acharia razoável
que déssemos tantas voltas em torno de Vagabundo, até que conseguíssemos fazer um
levantamento cartográfico completo da superfície do planeta?
Hodkin olhou furioso para seu radiotelegrafista.
— Quem foi que deu esta nova ordem? Foi o próprio chefão, não foi?
— Não, comandante, pelo menos não tem a assinatura de Perry Rhodan...
— Então me faça o favor de confessar quem foi que assinou esta ordem, Mister
Macintosh? — disse-lhe o comandante Hodkin já um tanto áspero.
— Foi Grimpel, da Central de Rastreamento de Terrânia, comandante. É um nome
que aliás não conheço.
— Nem eu. De qualquer maneira, vamos agora rumo à Terra. E dizer que deste
planeta miserável, puro deserto, é que saiu Gucky, o rato-castor. Incrível! Mas, com os
diabos, Macintosh! Que foi mesmo que você descobriu por aí? Será que esta energia toda
saiu mesmo daqui?
— Exatamente do rumo de onde estava
Vagabundo, senhor — respondeu Macintosh, deixando perceber que não se sentia
muito bem no meio de todo aquele mistério.
Também não podia se esquecer do modo conciso como aquele funcionário falara no
telecom.
Dezoito horas depois, a Potomac estava descendo no espaçoporto de Terrânia.
Mal os apoios telescópicos haviam tocado o solo, soou um aviso no
intercomunicador de bordo:
— Radiotelegrafista Macintosh, procurar Mister Grimpel, chefe do Rastreamento
Energético. Radiotelegrafista Macintosh, dirigir-se com todos os documentos à presença
de Mister Grimpel. Radiotelegrafista Macintosh...
O chamado foi repetido três vezes. Casualmente estavam juntos o comandante
Hodkin e o telegrafista Macintosh, quando os alto-falantes transmitiam a ordem.
— Ninguém sabe quem é que manda aqui. Mas Macintosh, quando estiver na
presença deste Grimpel e lhe contar que você me aconselhou a fazer um levantamento
cartográfico de todo o planeta Vagabundo e que eu não o quis fazer, então que o diabo o...
Você entendeu, não é?
Desta vez, porém, Macintosh estava menos tímido e havia se esquecido de que ficar
calado num canto era uma das características de seu temperamento. Despediu-se de seu
comandante com belo sorriso no rosto, dizendo-lhe:
— Muito obrigado, apesar de tudo, pelos três dias de folga, comandante Hodkin.
Este o olhou como se não tivesse entendido sua frase. Depois, seu rosto sério se
abriu num sorriso e disse num tom mais carinhoso:
— Ah! É verdade! Estamos chegando a uma idade, Macintosh, em que a gente corre
o perigo de esquecer pequenas coisas de muita importância. Ainda bem que você me
lembrou de sua folga. Bom proveito!
Entre a Frota Espacial Solar de Perry Rhodan e as naves comerciais havia uma
pequena rivalidade e estes momentos de tensão não eram fáceis de debelar. Mas os
psicólogos deixaram de pesquisar suas causas, depois que Reginald Bell lhes disse:
— Meus senhores, por que razão querem extirpar uma coisa tão sadia? Rivalidade já
existia entre Caim e Abel e o próprio Adão não conseguiu manter seus dois filhos de
rédea curta. E vocês pensam em fazer com que os homens da Frota Solar se tornem
amigos íntimos dos tripulantes das naves mercantes?
Assim, com o sentimento de ir ao encontro de um sério concorrente seu, Macintosh
cumprimentou o chefe do Serviço de Rastreamento de Terrânia, Walter Grimpel.
Mas ficou admirado ao ver a maneira como Grimpel o cumprimentou efusivo,
agradecendo-lhe mais de uma vez a interessante comunicação que Macintosh lhe fizera
do planeta Abeis.
Macintosh se via na obrigação de corrigir seus conceitos a respeito da Frota Espacial
e Walter Grimpel, que devia ter, no máximo, trinta anos, lhe era cada vez mais simpático.
— Por favor, mostre-me o relato dos acontecimentos, Mister Macintosh. Permita-me
uma pergunta: chegou a ter alguma explicação para a confusão das amplitudes? Eu até
hoje não estou claro sobre a causa deste fenômeno.
Esta sinceridade cativou totalmente a simpatia de Macintosh pelo jovem chefe do
rastreamento, surgindo daí em diante um ambiente de muita cordialidade entre os dois.
Macintosh começou a sorrir.
— Eu me alegro em saber que também para o senhor estas amplitudes e os
diagramas continuam sendo um mistério, Mister Grimpel, mas o senhor deve ter
conseguido alguma coisa com tudo isto, dados os meios que lhe estão à disposição aqui
em Terrânia.
— O senhor tem um pouco de razão. Até mesmo a positrônica de Vênus não sabe o
que fazer com esta babel de amplitudes e de diagramas. Diante dos dados que nós lhe
transmitimos, apenas nos pôde dizer o seguinte: “Energia com estes valores
contraditórios não existe.” Bonito, não é? Mas, por favor, sente-se, Mister Macintosh.
Duas horas mais tarde, quando Macintosh já estava de novo a caminho da Potomac,
para de lá pegar um avião e dirigir-se até a Inglaterra, a fim de gozar sua curta folga de
três dias, Perry Rhodan encontrou sobre sua mesa de trabalho o relatório de Grimpel.
— Vagabundo? — disse pensativo.
Tinha automaticamente que se lembrar de Gucky, oriundo deste planeta, muito
semelhante a Marte, com pouca vegetação.
— Energia que, conforme a positrônica de Vênus, não existe? E Grimpel também
não obteve nada com os mais potentes rastreadores?
Será que nas profundezas de Vagabundo havia mistérios dos quais os homens ainda
não tinham conhecimento?
Rhodan ficou ali parado, com o relatório na mão, mais tempo do que pretendia.
Quando, à noite, depois de um dia de estafantes conversações políticas, entrou novamente
em seu escritório, pegou automaticamente o relatório de Grimpel. Alguma coisa não o
deixava sossegado. Concentrou-se mais uma vez no que ali estava. Já ia abandonar
aquele mistério inextrincável, quando, casualmente, seus olhos se depararam com a
expressão “levantamento cartográfico feito pela nave mercante Potomac”. Na mesma
hora, ligou o videofone para Grimpel.
— Aqui fala Rhodan. Seu relatório está em minhas mãos. Por que razão não anexou
as fotografias tiradas pela Potomac, Grimpel?
Na sua tela, Rhodan viu como Grimpel, se escusando, balançava os ombros.
— Infelizmente não se pode fazer nada com elas, senhor. O comandante da
Potomac, Capitão Hodkin, não fez um levantamento cem por cento do planeta
Vagabundo. Mais ou menos dezesseis por cento de sua superfície não foi fotografada...
portanto sem valor.
— Mas você mandou analisar estas fotografias que tem em mãos?
— Dediquei meu melhor esforço a elas, sir. Mas não adianta nada, pois está faltando
a parte mais importante. Não foi fotografada aquela região que nossos instrumentos
apontaram como o centro da erupção energética.
A voz de Grimpel denotava então irritação e sua fisionomia exprimia
descontentamento.
— Grimpel — voltou Rhodan com uma ponta de ironia — não vá culpar o pobre
comandante da Potomac.
Walter Grimpel sentiu-se apanhado em flagrante e teve um leve estremecimento.
— Senhor — disse ele dando vazão aos seus sentimentos — a gente julga ter achado
a pista de um grande enigma e de repente tem que constatar que um bobo, que nada
entende do assunto, destruiu, por pura ignorância, toda possibilidade de êxito.
Perry Rhodan estranhou a explosão temperamental de seu auxiliar.
— Com isto, você está afirmando categoricamente que a erupção energética se
realizou de fato em Vagabundo, Grimpel? Lembre-se de quantas possibilidades de engano
podem ocorrer numa distância de tantos anos-luz assim, falsificando total ou
parcialmente os dados do rastreamento.
Walter Grimpel, porém, estava muito firme em suas convicções.
— Sir, quando se deu a erupção energética em Vagabundo, a Potomac se encontrava
apenas a sessenta e oito anos-luz do planeta. O radiotelegrafista Macintosh tinha à sua
disposição somente o aparelho de rastreamento M-17. Este modelo, embora seja um
pouco antiquado, ainda é, para as dimensões abaixo de cem anos-luz, o instrumento mais
exato que possuímos. Comparei seus resultados com os nossos de Terrânia. Não há
dúvida, sir. A erupção energética se deu mesmo em Vagabundo e eu estou em condições
de determinar a origem desta energia misteriosa com a exatidão de até cinco quilômetros.
— Acredito no que você está dizendo, Grimpel, mas responda apenas à minha
pergunta: você já fez uma comparação entre estes valores auferidos dos nossos registros e
os do universo dos druufs?
— Também isto já foi feito, e com muito esmero. Do maior computador de que
dispomos na Terra não saiu resposta nenhuma. No entanto, a positrônica de Vênus
constatou que, com uma probabilidade de 97,53%, esta misteriosa energia não tem nada a
ver com o universo dos druufs, afirmando ao mesmo tempo que...
Rhodan o interrompeu. Seus olhos castanhos olhavam pensativos para Grimpel.
— Eu sei disso, o cérebro eletrônico se recusa a admitir a existência de uma energia
deste tipo. Voltarei ainda a este assunto. Comunicar-lhe-ei brevemente se vou ou não
enviá-lo ao planeta Vagabundo.
Surpreso, Grimpel levantou a cabeça, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa,
ouviu a voz de Rhodan:
— No mais tardar, em três dias, Grimpel. Dentro de uma hora estarei voando para
Vênus. Mande levar os documentos até a comporta da Drusus e não se esqueça do
material deste radiotelegrafista. Eu mesmo quero fazer umas perguntas ao cérebro
eletrônico. Pretendo estar de volta depois de amanhã. Muito obrigado, caro Grimpel.
Rhodan desligou. Antes de se dedicar a outros assuntos, por uns segundos ficou
pensando em Gucky, o rato-castor. Teve instintivamente a vontade de falar com ele sobre
os misteriosos acontecimentos em Vagabundo. Porém Gucky estava numa missão
especial com John Marshall, no mundo de cristal, em Árcon, para auxiliar Atlan num
caso político muito melindroso.
Ao penetrar na comporta principal da Drusus, Rhodan recebeu todo o material
enviado pelo chefe do Serviço de Rastreamento.
“No mais tardar, em três dias, saberemos alguma coisa mais”, pensava Rhodan.
3

Quatro grandes naves mercantes de fuselagem dupla, construídas com o formato de


gotas d’água, desceram quase verticalmente e pousaram ao lado do solo vitrificado, que
brilhava com um tom de azul-aço.
Em cada uma das estranhas naves, surgiu um Ogro, responsável pelo descarrega-
mento dos enormes bojos duplos de sua nave. E, novamente, como que numa invisível
esteira rolante, saía flutuando uma peça de máquina após outra, para depois serem
montadas todas num grande conjunto... por forças misteriosas.
Patenteava-se aqui uma nova técnica que ultrapassava tudo que as galáxias
conheciam.
Dos dois lados do chão vi trincado, moviam-se algumas dezenas de monstros, com
seu andar troteado. Tais seres eram dotados de quatro braços, geralmente escondidos, que
seriam sua verdadeira ferramenta de trabalho.
Somente por este tipo de braços disformes podia-se calcular a horribilidade
angustiante daqueles seres, ou melhor, daqueles monstros. Raios de uma potência
incrível, que saíam de uma pequena abertura entre as garras de suas mãos ou patas,
cortavam placas de mais ou menos meio metro daquela camada de metal vitrificado do
chão.
Era mesmo surpreendente ver como aqueles raios serravam tão facilmente a
duríssima massa vitrificada. Depois, entrava em ação o Ogro de cada nave, o misterioso
ser que pensava e agia independentemente, pois as placas elípticas, recortadas do chão
metálico, se erguiam no ar e vinham flutuando no espaço em direção à comporta da
respectiva nave, como se fossem transportadas por uma invisível esteira rolante.
Entrementes, os componentes mecânicos da grande instalação estavam sendo
montados ao lado do tapete de metal derretido. Um único rato-castor, que do alto de uma
distante colina estava olhando os monstros, encolheu a cauda de medo e, logo depois,
saiu pulando e, cheio de pavor ante o que via, se enfiou numa toca subterrânea.
O conjunto de máquinas montadas, de mais de duzentos metros de comprimento, se
separou lentamente do solo, pairando a uma altura de pouco menos de meio metro, e
aproximou-se da grande zona de metal derretido. O espaço entre o conjunto de máquinas
e a área de metal vitrificado começou a apresentar uma cintilação esquisita... uma
tonalidade alaranjada. As bordas do grande tapete de metal vitrificado começaram a se
dissolver, como uma camada de gelo ao receber água quente. Mas, ao contrário do que
acontece com o gelo, a parte da camada derretida desapareceu, sem deixar nenhum
vestígio de sua mudança de estado.
A dissolução se dava cada vez mais depressa e o conjunto de máquinas, sem
provocar o menor ruído, se aproximava do local onde estavam os quatro aparelhos de
duas fuselagens.
Duas horas depois, não restava mais o menor vestígio da camada de metal derretido
em Vagabundo. Os monstros apagaram qualquer sombra de sua passagem por ali. Mas
ainda não estavam satisfeitos com o resultado.
Assombrosamente, no maior silêncio, o soberbo conjunto do planejado parque
industrial foi sendo desmontado com a mesma supertécnica de transporte como fora
erguido. Todas as suas peças desapareceram nos bojos enormes das quatro naves de
transporte pesado. Ao lado das naves, não se via mais nenhum daqueles monstros de rosto
duplo. Fecharam-se as comportas elípticas das espaçonaves daquela raça misteriosa.
Pareciam prontas para decolar. Mas não houve nenhuma decolagem.
Ao invés disso, a uns cem quilômetros de distância, em pleno deserto de areia
ferruginosa do miserável planeta, surgiu um furacão, levantando uma enorme coluna de
areia, num amplo movimento de sucção. E seu diâmetro se ampliava cada vez mais, sem
se alterar, porém, seu ponto de apoio. Em pouco menos de meia hora, era uma coluna de
poeira de mais de vinte quilômetros de altura, rodopiando numa velocidade descomunal.
O zunido e o sibilar do furacão foram coisas inauditas para a tranqüilidade do pequeno
planeta. Em suas profundas e espaçosas tocas, os ratos-castores tremiam de medo perante
a inclemência da natureza e a catástrofe iminente, cuja melodia terrificante atordoava
seus ouvidos. Nem mesmo o mais curioso daqueles interessantes animais se atreveu a
chegar lá fora para ver o que se passava.
E, de repente, aquela imensa coluna giratória se pôs em movimento. Numa
velocidade espantosa, a tempestade de vento chegou ao local onde há poucas horas atrás
havia mais de dois quilômetros quadrados de metal derretido e vitrificado. Entrementes, o
ciclone levantara uma enorme massa de areia do deserto. Com um fragor assustador, o
céu se escureceu e, em pleno dia, a noite se abateu sobre aquela região. Como que
abandonados, continuavam lá embaixo os quatro transportes de fuselagem dupla. Os
monstros em seu interior pareciam não dar nenhuma importância ao que acontecia lá fora,
nem tomar conhecimento do furacão.
Já atingira a região de dois quilômetros quadrados de metal fundido e, quase de
repente, seu movimento para frente parou e sua velocidade foi diminuindo.
Grande quantidade de areia cobrira esta região do frio planeta. Em poucos minutos,
tudo estava sepultado sob uma camada de vinte metros de uma areia avermelhada e fina.
Até mesmo os quatro aparelhos de transporte pesado dos monstros não foram poupados.
Os cimos das colinas mais próximas quase não sobressaíam mais na paisagem. Assim, em
tão pouco tempo, a visão do local se transformara totalmente.
O ciclone continuou, mas não mais com aquela fúria toda. Enquanto seu movimento
de avanço ainda estava em torno de cem quilômetros horários, a enorme coluna foi
perdendo a altura, alargando-se mais junto do solo. Por onde passava, ia sepultando tudo
com uma grande camada de areia e isto numa extensão de quinhentos quilômetros de
comprimento por cem de largura.
Então, mais uma vez, sem que ninguém esperasse — o que deixava entrever,
naturalmente, que se tratava de um furacão provocado artificialmente — a gigantesca
catástrofe desapareceu, para voltar ao desolado planeta o silêncio e o frio de sempre.
Na segunda espaçonave dos monstros, encontrava-se o chefe supremo a quem
obedeciam os líderes de grupos. Não diferia dos demais pelo traje usado, mas sim pela
maneira como estava sentado à frente de um estranho aparelho de observação. Ali, pelo
modo como todos o contemplavam com respeito, se percebia a força de seu poder. Em
sua cadeira giratória, virou-se para trás, assim que notou que o ciclone estava chegando
ao fim e, através de seu transmissor orgânico, entrou em contato com seus subordinados,
chefes de grupos:
— Partiremos em cinco períodos de tempo. Os rebaixamentos no solo do planeta
deixados pela decolagem de nossas naves devem ser nivelados.
Os transportes dos estranhos seres estavam atolados na areia mais ou menos até os
vinte metros de altura. Os restantes oitenta metros sobressaíam da camada cor de
ferrugem. Depois que as quatro naves se desprenderam do solo, sem o mínimo ruído,
viam-se abaixo delas as oito grandes cavidades no deserto de areia, provocadas pelas
fuselagens duplas dos quatro transportes pesados. Todas se mantinham pairando a pouca
altura do solo. De um momento para outro, foi como se uma mão invisível, mão de
muitos metros, passasse por sobre a areia para encher as oito grandes valas, apagando
assim qualquer vestígio da presença de alguém.
Silenciosamente, as naves subiram na vertical e, numa aceleração intensa,
desapareceram no espaço.
Nove horas após a aterrissagem de suas naves, não restava nada que pudesse provar
a presença de estranhos no planeta.
Foi exatamente na mesma hora em que Perry Rhodan deu ao chefe do Serviço de
Rastreamento de Terrânia a missão de voar com uma espaçonave da classe Estado para o
planeta Vagabundo, a fim de realizar os exames mais profundos possíveis.

***

Cinco dias mais tarde, Walter Grimpel já estava de volta à Terrânia. Sentado diante
de Perry Rhodan, fazia seu relatório.
— ...finalizando o assunto de nossas investigações, resta-nos dizer que não
encontramos nada, sir. Não há o menor indício de que tenham irrompido em Vagabundo
explosões energéticas daquela intensidade. Nossa suspeita ficou sempre naquela faixa de
areia de quase seiscentos quilômetros de extensão, cobrindo rigorosamente a região
geográfica em questão, de acordo com nossas medições, minhas e de Macintosh.
“Tentamos, pois, remover a grande camada de areia no ponto determinado, para se
chegar ao chão, propriamente. Depois de algum sacrifício, nós o conseguimos. Outra
decepção. Não havia nada de palpável. Fiz tudo para não ser vítima de um engano. Nossa
nave já estava preparada pra decolar de volta, quando não sei por que ainda saí sozinho e
achei isto aqui, chefe.”
Walter Grimpel colocou em frente do administrador do Império Solar, Perry
Rhodan, um pedacinho de aço azulado fosforescente, do tamanho de um grão de ervilha.
Interessado, Rhodan o apanhou entre os dedos, colocou-o na palma da mão para lhe
medir o peso.
— Curioso, extraordinariamente pesado, Grimpel! Que é isto?
Grimpel estava meio sem jeito.
— Senhor, ainda não sabemos.
Rhodan o olhou surpreso. Com toda calma, como era seu hábito nas horas mais
difíceis, disse:
— Grimpel, você não escolheu para sua viagem de pesquisa os melhores
colaboradores?
O chefe do Serviço de Rastreamento deu de ombros, numa expressão de desânimo.
— O Doutor Innogow...
— Innogow? — repetiu Rhodan admirado. — E o Dr. Innogow não conseguiu
analisar isto? É estranho.
— Mais estranho ainda é o comportamento físico deste material fosforescente, sir.
Não reage a nada.
— Mas, certamente, será possível constatar seu peso atômico.
— Já o constatamos, senhor. Mas ninguém pode acreditar que o objeto de exame
não passa de areia...
— Areia?! — o olhar de Rhodan parecia ver coisa muito distante. — Você falou em
areia? E falou também de uma tempestade de areia em Vagabundo? Este material pesado
será areia?
Grimpel sorriu sem jeito.
— A mesma pergunta fiz eu ao Dr. Innogow. Respondeu com um “não” categórico.
Mas logo depois acrescentou: “O que podemos constatar neste material são vestígios de
areia fundida, mais ou menos na proporção de quatro milésimos do conjunto. Mas não
me pergunte o que seja o restante, Grimpel, não sei mesmo.” É este meu relatório, chefe.
Rhodan o olhou pensativo.
— Estou sentindo falta de uma coisa muito importante em seu relatório, Grimpel.
Você não cuidou de entrar em contato com os ratos-castores?
— Claro que sim, sir. Dei ordens a respeito. Mas, num raio de mil quilômetros, não
vimos nenhum deles. Encontramos os primeiros na região do pólo sul e, dois dias depois,
nos deparamos com um grande grupo deles, no outro lado do planeta, na zona equatorial.
Infelizmente, foi-nos impossível entrar em contato com eles. Embora sejam criaturas
adoráveis, estes ratos-castores, com sua mania de brincar o tempo todo, principalmente
com suas forças telecinéticas, transformaram nossa espaçonave num verdadeiro hospício.
Tudo que não estava aparafusado no chão, começou a voar e pairar rente ao teto. Por três
vezes fui vítima de suas peraltices telecinéticas.
“Tivemos que fugir desta raça de bagunceiros, pois queríamos chegar à Terra e não
ficarmos condenados a passar o resto da vida numa nave semidestruída. Senhor, estes
ratos-castores podem se transformar numa praga. Admiro-me muito de como nosso
Gucky seja tão moderado.”
— Se você soubesse, Grimpel, quantas o pequeno Gucky já aprontou — disse
Rhodan distraído, sem esconder, porém, seu descontentamento com os resultados obtidos
com a investigação em Vagabundo. Continuava ainda com a pedrinha na palma da mão.
Olhou-a de novo.
— Grimpel, você examinou bem o chão?
— Chefe, não houve uma coisa que nós não fizéssemos para descobrir a causa das
erupções. Mas tudo foi inútil.
Grimpel e Bell se encontraram na saída do escritório de Rhodan. Bell, que dispunha
de uma memória fantástica para fisionomias, reconheceu logo o chefe do Serviço de
Rastreamento e sabia qual fora sua última missão.
— Então? — perguntou Bell, ao sentar-se na poltrona, ocupada até pouco antes por
Grimpel. — Alguma novidade?
— Sim, isto aqui! — disse Perry mostrando na palma da mão a pedrinha azulada.
— E o que é isto? — perguntou Bell, sem tocar a pedrinha.
— Quatro milésimos do tamanho total é areia fundida, seu gorducho.
Reginald Bell olhou interessado. Apanhou com todo cuidado o pedacinho de aço
fosforescente. Estranhou inicialmente o peso.
— Santo Deus, isto é mais pesado do que chumbo.
— É isso. Um material superpesado, e assim se esgota todo nosso conhecimento.
Apenas posso ainda informar que foi encontrado no planeta Vagabundo, sob uma camada
de mais de vinte metros de areia, exatamente no local onde Grimpel julga ser o centro das
erupções energéticas.
— E por que você não mandou Gucky tomar parte nesta excursão? Seria o número
um, num caso deste.
— Bell, você sabe perfeitamente que Gucky se encontra com John Marshall no
mundo de cristal, ajudando Atlan, sendo impossível entrar em contato agora com ele.
Bell sorriu complacentemente.
— Quando você fala tão calmamente assim, Perry, pode enganar os outros, a mim,
não. Resumindo: você quer dizer que a expedição para Vagabundo fracassou, não é?
— Grimpel nem conseguiu entrar em contato com um rato-castor.
— Quer dizer que Grimpel acabou fugindo deles em Vagabundo, não é? E você não
o pode censurar por isto, Perry. Estes ratos-castores, quando começam a brincar, parecem
loucos. Você se lembra dos apuros em que Gucky nos deixava nos primeiros anos? E o
que tivemos que agüentar em Vagabundo? Eu dou graças a Deus por Grimpel ter podido
voltar são e salvo.
— Puxa! Você o está defendendo?
— De maneira alguma, procuro somente fazer com que você compreenda as
circunstâncias que o pobre Grimpel teve de enfrentar. Mas, voltando a este pedacinho de
metal, você já pensou nos druufs?
— Já sim! É bem possível que algumas naves dos druufs tenham descido no planeta
Vagabundo e estejam agora vagando por aí, entre as estrelas. Mas nossos homens também
não estão dormindo. Tudo que temos no arquivo sobre os druufs foi consultado para se
poder decifrar os diagramas e a confusão nas amplitudes. Fiz perguntas a respeito na
positrônica de Vênus. Com um não categórico, os druufs foram excluídos. Eles não têm,
pois, nada a ver com as erupções energéticas em Vagabundo.
Bell deu um longo suspiro.
— Cérebro eletrônico, superpositrônica, positrônica de Vênus... sempre este “deus
ex machina”! Aceito estas coisas como simples instrumentos de auxílio, mas aí pára
minha simpatia por elas. Perry, se fosse possível injetar um pouco de vida nestas
máquinas eletrônicas, então eu daria valor aos seus números e resultados. Mas sem isso,
desculpe dizer, Perry: odeio estes monstros de cifras frias.
“E se os druufs de fato andaram fazendo alguma malandragem lá por Vagabundo?
Será que conhecemos mesmo tão bem assim o mundo dos druufs? Será que queremos
enganar a nós mesmos? Pretendemos dizer com arrogância que conhecemos todos os
insondáveis confins das galáxias? Não acha um pouco exagerado isto? Positrônica de
Vênus para cá, positrônica de Vênus para lá... o que adianta isto? E a nossa fantasia, o
dom de combinar as coisas, forças que constituem a grandeza da Humanidade... Portanto,
meu palpite é que alguma nave dos druufs andou fazendo qualquer experiência no planeta
Vagabundo. Que diz a análise com o C14 sobre a idade deste material tão pesado?”
— Não diz nada. E para que você não tenha mais dúvidas a respeito, Bell, esta
pedrinha que você teve entre os dedos não responde a nenhum exame com o C 14. O que
me diz agora?
O olhar de Bell oscilava entre o material e Rhodan. Depois falou com ponderação:
— Portanto, não foram os druufs! O material deles não resiste a um exame. Santo
Deus! As coisas vão se ampliando. Há poucas semanas travamos contato com os homens-
peixe de Opghan, e agora este negócio em Vagabundo! Mas será que estas erupções
energéticas se realizaram em Vagabundo ou diante de Vagabundo, em pleno espaço? As
medições de nossos instrumentos de rastreamento estão exatas? Tão exatas que excluam
um erro?
— Bell, gostaria de poder dizer que as medições estão erradas. Infelizmente não o
posso. O que posso afirmar é que cometi um erro muito grande em não mandar Gucky
para Vagabundo. Não queria realmente criticar o trabalho de Grimpel, mas não posso me
livrar do pensamento de que ele se esqueceu de algo muito importante. Mas, daqui para
diante, haveremos de controlar tudo que se passa neste planeta.

***

Os monstros voltaram pela terceira vez a Vagabundo, e nenhuma estação, nem da


Terra, nem de Árcon, conseguiu registrar sua chegada.
Desta vez, mais de quinhentas naves de dupla fuselagem, no estranho formato de
gota d’água, desceram no lado oposto, isto é, na zona do equador. Ocuparam ali uma área
de oito quilômetros de diâmetro.
Quem comandava os trabalhos não era mais um chefe de grupo, mas o chefe
supremo Enn.
Novamente o mesmo tipo de descarregamento das naves de transporte e os mesmos
monstros de rosto duplo moviam-se intensamente. Mas o que estavam fazendo, os ratos-
castores escondidos não podiam compreender. E nem mesmo um terrano, se ali estivesse,
haveria de entender.
Os monstros não sentiam nada de extraordinário durante o trabalho. Não possuíam a
faculdade de distinguir entre uma coisa boa ou ruim. Uma missão era um trabalho a ser
feito, e toda sua vida não passava de trabalho. Até mesmo a vida de um líder de grupo ou
do próprio Gal Enn.
Viviam numa comunidade em que não havia o conceito de obrigação nem o de
submissão. Como um não se diferenciava do outro, o fato de um poder distinguir o outro
na multidão, principalmente quando se comunicavam por intermédio do rádio orgânico,
era um tanto extraordinário. Cada qual dispunha de uma freqüência especial, que lhes
servia de identificação, como acontece nos homens com a impressão digital. Apenas, esta
freqüência especial não tinha nada a ver com os nomes dos chefes ou com o número dos
monstros. Não lhes parecia nada anormal que, ao nascer, cada um deles fosse registrado
como um objeto. Pois, para quem não existe tristeza nem alegria, um ser que nunca
poderá ter seu eu vive e morre como mera parcela de uma inteligência-grupo.
Durou dois dias o descarregamento da grande frota. Os ratos-castores, que tinham
suas tocas nas proximidades do local escolhido para aterrissagem, olhavam estarrecidos
aquelas peças metálicas que pairavam silenciosas e depois iam se acomodando no solo,
como se lá estivessem superguindastes automáticos.
No terceiro dia, o espetáculo começou a ficar monótono para os animais telecinetas.
Oito deles, de um grupo de cinqüenta cabeças, haviam combinado de fazer com que
aquela espécie de grua ou guindaste, de cem metros de altura, voasse pelos ares. Eram os
oito mais fortes telecinetas do grupo. Nas escaramuças com outros grupos de ratos-
castores, sempre saíam vitoriosos, usando apenas suas forças telecinéticas, com as quais
levantavam as colinas habitadas por seus rivais e as afastavam por muitos quilômetros.
Muitas vezes, as colinas eram alçadas a grande altura e, ao cair de mais de mil metros,
não eram mais colinas, e sim areia e terra que acabavam sepultando muitos irmãos de
raça.
Possuídos pelo instinto da brincadeira, os oito atacaram o suposto guindaste, que
deu uma forte guinada para o alto, bem longe do solo. Porém, no mesmo instante, os oito
animais foram atingidos por uma força descomunal, que não tinha nada a ver com
poderes telecinéticos, enquanto que o guindaste misteriosamente tomou a posição
horizontal. Ficou pairando a um metro do chão.
Uma cena horrível se desenrolou entre o grupo dos animais que estava ali parado, de
olhos arregalados. Velhos e mais moços, todos rolaram pelo chão, vítimas de grandes
dores.
Seus gritos ainda enchiam o espaço, quando uma muralha negra avançou contra a
colina onde ficavam as tocas. Como o raio que atingiu os oito telecinetas, a muralha
negra também logo voltou a desaparecer.
Não restou nem vestígio dos pobres animais!
De um momento para outro, todo e qualquer sinal de vida desapareceu das galerias
subterrâneas que davam para os abrigos dos ratos-castores. Os monstros haviam vencido.
Como que guindado por mãos misteriosas, o objeto semelhante a um guindaste se
ergueu verticalmente no ar, alcançando uma altura de mais de cem metros.
A partir daí, nas redondezas não havia mais ninguém para presenciar o trabalho dos
monstros.
O Gal, chefe supremo, que se chamava Enn, controlava o Ogro de sua nave.
Numa tina aberta, em forma de elipse, mexia-se qualquer coisa que tanto podia ser
um plasma como também quitina líquida. Do meio desta massa ou líquido grosso
começou a surgir um brilho intenso, quando o Gal virou um de seus dois rostos para a
tina, concentrando o olhar.
— Ogro, será que seremos ainda importunados? — perguntou o Gal ao Ogro,
através de seu rádio orgânico.
A tina aberta, que repousava numa carcaça assimétrica, deu a resposta através do
mesmo meio de comunicação:
— Gal Enn, a duzentas léguas daqui ainda existem três grupos de ratos-castores.
Posso liquidá-los?
— Sim, liquide-os — ordenou o Gal. — Abra-te, Ogro!
O Gal deu um passo para trás, abaixou a cabeça e um de seus quatro olhos passou a
mirar a carcaça assimétrica que cada vez se tornava mais transparente, deixando ver uma
formação confusa de pequenos elementos escuros e blindados. Fagulhas saltavam para
todos os lados.
O Gal ergueu o braço, que saía de seu corpo naquele lado, na altura do ombro
humano, mais ou menos onde fica nosso esterno. Esticou-o na direção do ponto amarelo
entre os elementos escuros blindados. Depois, abriu bem os dedos, ou melhor, garras,
deixando um espaço maior entre o segundo e o terceiro. Um raio sibilante, mas invisível,
devia irromper daquele espaço. E, realmente, no momento em que começou o ruído, o
ponto amarelo sofreu grandes alterações: inflou-se, como uma bola transparente,
envolvendo os elementos blindados mais próximos, deixando-os bem à vista: era um
organismo com câmaras, músculos e veias, mas também com campos vibratórios e com o
quadro típico de campos magnéticos, tornados visíveis pela presença da limalha de ferro.
Portanto, o orgânico e o técnico formavam aqui uma unidade, e esta unidade recebia
agora energia extra através do Gal Enn.
O ponto amarelo já tomava a terça parte do volume total da carcaça, quando o Gal
terminou sua transmissão energética. O ruído sibilante cessou, o crescimento do ponto
amarelo estancou e foi voltando ao normal. Desapareceu também a transparência da
carcaça assimétrica, onde se apoiava a tina elíptica. O Gal deixou cair o braço estendido,
virou-se, deixando o compartimento, cujas paredes recebiam uma iluminação indireta.
E o manto da morte se abateu sobre os pobres ratos-castores na forma de uma
muralha negra, tão veloz como a luz, mas silenciosa como a própria morte.
Neste momento de destruição e de morte, desencadeado e dirigido pelo Ogro —
aquele produto híbrido do mundo dos monstros, um misto do orgânico com o técnico —
deixaram de existir algumas centenas dos habitantes primitivos de Vagabundo. E, num
âmbito de milhares e milhares de quilômetros em torno do local onde desceram as
horrendas naves de fuselagem dupla, o planeta se tornou de fato um mundo deserto, onde
nem mais uma planta germinaria.

***

Seis dias depois, nove transportes de fuselagem dupla estavam voltando de um vôo
pelo planeta. No trecho percorrido, cada nave fez duas aterrissagens. Em cada um destes
pousos, descarregou, por intermédio das forças do Ogro, um daqueles enormes
guindastes, afundando-o de tal maneira no solo, que só sobressaía um trecho não maior
do que um antebraço humano.
Antes das naves dos monstros prosseguirem em sua viagem, surgia sempre a
muralha preta para cobrir uma área de pelo menos oitenta quilômetros quadrados.
Mal as nove naves haviam chegado de volta ao local de onde partiram, teve início a
“construção” do parque industrial. Tal maneira de construir daria aos terranos uma
estranha impressão, caso estes a presenciassem.
Assistido por três chefes de grupo, o Gal Enn deu, na sala de comando de sua nave,
uma série de ordens pelo rádio orgânico. Postados diante de um quadro levemente
côncavo, apresentando um grande número de botões de ligação, não maiores do que a
unha do dedo polegar, estavam os três chefes de grupo. Manipulavam os pequenos
botões, com três dos seus quatro braços.
Depois que o Gal Enn acabara de irradiar sua última mensagem, os chefes de grupo
não mais se moveram.
Mais de quinhentas espaçonaves dos estranhos monstros estavam em Vagabundo.
Cada aparelho de duas fuselagens dispunha de um Ogro. Através de suas ordens, com a
assistência dos três líderes de grupo, Gal Enn conseguira fazer deles uma grande corrente
de força. Por meio de seus Ogros, os monstros construíram o poderoso parque industrial
nas profundezas do planeta Vagabundo.
Utilizavam-se de forças completamente desconhecidas tanto para os terranos como
para os arcônidas. O que se apresentava como um grave problema técnico para a mais
avançada tecnologia terrana ou arcônida, parecia uma brincadeira para aqueles monstros.
A dez quilômetros de profundidade, as rochas maciças se liquefizeram. Originou-se,
assim, uma série de veios de rochas líquida, cada um deles partindo do centro da pedra,
para os espaços vazios em volta. Ali então se assentavam novos blocos de pedra, trazidos
facilmente em estado líquido.
No curto espaço de meio dia de Vagabundo, surgiu a dez mil metros de
profundidade uma gigantesca catedral subterrânea de cinco quilômetros quadrados de
superfície, com altura média de duzentos metros.
Assim que o Gal Enn, através do Ogro de sua nave, soube que a cavidade
subterrânea atingira o tamanho necessário, ordenou por seu rádio orgânico que se
iniciasse a instalação.
Seus três líderes de grupo, sentados diante do quadro de comando, manipularam
apenas algumas vezes os pequenos botões.
Perante as naves dos monstros, desenrolou-se, no maior silêncio, um cenário de
assombrosa dramaticidade.
Do enorme conjunto técnico-industrial, ali montado, foi desaparecendo peça por
peça, como que dissolvidas no ar. Sem a ajuda de nenhum transmissor fictício ou de uma
contra-estação, montara-se numa cavidade cavada através de 10 mil metros de terra e
rocha uma gigantesca instalação de supermaquinaria na extensão de mais de três
quilômetros quadrados, peça por peça, exatamente como já estava montada ao lado das
espaçonaves.
Esta cena inacreditável não durou mais de meia hora, tempo de Vagabundo. Gal Enn
recebeu então a comunicação de que o trabalho estava executado. O chefe supremo,
portanto, não necessitava mais da concentração energética de todos os Ogros. Seus três
líderes de grupo receberam a ordem de suspender a ligação em corrente única. E
começou novamente a manipulação mecânica dos botões e alavancas no quadro côncavo.
Ao receber em sua freqüência de alarme a comunicação de que “uma espaçonave
desconhecida estava em vôo direto para este planeta”, Gal Enn não se assustou.
Completamente tranqüilo, Gal Enn apenas disse em seu rádio orgânico:
— Executar operação escurecimento.
Após o que, não se interessou mais pela nave desconhecida. Sabia por longa
experiência que o escurecimento era uma proteção infalível.
No interior de uma das naves, estava um líder de grupo sozinho. Achava-se num
aposento cheio de instrumentos inexplicáveis. Não havia nada semelhante aos medidores
e dispositivos de construção arcônida, terrana ou dos druufs. Tudo ali era terrivelmente
esquisito, como todas as coisas naquelas espaçonaves. Este líder de grupo observava,
com seus dois rostos, todos os instrumentos de controle na frente e atrás dele, sendo que
seus quatro braços, como também seus quatro olhos, que lhe davam uma visão de 360
graus, estavam ocupados.
Tinha sido avisado pelo Gal Enn de que as instalações a dez mil metros dentro da
terra e da rocha já estavam em pleno funcionamento. Sua missão agora era constatar se as
alterações na forma haviam se efetuado de acordo com as provisões dos seus cientistas.
Enquanto uma espaçonave terrana da classe dos cruzadores leves circunvoava o
planeta a alguns milhares de metros de altura, fazendo um levantamento
aerofotogramétrico, lá embaixo, mais de quinhentas naves dos monstros, muito bem
camufladas, aguardavam pelas primeiras provas de que sua experiência daria bom
resultado.
O líder de grupo, que no seu laboratório observava com os quatro olhos os
instrumentos ao seu redor, comparava de memória as previsões dos cientistas com os
dados fornecidos pelos instrumentos de medição. Mas ainda hesitava em comunicar ao
Gal Enn o sucesso total da experiência.
Passou mais uma hora do tempo de Vagabundo e o cruzador leve da Frota Solar
continuava circunvoando o planeta. Entrementes, soube o líder de grupo, com plena
evidência, que o sucesso era absoluto e transmitiu ao Gal Enn os resultados de suas
observações.
— Partida em dez períodos de tempo — ordenou Gal Enn.
Continuava não dando nenhuma importância à nave terrana que sobrevoava todo o
planeta. Terminara o décimo período de tempo. Mais de quinhentas naves de dupla
fuselagem deixaram Vagabundo, sempre protegidas pela camuflagem da escuridão total.
Mas sabiam bem o que estavam fazendo.
Apesar de tudo, o cruzador leve terrano as conseguiu localizar.
E, devido ao fato de não ser possível um rastreamento espacial normal, pois havia
algo impedindo, desconfiava-se do refletor de ondas e mais ainda do resultado de suas
medições que assinalavam que a 74 quilômetros Grün 45,32:49 se movia um corpo de
vários quilômetros de diâmetro em direção ao espaço.
A tela panorâmica foi ligada para a maior ampliação possível e mesmo assim não
apareceu nada. Com isso, a tripulação da sala de comando estava convencida de que o
refletor de ondas de sua nave esférica estava ultrapassado ou carente de uma revisão.
Por coincidência de certas circunstâncias, a gigantesca frota dos monstros passou
invisível diante da nave terrana e abandonou o planeta Vagabundo.
4

Já há algum tempo que alguma coisa estranha se passava com Gucky, tenente do
Corpo de Mutantes. Não era mais o Gucky que todos conheciam.
Depois de sua última missão contra Thomas Cardif no importante planeta arcônida
Archetz e após sua volta à Terra, deu-se uma alteração em Gucky, só descoberta por
Reginald Bell já em fase mais adiantada.
— Alô, little mouse — disse-lhe brincando Bell, enquanto lhe passava a mão pesada
pelos ombros — o que há com você? Está doente ou anda se “abastecendo” demais no
meu conhaque?
Gucky estremeceu sobre a mão do amigo e respondeu áspero:
— Pelo amor de Deus, me dispense de suas asneiras, me deixe em paz — com estas
palavras teleportou-se para outro lugar distante, deixando Bell boquiaberto e estupefato.
Dando de ombros, sem poder explicar o que acontecia com o amigo, Bell passou
para os trabalhos do dia. Tempos depois, em conversa com Rhodan, ouviu a seguinte
frase:
— Não estou gostando de Gucky, gorducho. Parece que o inteligente animal perdeu
todo o entusiasmo. Não faz mais das suas brincadeiras, foge de todo mundo, inclusive de
mim. De você também?
Em sua maneira espalhafatosa, Bell disse o que pensava de Gucky:
— Ele anda por aí escondendo-se, como alguém que está na fossa, que não agüenta
nem mesmo consigo. Só Deus sabe o que se passa com ele. Mas, não tenha medo que ele
voltará ao normal.
O ano 2.044 estava chegando ao fim e a situação no Império de Árcon ia se
normalizando. A Terra passava por um período de calma. Mas, uma criatura que se
tornava cada dia mais estranha, era Gucky.
Sempre que lhe era possível, ficava sentado em seu bangalô, olhando para as
paredes nuas, escondendo seu dente de roedor e entregue ao seu cismar.
Ele mesmo não sabia o que lhe faltava. Não se sentia propriamente doente, mas
estranhamente deprimido, sem vontade para nada, constantemente inquieto. Às vezes
tentava escapar de si mesmo. Mas não conseguia, como ninguém, aliás, consegue quando
chega a uma situação desta.
No dia anterior, o chefe o havia chamado. Perry queria encorajá-lo. Mas Gucky não
desejava saber de entusiasmo, queria ter seu sossego, não falar com ninguém, nem ver
ninguém.
Depois de poucas palavras, Rhodan terminou sua conversa e muito preocupado
mandou chamar John Marshall, chefe do Corpo de Mutantes.
— Marshall, dê uma chegada até aqui. John veio imediatamente.
— Marshall, você sabe o que está acontecendo com Gucky?
O chefe do Exército de Mutantes também não sabia.
— Ele não permite que a gente leia seus pensamentos, sir — respondeu o melhor
telepata de que dispunha Perry Rhodan. — E, além disso, recusa qualquer conversa.
Talvez esteja doente ou é a idade que se faz sentir de repente. Qual é a idade dele agora?
O senhor sabe?
— Ninguém sabe — respondeu Rhodan. — Recordo-me de que, há mais de uns
quarenta anos, Bell tentou saber dele a idade exata, mas como uma senhora vaidosa, não
quis de maneira alguma falar em idade. É interessante lembrar estas coisas, mas não
deixa de ser constrangedor, quando se considera a possibilidade de um rápido
envelhecimento. Será que seu organismo reagiria a uma ducha celular?
O que Marshall respondeu foi mais uma conversa consigo mesmo, do que com
Rhodan.
— Gucky e velho? Não consigo unir estes dois conceitos, chefe. Mas, muito menos
pensar que ele esteja doente. Não dá a impressão de uma grande depressão?
Rhodan se recostou no espaldar da poltrona e quando Marshall olhou para ele,
vislumbrou certa intranqüilidade nos olhos do administrador do Império Solar.
— John, você não quer fazer mais uma tentativa? Quem sabe, Gucky lhe vai dizer
alguma coisa.
— A mim, chefe? Quando se esquiva até do senhor e de Bell, não querendo falar
com ninguém! Nem vai permitir que eu me aproxime. De qualquer maneira, vou tentar.
Não creio, porém, em sucesso.

***

Para a festa do réveillon, Rhodan fez questão de convidar Gucky.


— Pelo amor de Deus — dizia Gucky — me dispense desta, nem consigo mais
olhar para mim mesmo. Não tenho o direito de lhes estragar a festa e a boa disposição.
Pretendo fazer outra coisa. Tenho que me divertir. Pretendo dar uma chegada a Paris,
deve ser uma cidade maluca, não é? Você conhece Paris, Perry?
Mas tudo isto tinha um tom de cansaço e de desinteresse, de maneira que Perry
Rhodan chegou à conclusão de que Gucky devia estar seriamente doente.
Descreveu-lhe Paris nas cores mais maravilhosas, porém, em meio à sua exaltação à
Cidade Luz, Gucky o interrompeu enfastiado:
— Ah! Não quero passar meu réveillon em Paris. Que bobagem! Fico entre minhas
quatro paredes. Faça-me apenas um favor, Perry: tire Bell do meu caminho. Não posso
suportar sua compaixão, apesar de o coitado querer ajudar-me. Miséria... dá vontade de a
gente sumir de uma vez.
Decepcionado, Perry continuou olhando para seu videofone. Gucky já desligara.
“Que está se passando com Gucky?”, perguntou Rhodan a si mesmo, mergulhado
em séria preocupação.

***

Seis dias antes daquela conferência de emergência, em que desempenharam o papel


de mais importância o diário de bordo de um cruzador leve e o refletor de ondas, o ar
cintilou de repente diante de Rhodan. Gucky tornou-se visível.
— Bom dia, chefe!
Era o velho tom brincalhão de Gucky e, bastante surpreso, Rhodan olhou para ele.
— Oba! Gucky, como é, já está tudo cem por cento?
E, se fosse preciso, Rhodan continuaria naquele tom de gozação, usado sempre pelo
rato-castor.
— Como banquei o bobo, Perry!
— Você, um bobo, Gucky? Impossível. Ou você aprontou mais uma das suas e a
consciência lhe dói agora. Escute aqui, de antemão está tudo perdoado e esquecido, meu
amigo.
Perry Rhodan bancou o generoso e magnânimo.
Viu então o famoso dente roedor. E, soltando um longo chiado, o rato-castor falou:
— Aceito. Sua absolvição geral, eu transfiro para minha próxima falta, chefe. Mas
agora tenho que decepcioná-lo. Realmente não aprontei nada de errado, apenas sei agora
o que me está faltando. Mas, por favor, Perry, não vá caçoar de mim, não é? Estou louco
de saudade do meu planeta. Gostaria de gritar com toda força, tanta é a alegria que sinto.
Por favor, Perry, deixe-me voar para Vagabundo.
“Saudade”, pensou Perry assustado, e, puxando Gucky para junto de si, o abraçou.
— Gucky, meu pobre amigo!
E isto foi dito com sentimento, com sinceridade e com compreensão.
— Perry... meu caro Perry!
Os braços do rato-castor envolveram o pescoço de Perry Rhodan, comprimindo sua
cabeça contra o peito do homem mais poderoso do Império Solar.
“É saudade que ele tem”, pensava ainda Rhodan. “Este pequeno animal tem
saudade do deserto e frio planeta Vagabundo e de seus companheiros de raça. Sente
saudade como um ser humano que, de repente, percebe que não pode criar raízes numa
terra estranha.”
— Você pode partir amanhã, Gucky. Quer que uma nave o leve para lá ou prefere
chegar sozinho?
Ao terminar a pergunta, Rhodan percebeu de novo o dente roedor em toda a sua
grandeza. Isto já era um sinal evidente do contentamento de Gucky. No entanto, não se
contendo de alegria, deu rédeas a seu entusiasmo:
— Sozinho, Perry, ceda-me uma nave tipo Space-Jet. Prometo-lhe trazer de volta o
aparelho sem nenhum arranhão.
— Certo, Gucky, mas um Space-Jet exige pelo menos uma tripulação de quatro
homens.
Mais do que depressa Gucky largou suas mãos das de Rhodan, aprumou-se todo e se
postou na frente de seu chefe, respondendo:
— Quatro homens... Mas queria ir sozinho para Vagabundo! E o que é necessário
para transformar um jato de quatro tripulantes em um aparelho de um só tripulante?
Somente uma ordem sua, alguns robôs e, em três horas, está tudo resolvido.
Nesta altura, Perry desandou num grande sorriso. Assim como Gucky se sentia feliz
e aliviado por ter reconhecido depois de semanas e semanas de angústias a causa de sua
depressão, também Rhodan se sentia contente e livre dos cuidados em torno do rato-
castor. Seu sorriso espelhava o que lhe ia no íntimo.
Neste momento, Reginald Bell entrou no escritório de Rhodan. Viu Gucky abraçado
a Perry Rhodan e ouviu o final da boa gargalhada do administrador.
— Vocês dois estão indo muito bem, como vejo — observou Bell que de nada
suspeitava, sentando-se depois à sua mesa de trabalho.
— Fantasticamente bem — concedeu Rhodan. — Sinto-me aliviado, gorducho.
Gucky se...
— Por favor, Perry — suplicou o rato-castor, interrompendo o chefe.
Mas Rhodan não se deixou levar e concluiu:
— Como estava dizendo, Gucky se queixa de que você lhe ensina muita coisa errada
com sua linguagem que não é nada de salão.
— Este santinho que está aí abraçado a você já recuperou a saúde? Sim ou não? —
vociferou o temperamental Bell, descendo de sua mesa e indo para a frente de Rhodan e
de Gucky, querendo pegar este último.
— Gucky está se convalescendo, Bell — disse-lhe Rhodan. — Esteve doente de
saudade e voa amanhã sozinho para Vagabundo num Space-Jet adaptado.
— Saudade? — Bell ficou pensativo e se esqueceu na mesma hora de que tinha uma
rusgazinha com Gucky. — Coitado do pobre-diabo!
E aquela mesma mão que queria agredi-lo, alisou seu pêlo com carinho.
— Gorducho — falou o rato-castor — você é, depois de Perry, o sujeito mais
bacana, só que você não me deve ensinar tantas palavras impróprias, como tem feito.
Perry acha que desta maneira você poderia me...
— Estou vendo que você se recuperou depressa demais, Gucky — atalhou-o
Rhodan e sua voz estava um pouco mais dura.
— E o motivo disto é porque amanhã vou voar para minha terra, Perry. Estou com
medo de explodir no ar de tanto contentamento. Quanto tempo de licença você me dá?
— Se não acontecer nada neste meio tempo, um mês inteiro, Gucky. Isto basta?
— Um mês, chefe, um mês inteiro de férias? Não é demais para mim?
O inteligente animal não cabia em si de feliz. Apesar de todas as suas peraltices e
pequenos atos de indisciplina, que lhe causavam depois muitas horas de arrependimento,
não havia perdido nada de sua modéstia.
E olhando de Rhodan para Bell:
— Um mês inteiro de férias?
Ainda não estava acreditando. Acudiu-lhe de repente uma suspeita:
— Ou será que eu recebo este mês de férias, para não poder participar de uma
missão que está para se realizar?
E contra a ordem expressa, procurou com seus fortes dons telepáticos ler os
pensamentos do administrador. Rhodan, porém, se protegeu de forma que Gucky nada
percebeu.
— Gucky, não há previsão para nenhuma missão. Se durante seu tempo de férias se
positivar a necessidade de sua presença, então fique tranqüilo que nós o chamaremos por
hiper-rádio.
As palavras de Rhodan o tranqüilizaram, mas se preocupava ainda com a duração de
suas férias.
— Que vão dizer os outros do Corpo de Mutantes, quando souberem de minhas
férias de um mês?
— Nada — respondeu Rhodan. — Porque os outros tiram suas férias normalmente,
enquanto você... você já está há mais de setenta anos conosco e afastado de sua terra
pátria. Se fôssemos seguir as palavras da lei, Gucky, você teria direito a três ou quatro
anos de férias, que você nunca gozou. Teria até direito a...
— Ah! Isso não, Perry! — interrompeu-o Gucky assustado. — Ou você quer se ver
livre de mim, ou quer que eu morra saturado de não fazer nada? Dê estas férias a que
tenho ou teria direito, então, ao gorducho. Ele adora ficar sem fazer nada.
— Apesar de ordem expressa, seu malandro, você está lendo de novo meus
pensamentos? Não adianta nada a proibição, hein? — disse Bell, um tanto irritado.
— Não estou indo contra a proibição, de modo algum. Não há necessidade de ler
seus pensamentos, quando você, em suas fantasias preguiçosas, fala constantemente
deles.
— Eu lhe vou ensinar logo o que são fantasias preguiçosas, seu comedor de
cenoura!... Perry, você vai prestar o maior favor a todo o sistema solar quando, durante
um mês inteiro, nos livrar deste... deste...
— Chefe, ele quer me chamar de animal porco, mas não se atreve a fazê-lo na sua
presença.
— Sem-vergonha! — exclamou Bell, querendo pegar Gucky, mas suas mãos
encontraram só o ar tremeluzente, pois Gucky se havia teleportado, isto é, se afastou num
grande salto.
Bell deu uma enorme gargalhada.
— Este malandro! Mas como estou contente por ele estar de novo cem por cento. O
fato de ele ter saudade é muito natural e mesmo muito sadio. As férias, ele já as mereceu
mil vezes. Perry, você concorda com que eu me preocupe com a adaptação de um Space-
Jet?

***

Na tarde do dia 4 de janeiro de 2.045, chegou à seção de confecção de uniformes


espaciais sob medida uma encomenda de trinta peças. O pedido tinha a assinatura do
Tenente Gucky.
A referida seção não estava muito contente com a encomenda, pois Gucky exigia
que os trinta uniformes fossem entregues ainda no mesmo dia. Mas o diretor da seção de
confecção não teve coragem de apresentar reclamação a Perry Rhodan. Porém levou seus
protestos para Reginald Bell, que, conforme os boatos, devia estar constantemente em
briga com o arrogante rato-castor.
— O que é que o preocupa? — perguntou Bell amavelmente, assim que o diretor da
seção acabou de se apresentar.
Começou a falar, mas não foi muito longe com sua reclamação.
— Que ousadia a sua! — gritou Bell furioso no microfone do videofone, vendo na
tela como o pobre homem estremecia todo. — O quê que o senhor está pensando?
Quando um tenente do Corpo de Mutantes requisita com urgência a confecção de
qualquer coisa, o senhor tem de entregar a encomenda. E agora, por favor, não me
aborreça mais.
Desligou exacerbado, para depois cocar a cabeça e dizer:
— Que será que Gucky vai fazer com trinta uniformes espaciais? Três uniformes de
reserva, ainda vai, mas trinta? E será que atrás desta encomenda urgente de Gucky não se
esconde uma missão secreta? Mal se recuperou, já quer entrar no fogo. Estou curioso para
saber o que vai acontecer com seu vôo solitário para o pequeno planeta.

***

Às quatro horas da madrugada seguinte, o Tenente Gucky deu ordem para ser levado
ao Space-Jet, o SJ-09, que o conduziria ao planeta Vagabundo em duas transições.
O sol estava se levantando sobre Terrânia. Mas os homens da metrópole ainda
dormiam, com exceção dos que tinham trabalho noturno. Era pequeno o movimento no
gigantesco espaçoporto. Na pista 56, já estavam ligadas as turbinas de um cruzador
pesado. O ronco assustador dos primeiros metros de subida foi desaparecendo aos
poucos.
O Space-Jet SJ-09 foi adaptado na véspera por um comando de robôs. A nave em
forma de disco com trinta e cinco metros de diâmetro podia agora ser decolada, dirigida e
aterrissada apenas por um tripulante.
Gucky se sentia mais ou menos como um imperador da China, ao entrar no seu SJ-
09, em direção ã cabina de comando. Em pensamento, já estava vendo seu vôo
maravilhoso e sua chegada triunfal ao planeta. Nesta euforia, tomou lugar na poltrona do
piloto, confeccionada especialmente para seu pequeno corpo.
Ligou os motores. Seu dente roedor estava permanentemente à vista e, dentro de
poucos instantes, seria dono do espaço. As possantes turbinas do jato estavam em
aquecimento. A porta se fechou. A ligação com a torre de controle de vôo era feita por
fonia. A positrônica de bordo aguardava apenas uma simples ligação para levar o SJ-09,
em duas transições, automaticamente para Vagabundo. Mas, antes disso, Gucky queria
mostrar que ele pessoalmente era capaz de manobrar um aparelho daquele tipo.
— Decolagem às 4:18 h, Tenente Gucky — comunicou-lhe a torre de controle de
vôo.
Já eram 4:18 h. O que os velhos pilotos das grandes naves comerciais chamavam de
“pull”, usando mesmo a expressão “calcar o pull” para designar acelerar ao máximo, já
era um termo conhecido de Gucky, devido às conversas com Reginald Bell.
— Calcar o pull — foi a ordem que Gucky deu a si mesmo, exibindo feliz seu dente
roedor.
O SJ-09 roncava surdo e a “disparada” começou. Da torre de controle veio um
comando, mas Gucky não ouviu, nem queria ouvir.
— Subir mais!
A aceleração do jato aumentava, mas Gucky mantinha o aparelho a três metros
acima de Terrânia, isto é, do espaçoporto de Terrânia, tendo como alvo a própria torre de
comando. Controlava tudo através da tela panorâmica, ampliação 1:1, velocidade, treze
segundos após decolagem, 530 km/h.
Quando, perigosamente próximo da torre de controle, deu uma guinada para o alto,
já havia quebrado a barreira do som.
Centenas de milhares de terranos pularam da cama esbravejando contra o barulho
infernal naquela hora da madrugada. Um desses terranos foi Reginald Bell. Sabia quem
era o culpado por isto.
— Aqui fala Bell — disse para o controle de vôo. — Este louco foi o nosso Tenente
Gucky?
No céu de Terrânia, em espirais executadas numa velocidade incrível, um Space-Jet
ganhava altura, naquela madrugada sem nuvens.
— O que você disse?
Bell não havia entendido nada da resposta do oficial da torre de controle, devido ao
barulho ensurdecedor.
— O Tenente Gucky...
O resto desapareceu de novo no barulho que ainda continuava quebrando a calma
daquela manhã tão linda e deixando muita gente exasperada.
— Telegrafe a ele, proibindo terminantemente esta indisciplina — disse Bell no
microfone, esquecendo-se de que ele também, de vez em quando, fazia o mesmo quando
tomava a direção de uma espaçonave para uma “aterrissagem catastrófica”, como era sua
expressão.
Neste sentido, Gucky era um aluno-modelo, pelo menos no tocante aos maus
hábitos de Reginald Bell.
A torre de controle ligou para os aposentos de Bell:
— Estamos tentando, há dez minutos, trazer o Tenente Gucky para o bom senso.
Mas como resposta, escutamos apenas suas exclamações repetidas: “Calcar o pull, calcar
o pull...” Senhor, está se sentindo mal?
Preocupado, o oficial da torre olhava para Bell pelo videofone.
Bell, porém, não se sentia mal; quem se sentia mal era sua consciência. “Calcar o
pull”, isto era uma expressão dele, Bell, quando intervinha para realizar uma aterrissagem
de emergência.
— Não, não estou sentindo nada não, é só o barulho que me escangalha os nervos.
Eu lhe agradeço muito — apressou-se Bell em dizer, desligando em seguida.
Gucky era um bom piloto e gostava muito de voar. Por isso fazia estas espirais para
ganhar altura. Para ele, era a mesma coisa chegar uma hora mais cedo ou mais tarde. O
principal era voar.
— Calcar o pull! Bonito, como a “canoa” desliza.
Gucky estava só, mas tagarelava o tempo todo no jargão de Bell. Mas, de repente,
chegou à conclusão que não tinha graça nenhuma em repetir aquelas expressões chulas.
Não havia ninguém para ouvi-las.
De repente saiu uma voz aguda do alto-falante, fazendo-o estremecer.
— Tenente Gucky, aqui fala o controle de vôo espacial de Vênus. Prossiga sua
viagem normal e disciplinadamente, do contrário estaremos obrigados a interceptar seu
vôo para Vagabundo. Aguardamos sua resposta, tenente.
— Com quem tenho o prazer de conversar? — redargüiu o rato-castor com toda
frieza.
Lembrara-se imediatamente que era obrigação do operador do controle de vôo de
Vênus identificar-se com nome e grau de hierarquia.
— Major Eltzahn, Tenente Gucky.
— Certo, major, meu SJ-09 está em rota de ascensão. Mas de qualquer maneira,
vou-lhe fazer este favor.
Observações deste tipo eram uma coisa que somente Gucky se atrevia a fazer, e o
próprio Major Eltzahn, não obstante toda sua sisudez, teve que aceitá-las.
“Que diabo”, pensou ele depois de ter desligado, “não devia ter tratado o rapaz tão
secamente assim, pois quando ele me faz um favor, o envergonhado sou eu.”
Com seu glorioso brinquedo, Gucky estava fazendo sensacionais acrobacias. Há
muito o SJ-09 estava em curso de ascensão. Os envoltórios de proteção da nave quase
não encontravam mais a resistência do ar e a aceleração subia sempre. Já estava chegando
a hora em que Gucky devia ligar o piloto automático, deixando então a nave entregue ao
vôo programado pela positrônica de bordo. Não houve protestos por parte de Gucky,
quando Rhodan lhe explicara:
— Faltam-lhe as experiências necessárias para realizar os cálculos exatos para a
transição. Vou pois deixar o computador já programado com todos os dados para que
você, a oito milhões de quilômetros antes de Vagabundo, saia do hiperespaço. O pulo do
gato você vai fazer então com a pata esquerda.
A última frase estimulou o orgulho de Gucky. Oito milhões de quilômetros em
relação aos 2.438 anos-luz de distância do planeta eram de fato um pulo de gato. E fazer
aterrissar um Space-Jet, que não era outra coisa senão um tipo de gazela melhorada,
tornava-se tão fácil que qualquer cadete da Frota Solar, depois das dez primeiras horas de
vôo, o conseguiria realizar.
Dirigir carro na Terra era muito mais difícil e perigoso.
Gucky engrenou a chave geral do sincronizador. Era a única coisa que tinha a fazer.
A partir daí, o vôo do SJ-09 estava nas mãos da positrônica de bordo.
A primeira transição se realizou logo após a órbita de Plutão. E a 1.365 anos-luz da
Terra, o Space-Jet se rematerializou no espaço normal. Trinta minutos depois se deu a
segunda transição ou hipersalto.
Gucky continuava afivelado à sua poltrona. Tinha-se esquecido de tudo e não
conseguia mais nem pensar.
— Estou ficando louco — disse espantado e olhando para a tela panorâmica. — Saí
completamente errado — com isso estava se referindo à sua última volta ao contínuo
normal de tempo-espaço. — Não são oito milhões de quilômetros até Vagabundo, são
cem milhões. Ah! Malandro do gorducho. Como é doce a vingança... você vai me pagar
bem caro. Malandragem, me obrigar a voar estes cem milhões de quilômetros com
velocidade inferior à da luz.
Na realidade, as ameaças de Gucky não eram tão sérias assim. Seu coração começou
de repente a pulsar de alegria. Aquele pontinho de coloração avermelhada era seu
planeta-pátria e o olho de um vermelho-escuro no fundo era o sol moribundo, o único
numa extensão de muitas centenas de anos-luz. Possuía apenas um planeta pequeno e
gelado.
O ruído típico da queda de uma tira perfurada, que cai do computador, fê-lo olhar
para trás e apanhar a folha de papel.
— O quê?
Um grande susto o obrigou a soltar esta expressão de interrogação. O planeta
Vagabundo tinha alterado sua órbita em oitenta milhões de quilômetros. Desta maneira
ele se aproximaria do sol, seria atraído e...
A temperatura na superfície de Vagabundo estaria oscilando entre 45 e 57 graus
Celsius.
O tempo de rotação diminuíra de 18,8 horas para 16,1 horas.
“Este calor, este calor”, pensava Gucky horrorizado.
O rato-castor, de ordinário tão calmo que nada o arrancava de seu sossego, perdeu
neste momento toda noção do que tinha ou não tinha de fazer, em determinadas
circunstâncias.
Não ia poder aterrissar em Vagabundo e tinha que enviar um hiper-rádio para
Rhodan. Sabia, aliás, que nos últimos dias haviam surgido em Vagabundo coisas muito
estranhas, ainda não esclarecidas.
Gucky assim teria agido, se seus dons telepáticos não captassem no momento o
desespero, o medo, a miséria e a morte lá reinantes. Aqueles seres, de cuja raça ele
descendia, expandiam por via telepática a situação de desespero das profundezas de
Vagabundo para o espaço afora.
Imediatamente desligou o piloto automático, de controle positrônico, desengrenando
o sincronizador.
Não, nesta hora não lhe passou pela cabeça de repetir aquelas expressões chulas de
Bell, como “calcar o pull” e outras. Mas simplesmente ligou o mecanismo de propulsão
no máximo.
O gerador de absorção de compressão já estava zunindo, quando duas sirenes de
alarme começaram a apitar, indicando sobrecarga. Contra todas as regras do bom senso,
Gucky continuou voando.
O SJ-09 se atirava como um bólide na direção de Vagabundo.
Salvar, salvar, salvar. Era o único pensamento que achava acolhida na cabeça de
Gucky.
— Tenho que salvá-los do calor destruidor, sou responsável por eles. E quem é que
está destruindo minha pátria? Os druufs, os saltadores ou os aras? Oh, Perry, você tem de
me ajudar a castigar estes malandros e assassinos.
Mas não teve a idéia de passar um Telecom a seu amigo, expondo-lhe a situação.
Houve um verdadeiro curto-circuito em suas faculdades mentais.
Disparava seu Space-Jet, exigindo o máximo dos motores, na direção do planeta,
cuja órbita se tornara menor. A aceleração do SJ-09 atingiu os valores máximos. As
sirenes de alarma continuavam sibilando, sem que Gucky percebesse o que isto
representava para a segurança. Luzes vermelhas se acendiam em todos os painéis,
inutilmente. Dois relês já estavam queimados. Foram substituídos imediatamente pelos
dois reservas, mas quando estes também queimassem, não haveria mais jeito.
Deixou que as sirenes gritassem, que o conjunto de propulsão trabalhasse com os
ponteiros constantemente no vermelho. Só via uma coisa: chegar o mais depressa a
Vagabundo, ainda com a luz do dia.
“Este calor desgraçado!”, pensava desesperado.
Em lugar de 8 graus menos, 45 até 57 graus positivos. Era uma temperatura de
inferno para os de sua raça.
Gucky voava apenas com o auxílio da tela panorâmica. Estava fazendo tudo errado.
Já poderia ter iniciado a aterrissagem, se tivesse pedido ao computador os dados para
uma transição curta.
— Neste calor estão morrendo milhares deles. Meu Deus, quem provocou tudo isto?
Fazia todo esforço para entrar em contato telepático com um deles, mas nada
conseguiu. E isto o deixava cada vez mais atordoado. Mesmo sem a transição, a
velocidade era tanta que o pontinho avermelhado do planeta Vagabundo já tomava a
forma de pequeno disco. Numa ira inútil, quase inconsciente, olhava estarrecido para a
tela.
“Tenho trinta uniformes a bordo”, foi o pensamento que lhe veio no momento. “Por
que mandei fazer tantos assim? Por que foi que demorei tanto a perceber esta saudade?”
E, num piscar de olho, todos estes pensamentos desapareceram.
Distância — 28 milhões de quilômetros.
Velocidade — 185 mil metros por segundo.
O pequeno disco começou a crescer, como um balão de soprar. As sirenes davam o
alarma de colisão.
Será que Gucky está voltando a si?
Mais duas sirenes entraram no coro do alarme urgentíssimo; o último dispositivo
automático teve de entrar em atividade para evitar uma colisão com o solo do planeta. A
compressão era enorme, mas ainda eliminada pelos dispositivos de absorção. A
velocidade foi dominada pelo mecanismo automático que agora tomou o controle da rota.
A sete mil e quinhentos quilômetros do planeta, o SJ-09 passou a grande velocidade.
Gucky viu seu planeta pátrio passar a bombordo.
E o toque das sirenes... para que seria?
Quando percebeu, substituiu a última ligação automática por outra feita ao acaso,
também contra as determinações de vôo.
— Para baixo com o Space-Jet!
A nave achatada obedeceu ao comando e Vagabundo apareceu de novo na tela
panorâmica, no lugar de sempre, na mesma direção.
Gucky parecia fora de si, horrorizado e zangado, captando as transmissões
telepáticas, que exprimiam a miséria e a destruição do seu mundo de origem. Achava-se
num estado de prostração quase hipnótica.
Vagabundo já estava bem maior.
— Para baixo com o Space-Jet! Penetrar em sua atmosfera!
As primeiras camadas de ar começaram a se fazer sentir no envoltório de proteção
do SJ-09. Da fricção surgiu um sibilar agudo, um bramido, terminando num ronco
cavernoso. Parecia que o solo vinha de encontro a Gucky.
Gucky chegava a Vagabundo para fazer sua apresentação. Mas foi uma apresentação
catastrófica. Primeiro o chão... o impacto, o estrondo, a areia incandescente, areia
projetada por um furacão de calor. Um Space-Jet, enterrado até a metade no solo
abrasador, destruído, encalhado, um monte de ferro velho, não mais um orgulhoso SJ-09.
Preso ao cinturão, com a cabeça de rato caída no peito, Gucky continuava inconsciente na
poltrona do piloto, ajeitada especialmente para ele. Não ouvia nada do furacão que zunia
em torno do seu SJ-09, nem sentia a onda de calor que penetrava na nave destruída!
O calor e a areia incandescente...
5

Na mesma hora em que Gucky fazia sua aterrissagem desastrosa em Vagabundo, o


Dr. Innogow comparecia ao escritório de Rhodan. Não estava levando nenhum
documento. Mas que sua visita era para assunto muito sério, podia-se ver no seu rosto.
Foi-lhe um tanto difícil começar a falar.
— Sir... — seguiu-se uma respiração profunda. — O senhor se lembra ainda daquela
pedrinha de material fosforescente que Walter Grimpel trouxe de Vagabundo, não é? No
primeiro instante, não nos foi possível analisá-la...
— Mas agora já está analisada, não é, Innogow?
Tomado de um súbito entusiasmo, Rhodan se levantou e, com toda atenção, encarou
o cientista.
Este meneou a cabeça, um pouco deprimido.
— Analisado, sir, não é bem o termo, mas de qualquer maneira dei com um
fenômeno misterioso. A confusão de amplitudes no oscilógrafo do rastreador não me
deixou sossegado. Entretanto, apesar de grande esforço, permaneço na mesma.
Anteontem, estava estudando uma questão no Instituto de Psicologia. Entre outros
assuntos, fizemos lá algumas fotografias dos cérebros dos mutantes telepáticos.
Felizmente, ou infelizmente, não posso dizer ainda, medimos também o dispêndio de
energia telepática e tentamos visualizar o tipo de ondas, a fim de guardá-las para futuras
pesquisas. Mostraram-me duas fotos especialmente boas. Tenho de confessar que não me
entusiasmei muito com elas.
“Mas esta noite, sir, pedi que me trouxessem uma cópia destas duas chapas.”
O cientista parou por um momento, como se estivesse muito cansado.
— Sir, o pedacinho de material do planeta Vagabundo contém uma parcela de
energia orgânica.
— Doutor Innogow, tenha a bondade de repetir o que disse — solicitou Rhodan.
— Com prazer. Este material de Vagabundo, de um aço azulado e fosforescente, é
em parte uma energia orgânica; é, numa forma concentrada, a mesma coisa que nossos
telepatas irradiam, quando atuam com suas forças parapsicológicas.
— E o senhor descobriu isto, quando fez a comparação das amplitudes de um
telepata em atividade com as amplitudes registradas em Vagabundo pelo radiotelegrafista
Macintosh e por Walter Grimpel?
O Doutor Innogow não se sentiu bem com esta pergunta direta.
— Sir, minha descoberta é, em grande parte ainda, uma hipótese. Antes de mais
nada, eu mesmo tenho que estudar muito ainda sobre este conceito “energia orgânica”.
Deu um sorriso.
— É bom que nós, pesquisadores, levemos de vez em quando uma sacudidela deste
tipo, para nos lembrarmos de que ainda sabemos muito pouco... E hoje, nesta hora, meu
conhecimento sobre a matéria parece menor que antes. Cada vez mais, a tal pedra torna-
se misteriosa e complicada. E esta complicação chegou ao estágio da combinação do
orgânico com a energia produzida artificialmente... Por mais de uma vez, nas primeiras
horas deste dia, nas experiências que fiz para analisar este material, descobri vestígios de
um metal que não existe, sir, nem entre nós, nem entre os arcônidas.
— O que o senhor entende por “energia orgânica”, Innogow?
O cientista olhou para Rhodan meio desanimado.
— Só lhe posso dar uma definição não científica. Eu distingo, e isto somente para
não perder este capinzinho seco que ainda me serve de apoio para não me afogar no
emaranhado confuso dos mistérios da matéria... eu distingo entre energia natural e
energia orgânica. Deve-se deixar em suspenso o que seja energia natural, mas energia
orgânica é aquela energia que um organismo vivo produz. Mas no caso presente, as coisas
se complicam, porque esta energia orgânica se acha concretizada numa forma fixa, sir,
não em matéria. O que Grimpel trouxe de Vagabundo contém areia e vestígios de metal,
mas nenhuma matéria.
“Sir, como cientista, nunca me senti tão desprotegido assim, como agora. E embora
possa correr o risco de passar por um eterno vexame e de botar em xeque meu nome de
cientista, com o que vou dizer agora, não posso deixar de declarar: o que Grimpel trouxe,
conforme minha opinião, é uma matéria orgânica adormecida, ou seja, latente.”
O cientista não sabia como estava realmente perto da verdade, pois não podia prever
a existência dos Ogros, aquele produto híbrido técnico-orgânico do mundo de uma
desconhecida raça de monstros.
Muito menos podia prever que existiam monstros que, após a erupção energética em
Vagabundo, voltaram outra vez, não apenas para despertar esta energia adormecida, por
meio de sua técnica, mas para aplicá-la e aplicá-la... para a destruição.
— Doutor Innogow — pediu Rhodan — por favor, continue com seus trabalhos.
Quero lhe declarar expressamente que, perante mim e perante todos os responsáveis pela
segurança do Império Solar, sua reputação de cientista não está em jogo. Pelo contrário:
nós lhe agradecemos por sua coragem. Ponha-nos sempre a par de suas pesquisas.
Rhodan pôde observar como o cientista deixou seu escritório muito mais seguro de
si mesmo, do que quando entrou há meia hora atrás.
Quase em seguida, Rhodan ligou para a grande estação de rastreamento estrutural de
Terrânia. O contato com Walter Grimpel foi rápido. A tela de Rhodan mostrou o rosto
espantado do diretor.
— Grimpel, você já tem informações se a segunda transição de Gucky foi rastreada?
— Perfeitamente, senhor. Ambas as transições ocorreram normalmente. O rato-
castor já deve estar em Vagabundo descansando. Mas, até agora não recebemos ainda seu
telecom.
Perry Rhodan sorriu. Lembrou-se das brincadeiras todas que Gucky pretendia fazer
quando de sua chegada ao planeta. Era natural que todo seu tempo fosse para brincar com
seus irmãos de raça, não sobrando, pelo menos nas primeiras horas, nada para um hiper-
rádio para a Terra.
— Ele não tardará a se comunicar — disse Rhodan, interrompendo de repente a
frase, pois neste momento lhe passara pela cabeça um mau pressentimento.
Depois continuou:
— O motivo porque o chamei, Grimpel, é para lhe pedir que continue observando o
planeta Vagabundo, até quando tivermos certeza de que Gucky esteja regressando.
Obrigado.
Logo depois, Grimpel subiu mais um andar, entrou na central de medições, onde
oito homens estavam de serviço.
— Alguma novidade, meus senhores? Malya, um cingalês, que neste turno de
trabalho era o responsável pela seção, respondeu:
— Não, senhor Grimpel, com exceção de uma declinação magnética de 2,35 por
cento. Vagabundo está com energia demais. Por este motivo já pedi o auxílio do
departamento de astrofísica, mas o pessoal de lá me tranqüilizou. Esta declinação deve ter
sua explicação na irradiação ainda mantida no espaço, proveniente das últimas erupções.
Walter Grimpel deu um sorriso zombeteiro. Afinal de contas, era ele um dos
melhores especialistas em rastreamento energético e era muito versado em astrofísica.
— Quem foi que contou isto a você, Malya? — perguntou com ironia.
— Foi o professor Alskund, do departamento de astrofísica.
— Opa! Se foi ele quem afirmou, deve ser então sério. Apesar de tudo, não estou
compreendendo uma coisa. Por favor, se o rastreamento de Vagabundo acusar qualquer
coisa estranha, comunique-me imediatamente. Transmita este recado às outras duas
turmas de serviço. Obrigado.
Ao voltar para seu gabinete de trabalho, Walter Grimpel tomou lugar à mesa, mas
não conseguia tirar da cabeça aquela declinação polar de 2,35 por cento. Ligou o
videofone para a central de medições.
— Malya, você deu ao professor Alskund todos os dados referentes a estes 2,35 por
cento positivos?
— Naturalmente, senhor Grimpel. Tivemos de esperar três horas para que o
departamento de astrofísica nos desse o resultado. O professor chegou até a consultar o
grande computador.
Infelizmente Walter Grimpel não era nenhum Reginald Bell, para não confiar
totalmente no cérebro eletrônico e sempre se opor aos que consideravam o computador o
non plus ultra.
Walter Grimpel se esqueceu dos 2,35 por cento positivos. Mas quando, terminado o
serviço, o carro o levava a seu apartamento, voltaram-lhe novamente à mente as mesmas
preocupações. Mas conseguiu escapar de tais inquietações. Apoiou-se no fato de que o
professor Alskund, o especialista em astrofísica, estava em Terrânia.

***

Gucky jazia completamente abatido na pequena central do seu Space-Jet. As


lágrimas lhe corriam dos olhos. Lágrimas de cólera, lágrimas de auto-incriminação.
— Sou um grande bobo — comentava a respeito de si mesmo, falando dentro do
capacete de seu uniforme, onde se refugiara assim que seus pensamentos ficaram mais
claros.
Depois de alguns momentos reflexivos, pôde compreender que seu planeta pátrio,
com a temperatura média de oito graus Celsius abaixo de zero se transformara na
antecâmara do inferno.
— Meu belo SJ-09. Minha sucata... e eu... eu piloto brevetado... voei como um
ignorante, um superbobo.
Cambaleou até sua poltrona, feita especialmente para ele, e ali se encostou. Lá fora
sibilava o furacão do calor, revolvendo a areia do deserto. O sol, duas vezes maior do que
antes, inundava o pequeno planeta com um calor sufocante e, embora a cabina do SJ-09
fosse de vedação perfeita, a temperatura já estava a 42 graus.
O ar refrigerado também não funcionava mais. O Telecom havia emudecido e o
resto do jato era um montão de ferro retorcido. Gucky já havia inspecionado
minuciosamente seu belo SJ-09, reconhecendo claramente que fizera uma aterrissagem
contra toda a regra de bom senso.
E era exatamente isto que não compreendia. E o pior de tudo: não conseguia
lembrar-se de nada.
Tentou despertar sua memória. Não deu resultado. Depois da segunda transição não
se lembrava mais de nada. A partir de um certo momento, havia na sua mente um vácuo e
não podia saber o que fez, o que pensou e o que sentiu neste espaço de tempo.
A temperatura em seu uniforme espacial era de 18 graus, mas na central, em menos
de 10 minutos, passara de 42 para 43 graus.
De repente sobressaltou-se.
Ouviu gritos de socorro por via telepática. Mas agora não o deixavam mais com
aquele torpor hipnótico. Conseguiu determinar a direção de onde vinham. Concentrou-se
e, quase no mesmo instante, desapareceu num salto de teleportação. Rematerializou-se
em plena escuridão.
Quase que de um momento para outro, veio-lhe a consciência de que era um tenente
do Corpo de Mutantes do Império Solar e tinha que se portar como tal. O farolete de seu
uniforme espacial se acendeu e, na ampla faixa de luz, viu o que há mais de setenta anos
não via: uma galeria de tocas dos ratos-castores.
Estava portanto em casa!
Estava na toca e numa toca daquelas foi que ele nascera, convivera com seus pais e
irmãos, comera, dormira e... brincara.
Mas, da extremidade interna daquelas tocas, provavelmente não muito profundas,
vinham gritos de socorro telepáticos de seus irmãos de raça. Andou o mais rápido que
podia. O farolete lhe mostrava o caminho em declive. Os gritos de socorro continuavam
martirizando seu coração bondoso.
“Que aconteceu com minha terra natal? Por que razão estão se abrigando a estas
profundidades?’’
Ficou hesitante por uns segundos. Depois, resolveu teleportar-se, para vencer mais
rápido um trecho longo, terminando numa toca.
Gritos e sussurros o receberam, quando um pequeno a luz do farolete iluminou
grupo de ratos-castores.
“Meu Deus”, pensava Gucky horrorizado, “são todos filhotes! Onde estão seus
pais?”
Ofuscados pela luz, os ratos-castores de pouco mais de meio metro fecharam os
olhos, para juntos irromperem num choro que tocaria o coração de qualquer um. Gucky
tentou ler-lhes os pensamentos, mas só o conseguiu apenas com alguns. A maior parte
deles — eram uns quinze — não passava de filhotinhos, cujos dons parapsicológicos
pouco evoluídos ainda não iam além das necessidades mais ou menos instintivas: comer,
beber, dormir e carência do aconchego materno.
Não tentou falar diretamente com nenhum deles. A telepatia já era suficiente para
lhe dar um grande alívio, podendo se comunicar. Mas foi aí que Gucky teve a primeira
grande decepção. Nenhum daqueles animais de pouca idade era capaz de se concentrar
para manter um contato com o recém-chegado, que com isto ficava cada vez mais
desanimado.
Medo, terror, fome e sede ocupavam totalmente os pensamentos dos infelizes
filhotes, encurralados naquela toca escura. Água e alimentos tinham de ser encontrados
para eles. E Gucky não hesitou um segundo. Teleportou-se de volta para os escombros do
SJ-09. Constatou horrorizado que o congelador não estava mais funcionando. O
termômetro indicava nove graus positivos. Com nove graus ainda não dava para estragar
nada.
Gucky abriu a porta das câmara frigorífica, saltou para dentro e a fechou.
— Alimentação infantil... Santa Via Láctea! Isso eu não estudei com Rhodan na
Academia Espacial! Que será que os filhotinhos poderão ou não comer?
Gucky começou a esvaziar o estoque de leite condensado, pegou quatro caixas de
cenouras muito especiais, encheu uma lata de 50 litros com água. A seguir, arrumou tudo
e saltou.
A toca com os filhotes abandonados jazia a oitocentos metros de profundidade.
Gemeram assustados, quando Gucky rematerializou-se diante deles com sua carga e a luz
forte do farolete. Virou para trás o capacete do uniforme, achou que o ar da caverna era
bem respirável e pela primeira vez os filhotes ouviram sua voz. Falou-lhes em sua língua
materna, num tom que todos, filhotes e mais crescidos, pudessem entender, como se
estivesse conversando na Terra com crianças de seis anos.
Quanto mais falava, mais calmos ficavam os animais. Tirou seu uniforme espacial e,
com o coração pulsando de emoção, pegou o primeiro filhote e o acariciou. Lágrimas lhe
correram dos olhos, quando as patinhas do animal se agarraram em seu pêlo e sua cabeça
se encostou nele. O pequeno rato-castor, de um momento para o outro, adormeceu, apesar
da sede e da fome.
“O que vou fazer agora?”, perguntou ele, desanimado e triste.
Completamente sem jeito, encontrava-se no meio dos animaizinhos que não
paravam de choramingar, segurando nos braços o filhotinho adormecido, sem coragem de
se mover.
— Coitadinho — dizia ele — dorme tranqüilo, que Gucky não vai abandonar você.

***

Ao consultar o relógio pela primeira vez, Gucky percebeu espantado que levara sete
horas para cuidar daquele grupo de animais. Entrementes, ouvira outros gritos de socorro,
por via telepática. Vinham ou da região do pólo norte ou do pólo sul, onde, há setenta
anos atrás, nenhum grupo de ratos-castores residia. Seus impulsos telepáticos para
localizar mais irmãos de raça na zona equatorial, foram infrutíferos. Ficaram sem
resposta.
Cada vez mais se convencia de que, em todo o planeta, não viviam mais do que duas
ou três centenas de irmãos seus. Os demais, principalmente os adultos, deviam estar
mortos.
Vestiu de novo o traje espacial, deixou ali um farolete, com pilha nova. Um bom
raio de luz iluminava o local onde estava a água e a caixa com comestíveis. Em contraste
com as crianças da Terra, os filhotes, já logo depois de nascidos, estavam em condições
de se alimentar sozinhos.
— Eu volto logo — disse para tranqüilizá-los, antes de desaparecer.
Saltou para o Space-Jet. A temperatura na cabina tinha subido para 47 graus.
“Tenho que me comunicar com Perry Rhodan”, pensava ele.
O fato de o Telecom do seu SJ-09 não funcionar mais, não o preocupava muito.
Com uma série de minicomunicadores ligados entre si, haveria de atingir por hiper-rádio
a grande estação de Terrânia. E estes minicomunicadores, ele os tinha facilmente, abrindo
uns dez uniformes espaciais.
Correu para o armário do depósito e seus olhos brilharam de alegria ao ver, através
do vidro da viseira, os trinta uniformes, um ao lado do outro, pendurados com todo
capricho. Usando seus dons telecinéticos, tirou o primeiro do cabide, abriu e... ficou
estarrecido!
Depois de ter aberto o décimo deles, começou a tremer de fúria.
— Estes bandidos... estes bandidos! — repetia transtornado. — Meus Deus, como é
que poderei entrar em contato com Rhodan ou com uma de suas espaçonaves? Não
pretendo ficar apenas olhando a destruição destes coitados.
Nos trinta trajes espaciais não havia nenhum minicomunicador. E seu Space-Jet não
passava de um montão de destroços. E a cada rotação, o planeta Vagabundo se
aproximava um pouco mais do sol inclemente e mortífero.
Nas fundas tocas de Vagabundo, os ratos-castores estavam ocultando seus próprios
filhotes, na ânsia desesperada de salvá-los do extermínio. Muitos deles já tinham
morrido, tentando salvar os filhotes.
Para o terrano que se esquecera de colocar no uniforme espacial o minicomunicador
— relaxamento imperdoável — Gucky não podia ter mais do que desprezo. Não o
odiava, nem o fazia responsável pela destruição da raça dos ratos-castores. Não, Gucky
achava que o maior culpado era ele mesmo. Seu Space-Jet era um montão de escombros,
por sua culpa. Com aquela aterrissagem maluca, cortara toda possibilidade de um retorno
e, assim, assinara a sentença de morte para ele e seus poucos irmãos de raça.
Perdeu toda esperança de entrar em contato com alguma espaçonave terrana por
meio do minicomunicador. O pequeno aparelho era para pequena distância e sua
transmissão não penetrava quase nada no hiperespaço. Mas nem por isto um tenente do
Corpo de Mutantes iria ficar ali, apenas lamentando a sorte.
Gucky ligou seu minicomunicador, deu os sinais convencionais de alarme,
acrescentando nome e localização. Repetiu tudo umas vinte vezes. Depois passou para a
escuta.
Do alto-falante só se ouvia um quase imperceptível ciciar do Universo, mas
nenhuma resposta ao seu pedido de socorro.

***

Descobrira até então oito grupos de ratos-castores entocados nas mais profundas
cavernas do planeta e a todos atendera com água e alimentos, na medida do possível. É
claro que sabia que o estoque não era infinito. Cenoura, não havia mais nenhuma. Leite
condensado começou a faltar desde o dia anterior. Quanto à água potável, restava-lhe um
recipiente com 1.120 litros.
Mal Gucky acabara de fazer o balanço do que ainda dispunha na despensa do SJ-09,
e ia voltando para a cabina de comando, quando recebeu um forte impulso telepático.
“Até que enfim, um rato-castor adulto!”, pensou.
— Já vou — respondeu Gucky. — Vou levar de comer e de beber para você. Qual é
seu nome? Eu me chamo Gucky... Ah!... Plofre fre dag ga.
O final era intraduzível, mas o interlocutor deve ter entendido muito bem. Foi com
surpresa que Gucky ouviu que o rato-castor não queria nem água, nem alimento.
— Por que adiar a morte por mais uns dias, se a muralha negra pode chegar a
qualquer momento?
Embora a expressão “muralha negra” lhe despertasse grande curiosidade, Gucky
não perguntou nada.
— Espere um pouco que já vou logo. Voltou para a câmara frigorífica, que, a esta
altura, não tinha mais nada de gelo, encheu um cantil com água fresca, pegou um pacote
de alimentos. Tirou do armário um dos trinta uniformes espaciais, após o que desapareceu
no ar.
A 1.700 quilômetros ao norte do equador, quatro dias após sua desastrosa
aterrissagem em Vagabundo, encontrava o primeiro rato-castor adulto. O termômetro
externo lhe indicava um calor estúpido de 61 graus. Do desesperado rato-castor, nenhum
vestígio.
— Aqui! — ouviu Gucky depois de um longo chamado telepático.
Mas este “aqui” chegou-lhe tão fraco, que não conseguiu saber de onde vinha.
— Apresente-se com um pouco mais de força, para eu perceber a direção — emitiu
Gucky.
Não se conseguia ver nada além de três metros. Em volta de todo o planeta, rugia
constantemente um furacão de areia que esquentava ainda mais o ar já escaldante.
Das profundidades de uma antiga caverna outrora habitada, que não tinha mais de
50 metros, veio um impulso mental.
Gucky saltou. Quando seu farolete acendeu, viu-se diante de um rato-castor adulto,
cuja morte por asfixia parecia próxima. Já há muito tempo que Gucky achava-se
novamente possuído daquele frio autodomínio, digamos sangue-frio, característico de
Rhodan e de todos que com ele trabalhavam. Pegou o traje espacial que trouxera e
obrigou o coitado a vesti-lo, atarraxando-lhe o capacete. Só então foi que cuidou do
medidor de pressão.
O instrumento mostrava com toda clareza que o planeta Vagabundo estava
começando a perder sua camada de ar. Para Gucky, isto era um sinal evidente de que sua
terra natal estava com as horas contadas e de que a força de atração do sol já estava com
suas garras para sugar toda a atmosfera de Vagabundo. Ou talvez...
Gucky começou a refletir.
Ou talvez, Vagabundo aumentaria de tal forma a velocidade de sua rotação,
atingindo assim um ponto em que a camada de ar seria tocada para o espaço afora. Viria,
depois disso, um tremor de terra no planeta que abalaria ainda mais a estrutura do
pequeno sistema solar, acabando por destruí-lo.
Sob a proteção do traje espacial e devido à temperatura mais agradável dentro dele
— dezoito graus positivos — o esgotado animal se recuperou rapidamente. Curioso,
olhava para Gucky. Mas sua apatia ainda era muito grande. Não perguntou quem era seu
salvador, nem quem lhe dera aquele uniforme. Também não perguntou nada sobre a luz
forte do capacete de Gucky.
Em compensação, a atividade de Gucky reduplicava. Tinha ouvido mencionar uma
“muralha negra”. Não podia se comparar com seus irmãos de raça. Apesar de ser um
rato-castor como eles, sabia que sete decênios de vida na Terra o transformaram num
terrano. Só com muito esforço estava em condições de compreender os pensamentos de
seu semelhante, a quem faltava qualquer conceito de técnica.
“Sede, sede!”, era o que diziam seus pensamentos.
— Quem... é você?
— Gucky, e você?
— Bikre... água!
Gucky reparou no manômetro do aparelho de pressão. Fez um gesto de
contentamento. Podia retirar por uns instantes o capacete do convalescente, para lhe dar
de beber, pois, apesar da rarefação do ar, não havia perigo de asfixia.
— Chega! — disse Gucky telepaticamente, quando o ponteiro do cantil indicava que
o rato-castor bebera um litro de água. — E agora, Bikre, explique-me o que vem a ser a
muralha negra.
Começou “falando” da muralha negra e dos muitos que desapareceram dentro dela.
E sem maior nexo, começou a falar de repente de uma sombra escura que avançava
rapidamente.
— Como? Sombra escura avançando rapidamente? Bikre, como era ela?
Gucky sobressaltou-se. Lembrou-se, com toda nitidez, de como ele, seus irmãos e
irmãs, seus pais e todos que pertenciam à família chamavam, há setenta e tantos anos
atrás, a Stardust II, quando aterrissara em Vagabundo: “sombra escura que avançava com
rapidez”.
Fez com que Bikre descrevesse a forma da espaçonave.
Da figura que ele traçou, com duas dimensões, Gucky não pôde deduzir muita coisa.
— Tente lembrar-se de como era esta sombra escura que avançava com rapidez...
como você a viu, Bikre?
No mesmo instante, Gucky começou a ouvir.
— Tinham a forma de gota d’água. Dois corpos ligados entre si. Marrom-escuro,
quase preto.
— E o que foi que estas estranhas naves descarregaram? Procure pensar de novo,
Bikre, esta nave grande, dupla...
Gucky ainda reforçou sua ordem telepática com uma carga hipnótica.
“Isto parece com um enorme guindaste”, constatou Gucky, através os pensamentos
irradiados pelo outro rato-castor. “Cem metros de comprimento! Mas o que que está
pensando agora? Que este imenso guindaste foi afundado no solo e só um pedacinho
dele ficou para fora? E de repente veio disparada esta muralha negra, mas Bikre
teleportou-se ainda a tempo. Depois, quando ele teve coragem de voltar, em torno do
guindaste afundado na areia não havia mais nenhum rato-castor.”
Gucky tentou fazer as vezes de um grande centro de computação: “...Espaçonaves
estranhas, de duas fuselagens... construções semelhantes a guindastes verticais...
afundamento no solo... e agora a distância entre Vagabundo e seu sol já não é a mesma...”
Aproximou-se de Bikre:
— Você pode me mostrar o lugar onde esta coluna enorme foi afundada no solo?
Antes de se teleportarem, Bikre teve que beber mais um pouco d’água e tomar umas
drágeas do alimento concentrado.
Rematerializaram-se no centro de um remoinho de areia escaldante.
— Foz por aqui que enterraram a grande coluna de metal — emitiu Bikre.
Depois de três pequenos saltos de teleportação, Gucky estava diante de uma
construção escura com alguma aparência de coluna ou guindaste vertical, talvez com
mais de um metro de diâmetro em seu centro. Devido à tempestade de areia, achava-se
com uns dez metros para fora do solo.
“Antenas”, pensou Gucky. “Mas para haver uma antena, tem de haver também uma
fonte de energia.”
A fim de coordenar melhor os pensamentos, precisava de um lugar mais calmo.
No próximo segundo, Bikre, assustado, se viu na cabina de comando do SJ-09.
— Sente ali e não me atrapalhe. Tenho uma coisa importante afazer.
Quem estava ordenando agora era o Tenente Gucky, do Exército de Mutantes.

***

Gucky trabalhou como um mouro. Bikre, que pela primeira vez na vida via alguma
coisa de tecnologia, olhava espantado para Gucky.
De repente, Gucky soltou um daqueles palavrões de Reginald Bell, quando, bem na
frente de seu capacete, uma meia dúzia de instrumentos começaram a rodopiar no ar.
— Bikre, pare com sua brincadeira. Se você fizer isto de novo, tenho que botá-lo
para fora, lá no arzinho gostoso de 60 graus.
De um momento para o outro, Bikre interrompeu seu folguedo telecinético e os
instrumentos com os quais brincava caíram no chão, entre eles o aparelho de que Gucky
tanto precisava.
— Escangalhado — disse abatido, quando o apanhou do chão. — Uma esperança a
menos. Mas você não tem culpa, Bikre. Como é que poderia saber que, como o último
dos ratos-castores, você nos acaba de destruir a última chance?
Teve depois a impressão de estar sozinho. Sem suspeitar de nada, virou-se para trás.
O lugar onde Bikre esteve sentado o tempo todo ficara vago.
— Bikre?
E Gucky repetiu muitas vezes seu grito telepático.
Bikre tomou ao pé da letra os pensamentos de Gucky na hora do rompante de
cólera. Bikre, o único rato-castor adulto que encontrara até agora no planeta destinado à
destruição, teleportara-se.
— Bikre! Bikre!
Desesperado, Gucky emitia seu grito telepático, até que afinal obteve resposta.
— Não...! — gemeu Gucky desesperado.
Porém seu gemido não conseguiu livrar da morte horrível lá fora, na areia
incandescente, seu desventurado irmão de raça.
Bikre, sem saber o que estava fazendo, sem conhecer os perigos a que se expunha,
na sua mania de brincar, abriu lá fora, perto da entrada da toca onde Gucky o achara, o
capacete do uniforme. A areia escaldante, a uma temperatura próxima da fervura da água
na Terra, lhe queimou o focinho, impedindo-o de reatarraxar o capacete. O único grito de
socorro que emitiu para Gucky, foi também seu último comunicado.

***

Gucky saltou para fora. Foi recebido pelo efervescente turbilhão de areia que
ameaçava impedir seus movimentos. Mais do que depressa ligou o envoltório de proteção
e fez com que o pequeno gerador antigravitacional trabalhasse em sentido contrário.
Quando este acusou dois G, deu uma olhada no seu relógio.
“Quatro horas da tarde apenas, tempo de Vagabundo, e já está ficando noite!”,
pensou assustado.
— Estes malandros das naves de “duas caras”! — Gucky estava fora de si de
cólera. — Os desgraçados com suas antenas em forma de guindaste vertical. Bikre,
Bikre! Por que você me tirou toda possibilidade de recompor meu aparelho de
rastreamento? Como é que posso localizar agora estas diabólicas usinas energéticas que
arrastam o planeta Vagabundo de encontro ao sol?
Quando retornou pela escotilha meio aberta do SJ-09 semidestruído, desligou o
gerador antigravitacional.
— Bikre, Bikre... — disse baixinho, ao entrar na cabina de comando.
Mas Bikre, o único rato-castor adulto de Vagabundo, não existia mais.
Gucky também queria deixar de existir. Não havia mais jeito. Tudo, mas tudo
mesmo, era um mausoléu de fracasso. Mas ainda existia nele o tenente do Corpo de
Mutantes. Convivera demais com os homens de Rhodan e tinha recebido deles o exemplo
vivo de que um terrano só desiste, depois de morto.
— ...e no fim de tudo, o gorducho ainda vai se envergonhar de me ter conhecido —
disse Gucky para si mesmo.
Pulou de seu lugar de piloto e começou a andar de um canto para o outro na cabina
de comando, mantendo um monólogo interior.
Tratou principalmente dos problemas de astrofísica e este animal superesquisito, de
mais ou menos um metro, ponderava agora com todo sangue-frio a situação, enquanto
seu planeta pátrio acelerava cada vez mais a corrida louca de encontro ao sol.
De repente, Gucky deu outro salto.
— Perry Rhodan! — exclamou. — Você virá me buscar, com toda certeza, a mim e
aos filhotinhos nas cavernas! Eu lhe peço este favor. Vou recebê-lo aqui com fogos de
artifício...
E logo depois, com menos entusiasmo:
— Mas, primeiro tenho que localizar esta desgraçada usina energética. Sim, Perry,
se eu fosse tão inteligente como você, haveria de achá-la mais depressa.
Como que ouvindo alguma coisa, ergueu a cabeça para cima. Tentou lembrar-se
daquelas coordenadas que Walter Grimpel registrara, quando se deram as erupções
energéticas aqui no planeta.
O rato-castor fez um esforço enorme, exigindo o máximo de sua memória. Depois
de uma hora, acabou desistindo. Casualmente, encontrava-se neste momento bem diante
da pequena positrônica de bordo.
— Acho que vou conseguir fazer com que o computador funcione, pelo menos que
consiga fazer o que eu tencionava com o aparelho de rastreamento, que Bikre acabou
rebentando. Mas, se os dados registrados por Grimpel não foram lançados no computador
de bordo, então Perry Rhodan e o gorducho poderão tirar da lista do Corpo de Mutantes o
nome de Gucky.
Correndo o mais que podia, dirigiu-se para o setor das máquinas de propulsão, quase
que completamente destruído. Precisava de um transformador, de um pequeno conversor
e de uma centena de outras coisas.
Gucky estava sentado no meio do turbilhão de areia. Calor e areia penetravam pela
fenda de um metro de largura e oito de comprimento da carcaça externa. Mas às suas
costas estava a fuselagem do jato felizmente também rebentada, pois do contrário a areia
vermelha teria encoberto tudo. Assim, quase toda a areia passava simplesmente através
dos destroços, sem praticamente inundar o aparelho.
A refrigeração interna do traje espacial continuava funcionando, sofrendo porém
sempre maiores solicitações. Com isto se evidenciava que a temperatura em Vagabundo
se elevava de hora para hora e não estaria longe o momento em que a ventania de areia se
transformaria num furacão de gases incandescentes — se é que ainda existia no planeta
qualquer tipo de camada atmosférica.
Gucky foi se esgueirando através dos escombros da máquina e, bem ou mal, o
farolete de seu capacete lhe ia mostrando o caminho através do turbilhão de areia.
Havia um pensamento que não lhe abandonava a mente: era a comparação da
pequena touceira de capim da beira do rio onde quem está se afogando se apega de unhas
e dentes. Mas nem mesmo o significado simbólico deste pensamento o conseguia afastar
do seu plano.
Num grande esforço de concentração, desencadeou suas forças telecinéticas,
desvencilhou dos destroços um conversor e o encaminhou, flutuando no ar, até a entrada
da cabina de comando.
Continuou fazendo uso de seus dons extraordinários. Enormes traves de aço, que lhe
impediam os movimentos, cediam a uma força invisível. Grandes instrumentos
atarraxados em chapas de sustentação, eram arrancados e levados pelo vento, acabando
soterrados.
Chegou então o momento em que Gucky, depois de mais de uma hora de esforço
inútil, parecia não mais agüentar. Precisava urgente de um pequeno relê para conduzir
energia na forma certa até o computador. Já achara quatro relês daquele tipo, mas todos
estragados. No meio daquela procura de rebentar com os nervos, chegou aos seus ouvidos
o grito de socorro dos coitadinhos dos filhotes naquela primeira caverna de oitocentos
metros de profundidade.
— Gucky, por que você não vem mais nos visitar? Estamos sozinhos e temos medo.
Transmissões telepáticas de filhotes de ratos-castores, cujos pais estavam mortos.
— Seu pequeno sol apagou, Gucky. Não nos abandone, Gucky.
O pequeno sol era um farolete sobressalente que Gucky havia deixado com eles na
toca escura. O enguiço do farolete era um mistério para Gucky.
“Mas não posso sair daqui”, pensava Gucky, desanimado.
Tinha, no entanto, um meio certo de tranqüilizar os animaizinhos: a hipnose. Assim,
em poucos segundos, depois de receberem os influxos cerebrais de Gucky, cessaram os
pedidos de socorro e todos ficaram tranqüilos na toca.
Gucky continuou em sua faina de procurar pelo relê entre os ferros retorcidos de seu
SJ-09. Mas um tremor e uma forte vibração do solo deixaram Gucky assustado.
Vagabundo sofria assim seu primeiro terremoto.
Devido à força de atração do sol, devido à força centrífuga proveniente da
desmesurada rotação do planeta, Vagabundo estava em vias de se desintegrar
estruturalmente. Este processo poderia levar semanas, mas poderia também acarretar a
destruição do planeta em poucos dias. Gucky acreditava mais nesta última hipótese.
Havia alguns minutos que as entranhas do planeta apresentavam um movimento
diferente, com uma série de abalos. Os escombros do jato balançavam de um lado para o
outro. Gucky se agarrou numa trave de ferro e, apesar da refrigeração de seu uniforme
espacial, sentiu como aquele pedaço de metal estava quente.
Finalmente, os tremores foram rareando até cessarem. Sem saber como, Gucky se
sentiu novamente impelido por uma força irresistível a continuar procurando as peças de
que precisava, no montão de ferro velho. Sabia que sua máquina tinha mais de duas
dúzias de relês, mas onde se localizavam? No meio das ferragens retorcidas ou afundados
na areia quente?
Sua luta renhida contra a fatalidade revitalizou de uma maneira extraordinariamente
benéfica seus dons telecinéticos. Acabou revirando todo aquele montão de sucata como
se fosse um punhado de folhas secas. Peças pesadas eram atiradas para o ar, sem seu
contato manual. Depois chegou a vez da massa de areia quente que encobria uma boa
parte do SJ-09. Mais forte do que a violência do furacão foi o poder telecinético de
Gucky, empurrando a areia contra a tormenta.
Gucky ficou alegre quando viu três destes objetos tão importantes para ele,
brilhando sob a luz do farolete.
Dois dos relês estavam cem por cento.
— E agora, vamos ao trabalho — disse para si mesmo.
6

Felizmente a positrônica de bordo possuía os dados registrados por Walter Grimpel,


quando da erupção energética em Vagabundo. Gucky ficou exuberante; tinha a sensação
de ser Natal e de haver recebido o maior presente de sua vida, no momento em que pegou
a folha plástica com todos os dados. Mas seu entusiasmo desapareceu como uma bolha de
sabão que explode no ar.
— O que eu vou fazer com isto, agora? Como vou achar o equador, o ponto a
quarenta e três graus, seis minutos e vinte e um segundos de longitude?
Estava banhado em suor, apesar do bom funcionamento do ar condicionado em seu
uniforme. Olhava nervoso para a fita perfurada do computador. Atirou-a subitamente num
canto.
— Todos os bons espíritos me abandonaram. Erupção energética! Bell, como é bom
que você não esteja presente, pois do contrário, como você iria caçoar da minha burrice!
Que importância tem para mim o local determinado por Walter Grimpel? Não pode
existir mais nada onde vulcão, terremoto e furacão devastaram tudo.
Desanimado, olhava para o computador. Não havia dúvida de que realizara uma
grande façanha, fazendo funcionar o computador de bordo por meio de intercalação de
peças quebradas e procuradas nos escombros. Este mesmo computador devia saber o
lugar exato onde se precipitara de encontro ao solo, pois até este momento, tudo estava
funcionando no SJ-09.
Uma outra tira perfurada caiu da fenda de saída. Gucky apanhou-a rápido.
— 00:00,09; 171:38,56 — leu ele.
Além disso, outros dados mostravam que ele fizera a desastrosa aterrissagem ao sul
do equador. Seus olhos de rato se arregalaram e ficaram fixos no computador. Somente
ele podia salvá-lo daquela situação desesperadora. Primeiramente devia ter armazenado
todos os dados normais do planeta, como também deveria ter registrado toda e qualquer
alteração havida nos instrumentos de medição durante o vôo ininterrupto para
Vagabundo.
Como se tivesse um ser humano diante de si, Gucky conversava com o computador:
— Se você me deixar na mão, será certamente o culpado pelo monumento que será
erguido na Terra em minha homenagem, nos próximos dias. Preste atenção numa coisa,
agora...
Mas, com o máximo de concentração, Gucky tentava buscar uma solução... A
pergunta que queria fazer ao computador era extremamente complicada. Com base nas
alterações sofridas pelo planeta, a positrônica de bordo devia calcular de que lugar de
Vagabundo se dera o deslocamento que alterou a órbita. Além disso, queria saber onde
encontraria a estação que fornecia esta energia toda.
Gucky não tinha dúvida de que o destino de seu planeta pátrio estava selado e de
que não havia nenhum poder no momento capaz de evitar que seu mundo se projetasse de
encontro ao sol. É claro que Gucky não queria participar do destino de Vagabundo. Iria
tentar chamar a atenção de Rhodan com algum grito de socorro, questão de vida e morte
para ele e para os poucos filhotes de rato-castor que ainda estariam vivos no fundo
daquela caverna, caso os últimos tremores de terra já não os tivessem soterrado.
O pensamento nos filhotinhos fez com que Gucky se afastasse um pouco do
computador. Afinal, a resposta às duas perguntas levaria bem meia hora.
Correu para o depósito. Lá estavam ainda no armário os vinte e nove uniformes,
todos sem o minicomunicador. Amarrou-os com um cordão plástico e teleportou-se com
eles. Rematerializou-se na toca dos quinze ratinhos. A caverna suportara, sem maiores
danos, todos os tremores, mas a galeria que conduzia para a superfície estava tapada.
Nenhum deles cumprimentou Gucky, pois sua forte dose de hipnose, transmitida
para acalmar os coitadinhos, ainda estava fazendo efeito. Desligou seu farolete, abriu o
capacete e levantou a cabeça. O rato-castor respirou aliviado o ar fresco. Os pais daqueles
filhotinhos, que os abrigaram nestas profundidades, deviam estar prevendo o que iria
acontecer com o planeta. Mas, mesmo naquela profundidade de oitocentos metros, não
haveria mais nenhum animal vivo se o turbilhão de areia incandescente da superfície não
tivesse entupido todas as entradas da caverna, criando assim uma barreira ou isolamento
contra o ar superaquecido. Os tremores do planeta, por sua vez, contribuíram para que o
pouco estoque de ar respirável não acabasse de todo.
Mas, por quanto tempo duraria este ar?
Gucky ligou de novo o farolete e a forte luz cobriu todos que dormiam. E durante o
sono receberam novos influxos hipnóticos para continuarem dormindo.
“Quem dorme e quase não se movimenta, consome menos oxigênio e sofre menos
com a fome”, refletiu.
Teleportou-se depois de volta ao SJ-09. Chegou na hora em que o computador de
bordo estava dando a resposta.
— Alteração de órbita se dá a partir da zona equatorial; probabilidade de 97,64 por
cento. Distância hipotética do local da aterrissagem: 672 quilômetros; probabilidade de
80,05 por cento. Situação da estação energética, possível a uma profundidade entre 5 a 15
quilômetros. Direção desta estação: exatamente para o leste; probabilidade de 97,64 por
cento.
Gucky memorizou todos estes dados. As porcentagens não o deixaram muito
tranqüilo. Teve que confessar que um jato moderníssimo, apesar de todo seu desempenho
tecnológico e de todas as suas soberbas instalações, em casos de acidente, se positivava
como um primitivo barco de salvamento no meio de um oceano tormentoso.
Fez seus preparativos com muito cuidado. Deu muita atenção à seleção das armas de
raios energéticos que levaria. Apanhou duas pistolas energéticas e uma de raios térmicos.
Depois fez a revisão de todo seu uniforme espacial. Com todo estoque possível de energia
e ar, teleportou-se dos escombros do SJ-09 para mais ou menos 670 quilômetros a leste.
Como uma folha seca, foi apanhado pelo furacão incandescente ao rematerializar-se.
Rodopiou várias vezes no meio da areia quente, sem poder ver nada. Teve de recorrer a
suas forças telecinéticas para alcançar o chão. Com os geradores funcionando a toda
força, ligara todos os envoltórios de proteção. Deixou de fazer uso de seu farolete, pois,
embora fortes, os raios de luz não penetravam mais de dois metros.
Quase não conseguia mais parar de pé, quando se apercebeu que estava sendo
vítima de uma coação moral, como nunca sentira antes. Lembrou-se da perigosa aventura
que ele, Rhodan e Sengu suportaram, relativamente bem, em Bárcon. Lá, em luta com os
invisíveis, quase que sucumbiu com uma dor de cabeça maluca. Mas aqui era diferente,
muito diferente. Com as forças da telecinese ia rompendo caminho, apesar da areia
quente do furacão. E aguçando os dons telepáticos, procurava determinar a direção de
onde vinha aquela coação moral.
Gucky não sabia nada da terrível descoberta do Dr. Innogow, a “energia orgânica”,
e nem a percebia no momento em que, sob a forte proteção do uniforme, seu pêlo eriçou-
se.
Gucky tinha a sensação de que, de segundo a segundo, ia ficando desorientado. Até
mesmo a faculdade telepática de achar o rumo, sem o uso dos olhos, foi-lhe diminuindo.
Em compensação, sentia com certeza que não estava sendo atacado e exatamente
esta sensação o tornava mais irritado.
A coação moral lhe vinha de dezoito direções diferentes. Sabia perfeitamente disso,
só não sabia o motivo e como.
Não havia ninguém em Vagabundo que soubesse da existência de dezoito espécies
de guindastes — na realidade enormes antenas — de mais de cem metros em construção
de metal, enterradas no chão em locais diferentes.
Quando a compressão mental se tornou insuportável, Gucky teleportou-se um pouco
mais para frente, na direção do leste. Ali a compressão era bem mais branda.
— Compressão...? — disse Gucky para si mesmo, chegando à conclusão de que se
tratava de impulsos de extraordinária violência, que, porém, não o atacavam, apenas lhe
roçavam o pêlo.
— Desgraçado — praguejou na sua linguagem crua. — Em toda parte surgem coisas
novas. Que vá tudo para o inferno.
Mas ele não se chamaria Gucky, se não desse rédeas à sua curiosidade. Tentou
esquecer a coação ou a compressão mental para poder estudar os impulsos.
E conseguiu descobrir telepaticamente de onde vinham.
— Dali de trás!
Dizendo isto, desapareceu. Quando se rematerializou, estava gritando de dores e,
não as podendo suportar, atirou-se na areia quente do chão. Foi tiro e queda: na mesma
hora se viu livre de todas as dores.
— Que coisa esquisita! — exclamou admirado, levantando-se de novo.
Mas mal se ergueu, as dores se manifestaram.
Lançou-se de novo no chão, de barriga para cima, para poder ligar o farolete.
“Há algo de estranho nestas dores!”, refletiu.
Contudo os raios do farolete não penetravam muito no turbilhão de areia. Por isso,
Gucky começou a se arrastar pelo chão, tendo o cuidado de não se erguer.
Subitamente descobriu diante de si algo por demais esquisito. Já havia visto coisa
semelhante. O próprio Bikre lhe mostrara: era uma antena com a forma de um guindaste.
Gucky não teve coragem de tocá-la, apesar de sua curiosidade sem limites. Setenta anos
de aprendizagem com Perry Rhodan lhe ensinaram que cautela nunca é demais, se bem
que Gucky às vezes passasse da conta, chegando às raias da temeridade.
A antena sobressaía da terra uns quatro metros. Gucky viu como o furacão cada vez
mais levava a areia para longe, deixando o corpo da antena sempre mais a descoberto.
— Que bandidos do espaço plantaram este negócio aqui? — indagou apreensivo.
Levantou o braço direito, tentando tocar na antena. Mas com um grito de dor, teve
que baixá-lo na mesma hora. Como que atingido por uma força irresistível, a compressão
mental se abateu de novo sobre ele.
Foi-lhe necessário mais tempo para se recuperar. Não chegou a fazer outra tentativa,
mas continuava sondando o misterioso impulso, sem que toda sua concentração telepática
obtivesse resultado. Um leve zunido de alerta soou em seu uniforme espacial. Era a
instalação de ar condicionado. O pouco de ar que ainda restava em Vagabundo começou a
ficar demasiadamente quente. O próprio termômetro externo não funcionava mais.
— Santa Via Láctea! — disse Gucky excitado — logo, logo a areia a meus pés vai
começar a fundir.
Olhou para os registros na aba inferior do capacete de plástico. A temperatura dentro
do uniforme era de vinte e oito graus positivos. Acionou então os pequenos geradores
diretamente para o ar condicionado, deixando apenas um ligado com o envoltório de
proteção, que afastava dele a areia incandescente.
Segundos depois, silenciou o zunido de alarme do uniforme e Gucky recomeçou a
procurar de onde vinham os impulsos. Mas, novamente nenhum resultado, até que
finalmente ouviu qualquer coisa. Abaixo dele, bem fundo... um impulso muito fraco.
Como é que podia saber que acabara de detectar um Ogro, um produto híbrido do
técnico com o orgânico, coisa nunca vista!
— Espera um pouco, meu amigo, você vai ver alguma coisa!
Gucky se teleportou na direção dos impulsos, a 10 mil metros abaixo da superfície
candente de Vagabundo, aterrissando numa imensa caverna, toda escura. A luz da lanterna
lhe permitiu ver alguma coisa e chegou a se assustar com o gigantismo da maquinaria que
ali estava diante dele. Nunca vira coisa semelhante na Terra. E o mais esquisito é que
nenhuma máquina fazia o menor ruído. Tudo num silêncio que simbolizava morte e
destruição.
Gucky sentiu que uma onda de pavor o tentava tragar e seu primeiro pensamento foi
teleportar-se e fugir daquele monstro de metal. Mas, como sempre, sua curiosidade se
sobrepunha ao medo. E depois, então, se lembrou de seu grande amigo — Perry Rhodan
— e este jamais fugiria de máquinas negras trabalhando em silêncio.
Onde estava, porém, o ser invisível cujos impulsos ele sentira através de dez mil
metros de rocha e terra?
Gucky estava parado diante de um conjunto de instrumentos mais altos que uma
casa e o leque de luz do farolete pesquisava em volta. A duzentos metros acima de onde
se encontrava, o teto daquela catedral dos maus espíritos, se fechava em abóbada. O cone
luminoso varria a escuridão, até se diluir ao longe. Foi aí que o rato-castor teve uma idéia
exata da terrificante extensão daquela galeria de máquinas. A procura pelo ser misterioso,
porém, fora infrutífera.
Teleportou-se até a distância que o cone luminoso cobria. Quase perdeu o fôlego,
quando, paralisado de estupefação, deu com uma construção camuflada que lhe lembrava
um verme ciclópico. Num semi-círculo de mais ou menos cinqüenta metros de diâmetro,
Gucky estava envolvido por este verme-monstro. Mas nem mesmo assim conseguiu
captar algum pensamento ou qualquer outro impulso.
Não queria confessar de que maneira este fenômeno mais do que estranho o
inquietava. Somente pôde dominar esta intranqüilidade com o argumento de que o
“outro”, que ele percebera lá em cima aos pés da antena, estaria em condições de captar
as irradiações de sua mente.
Mas Gucky não acreditava nisso. Teleportou-se mais vezes de um canto para o outro
e quanto mais procurava pelo ser misterioso, mais crescia sua intranqüilidade. Depois,
um outro tremor se abateu sobre o planeta.
Gucky ouviu a primeira explosão catastrófica nas profundezas do planeta, quando já
se tinha teleportado para a superfície lá fora.
“Antes morrer carbonizado”, pensava ele, “do que ser sepultado vivo sob dez mil
metros de pedra.”
Por uma meia hora, que lhe pareceu uma eternidade, permaneceu lá em cima, na
superfície, exposto à violência inaudita do furacão de gás que esfuziava na areia
candente.
Tão repentino como chegou, o tremor do solo desapareceu. Gucky teleportou-se de
volta para as instalações subterrâneas do imenso parque da esquisita maquinaria. Já
estava mentalmente preparado para encontrar tudo destruído. Qual não foi sua surpresa
ao constatar que tudo estava intacto. E mais uma vez, recomeçou a procura do ser
invisível, do “outro”.
A situação foi ficando cada vez mais desagradável para o rato-castor, que não
compreendia por que não estava sendo atacado, pois seu farolete já havia atingido o
objetivo. Não desistira do seu fantástico plano de fazer explodir as enormes instalações e
assim chamar a atenção de Rhodan, através das erupções energéticas, para o que estava se
passando em Vagabundo. Mas, quanto mais estudava aquele complexo diabólico de
construções desconhecidas, operando com um silêncio que causava calafrios, tanto mais
difícil lhe parecia a execução do que planejara.
Já realizara mais de cem teleportações, ali nas entranhas do planeta, para examinar
melhor o monstro técnico-orgânico. O relógio lhe mostrou quantas horas haviam passado.
E não havia necessidade de que ninguém lhe dissesse que, neste meio tempo, o planeta
Vagabundo se aproximara muito mais do sol e que o momento fatídico do choque estava
próximo.
Teleportou-se mais uma vez e, inesperadamente, um forte impulso o atingiu. No
mesmo instante determinou o lugar de onde vinha, vendo, à sua frente, uma carcaça negra
e assimétrica. Tentou comunicar-se, mas não recebeu nenhuma resposta. O impulso
continuava. Chegou mesmo a desconfiar dos seus sentidos.
Captava pensamentos, mas por que não recebia resposta? E por que não estava em
condições de entender os pensamentos recebidos?
Lembrou-se novamente de Bárcon, mas lá, sentira nitidamente que os impulsos de
pensamento que não conseguia entender, lhe eram francamente hostis. Aqui, porém,
captava apenas os impulsos e nada mais.
O cone luminoso do farolete se detinha imóvel na carcaça assimétrica de uns dois
metros de altura e uns cinco de comprimento. Foi com a luz forte do farolete que Gucky
percebeu que desta instalação, desta carcaça negra e misteriosa, partiam ligações para
todos os lados.
Concentrou a luz no centro da carcaça, concentrou-se para aumentar suas forças
telepáticas e endereçou à estranha fonte de impulsos a intimação de se pôr em contato
com ele.
Mais uma vez, sem resultado. O impulso continuava invariável.
— Você que tenta estupidamente jogar futebol com o planeta — ameaçou-o Gucky
— espera só uns segundos.
E então, os raios energéticos de sua arma penetraram na carcaça e atingiram o
mecanismo. Neste mesmo instante, Gucky parecia ofegante, não acreditando no que seus
olhos viam. Desligou o farolete. Continuava somente o jato contínuo da pistola
energética, mas estes raios não destruíam a carcaça. Atravessavam-na, sem destruí-la. E,
em algum lugar, no centro deste mecanismo, havia algo que simplesmente resistia aos
raios energéticos. Uma coisa tão esquisita, que Gucky pensou ser vítima de alucinações.
Apareceu, no interior do mecanismo, um singular ponto amarelo, que, se estufando,
crescia cada vez mais. E este ponto amarelo era exatamente o que absorvia os raios
energéticos da pistola de Gucky.
Será que começaria mais um daqueles tremores planetares?
Gucky mantinha o gatilho apertado e o jato energético continuava ininterrupto de
encontro ao ponto amarelo que já se inflara, ficando do tamanho de uma bola de futebol.
— Você ou eu! — e Gucky ainda usava com todas as forças os seus dons telepáticos.
— Apresente-se, manifeste seus pensamentos!
Mas um Ogro não é telepata. Só pode comunicar-se através das ondas orgânicas dos
monstros. O Ogro tomava os impulsos telepáticos de Gucky como energia, mas não como
um meio de comunicação. E o que não conseguia assimilar em sua existência orgânica,
transferia para a parte técnica.
Porém, a energia da pistola de Gucky lhe era estranha e mesmo mortífera. Por isso,
Gucky sabia a razão do grande estremecimento que parecia um tremor de terra. O Ogro
se contorcia, trovejando enfurecido.
Ao se teleportar, Gucky ainda viu o início de uma enorme descarga energética. O
salto do rato-castor fora de dois mil quilômetros. No momento da rematerialização, ainda
teve que fechar os olhos, ofuscados por uma terrível claridade amarela, que penetrou no
espaço por dezenas de milhares de quilômetros.
— Perry Rhodan, estou chamando você!
Foi o pensamento de Gucky, quando se teleportou para a caverna dos últimos
filhotes de ratos-castores, enquanto o planeta era atingido por uma série de explosões
catastróficas.

***

No mundo dos monstros, porém, um Gal entrava em contato com líderes de grupo,
naquele momento:
— Nossa tentativa sideral fracassou no último instante. O melhor Ogro que
construímos, falhou totalmente no último estágio.
7

A revisão rotineira de todos os registros de bordo, feita em fins de setembro de


2.044, avisou que um importante dado de um computador deixou de ser observado. Logo
após o ano-novo, todos os registros de bordo foram novamente estudados em Terrânia,
em longos trabalhos de pesquisa. Entre eles, o diário de bordo de um cruzador leve, que
em setembro do ano anterior havia estado no planeta Vagabundo.
Na noite de 8 para 9 de janeiro de 2.045, Perry Rhodan foi despertado pela comissão
examinadora, que, usando os maiores computadores, investigara, um por um, todos os
diários de bordo das espaçonaves acidentadas.
Rhodan acordou Reginald Bell e Allan D. Mercant, chefe da Defesa Solar,
convocando também um certo grupo de cientistas, que tiveram de interromper o sono e se
reunirem sob a direção do Dr. Innogow, o tal que ainda quebrava a cabeça com a
misteriosa pedrinha encontrada por Grimpel no planeta Vagabundo. Também na casa do
responsável pelo depósito 18 Ômega, soou o alarme. O homem correu poucos segundos
após para o depósito, procurou desesperado por um refletor de ondas, desmontado em
setembro do ano anterior de um cruzador leve. Achando-o, dirigiu-se às pressas para o
escritório de Perry Rhodan.
— Para o chefe! Santo Deus — dizia ele. — Que vai fazer com esta peça
escangalhada?
Mas a peça não estava escangalhada. Funcionou maravilhosamente com uma
declinação de apenas 0,0005.
E nesta conferência de emergência, ouviu-se de repente a voz do plantonista da
maior estação de rastreamento de Terrânia:
— Sir, violentíssima erupção energética em Vagabundo. O planeta deve estar em
chamas e pode explodir a qualquer hora.
O semblante de Rhodan se anuviou. Bell empalideceu. E os dois homens se
entreolharam apavorados. A mão de Rhodan tremia sobre o botão de alarme...
Alarme para o controle da Frota Solar!
A imagem no videofone ficou estável. Ao lado estava também a tecla que ligava o
escritório com a estação de rastreamento e a de hiper-rádio.
— Em qual espaçonave se encontram os mutantes... com teleportadores a bordo nas
proximidades do planeta Vagabundo? Pergunta urgentíssima.
Ao ouvirem esta pergunta, uma dúzia de homens prenderam a respiração. A resposta
veio breve.
— Sir, não há nenhuma nave, com ou sem teleportadores a bordo, naquela região.
— Qual é o cruzador leve mais próximo do planeta?
— O Burma, com o comandante Joe Pasgin em vôo para...
— Obrigado — disse Rhodan.
Desfez a ligação e virou-se para o videofone que estava em ligação com a estação
do intercom.
— Você ouviu nossa conversa?
— Perfeitamente, chefe!
— Ordem de emergência para o cruzador Burma. Rota de Vagabundo, o mais rápido
possível. Gucky está em perigo de vida. Chame também Árcon III. O cérebro positrônico
de Árcon deve também transmitir minha ordem, imediatamente, ao Burma. Assim que
conseguir ligação para o comandante Pasgin, avise-me. Transmita-me imediatamente
toda e qualquer referência importante sobre Vagabundo. Fim.
Desfazendo a ligação com a estação de intercom, recostou-se no espaldar da
poltrona e cerrou os olhos.
— E nós dois estávamos crentes de proporcionar uma grande alegria a Gucky,
dando-lhe estas férias — disse Bell, abatido. — Se não estivesse nesta reunião, gostaria
de dar uns berros...
Com uma certa aspereza, Rhodan o atalhou:
— Você quer me complicar ainda mais as coisas?
O volumoso Bell não levou a mal a advertência. Inclinou-se para frente, esticou o
braço diante do amigo e fez a ligação para o espaçoporto.
— Decolagem de emergência para a Drusus. O chefe e eu estaremos a bordo. Fim.
Depois olhou firme em volta e disse com determinação:
— Os senhores irão conosco. Por favor, meus senhores.
Ao se levantar, ligou o minicom de pulso. Estava-lhe, pois, garantida uma
comunicação direta com a estação de hiper-rádio.
Não houve nenhuma precipitação na sala de conferência, mas também não se perdeu
nenhum minuto.
Onze minutos depois, estavam todos entrando pela escotilha central da Drusus, nave
capitania de Perry Rhodan e, com 1.500 metros de diâmetro, a maior nave da Frota Solar.
Quando o supercouraçado, com seu mecanismo de propulsão roncando mais que o
trovão, se ergueu de Terrânia, ainda envolta no véu da noite, lá em Vagabundo estava
Gucky, segurando um filhotinho de rato-castor, que ele mesmo, com os fluxos hipnóticos,
fizera adormecer.
— Se meu amigo Perry Rhodan não ouviu este foguetório todo, então estamos
perdidos. Mas, durma sossegado, não se preocupe com nada. O único que está
preocupado é Perry Rhodan. É um sujeito maravilhoso. Um homem assim, só existe uma
vez no mundo. E ele vai nos tirar daqui.
E Gucky acariciou o animalzinho.

***

O Tenente Hendrik Olavson, verdadeiro gênio em vôo espacial, desligou a tecla do


intercom, quando ouviu do alto-falante do receptor de hiper-rádio a expressão: “Ordem
de emergência”.

Ordem de emergência ao cruzador Burma! Vôo


imediato para Vagabundo. Violenta erupção energética.
Gucky se encontra em Vagabundo. Deve estar em
grande perigo.
Assinado Rhodan.

O Burma, um cruzador médio de cem metros de diâmetro, da Frota Espacial, saíra


há quinze minutos de uma transição do hiperespaço para o espaço normal. Seu destino
agora era 456 LL-4, planeta do Império Arcônida, para substituir uma guarnição terrana
lá estacionada.
O comandante do Burma, Joe Pasgin, foi arrancado da cama pelo alarme.
— Olavson — gritou ele, assim que pulou da cama.
Olavson estava na poltrona do piloto e interrompeu seu chefe.
— Burma está seguindo nova rota. A positrônica já está trabalhando para nova
transição em cinco minutos.
— Certo — disse o comandante Pasgin, enquanto vestia o uniforme.
Mais uma vez ecoou o som saído do alto-falante do telecom. Era a voz
inconfundível do cérebro positrônico de Árcon III. Deu a mensagem de emergência, com
as mesmas palavras.
“Meu Deus”, pensava Joe Pasgin no caminho para a central, “se Árcon III repete a
mensagem de alarme, não deve sobrar mesmo muita coisa de Vagabundo.”
O Tenente Olavson nem olhou para o lado, quando o comandante chegou à cabina
central. Suas mãos estavam ocupadas em pôr Burma numa outra rota. Fazia-o com a
naturalidade de uma criança se divertindo com seus brinquedos. Parece que tinha um
sexto sentido para lhe dizer sempre o que tinha de fazer. E sempre se positivava que suas
reações eram certas.
O computador de bordo apresentou os dados para a transição. Olavson apanhou a
folha plástica e a colocou à sua frente. Executou todas as ligações para a transição e não
se esqueceu de atingir, antes do salto, a velocidade necessária. Não gostava de iniciar o
salto para o hiperespaço sem mais nem menos. Ele, que aliás era tão ousado, achava esta
operação demasiadamente perigosa.
O Burma, com uma tripulação prevista para cento e cinqüenta homens, pertencia ao
tipo de nave com uma potência de aceleração fora do comum, ultrapassando a velocidade
da luz em questão de cinco minutos. Claro que para isto tinha de dispor de um
mecanismo de propulsão superpotente, o que o colocava entre os cruzadores pesados e as
naves da classe Solar. Isto sem falar naturalmente nos outros equipamentos, como
principalmente seu poder de fogo.
Espaçonaves da classe Estado eram em geral naves de reconhecimento e, em virtude
de seu poder de superaceleração, estavam em condições de atingir os locais mais
distantes num tempo recorde.
Agora, porém, o Burma tinha de ser mais veloz do que nunca. Tratava-se de salvar
Gucky. Não havia ninguém entre os tripulantes que não conhecesse Gucky. Todos já
haviam se divertido muito com seus golpes magistrais e sabiam da sua coragem e
dedicação sem limites, comprovadas a todo momento. Além disso, muitos homens
deviam a vida ao sangue-frio e à determinação do rato-castor.
— Agora é ele quem está em apuros — disse Olavson amargurado, enquanto a
calculadora do computador dava, com sua voz metálica, as distâncias-tempo para a
transição.
Setenta e dois segundos antes da transição, o posto de radiotelegrafia ligou seus
alto-falantes:
— Estação de hiper-rádio de Terrânia — anunciou o radioperador. — Atenção para
o Burma. Perigo iminente numa aterrissagem em Vagabundo. O planeta está em vias de
se projetar de encontro ao sol. Erupções energéticas na zona equatorial aceleram este
choque entre Vagabundo e seu sol. Não aterrissar. Proibição do chefe. Instrução do
administrador à tripulação do Burma: pensem em Gucky com toda a intensidade, quando
o Burma estiver circunvoando o planeta. A pedido do administrador. Assinado Bell.
Faltavam ainda quinze segundos para a transição e Burma voava já com 0,7 da
velocidade da luz.
Hendrik acionou o sincronizador central e transmitiu à positrônica todos os dados de
navegabilidade e funcionamento do conjunto de propulsão.
O jovem tenente e o experimentado comandante se entreolharam por um instante.
Estavam cientes do que os esperava.
— Que calamidade! — exclamou Joe Pasgin. — É exatamente o pobre do Gucky
que tem de estar preso neste caldeirão do diabo? Se é que ainda esteja vivo...
Deu-se então a transição.
No ponto zero, desapareceu o espaço e com ele o Burma, para rematerializar-se no
espaço normal a anos-luz do local do salto.
Da tela panorâmica irrompiam intensas faixas de luz ofuscante, enchendo a sala de
comando. O Burma saíra do hiperespaço entre o sol e o planeta. Distância do sol: 84
milhões de quilômetros; distância do planeta: 9,5 milhões.
Não havia terrano que pudesse gostar destes vôos mais ou menos próximos de sóis,
independente de suas características. Nunca se estava seguro em sua proximidade e os
registros automáticos do Burma reagiram de pronto ao perigoso campo de gravitação, que
puxava sensivelmente o aparelho, com um zunido selvagem dos superpotentes motores
de propulsão.
Na cabina de comando não se trocou uma palavra. Do posto de rádio veio a seguinte
mensagem:
— Comunicação de Terrânia: o chefe está a caminho de Vagabundo com a Drusus.
Pasgin, comandante do Burma, apertou o botão geral da intercomunicação de bordo:
— Pensar intensamente em Gucky. Nenhum dos cento e cinqüenta homens da
tripulação estranhou o aviso. Não havia um que não tivesse já presenciado maravilhas dos
dons parapsicológicos de Gucky.
O Burma devorava o espaço em direção ao planeta, com os motores a toda, devido à
forte atração do sol.
Por sua vez, Vagabundo parecia também convertido num pequeno sol. Sua
superfície ardia em chamas.
Erupções de gás, como se fossem protuberâncias, lambiam o único planeta daquele
sistema. E os homens a bordo do Burma sabiam o que significavam as figuras estranhas
na grande tela. Não precisavam ser astrofísicos para isto.
Vagabundo estava em vias de expelir para o espaço o último resto do ar candente.
Seria a última reação, antes da explosão-monstro e da precipitação contra o sol.
Hendrik Olavson acelerou a nave ao máximo, ligando em série três geradores
energéticos para dar maior resistência ao envoltório de proteção. Não podia supor o que o
esperava, quando o Burma começou a sobrevoar o planeta a alguns milhares de metros de
altura.
Joe Pasgin repetiu sua exortação:
— Pensar intensamente em Gucky. Como em todo vôo rasante de encontro à
superfície de um corpo celeste, dava a impressão de que o infeliz planeta Vagabundo se
atirava célere contra a potente espaçonave. Cada vez maior, o planeta condenado à morte;
cada vez mais dantesco, o espetáculo da destruição pelo fogo.
— Será que ele ainda está vivo? — perguntou alguém desesperado na cabina de
comando.
A cena de horror chegou ao seu clímax. O piloto Hendrik Olavson ouviu como seu
comandante, quase ofegante, perguntou:
— E o serviço de rastreamento?
— Continua funcionando desde o fim da transição — foi a rápida resposta.
Os homens da tripulação, que já haviam presenciado tanta coisa maravilhosa na
galáxia, contemplavam fascinados um cone amarelado com a ponta para baixo.
Energia amarela, era um tipo de expressão energética que não conheciam ainda.
— Não chegue perto demais! — recomendou o capitão ao seu piloto.
Respondendo com um simples sinal da cabeça, continuou o vertiginoso vôo rumo à
superfície de Vagabundo.
Ordem do comandante, através do intercom:
— Vestir os trajes espaciais!
A 49 mil metros de altura, Hendrik diminuiu a velocidade e mudou de rumo. A
positrônica de bordo continuava recebendo dados sobre o planeta moribundo.
— Nada ainda — disse Pasgin.
Não havia ainda nenhum sinal da vida do rato-castor.
Pergunta do comandante Pasgin ao operador de rádio:
— O chefe já está informado de que estamos sobrevoando o planeta?
— Perfeitamente. Atenção! Está entrando um comunicado da Drusus. Pronto, já está
aqui: procurem Gucky, tentem encontrá-lo, por tudo que nos é sagrado neste mundo!
Era a própria voz de Rhodan, um homem que temia pela vida de um de seus amigos
e que via agora que não poderia fazer nenhum milagre.
— Gucky... — disse Olavson, pronunciando o nome bem silabado. — Gucky —
repetiu ele, sacudindo a cabeça desanimado.
— Fortes tremores planetares da maior intensidade — veio a informação deprimente
do rastreamento. — Se continuarem, Vagabundo vai deixar de existir dentro de dez horas.
Um outro da central de comando interveio:
— Em dez horas? Muito antes. A excessiva velocidade de rotação do planeta vai
rebentar com ele em menos de quatro horas.
O cruzador Burma estava circunvoando um verdadeiro inferno, um mundo sem
camada atmosférica, onde o forte conteúdo de oxigênio do solo expelia, em forma de
explosões de gases incandescentes, os componentes do ar. Somente as ligas metálicas
mais nobres podiam resistir à altíssima temperatura reinante.
O cruzador esférico iniciava sua quinta circunvolução do planeta e o comandante
Joe Pasgin ouvia a voz desanimada de Olavson:
— Ainda nada!
Mais uma vez, o comandante voltou a repetir a mesma exortação no microfone do
intercom:
— Pensar mais intensamente em Gucky...!
E, no mesmo instante, assustado, dando um grito e esticando o braço, o comandante
apanhou um objeto atirado por Gucky!
— Pegue, Pasgin, e trate com muito cuidado o meu filhotinho!
Gucky estava ali e, no mesmo instante, já havia desaparecido.
— Frear, Olavson! Fazer com que a nave fique parada — ordenou Pasgin, não
podendo conter a alegria.
Mas o que estava em seus braços?
Ao lado de Pasgin, estava Michel Dung, que não conseguia fechar a boca. Dung
tinha também alguma coisa nos braços.
— Santa Via Láctea! — Pasgin deu um grito de alegria. — Isto aqui é um pequeno
Gucky...
— E é bonitinho, não é? — disse Gucky, que já havia executado a segunda
teleportação, voltando com mais quatro filhotinhos. — Isto é um Guckyzinho fêmea,
Joe...
Falou e desapareceu novamente.
Na sala de comando do Burma, deu-se uma cena que a Frota Solar, em toda sua
existência, jamais presenciara. Seis oficiais estavam ali postados, segurando filhotinhos,
enquanto Gucky ia e vinha trazendo mais daqueles cômicos animaizinhos.
Rematerializava-se numa caverna a mais de oitocentos metros de profundidade. Acima
dele, o pavor e a morte reinavam.
De repente, alguma coisa se chocou contra o capacete plástico de Gucky, atirando-o
ao chão. Era tarde para qualquer movimento. Mas não tão tarde para se teleportar e
afastar-se alguns metros. Quando dirigiu o cone de luz do farolete para ver o que foi que
o derrubou, viu que o teto da caverna estava se arqueando e rachando.
Em um ou dois segundos, terra e pedra se abateriam sobre Gucky e os filhotinhos
que ali dormiam. Mais do que depressa, começou a agir. Um, dois, três, quatro, cinco...
ainda prendeu o sexto entre as pernas e mais um, no último instante, e com sete
filhotinhos teleportou-se para o Burma, enquanto a caverna desabava, sepultando vários
animaizinhos.
— Quantos são ao todo? — foi sua primeira pergunta, depois de puxar para trás o
capacete e olhar em volta radioso.
— Vinte e oito, Tenente Gucky! — o comandante Joe Pasgin usara espontaneamente
o grau hierárquico de Gucky.
— Vinte e oito... entre alguns milhares — disse Gucky, cansado, perdendo a
expressão de alegria. — Vinte e oito... e tudo isto, só porque um bando de aventureiros do
espaço queria fazer suas experiências no meu planeta.
Sem que Gucky o notasse, o comandante transferiu a ligação do intercom para a
cabina de radiotelegrafia. Lá se sabia perfeitamente o que o comandante Pasgin pretendia
fazer, isto é, que através do hiper-rádio, Perry Rhodan, na Drusus, ouvisse tudo que
Gucky queria dizer.
Mas Gucky não disse muita coisa, pois subitamente constatou que o cruzador Burma
ainda estava sobre o planeta.
— Será que no final de tudo, nós todos temos que fazer uma aterrissagem no sol,
Pasgin? Temos que sair daqui imediatamente. Vagabundo pode explodir a qualquer
minuto.
— Está certo!
Hendrik tomou a observação de Gucky como uma ordem, e fez com que o Burma
acelerasse imediatamente, quando uma muralha de luz ofuscante inundou a tela
panorâmica. Alguns homens em pânico começaram a gritar.
No entanto, Olavson já tinha engrenado o sincronizador-mestre, entregando o
Burma à positrônica de bordo.
Foram necessários muitos minutos até que todos os homens recuperassem a visão.
— Onde está o planeta Vagabundo? — perguntou Pasgin apontando para a tela onde
se via apenas o sol.
— Explodiu — respondeu alguém chiando. — Acho que bombardeei demais com os
raios energéticos aquele olho amarelo. Talvez tenha sido isso, Joe. Mas de qualquer
maneira consegui chamar a atenção de vocês com estes “fogos de artifício”. Porém, só
nos últimos instantes, tive a certeza de que aquela instalação diabólica nas entranhas do
planeta iria provocar sua explosão. Não compreendo o que poderia ser aquele olho
amarelo.
Ninguém o poderá compreender, como também ninguém saberá explicar como o
planeta se transformou em luz e fogo.
— Não estamos saindo do lugar, comandante! O Burma não aumenta a aceleração
— disse Hendrik Olavson, alarmando o comandante e os homens na sala de comando.
No entanto, a julgar pelo zunido dos motores de propulsão que funcionavam com
plena potência, a nave esférica já devia estar longe deste diminuto sistema solar.
Gucky levantou-se de um salto e foi para frente do aparelho de rastreamento,
olhando a imagem dupla do oscilógrafo. Embora nada soubesse da teoria do Dr. Innogow,
viu imediatamente o caráter parcialmente orgânico daquela energia, que apesar de tudo
continuava ainda existindo, embora Vagabundo já tivesse explodido e desaparecido.
— Transição direta do ponto em que estamos — gritou ele — temos que sair daqui.

***

Em meio do trajeto, entre o sol de Vagabundo e a Terra, o Burma entrou novamente


no espaço normal.
— Por favor, Joe — falou Gucky — não faça mais transição. Permita que os
filhotinhos voltem primeiro a si. Você já avisou Rhodan onde ele nos pode encontrar?
Faça-o, por favor! Eu vou para o local onde estão os animaizinhos, ver o que estão
fazendo.
Apenas uma hora depois, Joe Pasgin chamou Gucky pelo intercom.
— Que grupo de bagunceiros você trouxe cá para o Burma? Não são nada de
filhotinhos inocentes, são é verdadeiros diabinhos.
No camarote que escolhera para repousar, Gucky viu, perplexo, na tela do videofone
o rosto zangado do comandante, do que naturalmente não gostou.
— O que meus filhotinhos fizeram, Joe? — perguntou Gucky um tanto incerto.
— Exatamente dois dos seus filhotinhos inocentes penetraram na casa de máquinas
três e acionaram a alavanca da instalação contra incêndio, deixando tudo mergulhado
n’água. Como souberam de que maneira a instalação funciona? Será que podem ler o
pensamento como você? Será que são também teleportadores e telecinetas? Acho que
você se diverte muito com este bando brincalhão.
— Eu...
Gucky não concluiu. O comandante estava recebendo uma mensagem.
— Gucky — retomou o comandante já com voz ameaçadora — três destes
diabinhos foram surpreendidos... Que houve? O quê? De novo? Onde? Com o que eles
querem atirar? Com armas de impulsos energéticos? Santo Deus! Eu acabo estourando.
Gucky, você ouviu tudo isto? Ponha este bando sob quatro chaves, ou eu me vejo
obrigado a denunciá-lo em corte marcial!
Mas Gucky não estava mais em sua cabina. Saiu à procura dos seus irmãos de raça.
Ao surpreender quatro filhotinhos brincando no depósito de gêneros alimentícios, onde
haviam aberto um saco de farinha de trigo, atirando-a num turbilhão branco para dentro
do poço de ventilação, e se divertindo a valer, ficou também zangado.
Mal acabara de botar sob cadeado os pequenos “malfeitores” e de lhes passar uma
descompostura, ouviu de novo seu nome no intercom:
— Gucky, que está acontecendo com o tubo de ventilação?
Não sabia de nada. Estava no encalço dos outros peraltas que em alguma parte da
nave faziam das suas.
— Gucky, aqui fala da sala de comando! — era a voz do comandante Joe Pasgin.
Gucky, já bem aborrecido, pegava um filhotinho no arquivo, onde todas as gavetas e
prateleiras estavam vazias, havendo apenas um montão de tudo entre os móveis.
— Gucky, Gucky — repetia o intercom. — Apanhamos um dos seus aqui, mas,
excepcionalmente, este está mais ou menos quieto. Diga-me o que significa Og tule tu!
Não pára de repetir isto. Será que ele quer comer alguma coisa?
— Og tule tu? — repetiu Gucky, distraído. — Joe, isto quer dizer: eu preciso fazer...
— O quê? — disse Joe exasperado. — Isso é o cúmulo, Gucky.
Mas Gucky não respondeu mais. Num salto transportou-se para o recinto onde já
prendera a maior parte dos sobreviventes de Vagabundo, levando debaixo do braço o
“aprendiz de arquivista”. Contou-os um por um. Eram vinte e sete. O último estava na
sala de comando, repetindo a frase — Og tule tu. E Gucky estava de novo radiante, com o
dente roedor à mostra.
O comandante Joe Pasgin haveria de ver como Gucky sabia resolver qualquer
problema, inclusive o da peraltice dos filhotinhos.

***

Perry Rhodan e Bell fizeram o transbordo para o cruzador Burma.


— Meu amigo...! — foi a palavra de saudação que Rhodan dirigiu a Gucky, numa
expressão de alegria pelo feliz reecontro.
Quanto a Reginald Bell, não havia meios de tirá-lo do aposento onde Gucky
prendera os vinte e sete filhotinhos. Pegou vários filhotinhos de uma só vez no colo,
encantado com eles, fazendo mesmo sombra ao desvelo de Gucky.
Enquanto isto o rato-castor relatava os acontecimentos. Não embelezou nada, mas
não omitiu também nenhum detalhe importante. Referiu-se com veemência aos estranhos
seres, que desembarcaram em Vagabundo dos aparelhos de duas fuselagens e ali
construíram as enormes instalações que acabaram destruindo o planeta.
— Então devemos estar preparados para enfrentarmos esta raça estranha — disse
Rhodan pensativo, quando Gucky terminou seu relato. — inteligências que destroem
inescrupulosamente as outras, nunca me são simpáticas.
— E como devem então ser simpáticas para mim, Rhodan... — disse o rato-castor,
cheio de amargura. — ...estes assassinos!
Perry Rhodan se abraçou com Gucky, o que aliás lhe era um gesto muito raro.
— Gucky, ninguém deve permanecer no ódio, meu amigo, o ódio é venenoso. Quem
sabe, estes monstros não tiveram diretamente a intenção de matar ninguém. Talvez olhem
as coisas de um modo bem diferente. Mas tudo isto haveremos de pôr em pratos limpos,
quando nos defrontarmos com eles. O mais importante, porém, é que seu povo, seus
irmãos de raça não se extingam. Salvou um bom número de seus irmãos. Você vai ver
como eles encontrarão em Marte uma nova pátria e continuarão lá o que eram antes: um
povo unido. Gucky, eu me orgulho de você.
Gucky estava muito comovido e para não se deixar dominar pelo sentimento que o
invadia, respondeu brincando:
— Não deixe Joe Pasgin saber que nós os estamos levando para Marte, Perry. Ele
fica maluco quando pensa nos filhotinhos e só se acalma com uma expressão, que deve
ter uma força hipnótica para ele...
— E como é esta expressão, Gucky? — perguntou Rhodan.
— Og tule tu — respondeu Gucky, piscando o olho. Quando ouviu, porém, a
gargalhada de Rhodan, teve certeza de que o chefe lhe havia lido o pensamento.
— Malandro!... — disse Rhodan sorrindo e balançando a cabeça.

***
**
*

Apenas vinte e oito filhotinhos foram salvos. Eram os


mesmos que o comandante do cruzador Burma, encolerizado,
chamara de “bando de bagunceiros”. Não se pode taxá-los
assim, com esta severidade. Finalmente, todos os ratos-
castores têm uma mentalidade infantil, e o instinto da
brincadeira, que se conserva mesmo nos mais velhos, como é o
caso de Gucky, é-lhes um característico inato.
O próximo número trata de um assunto totalmente
diferente, embora tenha como figura central, Crest!
Em Um Amigo da Humanidade, o grande cientista
arcônida vive, de modo heróico, talvez, seus últimos dias...

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