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ENSAIO FILOSÓFICO

AS DUAS SOLIDÕES DE ZARATUSTRA

JOSE RAVANELLI NETO


PIRACICABA 2018

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Apresentação

Zaratustra é e pode ser muitas coisas. Como máscara de Dionísio e personagem


conceitual de Nietzsche é então aqui neste ensaio, alguém que percorre os traços
de uma certa solidão. Scarlet Marton escreve: ‘Nietzsche não se habituava a
solidão: ela lhe pesava e talvez lhe fosse indispensável’ (Marton, introdução a
Assim falou Zaratustra).
Parece aos biógrafos do filósofo que, Zaratustra é gestado em um período
bastante dramático, solitário, onde rompe com sua família e com a jovem russa
(Lou Salomé) a quem pedira em casamento e fora recusado. Para além do
filósofo, temos ainda o fato psicológico de que a morte de deus é um prenúncio
da chegada do caos, de um instante limite para o solo europeu e talvez para o
mundo ocidental cristão, de que o modelo cristão, nas bases colocadas por Paulo,
feneceu e se exauriu. Desta morte resulta a perspectiva adotada aqui neste ensaio,
de que a morte de deus é a morte de Zoroastro, como condição de surgimento de
Zaratustra, não como seu oposto, mas como uma nova possibilidade de
perspectivar os valores advindos da morte de deus e ferramentas outras para um
efetivo tornar-se.
Zaratustra atinge a linguagem do incompreensível, e dá, a quem o lê, uma ideia
do sentimento de solidão experimentado por Nietzsche. Da solidão que envolvia
sua vida, Zaratustra foi, sem dúvida, seu melhor companheiro de viagem, foi em
sua boca e em seu coração que Nietzsche pode falar várias línguas, e discursar as
ideias mais estranhas ao homem comum, uma vez que seu personagem iniciou
seu percurso em direção as montanhas e lá permaneceu por 10 anos.
‘Durante 10 anos gozou por lá do seu espírito e da sua solidão sem se cansar’
(Zaratustra).

1- A primeira solidão de Zaratustra

A maturação de Zaratustra na montanha é feita pela via do coração, ou seja,


dos sentimentos. As perguntas e as respostas são feitas e tudo advém do coração.
É uma solidão afectiva, amparada pela companhia de uma águia e uma serpente.
Mas, numa bela aurora, ou seja, ante a presença da simbólica da renovação,
Zaratustra sente que é a ora de voltar a vida dos homens, de deixar sua loucura
solitária de lado, pois já havia se enriquecido bastante com ela. Já havia, por
assim dizer, adquirido uma nova, tornado o que se é. Era preciso despertar os
demais homens para uma verdadeira nova vida, assim como ele próprio fora
desperto.

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A descida de Zaratustra

O tempo de maturação acabara, encerrava seu primeiro ciclo, que durara


exatamente 10 anos. O trabalho nas profundezas havia se realizado, com sucesso.
Domara a angustia e a privação de ar e luz (de dentro de sua caverna), e as coisas
incompreensíveis, os enigmas encheram seu coração, lá no fundo de onde pode
se reerguer, submergir. Cheio de uma sabedoria (como a abelha que acumula
mel), a solidão de Zaratustra necessita agora das coisas apolíneas, ou seja, levar
luz ao mundo inferior. Levar ao homens douradas águas, encher-lhes a taça vazia,
tornar-se homem novamente e desfrutar dessa condição.
Temos aqui essa primeira solidão necessária, onde Zaratustra quer
compartilhar sua sabedoria com os homens, voltar para se dirigir a eles, dizer de
seu percurso, do que encontrou lá no subterrâneo, do que fala a linguagem
esquecida do coração. Renascido pois pelo coração, ou seja, pelo poder de
Dionísio, Zaratustra deseja levar essa linguagem aos homens cheios do pensar
racional e vazios de um pensar outro fora da consciência.
Mas os homens da praça o recebem e a sua mensagem (o além do homem) com
indiferença, com risos: ‘Riem-se, disse a seu coração. Não compreendem; a
minha boca não é a boca de que estes ouvidos necessitam’ (Zaratustra).
A primeira solidão de Zaratustra é marcado com um incidente gravíssimo, a
queda e a morte do equilibrista, que é um corpo que ninguém quer e que fica ali,
estendido na praça, como um signo e sinal de algo que foi deixado para trás,
exposto, e que ninguém quis enterrar. Esse corpo simbólico, vetor motriz do
conjunto de todas as percepções, dos quais a consciência apreende a menor parte,
avesso a formas de dominação do eu, representa todo esse mundo subterrâneo do
qual Zaratustra foi atrás em seus anos de solidão e do qual se tornou mestre.
Aprendeu a decifrar a linguagem polissêmicas do corpo instintual, pulsional, de
toda a gama de percepções e sensações que por sua vez desaguam em estados do
eu e não o seu contrário. Esse corpo atropelado por outro palhaço, e agora
necessitando ser enterrado é um corpo não submetido ao mais forte, que preferiu
a morte a submissão. Nesta perspectiva o corpo despedaçado é um corpo sentido
(não sabido).
Zaratustra sente o corpo de um morto assim, caído ao seu lado, e necessita
enterrá-lo no oco de uma árvore. Ele desprezado pela multidão e mais o corpo
desprezado pelos homens da praça fazem mútua companhia. Mas agora é preciso
ir além. É preciso uma nova solidão, longe dos homens, e com novos
companheiros de viagem.

2 - A segunda solidão de Zaratustra

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Após enterrar o corpo desprezado, Zaratustra emudece sua boca aos homens,
que é quando o corpo se apresentou como imagem da ‘grande razão’ (termo que
Nietzsche usa para descrever que o corpo possui um Si mesmo, uma sabedoria
superior ao eu). O ponto de partida para a segunda solidão de Zaratustra, ou seja,
sua segunda loucura, ainda mais profunda que a primeira. Na primeira loucura
de Zaratustra falou a voz do profeta, de seu daimon, e ninguém entendeu a
grandeza de seu ato. Ao falar com a voz do coração, ao querer aproximar o sol
da terra, teve de enterrar um corpo, agora um outro devir dionisíaco se apresenta
a Zaratustra, que escolhe novos companheiros de viagem, para continuar seu
ocaso, sua descida ao inferno (Hades). Uma solidão que longe da praça, da
cidade, no cruzamento do dia com a noite, entra no mar do declínio, do qual não
se pode falar, mas sentir. Uma vez mais sentir. Um sentimento mais profundo.
Ainda mais silêncio para quem sabe, uma vez mais inflamar o coroação e fazê-
lo falar numa língua ainda mais estranha. Momento de perguntar novamente se
vale a pena entregar-se a solidão, se há novas instruções para a realização do
além do homem. Ensinar ‘o ser humano a parar de ser humano! Deve ele
entregar-se a vocês (ao mar e a noite), Deve tornar-se, como são agora, pálido,
brilhante, mudo, imenso, repousado em si mesmo? Elevado sobre si mesmo?’
(Nietzsche, dentro do grande silencio).
Quem veio saber notícias de Zaratustra foram a águia e a serpente (o eterno
retorno do mesmo), que formam os companheiros de viagem da primeira solidão
daquele que queria tornar-se o que se é, mantendo o espírito livre. Vieram
preparar Zaratustra, lembrando-lhe do perigo de tal descida, que necessitaria
ainda, uma vez mais, de novos companheiros de viagem.
O silêncio é potência, só ele aproxima o caos (o para trás, o ressentimento, o
espírito de vingança) do tornar-se, da criação, num processo de convalescimento,
que permite o despertar de uma nova e verdadeira vida. Um novo experimento
se abre: aprender a retirar da dor e da solidão um algo que, da ordem do
sentimento, possibilite penetrar no coração e dali retirar outras riquezas, ainda
mais potência em busca de criação de si mesmo.
‘Preciso de companheiros, mas vivos, que me sigam –porque desejem seguir-se
a si mesmos – para onde quer que eu vá’ (Nietzsche, Zaratustra).

Na segunda solidão, Zaratustra escolhe os seus novos companheiros de viagem,


a saber:
1) O criador
2) O ceifador

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3) O festeiro

1- O criador

Nietzsche comenta que: ‘Somente enquanto criadores, podemos destruir’


(Nietzsche, Gaia Ciência). O cuidado de si, uma nova saúde, passa pelo processo
de deixar o para trás de lado, em desprezar o que se amava, em constituir as bases
(vindo das cinzas), para uma nova vida (com novas tábuas de valores), levando
em conta ainda que o criador é um artista trágico, ou seja, ‘o artista trágico não é
um pessimista – ele diz justamente Sim, a tudo que é questionável e mesmo
terrível, ele é dionisíaco’ (Nietzsche, Vontade de Potência). Aqui temos um
pathos de criação diferente, ou seja, a criação não é tão somente a ideia de uma
obra que se sustenta de pé, pois a criação é de si e para si mesmo, trata-se de uma
criação ‘transvalorativa’ de uma metáfora rica que se chama ‘além do homem’,
um criador\destruidor por excelência. Um criador que visa atirar sua flecha rumo
a uma função vital, ou seja, atingir um algo a serviço da vida e dos modos
diferentes do viver. Daí resulta a expressão nietzschiana de o homem não sendo
mais artista, mas se tornando ‘obra de arte’. O criador vê nos opostos uma
oportunidade rara: ‘Todo devir nasce do conflito de contrários’ (Nietzsche). Não
havendo vencido nem vencedores, o conflito é abertura, é os não iguais se
procurando e se encontrando: luta, guerra, acordos provisórios,
A força metafórica está presente na imagem e na figura do criador, que joga o
jogo metafórico nas possibilidades dionisíacas de tudo o que é provisório e
múltiplo. A metáfora do criador é ‘lavrada em luz e sombra’ (Nietzsche Humano
demasiado humano). E ainda:
‘Há qualquer coisa insaciada, insaciável em mim; e quer erguer a voz. Um anseio
de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor. Eu sou luz; há, fosse
eu noite. Mas esta é a minha solidão: que estou circundado de luz’ (Nietzsche,
Zaratustra).

O coração tornado rico tem seu prazer maior em prodigalizar seus tesouros, em
saber que nada é igual a nada, e que toda lógica é ilógica. Então o permanente
não existe para o criador, e por isso pode perspectivar tudo. Quando tudo está
maduro para a ceifa, o criador procura o ceifador, porque ‘lhe falta as cem foices’
e ‘quem saiba afiar as foices’ (Zaratustra).

2 – O Ceifador

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Os ceifadores também conhecidos como ‘os destruidores e desprezadores do
bem e do mal’ (Zaratustra), e para que haja festa é preciso antes ceifar. Quantos
segredos o ceifador carrega? Para que haja conhecimento, criação e festa, é
preciso que o ceifeiro aja. O momento da morte, de arrancar o que não presta,
mesmo que junto com o grão de trigo junto aos juncos, é arte do ceifador
(momento de transgressão e de passagem). Um momento ímpar, pois o momento
de colher é cíclico, ou seja, se realiza de tempos em tempos, na melhor ocasião,
ou seja, quando os grãos estão prontos.
Os ceifadores são exploradores de grãos, de vida. É preciso selecionar. O
ceifador é portanto, se refere a uma ação violenta, exploratória. As relações de
poder são violentas, é fruto de uma paixão. Zaratustra fala das virtudes como
frutos das paixões. Paixões são destruidoras. Vejamos:
‘O homem é algo que precisa ser superado. Por isso necessitas amar as tuas
virtudes, por que por elas morrerás’ (Zaratustra).

Para as paixões não existem repressão, pois isto só pode gerar dor e mais
doença. Zaratustra fala que as paixões não se suprimem, extravasam-se nas raças
– dos coléricos, voluptuosos, fanáticos, ressentidos, vingativos – e que
persistindo nesta via isso se torna uma psicopatologia das virtudes. Essas virtudes
são males que o ceifador vai atrás, pois não há remédio para elas, pois estas raças
ou esses tipos fazem qualquer coisa para conservá-las, ao ponto do ‘eu’ morrer
por suas virtudes, lutando até o final para preservá-las.
Mas para se chegar ao além do homem, o ‘pharmacon’ de Zaratustra não sugere
a auto - supressão dos impulsos contraditórios, pois é nesta tensão, que é preciso
sustentar, que ambos são mantidos juntos e ao mesmo tempo contidos, desse
manejo é que um feixe de impulsos, mesmo em contradição, existem e coexistem
na figura do além do homem.
As grandes criações se fazem sob tensão, e em sua manutenção sob controle,
torna ao homem um tornar-se o que se é (devires sujeito plurais, formas de
unidade subjetiva). É preciso então ter um caos dentro de si, para produzir uma
estrela bailarina. O caos ao qual a figura do ceifador remete é o atingimento dos
limites da razão, ou seja, o homem atual esgota os valores postos no iluminismo,
nos uso e abusos da razão esclarecida. Os valores e a moral esclarecida, que
coloca o eu como senhor dos sentidos e criador dos nortes desta dita civilização,
estão esgotadas, portanto é hora de ceifar e retomar a tarefa de criação de novas
raças. Travessia, vida como experiência do pensamento – novas formas do pensar
e agir.

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3 - O festeiro

‘Que importa toda a arte de nossas obras de arte, se chegamos a perder a arte
superior que é a arte das festas? Antigamente as obras de arte eram expostas na
grande avenida de festas da humanidade, para lembrança e comemoração de
momentos felizes e elevados’ (Nietzsche).

A divinização da vida se torna festa, momento afectivo, sentimento de mais


alegria que se desdobra em encontros que aumentam a potência de vida e do viver
(Espinoza).
A criança é o símbolo máximo do artista, que celebra a inocência junto do
esquecimento, para imediatamente reiniciar o jogo, a brincadeira que não pode
ser interrompida, ou seja, abrir permanentemente um novo começo, mesmo
depois do caos, da presença do ceifeiro que processou a morte em renascimento,
tal qual a imagem forte das cinzas do titã e do coração infantil de Dionísio, num
acordo novo e criativo, de donde se pode recomeçar tudo de novo. Uma vez mais
o homem que se perdeu no rebanho, nos valores fixados e paralisados no coração
de cada homem. Ao enterrar o companheiro morto, frio e rígido, Zaratustra se
salva para poder comer e beber novamente. Se orientando pela luz das estrelas,
Zaratustra tem de ir mais além de Dante, descer não só com o anjo Virgílio, mas
preparar o além do homem um pouco mais. A cada nova descida um acréscimo,
um passo de uma envergadura diferente. Assim como há muitas auroras, há
muitas solidões.
A festividade do pensamento se dá então em ver diferente do que se vê e pensar
diferente do que se pensa.

Conclusões

A solidão e recuo par uma nova série de experiências, traz os signos do


imagético, os sinais do deus desconhecido (Dionísio), que diz : o signo está
vindo.
Na segunda e outra solidão de Zaratustra, que aponta seu declínio e o fim do
homem negligente e retardatário, o eterno retorno do mesmo se apresenta numa
nova roupagem semiótica, a saber seus animais da primeira solidão. Nesta
segunda metáfora, águia e serpente aparecem pairando no céu, juntas, em um
acordo provisório, unindo o mais arrogante e o mais astuto, num só amplexo,
para que ‘possa continuar a minha altivez a voar com a minha loucura!’
(Zaratustra).

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O sonho mais rico e ‘imajado’ por Zaratustra é o além do homem. Maravilhoso
esse ar, rica essa presunção, que esse sonho seja a nossa mais bela imagem, o
nosso melhor encontro: ‘Espraiam os corações, para eles tornam os bons
momentos, divertem-se e ruminam; tornam-se agradecidos’ (Zaratustra).

Hoje é dia de festa, de riso divino, os corações foram apaziguados...


No limite, tudo se despedaçou, para em seguida, recriar-se outro.

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ENSAIO PSICOLÓGICO

PSICOLOGIA DO RESSENTIMENTO:
FERRAMENTAS FISIOPSICOLÓGICAS PARA UMA OUTRA
SAÚDE MENTAL

JOSE RAVANELLI NETO


PIRACICABA 2018

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A metamorfose Nietzchiana (Zaratustra)

O coração transformou-se
Ele está agora enriquecido
Mas qual a sua riqueza após 10 anos de solidão,
Numa caverna,
Somente em companhia de uma serpente e uma águia?
Isso foi preciso descobrir e
Amar sua riqueza
Pois para poder retirar essa riqueza
Do fundo mais profundo
Se constituiu numa ventura tamanha
Que soube bem eliminar completamente
Todas ás mágoas
E esvaziado de tudo o que é para trás
Zaratustra tinha seu olhar límpido
E sua boca não salivava
Qualquer ressentimento
E com o coração cheio de
Uma esperança mais alta
Atirou a flecha de seu desejo
Para além do homem
Desse ponto,
Entre o amor e um pouco de veneno,
Soube sonhar sonhos agradáveis
Seu sonho, repetiu Zaratustra
Era sonhar um além do homem.
Mas esse sonho e esse sonhar
Eram temidos pelo demais homens
Tido como algo muito perigoso
É preciso cautela nesse sonho,
Diziam os homens medianos
Pode-se perder o equilíbrio
E cair-se estatelado no chão
Porém Zaratustra insistia no sonho e
Em seu sonhar
Sua fome do além do homem
O conduziu a um morto e
A face de tudo quanto dorme, e

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Finalmente sepultando o morto
Sua alma tranquilizou
Nova luz fez-se em Zaratustra,
Que devia falar agora
Não mais aos homens, mas
Aos companheiros de viagem,
Companheiros de criação,
Companheiros de ceifa e festa,
Companheiros de solidão (os que vivem em),
A estes quer inundar o coração
Falar e cantar as palavras do coração
Dito isso,
A águia atravessou o céu e
Transportou uma serpente como amiga,
Dessa união entre
O mais altivo e
O mais sagaz
O impossível se fez
O sonho e a loucura
Alçaram voo

José 2018

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Introdução

‘O ressentimento floresce e se alastra’ Nietzsche

Viver é perigo, já prenunciava Guimarães Rosa – Grande sertão veredas – mas


estar preso e atado a uma reação emocional, é muito mais perigoso ainda.
Viver é continuamente ser tocado no coração, eis nosso fio condutor. O que
toca o coração são os afectos, os sentimentos, e isso varia de um espectro que vai
de um extremo a outro, ou seja, ganha em gradientes, tais como a raiva, a dor, a
alegria, o medo, algo que atinge o desprezo até o a emoção altruísta, corre da
compaixão ao ódio, em questão de instantes.
Nesta perspectiva, estar tocado pelo ressentimento, é algo humano e também
estava presente no panteão dos deuses gregos. Disso não podemos nos livrar,
desenraizar, matar, porém há muito a ser acordado.
O problema do ressentimento se impõe hoje, ontem e sempre, sustenta-se de pé
por si mesmo, na medida em que, parte integrante do humano, se reedita e faz
parte de nosso experimento de vida e dos modos de viver. Parece estar sempre
presente, em meio a sombra da razão, a espreita de uma oportunidade, a uma
falha ou impossibilidade do eu, da consciência racional ou cognitiva, junto a seus
mais respeitados juízos e representações acerca da verdade. Parece efetivamente
estar arraigado nas camadas mais profundas e inconscientes da experiência
humana. Isso implica que, para esse problema em especial, tenhamos um terreno
fértil para que, de dentro da psique, e mesmo fora dela, esse sentimento possa
então nascer, crescer e ainda florescer.
Como uma praga e uma chaga emocional, o ressentimento tomou conta do
campo da condição humana. Parece existir, desde sempre, não somente a sombra
do que somos, mas a luz assombreada e esfumada do que nos tornamos. O
ressentir possui e engendra efeitos deletérios sobre uma possível autonomia e
responsabilidade do sujeito no âmbito de suas ações e suas pretensões, ou seja,
nos deparamos aqui, figurativamente, ao sorriso do gato de Alice, que sorri e em
seguida desaparece toda vez que tentamos decifrar o quantum emocional gasto
pela humanidade com as coisas do coração. Todo um dispêndio com seus afectos,
para que, porque? e com um deles em especial, que perdura na alma e no corpo
social e do qual pouco se sabe.
Fora e dentro da tragédia (pessoal ou coletiva) o ressentimento se alastra, como
a parte maldita do que somos e do que temos nos tornado. Calculo dispendioso,
que não fecha a agenda do homem que se quer livre e sem maiores empecilhos
para seguir em sua jornada rumo ao desconhecido. Se isso é fato um aguilhão,
estamos diante de um fenômeno avassalador, de uma doença que escancara essa

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questão mais ampla do que, como homens, temos experimentado no campo da
vida e do viver: Somos titânicos e queremos ainda manter o coação íntegro e
intacto. Somos nobres e ressentidos, ou seja, retornamos a formulação trágica
que aproxima os alelos antagônicos, os paradoxos e os combatentes
irreconciliáveis. Para Nietzsche somos Nobres quando a vontade de poder nos
impulsiona ao desconhecido, e Escravos quando esperamos as migalhas que
eventualmente caiam da mesa farta da riqueza e de quem nos guia. Em suma,
abrimos a escanção de um tipologia de homens doentes, ou se preferirmos, para
a formação de tipos ressentidos. Isso é um problema enorme, de chifres.
No campo subjetivo trata-se de tomar Nietzsche como paradigma do homem
que se tornou ressentido, de suas ricas figuras do espírito tornado livre, ou mesmo
o seu exemplo pessoal de quem tomou a doença e suas condições de manifestação
em si próprio e de quem soube fazer disso um experimento trágico, de
reconhecimento de miserabilidade e retorno a si mesmo em prol de vontades que
buscam afirmar-se, para além dos ódios e espírito de vingança, se aproximando
dos espíritos livres. Se deter na doença é convalescer de si mesmo. É ainda tomar
pelos chifres seus próprios estados de saúde ou doença (estados de alma se
quiserem), e procurar extrair deles, até a última seiva, um conhecimento outro,
que doravante chamaremos de trágico (sabedoria trágica). Isso equivale a dizer,
que o filósofo alemão convalescente processou através da doença principalmente
um saber próprio de seus processos psíquicos, tornando-o um experimento de si
para consigo mesmo. Um experimento de si, um cuidado de si, cujos efeitos
queremos aqui discutir e pensar, pois apontam para uma aceitação da dor e nunca
torna-la ou toma-la como inimiga mortal, como fazem todos os ressentidos. Um
saber que podemos de antemão adiantar, é de ordem do trágico por excelência
(pois diz de uma sabedoria trágica esquecida, que nos coloca diante das reflexões
dos gregos antigos, incluindo a sua parte mítica).
Aqui não se trata mais de produzir um certo conhecimento acadêmico a respeito
do que é ou do que se fala a respeito do ressentimento, situado como um erro ou
ilusão do pensamento. Um não poder ‘pensar bem’, estando sob o influxo de uma
intensidade qualquer. O ressentimento é algo vindo do coração, e lá se esconde
em seus labirintos, tal qual o mito do Minotauro, devorando todos os demais
afetos gerados e até mesmo comprometendo todo a possibilidade do devir.
Ao certo ainda não conseguimos extrair as verdadeiras consequências, os
efeitos de uma desconexão entre razão e coração que se arrastam entre gerações
dos ressentidos de todo tipo, e que nem se trata mais de reverter o ressentimento
em algo contrário, pois não podemos responder a essa questão: o que é o contrário
do ressentimento? Se fizermos os passos para trás, não é certo que saiamos do

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labirinto, apenas que uma intravisão se apoia num recuo e numa solidão
necessário a cada homem.
O ressentimento está, sem dúvida, em nossa raiz grega e mítica, uma vez que
já os heróis trágicos se ressentiam, (vide Filoctetes, Prometeu, Medusa,
Climnestra, Ajáx, Hera, Quíron, etc), mas isso é só um ponto, na medida em que
os heróis e cada homem em geral não ignoram o ressentir-se, mas sim em como
se deixam enfeitiçar por ele? Como uma segunda pele, não se consegue mais
desvencilhar-se desse ‘mal’, pois isso adere a alma, esconde-se no labirinto
afectivo do coração, atingindo intensidades que conduzem ao ódio, a vingança,
a mais dura promessa de fazer algo consigo mesmo ou com o outro.
O ressentimento estabelece consigo mesmo e com o outro uma relação muito
específica que aqui chamaremos doravante de relação com tudo o que é da ordem
do trágico, que aproxima perigosamente sofrimento e alegria, dor e inocência
(coração integro e intacto).
O problema do ressentimento é caro ao psicólogo, ao filósofo, ao profissional
de saúde mental. O diagnóstico é terrível, tanto no âmbito coletivo e no
individual: uma duplicidade dos afectos, ou seja, Apolo e Dionísio juntos.

1) No plano coletivo:
O ressentimento é um experimento comum as raças, aos povos, e desde o
homem primitivo, persiste e insiste em se manifestar como um resultado do
experimento das possibilidades do que temos nos tornado, ou seja, tipos
ressentidos. O complexo do ressentimento tem nos acompanhado e tem estado
no comando da hierarquia instintual, mais do que supúnhamos. As impressões e
sensações que formam a base do ressentimento parece imprimir uma linha de
fuga, um rizoma em que se constituem os valores aos quais o ressentido se apega
e organiza seus sentimentos de crenças e reações. Esse sistema de interpretação
ressentida parece que pouco mudou, apenas sofisticou suas formas de virulência
e se tornou um problema de saúde mental. A constelação de ressentidos devem
ser considerados a partir da história familiar, que ecoa dento do coração de cada
membro que repete, inconscientemente, as mesmas histórias dos pais e
ancestrais. ficou marcado em minha mente a entrevista de uma criança do Iémen,
pais avassalado por anos de guerra sem fim. Este menino que perdeu o braço, em
decorrência de estilhaços, dizia que quando ficasse maior gostaria de ser soldado
e se vingar. Repetição dos antepassados que pagam o preço pelo que é tornar-se
ressentido. Mas como extinguir da alma de um jovem o peso da guerra, dos
antepassados? Pesadume, herança difícil de se desfazer. Potencializar uma
excessão, se existe todo um povo (vontade de potência complexa) que quer se
vingar e isso é ser forte, é o que tem de ser feito. Aqui podemos mais uma vez

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mencionar que os estados de saúde e doença passam pela coesão dos instintos,
entre a hierarquização dos estados apolíneos e dionisíacos, entre o que se tornou
um dos fios condutores do convalescimento, ou seja, a restauração das vias
duplas de comunicação entre a razão e o coração. Mais do que uma fisiologia de
boa medida dos instintos, estamos apontando aqui os processos simbólicos sendo
elevados ao máximo de suas possibilidades, que incluem ratio e sentimentos, o
que está além de fraqueza ou potência, e cai naquela metáfora da riqueza
riquíssima, ou seja, a inteireza da besta humana (Zola), para além da dominação,
passa também pelo seu simbólico, ainda em construção, já que para se chegar a
um além do homem, isso se decide na planificação simbólica de novas
possibilidades de se tornar, mas também de se sonhar, de fantasiar e criar mundos
novos, novas tipologias.
Se um novo homem é mais rico em contradições, o é porque sua sabedoria
simbólica o coloca num patamar acima, capaz não só de inúmeras outras
interpretações, mas de sentir as coisa em outros patamares. Com relação a esse
ponto indico sempre a literatura de Dostoievski, principalmente ‘Crime e castigo’
e ‘O idiota’. A dita polifonia do autor é um eco das capacidades simbólicas em
jogo em seus dramas trágicos por excelência. Recuperar a capacidade mítico
simbólica e a inocência do que retorna é sempre da ordem de um bom combate e
por isso deve ser enfrentado com o coração integro e intacto são as fontes da vida
e do viver. Só se convalesce nestas perspectivas.
Quanto a questão do valor da moral e sua relação com a doença, com o homem
tornado fraco, a tudo o que se obedece e faz sem pensar, e o quanto esse tema se
relaciona direta e indiretamente em nosso tema, terei de deixar esse problema
para outro ensaio, visto que os tipos de crises pelas quais passa uma alma tomada
pelos valores morais, é algo de uma complexidade tamanha que só posso por
enquanto repetir Nietzsche nesse quesito:
‘Supondo, porém, que alguém tome os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de
domínio, como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar
presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em
consequência deva ser realçado, se a vida é para ser realçada – esse alguém
sofrerá com tal orientação de seu julgamento como alguém que sofre de enjôo ao
mar’ (Nietzsche, Bem e Mal parágrafo 23).

Se a vida é perigosa, a moralina, a compaixão pelos malogrados e fracos, é um


perigo ainda vivo por demais. Pois não se trata de justificar a moral, pois o
diagnóstico já está dado, ou seja, entre valor e poder o que se dá neste interstício
é de suprema importância aos processos de saúde e doença, ao convalescimento,
e mais além, a própria sobrevivência simbólica do homem. Neste interstício ainda

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vive, cresce e por demais floresce as nuances do ressentimento. O ciclo vital do
ressentimento é ainda algo pouco explorado.
Por momento citamos alguns momentos históricos culturais onde o problema
do mundo perfeito não se concretiza e disso resultou em ressentimento que
emerge sempre com mais virulência, tais como o episódio que deflagrou a Guerra
de Tróia, onde o povo grego se ressentiu por Helena ter começado a guerra. A
Segunda Guerra, onde a tentação ou a loucura de conceber um tipo nobre ariano
possa conduzir um povo até a vingança do holocausto. São momentos onde
valores morais se consolidam com uma verdade, e daí se ordena, se exige.
Momento em que as reconciliações se tornam impossibilidades, e a
superabundância, o desejo de mais cresce no coração calçado pelo bem maior e
a verdade imperiosa, dotando o homem (que até então sentindo-se fraco,
impotente e temeroso, tomado de ressentimento e que agora se deixa conduzir
por outros) de aparente força e poder. Ressentimento geral e irrestrito contra tudo
e todos aqueles inimigos os quais não se encaixavam num valor em voga, numa
verdade tornada certa, num ideal justificado, numa tipologia a ser construída.
Por ora, tocaremos neste ensaio sobre a pretensão da palavra útil (o que é mais
útil ao homem). O colorido e a utilidade do ressentimento presente desde Epiteto,
onde as paixões ruins eram postas a prova em termos de aprender a lidar com
suas nuances, em termos de opinião (valor) que temos em relação as coisas e de
sua possível validação emocional, a partir da utilidade ou valores das coisas
mesmas. Maior valor é aceitar o destino como ele é, e isso implica em poder
interpretar o que se nos apresenta, com sabedoria (amor a sabedoria de Epiteto),
o que implica em recursos simbólicos. Embelezar a si mesmo, isto é sair do caldo
do ressentimento (como complexo, como peso, como destino fatalista) é parte de
um cuidado de si mais amplo que poetizar a vida como fez Homero, mesmo
diante de tanta barbárie e carnificina.
Aceitar o lado titânico, a crueldade, o sofrimento, são as condições de
existência a que o homem fraco antepõe culpa, impossibilidade, responsabilidade
em outrem. Introjeção da dor é o início, a raiz da questão do ressentir-se, é a
perda de Agon (disputa, toda a teogonia de Hesíodo fala poeticamente da morte,
destruição, vingança), ou seja, para se proteger das forças titânicas foi preciso
uma certa ilusão, vinda da arte, da poesia, dos deuses. Agon, ou o bom combate
é assim não a destruição do outro estranho, estrangeiro e ameaçador, mas um
acordo vindo de qualquer tipo de disputa. Transfiguração da crueldade. É preciso
ainda que, utilizando o exemplo da guerra de Tróia, que Aquiles e Agamenon
entrem em acordo, visto que ambos se odeiam, mas pensando num povo, numa
guerra que não finda, pudessem ao reunir a assembleia e deliberar sobre suas
questões de ressentimento. Neste sentido Aquiles admite que o ressentimento foi

16
funesto para ambos, e sem entrar no campo da culpa, Agamenon se explica
dizendo que Zeus, as Moiras e as Eríneas que enviaram até ele uma Até funesta,
como mencionou o próprio Aquiles. Assim esse absurdo de retirar o prêmio de
Aquiles (a jovem e bela Briseide), uma obnubilação que também atinge Heitor
(em não ser prudente e enfrentar Aquiles em campo aberto) se faz presente e faz
com que os heróis e reis façam coisas inapropriadas pela influência de Até
(desvario da razão), enviada pelos deuses sempre nos momentos limites (se mata,
morre, enlouquece e as vezes se convalesce).

2) No plano individual:
No jogo de altos e baixos de nossa potência, de nossos estados de alma, dentro
dos processos mentais ou pulsionais (energias somáticas e psíquicas), a
duplicidade afectiva atinge seu grau máximo, e arranca do coração ‘sonidos
dolorosos’ (Nietzsche, O nascimento da tragédia: 31). Esta mistura e duplicidade
dos afectos produz o despedaçamento da individuação, como apontou Nietzsche
e para além dos sintomas do que poderia ser um ressentir-se, temos que, na
condição de enfermos e ou doentes de um para trás (intravisão: um poder mítico
de olhar as ações humanas voltado para trás), algo de muito perigoso se dá,
processa-se como uma equação simbólica cuja previsibilidade é sempre duvidosa
e as consequências terríveis. Agon elevado ao ódio e prazer destruidor. A alegria
de combater nada tem a ver com o espírito ressentido. Toda disputa é também
uma disputa a nível individual, não só coletiva, mas disputa relacionada a
individuação, ou ainda, experimento de afectos. O herói grego tinha como maior
problema, vencer seus afectos, como Aquiles tomado de ira contra Agamenon e
Heitor que em seguida matara Pátroclo, como Ajáx, outro grande herói se perde
(enlouquece) frente a quem irá ficar com as armas do próprio Aquiles morto no
decorrer da guerra. O inimigo é espelho, os deuses são esse espelhamento do que
somos e do que nos tornamos, em meio ao combate, onde se fiam essas imagens,
que como indicamos vão da fúria até ao choro de Aquiles e do pai de Heitor que
pede os restos mortais do filho abatido. Espelhos reflexivos que se mostram nos
momentos de recuo e solidão destes heróis e de todos nós, humanos em geral. O
ressentimento é o sentimento de utilidade da vingança, de prosperar a custa da
dor ou morte do outro, é um brilho apolíneo ofuscado, enquanto que a dimensão
dionisíaca pede a descida até o caos, até o titânico para a proteção e ocultamento
do brilho que porventura a vingança conceda, não dá conta de satisfazer a quem
se achou vingado, ou seja, a vingança, o ódio, o espírito de ressentimento, feito
justiça, é sempre uma ilusão, um engodo, que não restitui nada do que foi tirado,
perdido, agastado, ao contrário, ressurge como ferida aberta, como dívida
impagável. O sentido da vingança não aplaca, ao contrário, consome, como uma

17
luz intensiva, tudo o que vem da razão moderada, de Agon, pois a boa medida de
Apolo não serve mais aos desígnios ultra sensíveis do ressentido. O que se pode
então retirar desse solo fértil e dessa colheita que Ulisses apelidou de doce como
mel? (vingança). A luta, o combate, para os gregos e na visão nietzschiana é
aumento de força – potência -, de vida produtiva (aliar a aparência ou fantasia e
mesmo a ilusão como ferramenta que ajude a organizar as impressões e saiba
torná-las conceituais em termos de nossas experiências) ou a serviço do criativo
(novo como não superior ao antigo, mas apenas diferente enquanto
possibilidade). Se colocar a prova, superar-se, reinventar-se, são nomes
provisórios para esse processo de ultrapassar os próprios limites, ou ainda
expandir os limites de uma suposta natureza humana. A criação de novos valores,
essa é a ‘utilidade’ do bom combate. Ao redirecionar os atos impulsivos, a ira e
o desejo de vingança em jogos onde a boa Eris (conflito) estivesse presente. Aqui
temos luta e conflito como o caminho do herói, o sacrifício do herói que prefere
uma vida bela e grandiosa a envelhecer. Mas o que fica aqui é essa impressão
forte de que o herói mais belo é aquele que soube suplantar e lidar com a sua
própria ira. Então, porque a ilusão da vingança é problemática? Pois se esta não
é mais uma ilusão dentre tantas outras? Porque não a ilusão da beleza no ato
ressentido? Filoctetes não alimentou sua ilusão de reencontrar Ulisses? Essa
ilusão não foi responsável por preservar sua vida solitária numa ilha por longos
9 anos? Se sim isso não tornou Filoctetes num herói, não há gloria nisso, pois se
o destino de todo homem é passar pela dor e pelo sofrimento, então que o seja
num bom combate, num Agon e numa destinação de boa medida, de utilidade –
em hibrys – numa parceria entre razão e loucura, mas não entre crueldade e
ressentimento, mas com uma espécie de liberdade com relação aos afectos, ao
que sente, e isso fazendo conexão com o pensamento. Evitando assim o excesso
de orgulho e prezando sempre uma boa e sempre nova medida, pelo qual posso
reavaliar o que o ressentimento apenas revisita e engessa. Assim a ira de Aquiles
é aplacada (finda para que outra perspectiva se instale) quando o pai de Heitor
vem ao acampamento e conversa com Aquiles que já era ora de entregar o corpo
do filho para os devidos funerais de herói a que ele também era. A ira não pode
matar e continuar matando. Em algum momento a calma, a serenidade deve
retornar. O cavalo de guerra não pode estar a serviço de ficar andando pelo
acampamento com um corpo já morto. A volúpia, a morte, são temas da
vingança, mas são também as forças primitivas – titânicas - que temos de
aprender a lidar no grande experimento chamado vida e viver.

A doença da opulenta e triunfante existência junto e em conexão com o coração


tocado pela duplicidade dos afectos, podem, em algum momento, tocar e abrir

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um ressentimento, e esse instante aniquila e fecha as portas do convalescimento,
da possibilidade de conquistar uma outra saúde. Isso os mitos trazem em
profusão, em forma de sua sabedoria trágica e mais recentemente, a própria
literatura de Dostoiévski, como veremos mais adiante, na perspectiva de um autor
trágico moderno, que coloca em questão um tipo irritadiço, louco, mas que em
contato com o seu coração integro e intacto surpreende a sociedade russa, mesmo
os tipos mais utilitaristas naquilo que Nietzsche mais tentou se aproximar com
os gregos, ou seja, a estética, a beleza junto a vontade de verdade.

Perspectiva maior de união dos dois planos

A poesia grega e os mitos trágicos nos abrem a possibilidade de dizer, mesmo


que provisoriamente, de uma unidade de todo humano (totalidade da existência
mediante a perspectiva de uma sabedoria trágica). Isso se daria onde o sonho, a
fantasia, toca o vivido. Neste interstício é que ocorre o encontro impossível entre
Aquiles e Príamo. Encontro da dor com a ilusão, conjugação do que dissemos
anteriormente, ou seja, de que a tragédia ‘pressupõe transcendência, superação
de conflito sabendo-o insuperável’ (Os destinos do trágico, Douglas Garcia Alves
Jr (Org): 78).
Os dois planos se unem numa mesma viação, maior (bricolagem entre o
coletivo e o individual) e os une num único princípio estético geral, ou seja, para
além de ambas as planificações existe a dor e o sofrimento, e isso se dá (essa
bricolagem), no encontro entre Aquiles e Príamo, quando os deuses favorecem
esse encontro impossível, tendo em vista a restituição do corpo de Heitor (em
posse de Aquiles) ao pai. Neste encontro impossível, ambos choram, um
lembrando da perda do filho e outro lembrando a figura do pai, e nesse
espelhamento mútuo, ambos se dão conta, sensíveis e angustiados, de que o
destino dos homens são como as folhas verdes das árvores que logo em seguida
murcham e caem, uma a uma. Assim são os heróis e demais que enfrentam a
maior de todas as lutas: a dor e o sofrimento, comuns e que a batalha em que se
disputa quem é maior - Aqueus ou Troianos – perde intensidade a vista deste
princípio trágico. Assim também o é o ressentimento em vista das emoções do
coração, que conduzem sempre a princípios mais amplos e gerais (aprender a
perspectivar para Nietzsche).

Mas o que é o ressentimento?

O ressentimento é um luxo, sendo difícil definir se seria ainda útil aos homens.

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Mais difícil ainda seria definir os princípios que pudessem justificar o
ressentimento: ira excessiva, honra, dever, ou ainda prazer patológico?
O ressentimento está para além dos princípios sociais de conservação e
conservação e seria assim colocado, se usarmos Bataille como referência, dentro
de certos interesses que propagam um certo estão orgíaco. Enquanto necessidade
orgiática, o ressentimento cabe dentro das necessidades titânicas da selvageria e
da agressividade incontida. Mas enquanto despesa, caberia dentro das despesas
dito improdutivas (arte, jogos, guerras, cultos, etc), onde a vingança deva ser a
maior possível, para que adquira sentido. Para o homem é necessário ‘a angustia
humana elevada a uma representação da perda e da desgraça sem limite’
(Bataille: 31). A falta da boa medida aqui é posta no limite, ou seja, lá onde a
saída desse labirinto é a prisão, a morte ou enlouquecimento. Aqui entramos nas
representações simbólicas da perda trágica, que para além de um tecer as relações
entre fim e utilidade, esboçam um campo outro, que lembra o potlatch indígena,
em que uma riqueza é oferecida com vista ou finalidade de humilhar, desafiar e
obrigar um rival. Essa forma de troca que está para além do simples escambo,
elabora o combate, a luta já num outro nível, que é o início simbólico de uma boa
medida. Aproximado da sabedoria trágica, pensamos que o potlatch é uma das
raízes de se chegar a uma riqueza riquíssima, em que os combatentes elejam um
acordo e evitem o confronto de vida e de morte.
O ressentimento é ainda o paroxismo da doença ou enfermidade, é o seu
momento limite. Isso acontece e se instala definitivamente no abrigo e no campo
largo do coração, lá onde se propaga a exaustão à duplicidade dos afectos.
Instante perigoso e terrível, de ter de escolher entre a ação reparadora ou dela
abdicar, esquecer. Momento paradoxal, onde duas potentes emoções contrárias e
antitéticas se aproximam e se tocam dentro do âmbito do coração, que é o lugar
simbólico por excelência de tudo aquilo que somos e do que estamos nos
tornando. Nele tudo se dá e se decido de forma instintual\pulsional. Inteireza
contra conflito permanente, pois ressentir-se é revisitar sempre um mesmo e
único lugar que não se fecha, por mais que se iluda ou faça ações neste sentido.
A tomada de consciência do ressentir-se é instintual, ou seja, dispor do instinto
agressivo e propenso a violência e vingança e dobrá-lo em pulsão. É um processo
estético, que busca a justificação e a satisfação em outros meios, fora dos
costumes e leis morais vigentes. Para tanto o uso dos símbolos para a criação de
valores outros é de suma importância. Uma capacidade de coesão entre razão e
coração, como já dissemos, simbólica e feita num recuo e numa solidão que
favorece o convalescimento. O excedente de força é esse excessivo que cria
riqueza riquíssima do homem. O momento limite é sempre quando o re-sentir
volta tantas vezes ao homem que é uma abertura, um interstício que se mostra

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que é o momento fecundo e criador para se sair dessa situação desfavorável, de
dor e sob o risco de matar, morrer, enlouquecer, preferir saltar, convalescer.
Acontecimento único, mágico, misterioso que afeta o espirito do devir, religa
a força da inocência do olhar, do desejo de conquistar uma nova saúde e se como
que tocado por um aguilhão, isso perfura o coração, o faz sangrar com um ferida
que não cicatriza mais e diz para sair da repetição.
No tipo ressentido, uma vez tornado o coração não mais integro e intacto, o que
faz pulsar dali é uma sonoridade e uma batida outra, repleta de poderes titânicos
soltos de sua prisão, que geram as pulsões hostis, impulsionam as condições de
vida em geral roídas pelo mesmo abutre que acometeu Prometeu (numa repetição
sem fim) e esse emaranhamento circula e se repete em torno de uma velada
vontade de chegar ao limite: abundância de sentimentos para trás conduzem ao
matar, morrer, enlouquecer.
Nos corredores do ressentimento corre uma secreta obrigação, um dever, um
imperativo categórico: a continuidade do ressentimento obriga, no limite, a
matar, morrer, enlouquecer, e as vezes – poucas vezes – convalescer
(coletivamente ou individualmente). Se conformar com o espírito de vingança é
decair, é se fechar a novas possibilidades de tornar-se, é como já mencionamos,
ficar a deriva no mar, sem devenir algum.
As condições do ressentimento diferem dos processos neuróticos por uma
questão de fórum maior e ampliado, por se situarem no coração, e por se tratar
de um conhecimento (sabedoria trágica).
O coração é palco do trágico e assim cada homem pode, por recuo e solidão,
acessar aqueles espelhamentos (como os gregos faziam com seus deuses), lá onde
com companheiros de viagem (mortos, imaginários) reproduzir e refundar seus
dramas. Novos valores.

Vontade de verdade

Nietzsche responde a essa questão do ressentimento (como doença ou formação


fenomênica de um tipo de vida ressentida) pela perspectiva da ‘vontade de
verdade’, ou seja, o homem moderno, o tipo ocidental, dotado de um sentimento
comum, de um desejo próprio e coletivo de se voltar a uma vontade de verdade
como supremo valor (cultural e individual). Este parentesco ou proximidade
detectada pelo psicólogo Nietzsche em mostrar como a ciência, a moral, a
educação estão na base comum da idealização de uma natureza humana nos
moldes socrático\platônico\cristã, que funda as bases de um tipo de homem ainda
mais propício ao estado de alma chamado de ressentimento. Prevalece nesse
novo tipo o imperativo ‘tu deves’, que o impossibilita de quitar a dívida de uma

21
origem pecaminosa, o impossibilita a trabalhar a culpa numa chave de
esquecimento das ofensas e o predispõe a quanto mais se dispõe a dizer a
verdade, por gênese de uma obrigação que remonta Adão e Eva, mais isso me
acossa, se torna um aguilhão que fere a carne e a alma, ao modo do apóstolo
Paulo em sua perseguição a Cristo e da ordem de sua própria conversão ao
cristianismo (a um tipo de cristianismo que era a sua perspectiva mesma).
Com a perda da possibilidade de muitas morais, muitas verdades, o tipo homem
(moderno-pós) revela-se injusto e tirano, uma face menos doce dentro uma
plumagem espessa de deveres a serem cumpridos, últimas linhas de defesa contra
o que é e se apresenta como muito livre, muito excessivo ou dionisíaco.
As muitas máscaras que revestem o desejo ou a vontade de verdade são, em
resumo, pintadas com a scores do orgulho e vaidades humanas, esse antigo solo
onde prosperam o ressentimento, em sua forma mais burilada e escondida.
Se existe toda uma linguagem simbólica em que transbordam e fazem prosperar
os valores que estabelecem e balizam os muitos ‘tu deves’ para toda uma
existência, e fora disso não haveria nem possibilidade de vida nem salvação,
então os nobres sentimentos que inspiram a moral, a ciência e os bons costumes
de nada servem quando nos deparamos com nossos verdadeiros afectos e suas
manifestações. Trata-se então, mais fortemente e de maneira trágica, de como
cada homem experimenta em si mesmo e se colocando dentro de um coletivo,
(como isso se dá), toda a sua força – ‘mais força’ e em outros momentos ‘menos
força’ – em processos de vida capazes de engendrar as mais diferentes
convicções, se essas mesmas convicções não seriam apenas as tais mascaras ou
variantes de uma mesma moral, de uma mesma raiz da ‘obligatio’, de inúmeros
‘tu deves’, ou se de uma forma mais profunda, mais vasta (espírito ornado livre),
ainda somos capazes de abrir as potências do riso, da ironia, da dança em prol de
um convalescer, de uma ilusão e do erro que se juntem ao entendimento de que
essa mesma ilusão e esses mesmos erros são ‘condição necessária’ a uma
condição de existência e de vivência de si como experimento de cuidado de si,
que inclua de uma vez por todas o: ‘CONHECER O QUE SE SENTE, O QUE
INCLUI UM PODER AINDA TOLERAR ISSO QUE SE SENTE DENTRO DO
CORAÇÃO. ÉPODER AINDA DEIXÁLO INTEGRO E INTACTO, APESAR
DOS PESARES’. A ‘boa vontade’ para com os sentimentos é a ferramenta mais
potente para lidar com os efeitos da ‘vontade de verdade’, efeitos que incluem a
imperfeição, o engano, algo que o ressentido não tolera nem aceita.
Se não se tolera e se perdoa isso, a existência se torna um fardo e conduz aos
efeitos do ressentimento que nos entristece e ensombrece ao ponto de se fazer
um recuo e uma solidão não como cuidado de si, mas tal qual Filoctetes faz em
sua ilha isolada (onde espera por 9 anos a volta de seu inimigo), a solidão só faz

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fermentar o ódio e tornar mais forte a raiz da vingança. A solidão que faz brotar
o convalescimento é completamente diferente da que faz brotar o ressentimento.
Quanto nojo do homem e suicídios poderiam ser evitados com essa simples
constatação. Nietzsche recomenda, com médico da cultura e psicólogo nato:

‘temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e,


de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de
descobrir o herói assim como o parvo, que reside em nossa paixão do
conhecimento, temos de nos alegrar-nos, vez por outra, com nossa tolice, para
podermos continuar alegres com nossa sabedoria. E precisamente porque nós,
no último fundamento, somos homens pesados e sérios e somos mais peso que
homem, nada nos faz mais bem a carapuça de Pícaro: nós precisamos usá-la
diante de nós próprios – precisamos usar de toda arte altiva, dançante, flutuante,
zombeteira, pueril e bem aventurada, para não perdermos aquela liberdade
sobre as coisas que nosso ideal exige sobre nós’ (Nietzsche, Para além do bem
e do mal).

Estas linhas nos dizem que o ressentimento é da ordem daquilo que petrifica
e paralisa a vida e o viver, e por isso é preciso manter uma distância segura de
todas as facetas do ressentimento, sob pena de não despertar do sono dogmático,
de perder a ora do convalescer. Ficar preso a uma máscara de ferro é uma
condenação pesada por demais. É um tipo de vida em que se elege e institui um
ponto de vista que se torna crença. Crença de que a partir de uma perspectiva (da
verdade incondicional), tudo pode ser avaliado e medido, incluindo as lógicas
mais radicais (que incluem no plano coletivo o nazismo, os ultra (moderados,
conservadores, os religiosos (sacerdotes ascetas), etc).
Se, para Nietzsche os problemas morais – os dos valores morais – são os
grandes problemas sobre qual a cultura se assenta e a mola propulsora desses
mesmos problemas, estes só podem perdurar e se perpetuar quando os afectos
entram em ação, ou seja, nas condições em que surgiram, se desenvolveram e
mesmo se modificaram, porque algo do coração foi pespegado e lapidado na forja
dos afectos, nos labirintos de um coração onde o caos pulsional espreita a
consciência dita moral. Dito de outra maneira, a consciência moral, um costume,
só se forma, passando antes pelo coração do homem.
Uma questão decisiva que nem Nietzsche, nem a filosofia soube colocar
devidamente, com seus pingos nos is. Toda inscrição de uma vontade (de poder,
de verdade) é inscrita não só dentro de uma eticidade dos costumes, mas antes,
dentro do próprio coração. Para manter o coração integro e intacto, ou seja, um
pouco longe de tudo o que era titânico – energias das forças ativas, agressivas,

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assimiladoras, assujeitadoras – que dizem o quanto essa dualidade coração
mantido integro e intacto e a vontade de assenhorar-se de tudo – exigiu um algo
ainda inominável, pois como mantemos esse caos em ebulição, sob algum
controle e direcionamento, como podemos aliar a essa vontade um direito do
outro, uma condescendência e compaixão, um amor de qualquer espécie?
Se o home tem uma vontade organizadora que é capaz de unir os homens, temos
ainda um algo plástico, ativo e transformador que só pode ser subsumido a partir
de uma disposição do coração em não prescindir totalmente do outro, de que esse
outro é ainda instintualmente esse do qual podemos nos utilizar e ser aproveitado
de alguma forma. Então as inúmeras formas de tirania são parentes próximos
disso que é engendrado lá no coração, ou seja, de homens errantes e informes que
submetidos a uma força e uma vontade mais poderosa, se tornam domínios. Lá
onde essa tirania, esse egoísmo acontece, acontece também uma reatividade, um
ressentimento.
O que passou a ser depois tido como um ‘estado normal’ de vida e viver, ou
seja, com a instalação da condições de vida dentro e na cultura – divisão entre
dominantes e dominados - sob a égide de algum valor supremo (Estado, religião),
é preciso subtrair todo e qualquer valor e como na alegoria paulina, se deixar
tomar em corpo e principalmente no coração, a vontade do Cristo, tornado agora
vivo e imperioso. Isso se faz nas ideologias e na religião, o mesmo e único
processo de se tornar nada, nada querer, a não ser o que um outro quer. Mas isso
não se faz sem um custo emocional, ou seja, custo de ressentimento que fica lá
no labirinto dos corações humanos, a espreita, a se manifestar em momentos
oportunos. Isso é a chaga emocional – cultural e subjetiva – do qual Reich já
mencionava. A esse tipo de niilismo não se faz impunemente. Quem impõe um
valor sofre um afeto de contracomando, pois tudo o que é forçado (força de um
valor) goela abaixo, aparentemente digerido (formatividade de um tipo doente),
revela um plus, um mais querer, que dá, como diria a anedota, com os burros na
água, ou seja, quer mais de si e do outro, num certo momento (histórico ou
pessoal), só faz revelar o desejo de verdade (de poder), em um viés já sentido por
Nietzsche ao descrever o tipo científico (o que também quer a verdade a todo
custo):
‘homens (cientistas positivistas, JRN) que quiseram mais de si num certo
momento, sem ter razão a esse mais e sem ter responsabilidade por isso – e eles
agora, de modo respeitável, colérico, vingativo, representam em palavras e ações,
a descrença na magna tarefa e soberania da filosofia’ (Nietzsche, Para além do
bem e do mal).

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Os tipos ressentidos guardam então um parentesco psicológico muito próximo
do tipo niilista, uma vez que ‘o niilismo como estado psicológico deverá aparecer
primeiramente quando nós procuramos em todo acontecer um sentido que aí não
existe’ (Nietzsche, KSA 13, 11: 46). Os sentidos de vingança e de ódio para o
ressentido, é da mesma chave desse sentido buscado e até mesmo querido, por
quem se arvora no direito a verdade e na execução da penalidade, mesmo que
essa venha de suas próprias mãos (imaginação e fantasia de dolo ao infrator).
Se niilismo e ressentimento andam tão próximos e de mãos dadas, é devido ao
instintos de liberdade ainda preservados no animal homem, que se revolta e
debate ante todos os signos e sinais de aprisionamento, de fixação de seu pensar
em valorações que ele sente como ressonância de que algo vai mal, algo da ordem
de uma doença o ataca.
A teoria analítica (CG Jung) diz que temos um Self orientador em nosso
psiquismo, um Self (principio unificador da personalidade, responsável pelo
realização da individuação no homem) capaz inclusive de orientação de um
tornar-se, o que Nietzsche atribui ao corpo, algo de uma vontade de depender
somente de si mesmo, com seu grau de imprevisto, fora de qualquer cálculo ou
controle. A hierarquização funcional das comunidades ou hordas primitivas
(como até hoje), não se dão de forma amistosa, como nas abelhas ou nas
formigas, pois o homem se vê forçado a aceitar e introjetar os modos de vida que
lhe são propostos. Mesmo os que aceitam de ‘bom grado’ a posição que lhes é
destinada acumulam os afectos que resultam no ressentimento.
Há, no homem, em seu pensamento esse algo que o quer nômade, liberto da
comunidade e suas regras, há mais profundamente, a extrema dificuldade de se
obter um auto-controle sobre os afectos, de que eles não imperem sobre o
pensamento, trazendo-lhe a parte sombria, ou seja, suas paixões, e tudo o que
acossa o pensar mais sóbrio e racional. O pensamento acossado pelos outros
pensamentos intrusos, como no TOC, são um exemplo vivo de que o pensamento
pode ser tomado de assalto a qualquer momento, de que algo dessas inúmeras
paixões podem martelar na mente a ponto de conduzi-la aos pensamentos limites,
lá onde a doença pergunta ao pensamento: do que seremos capazes de pensar e
pior ainda, fazer...
O que virá a ser do pensamento, refém da doença? Eis uma pergunta
enigmática, sendo que uma das viações possíveis nos conduz ao ressentimento.
Pensamento, bem entendido, como o que não se separa dos afectos. Pensar e
sentir tudo junto e misturado em dobras em reviramentos, os mais diversos e
complexos. Capacidade de cambio e mudança rápida de um modo de pensar a
outro e vice versa. Alterações de humor, ações metódicas, pensamento em
vórtices vertiginosos, tudo isso nos conduz não só a psicopatologia, como aos

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estados de alma ainda ignorados, pois não sabemos o que somos nem do que
somos capazes ainda de pensar e fazer.
Para além das considerações kantianas à cerca da liberdade do homem –
liberdade como propriedade da vontade de todo ser racional, o que temos é um
homem que mede um outro homem, ou seja, Nietzsche apontou esse medir-se de
ambas as partes no princípio das relações humanas, na forma de um ‘obligatio’
que se exerce na primordial relação entre credor e devedor. É daí que Nietzsche
pode pensar o sentimento de culpa, a obrigação pessoal de pagar, de reconhecer
que deve algo a outrem, que em suma, fez algo ainda impensável: prometeu algo
a outrem. Essa é a primeira forma de medir alguém, ou seja, por aquilo que ela
prometeu (dito por palavras ou intenções que o outro sinalizou para si mesmo).
O romance de Dostoievski – O idiota – mostra em detalhes esse processo de
promessa tornado um para trás raivoso e que culminou em ressentimento por
parte da heroína (Nastácia) em relação ao seu bem feitor (Pitssín) que sem
prometer por palavras a fez crer que ele a desejava e lhe faria sua mulher.
Foi esta heroína que também soube medir seu noivo, de uma forma ressentida,
levando-o a uma situação limite, quando em sua festa de aniversário lhe retira
sua máscara de bom moço e o revela como um homem comum e utilitarista, na
frente de todos os seus convidados.
É na perspectiva de ‘O idiota’, que surge a ideia de aproximar verdade e beleza,
uma conexão explosiva que faz a beleza se aproximar perigosamente da mulher
louca, do homem apaixonado e humilhado, que diante do tipo inocente, faz a
doença do ressentimento emergir em suas formas mais primitivas e intensivas, a
ponto de fazer comprometer o convalescimento do homem (príncipe) que quer
manter seu coração integro e intacto.

Medir um homem? Em como isso resulta em ressentimento...

Já dissemos que orgulho e ressentimento andam juntos, e se Nietzsche estiver


correto em suas hipóteses genealógicas, podemos dizer que os germens do
ressentir-se estão lá na relação entre credor e devedor, onde se mediu pessoa a
pessoa pela primeira vez. Esse grande experimento de ‘sentimento de si’ o elevou
a uma condição de se achar plenamente capacitado em medir tudo e todos os
demais reinos (natureza, animais, estrelas quiça), em a partir do instante que
mede e avalia, valora o que em seu egoísmo é melhor para si mesmo (vide
tragédia Clavigo de Goethe). O melhor para si mesmo é, como sentimento de si,
e o é em relação aos demais, exercitar sua mais recente capacidade: o
experimento de cobrar a promessa, fazer-se cumprir um direito, estabelecido na
esteira de um orgulho de si, de poder cobrar o outro de uma dívida (que passa a

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se tornar emocional), pois tudo já foi devidamente remoído, escandido, medido,
justificado e por fim julgado.
As garantias que não puderam se realizar, as promessas desfeitas só podem, a
partir do orgulho desmedido e ofendido, serem resolvidas no âmbito do
ressentimento, de um processo de recuo e solidão, em que o para trás é tornado
um campo fértil para a raiva, o ódio e o sentimento de vingança. Um voltar-se
para trás, uma memória compilada e aumentada com a fantasia própria ou
coletiva (por exemplo a fantasia do judeu para o povo alemão) em que vão sendo
maturados lentamente, no animal homem, uma memória da vontade de verdade,
que em sua contra face é refinada e lubrificada pela faculdade de ressentir-se ante
um outro incapaz não só de dar garantias, de cumprir com o combinado, mas que
como sujeito de uma ação de dolo ao meu orgulho, a minha pátria, onde sinto-
me com mais liberdade e grande autonomia moral para elaborar minha cobrança,
meu próprio meio de resolver o orgulho ferido e ofendido por um algo que cresce
de maneira desmedida. A hibrys se junta a métis e juntas se aliam ao estado de
alma que aqui chamamos de ressentido.
Comportar-se ou não dentro de determinadas regras, recriar-se a partir delas
gera um para trás ressentido, não apenas um mal estar na cultura como detectou
Freud, mas uma verdadeira memória do assujeitar-se, subjetivar-se em
obediência ao comando do mais astuto, em reverência permanente a um mais
forte. Essa modelagem do medo e do amor, junto e misturados, redunda num
sentimento de si em sentimento de costume, em prol de sua segurança, de um
meio cultural seguro e previsível (calculável, regular), mas que não apagou o
instinto ou esse sentimento de medo misturado a amor, cujo efeito está plasmado
nas inúmeras manifestações do mais fraco em formas de crueldade, em
brutalidade ante o senhor. Grito exposto nas obras naturalistas de Zola, na ideia
nietzschiana da ralação entre senhor e escravo, em que ocorre uma inversão de
valores, a partir da promessa não cumprida e que se segue em longa jornada
história cujo resultado é a moral doentia do ressentido (que contamina o inocente,
e aproxima o seu coração integro e intacto do instante limite, que põe sua saúde
em cheque). Se por um lado a cultura promete segurança, convivência entre
pares, previsibilidade e garantias futuras, de outro, a dor e sofrimento dos
instintos por querer fazer de outro modo (a sua egoística maneira utilitarista de
ser), fazem com que esse equilíbrio entre instintos e cultura sejam tênues, pois a
licitude de fazer promessas está sempre em jogo e isso modela a economia das
pulsões, tornando-a menos plástica.
As relações sociais onde os domínios de poder estão presentes e materializados
nas capilaridades, já foram muito explorados por diferentes filósofos, dentre os
quais destaco Foucault, em suas micro relações de poder, nas quais as esferas de

27
poderes ganham um equivalente de justiça e equidade, onde as transgressões dos
direitos e a verdade tem o seu preço, isto é, uma paga de uma lesão a ser
compensada de forma não só penal, mas psicológica. Foucault cria o conceito de
‘interstício’, no qual entre o credor e o devedor, se institui um espaço
intermediário, um entre um e outro ponto, onde o preço a ser pago (o valor
simbólico dele), é conduzido ao reino mítico de um equivalente sempre novo, a
ser considerado dentro da perspectiva moral ou na fabulação de um vingança
futura. No interstício algo se dá entre diferentes elementos, que não os do
ressentimento e do orgulho, cujo resultado possa redundar num novo pensar. Não
ver e falar do outro na chave do credor é ainda uma forma de enunciação e de
exterioridade outra, que implica numa mudança de perspectiva tal que inclui o
riso, a espontaneidade, para que se possa sair das regras e das condições do
contrato estabelecido pela chave do ressentido. A saída do sujeito moral da
relação credor e devedor, só é possível quando se desloca o novo para ‘do dito’
a um ‘não dito’, ou seja, para além da regulação feita na promessa. Mas ainda a
noção de um ‘novo sujeito’ pode ser colocada em questão: existe uma abertura,
uma ‘crença estética’ de para além de fixar-se em regras de condutas, o homem
pode ainda se modificar, transformar-se a partir de um outro? Isso implica um
fazer do outro um outro a ser considerado, visto olhado em sua perspectiva. Disso
resulta a vida uma obra de arte. (Como gostaria Nietzsche), que ela ‘seja
portadora de certos valores estéticos e respondam a certos critérios de estilo’
(Foucault, História da sexualidade II: 15). Um outro que contribui na minha
realização de vida e do meu viver, posto no meio, no miolo do meu destino, de
forma estranha e paradoxal.
Se Foucault estiver correto, o ressentimento seria uma espécie de compensação,
correção ou dentro de nova possibilidade, visaria a anulação da transmissão dos
códigos morais, num momento outro e fecundo, quando o novo se dá, a criação
de uma perspectiva nova se oferece e anula a fantasia e a vontade de niilista. Isso
se daria nos interstícios, que é uma das formas de se poder entender o que quer
que seja um convalescimento, não pela porta do ressentir-se propriamente
falando, mas no que isso abre terreno e amplitude para o que está para além de
um para trás e de um recuo e uma solidão que, aí sim, abre esse mesmo
convalescer de riqueza e transformação do novo sujeito.
Como pudemos notar a relação do sujeito com a s regras e códigos morais nos
levam muito longe, além da evidente problematização complexa que esse rastro
de importância história e genealógica ancestral nos leva.
Para finalizar essa introdução ao tema do ressentimento, gostaria ainda de
apontar que tanto a soberania sobre ‘si mesmo’ quanto uma estética da existência,
que inclui a vida de relação e o social, estando sob o empuxo dos poderes (micro

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ou macro), tem de vencer esse obstáculo titânico e colossal, que são as formas de
ressentimento, que não sendo feito esse trabalho hercúleo de conduzi-lo a um
circuito pulsional que se descarregue, sofra modificações, nada do que se debata
vai fazer sentido. O que temos aqui sempre é um palco onde o drama humano é
e será entendido como luta, combate entre instintos, entre vontade de verdade,
que forma a ambiência do ator trágico em suas inúmeras máscaras, que nada mais
é do que cada um de nós mesmos... praticamente reencetando os dramas de
outrora.
Presença sempre forte do deus Dionísio. Deleuze fala do Sim afirmado do deus
da metamorfose, afirmador das dores do crescimento, ou seja, rir para a vida ser
afirmada.

Uma alusão aos trabalhadores de Saúde Mental – os heróis da modernidade

Trabalhar em Saúde Mental é uma arte, uma vocação heróica, quiça, uma
batalha constante, sem vencidos nem vencedores.
Mais do que teorias revisitadas, é preciso ferramentas para se combater o
ressentimento, se a perspectiva que adotamos for a de um combate. Combate não
só a doença, mas de tomar a doença como um problema de chifres e fazer dela
um algo, jus a um bom combate (que afirma vida e sua multiplicidade de
possibilidades de convalescimento).
Caminhando entre neuroses, psicoses e esquizofrenias, o que temos pela frente
é. para além dos diagnósticos, é a construção de uma psicologia de armas
dionisíacas, de uma sabedoria do trágico, pois não adianta pensar ou querer para
junto de si em um tornar-se, ter o espírito livre, se o psiquismo encontra-se fraco,
doente, com uma ferida aberta que não quer cicatrizar. De nada adianta erguer
escudos contra os sintomas se o principal deles se aglutina em torno do problema
do ressentimento, ou seja, do coração dorido.
Uma psicologia voltada aos problemas fundamentais (como desejava
Nietzsche), pois como enfatizamos, o ressentimento está para além do sintoma,
é um problema emocional gravíssimo, e que persegue o homem em milênios.
Para usar uma expressão reichiana, trata-se de uma peste emocional.
O ressentimento conduz não somente ao problema da moral, mas a questão
fundamental do sofrimento, ou seja, a de se poder identificar uma sabedoria
trágica como ferramenta de combate e superação do ressentimento.
O filósofo Giacoia Jr propõe situar o ressentimento entre o além do homem e
o eterno retorno (psicologia do ressentimento), na possibilidade de engendrar um
‘ser humano finalmente libertado do ressentimento venenoso, um homem

29
despojado do espírito de vingança’ (Giacoia Jr. O Humano como memória e
como promessa).

O problema de todo homem comum situa-se então no encontro decisivo e


fundamental com seus próprios limites, independentemente se estes venham de
dentro ou de fora de si mesmo, e uma vez tornados obstáculos intransponíveis,
algo se dá, pois ‘é preciso ter asas quando se ama o abismo’ (Nietzsche). É uma
guerra, é um combate a céu aberto, e neste campo de batalha viceja-se muitas
frentes (fronts de luta), entre os quais destacamos o niilismo, o stress, a
ansiedade, a depressão, a loucura, e fundamentalmente o ressentimento e seus
em torno (raiva desmedida, ódio, espírito de vingança).
Da leitura de Dostoievski, retiro uma impressão forte: quando o momento
limite chega e se apresenta a cada um de nós, algo se dá: ou se morre, ou se mata,
enlouquece e, poucas vezes, se convalesce.
O tipo ressentido tem duas perspectivas de construção de um olhar:

1) O ressentimento como sintomática de um tipo débil de potência

2) O ressentimento em que o homem é o próprio sintoma – sintoma de uma


possibilidade e consequência de um tempo histórico e social

O segundo pertence ao campo de uma psicologia social, enquanto que o


primeiro tipo é o que vamos nos deter.
É Nietzsche, como psicólogo, quem primeiro propõe a questão que mais
importa pensar: as impressões fortes, aquelas que nos fazem querer agir:
‘não sendo um simples não-mais poder se livrar-se da impressão uma vez
recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não
conseguimos dar conta, mas sim um ativo não mais-querer livrar-se, um
prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo
que entre o primitivo quero, farei, e a verdadeira descarga da vontade, o seu ato,
todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de
vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa essa longa
cadeia do querer’ (Nietzsche).

Geralmente entre o querer fazer e a procrastinação, existe um vasto campo de


possibilidades e razões, para que algo de uma ‘vontade de’ passe ao ato, e
chamamos doença ou sintomas o que nos impede de fazermos o enfrentamento
necessário não só a subsistência, mas da ideia fundamental de que a vida é ativa,
é um constante experimentar, dar um passo adiante, tornar-se.

30
É o subsolo destas questões que tentaremos nos aproximar neste ensaio, e as
quais dedico a todos os heróis que atuam no campos da Saúde Mental.

Capitulo 1

O homem liberto do ressentimento

De que se trata quando aqui mencionamos um homem do ressentimento? A


título de hipótese experimental, diremos que se trata de um tipo, uma tipologia
(não ao modo junguiano), mas um modo característico da psychê, muito peculiar,
uma espécie de ‘eu emocional’, como o lugar do ressentimento, das paixões, da
ansiedade, da coragem, modos e variações para lidar com as impressões, e como
isso gera uma emoção que se torna ativa, presa a um movimento pulsional tal
que: produz e processa um ‘obligatio’, uma obrigação pesada e imperativa de ter
de fazer algo, quando provocado, chamado a um combate, e assim agir de uma
certa maneira, ligada a uma culpa obscura, a um sentir-se ofendido ou rebaixado,
cujos efeitos são: geração de uma má consciência.
A má consciência para Nietzsche está ligada a ‘hostilidade, a crueldade, o
prazer na perseguição, no assalto, na destruição – tudo isso se voltando contra os
possuidores de tais instintos’ (Nietzsche, 1988). Aqui temos o momento limite,
em que prazer (de perseguir, remoer) e dor (por perseguir relembrar e se culpar)
se aproximam num pathos trágico, onde tal aproximação pode gerar não só, como
vimos, sintomas ou doença, mas uma memória do estado de alma chamado
ressentimento. Para esse estado de alma, importa o remédio designado de
‘sabedoria trágica’.
Como chaga aberta que nunca se cura, ou como peste emocional, o
ressentimento tem efeitos e consequências na vida da polis, pois como Reich
indicou, isso gera tipos como o ‘zé ninguém, ou seja, ‘do que o homem comum
é capaz de fazer contra si próprio, de como sofre e se revolta, das honras que
tributa a seus inimigos e do modo como assassina seus amigos’ (Reich, Escuta
zé ninguém). A maneira como pensa e age o homem mediano é devastadora, pois
esse tipo nem se atreve a pensar que poderia tornar-se algo diferente do que é:
‘livre em vez de deprimido, directo em vez de cauteloso, amando ás clara e não
mais como um ladrão na noite’ (Reich, idem).
Estamos aqui diante de uma gravíssimo problema de saúde mental, ou seja, o
homem comum quer e deseja permanecer ou que é, ou seja, medíocre. O homem
mediano, o tipo escravo de Nietzsche, é aquele que não deseja convalescer, abrir
um convalescimento para si significaria abdicar do seu eu, de sua consciência

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valorativa atual, que imita, que sorve a liberdade de ser escravo de quem quer
que seja.
O ressentimento sendo um sentimento mais sutil e sofisticado atinge o seu
coroamento quando faz do Eu, da consciência um centro de tudo (das decisões),
o que implica em não querer mudar nem morrer simbolicamente, e isso fecha e
impede a cada homem de poder ter a possibilidade de convalescer.

Do surgimento do ressentimento – perspectiva mítica

Se o ressentimento, na perspectiva nietzschiana, floresce no sec. XIX, isso a


‘genealogia da moral’, parece dar mostras suficientes, por outro, como emoção
constitutiva humana ela é encontrada bem antes.
Os mitos podem nos fornecer uma indicação de que o ressentimento já estava
presente na época clássica dos gregos, e daremos alguns exemplos disso aqui
neste ensaio. Vejamos o mito de Filoctetes.
Filoctetes é um guarda armas de Héracles, e é deixado (por Odisseu) numa ilha
(Lemnos), abandonado e desterrado, após ser picado por uma serpente. Seu
estado de alma é dramático, pois se trata de um jovem postulante a herói, de ao
invés de ir para uma luta a céu aberto contra os troianos, tem de recuar, para antes
ter de ‘sofrer isso’ (palavras de Héracles), ou seja, isso que não tem nome, mas
comporta um sofrimento tal que serve para ter depois uma vida gloriosa. A esse
‘algo sem nome’ aqui nomeamos como ressentimento, ou seja, um recuo e uma
solidão necessárias para poder abrir um convalescimento de si mesmo. Tendo
agora que lidar com um sentimento de permanecer durante 10 anos isolado nesta
ilha, Filoctetes inicialmente só nutre o rancor, o desejo de vingança contra
Odisseu, um ódio que no limite, se transformou em ressentimento. Odisseu quer
enganar Filoctetes, que em sua visão militarista não é útil a guerra, pois manca e
rasteja (devido a sua ferida que não cicatriza). Ao não ser útil e mesmo
dispensável ao olhar de Ulisses, que se propõe a utilizar o arco e flecha, perde-se
a problematização dos estados de lama de Filoctetes, da sofisticação das nuances
desse sentimento que resulta em ressentimento.
Numa certa perspectiva mítica, Filoctetes é um marco da narrativa das
emoções fortes que ficam gravadas tanto no plano social como da esfera
individual. O que mais importa pensar aqui é que tanto na memória
individual ou coletiva, a utilidade de se deixar conduzir por tais emoções e
do que isso resulta é posta, bem como uma distância entre memória e
utilitarismo é necessária, mesmo do ponto de vista da definição do que é
bom ou mal ao homem e a polis.

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Nietzsche já apontou a relevância do bom – útil e da utilidade tornada
inesquecível, de forma que no mito já está presente a ideia de que os jovens
passam pelo momento limite, aquele em que para além dos privilégios de
nascença, da nobreza filial, está a ação livre, que é marcada em cada canto
da aventura humana, que é e se dá no combate, na guerra, no bom combate,
como no caso de Filoctetes.
Nietzsche comenta:
‘essa inversão do olhar que estabelece valores – este necessário voltar-se
para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a
moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior,
para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário
sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente,
busca seu oposto para dizer Sim a si mesmo com maior júbilo e gratidão –
seu conceito negativo, o baixo, o ruim, comum, é apenas uma imagem de
contraste, pálida e posterior... (Nietzsche).

O que produz e processa as formas e nuances da emoção que chega a se


constelar em forma de ressentimento são e se dão pelo olhar que fazemos
das coisas que chegam, antes de se tornarem valores e orientadores do
conhecimento e da ação.
Vale aqui a apresentação de um breve esquema pedagógico que retiramos
de Nietzsche, no que diz respeito a um circuito do que chega e como isso
pode ser processado pelo psiquismo.

Circuito das percepções

No início da humanidade, a necessidade instintual de constituição da


linguagem é fundamental. Ela vem de algum lugar misterioso (instinto?
Impulso criador?), e pode ter a ver com as capacidades simbólicas de todo
homem, ou seja, condição humana de abstração de estímulos, disposição
que vem e nasce dos afectos (expressão de sentimentos de dor ou prazer),
de se deixar ser afetado por algo interno (inconsciente) ou externo (mundo
ou realidade externa), e daí poder representar e dar vazão a uma força
criadora do homem capaz de tomarem essas mesmas sensações que se
aglomeram e se tornar ou constituir em imagens. A linguagem dos afetos é
nosso fio condutor para uma psicologia do ressentimento.
A sonoridade do que percebemos e sentimos nos fornece a pista de como
o ressentimento possa ter origem, ou seja, desde o início dos tempos, os
sons são os mais significativos índices de como reagimos, se de uma forma

33
a enfrentar ou recuar de algo que chega ao aparelho sensório, e nos faz ir
adiante ou recuar. Algumas vezes paralisamos, e isso é interpretado
modernamente como um sentimento de medo primordial.
A tonalidade dos sons nos atinge diretamente, nos diz algo, e pelos sons
somos tocados em nossos sentimentos mais antigos e primordiais.
Nietzsche nos fala do poder da música, dos ditirambos dionisíacos,
componentes da narração mítica trágica, que dá ao drama representado no
mito as formas mais intuitivas do que surge a partir de um forte impulso,
ou seja, das possibilidades de traduzir as sensações em emoções, em
linguagem musical.
O mito trágico grego é pontuado aqui, nesta perspectiva, gerado pela
força fisiopsicológica – inconsciente – que prima inicialmente não pela
ação do herói, mas por aquilo que ele sente. Toda a poética dionisíaca que
embasa o trágico é formulada esteticamente por Nietzsche (Nascimento da
tragédia), de forma que o homem dionisíaco (que se utiliza de uma
sabedoria trágica), ou a tipologia do deus bode, é aquele que dramatiza o
que sente, seu excessivo, de forma a poder liberar seu coração. Esse
homem, sob a égide do deus produz e processa uma nova formatividade
humana muito mais próxima de um impulso natural, intuitivo, compelido
por forças inconscientes, muito mais focado e voltado a força das imagens,
que não sendo nas representações figurativas, sabe se expressar e se
exteriorizar no júbilo, onde as emoções ganham força e forma direta de
simbólica dos estados da vontade. Funções essas adormecidas no homem
da razão utilitária.
Então, no mito trágico, som gesto e palavra formam uma única e mesma
unidade, com vistas a não a um ideal (como a primazia do Logos), mas
numa linhagem e linguagem dos afectos que permita o fortalecimento dos
instintos e não sua decadência.

Capítulo 2

Por que escolhemos ruminar o que não nos serve?

Se existe um para trás formado por uma grande quantidade de imagens


‘ruins’, de símbolos dos sons que, desde sempre, condiciona uma reação,
se o gesto do ‘outro’ gera imediatamente afecções inconscientes e em
imagens que nos acompanham como signos fixos de uma impressão
deletéria, em representações que resultam em feridas que não cicatrizam,

34
como no caso de Filoctetes e mesmo de Quíron. Então por que insistir nesta
viação que debilita a vitalidade humana?
Em Nietzsche temos o termo ‘quanta de potência’ que fisiologicamente
conceituado, nos diz o quanto um tipo pode interpretar seus próprios
estados de alma. Um tipo fraco (escravo) não digere nem interpreta ou
perspectiva bem o seu para trás, enquanto que um tipo forte (nobre),
comunica e digere seus afectos e sentimentos (representações inconscientes
e estados de vontade ou alma).
A ferida aberta e que não cicatriza é a incapacidade meduzante de
interpretação e simbolização direta dos sentimentos. O mito de Medusa
traduz bem esse estado de alma, pois de uma bela e formosa donzela, passa
a ser representada como a imagem de uma figura horrenda com presas de
javali e cabelos serpenteantes. Ao ser afasta da do convívio humano e
passar a morar numa caverna fora do âmbito da pólis, ela passa a ser guardiã
dos segredos de um conhecimento passado (mistérios ancestrais). O
passado que ela guarda, é o seu próprio para trás que num dado momento –
o aparecimento do Titã Poseidon, que rouba sua inocência – sofreu uma
reviravolta. De guardiã do tempo de Atena, a guardiã de seu próprio drama
para trás trágico, Medusa passa a odiar o homem mortal, por ter sido
seduzida, incapaz de ser amada e portanto, ressentida. Mas é do sangue de
Medusa que Esculápio cria o Pharmacon, o bom equilíbrio entre o que mata
e o que vivifica, ou seja, Filoctetes só pode se curar porque um descendente
de Esculápio o curou. Só se curou no bom combate que lhe fez convalescer
de seu próprio ressentimento. Quíron, o centauro que também adquiriu uma
ferida aberta, só pode ter paz quando pode sentir e perceber na ‘própria
pele’ que de nada adianta o médico, quando diante do que só pode se curar
a partir de um revirão, de um ponto de báscula, de Arquimedes, do rubicão,
da metamorfose, do interstício que solicita a morte e o renascimento de tudo
o que não serve mais ao homem em sua caminhada rumo ao seu tornar-se.
O milagre da transmutação, da passagem de uma coisa a outra, da
transposição do para trás em inocente devir, é o que simbolicamente
tomamos aqui como capacidades simbólicas para processar um
convalescimento de si.
Os mitos gregos antigos nos fazem pensar que mais do que estar
consciente é preciso estar acompanhada das representações do sentimento,
por isso a sabedoria popular diz que razão e coração devem andar juntas,
de mãos dadas, se quisermos sair da cristalização medusante dos conceitos,
dos diagnósticos, das especialidades que pesam sobre o homem moderno.

35
O sentimento é essa parte do mistério indecifrável do que nos é mais caro,
ou seja, o coração simbólico, aquilo de que Dionísio se nutre e vive. Prazer
e desprazer vivem dentro do coração simbólico e lá se decompõem em
estados de alma, ou seja, mediados por imagens.
O ressentimento impede o homem mediano de sonhar, ou seja, criar
imagens que possam abrir o devir. Essa é a parte promissora, o campo mais
fecundo e florido para uma arteterapia voltada a processar o
convalescimento, em meio aos símbolos apolíneos e dionisíacos, que
Nietzsche toma emprestado de Apolo e Dionísio, como pulsões ou instintos
estéticos.
Os sentimos são então aquele algo que nos embriaga, nos conduz para o
êxtase, para as dimensões e píncaros do que somos e do que ainda não
experimentamos nem vivenciamos. (vide Giacoia Jr, diferença entre
experimento e vivência).
Uma ação ressentida – o que não me serve – é um algo que se a princípio
paralisa (olhar medusante), para depois machucar-se constantemente, a
ponto de tornar difícil ou insuportável o viver. A diferença entre o se sentir
paralisado e ou enjaulado e o espirito tornado livre é abissal, da mesma
forma que a ilusão de se tornar mais forte engendrando planos de vingança
e persistindo no modos reativo, é um erro fatal, que além de impedir o
convalescer nos leva novamente ao ponto limite: no limite ou matamos,
morremos, enlouquecemos, e alguma vezes, convalescemos.

O sintoma regressivo do para trás

A título de nota e registro, é preciso lembrar que a psicanálise tem se


ocupado com o para trás nas formas múltiplas e teóricas de seus diferentes
autores e tendências, e tem designado sob o conceito de regressão (sentido
inverso de um percurso de desenvolvimento psíquico) a caracterização da
possibilidade de voltar para trás, dentro de uma constituição do sujeito
desejante na chave da falta. O que aqui propomos neste ensaio é diferente
da chave faltosa (desejo) da psicanálise, pois Dionísio e o sentimento se
unem pelo desejo excessivo, extensivamente explorado pela filosofia de
Deleuze e Guatarri.

O para trás aqui, como sintoma regressivo, é um perigo, pois esconde


nossa parte sombria, a saber, a crueldade, os instintos primeiros, que antes
de ser valorada como a parte má do homem, é antes de tudo força motriz,
que obnubilado pela má consciência (culpa), torna o homem envergonhado

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de sua parte mais corpórea. A compreensão simbólica do para trás na chave
simbólica do excessivo, ou seja, Dionísio, é múltipla, rizomática. Se na
vertente freudiana da falta, o ressentimento é uma doença ‘que se origina
do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. É a fermentação da crueldade
adiada, transmudadas em valores positivos, que envenena e intoxica a alma,
que fica condenada eternamente ao não esquecimento’ (Kell,
Ressentimento: 93\4). A definição, tecnicamente correta, na medida em que
se trata um retorno de algo que sendo do outro (seus signos e sinais, sua
diferença, sua maneira de se dirigir ou reportar a quem se sente ferido sem
eu orgulho), e que poderia simplesmente causar um reajuste de pathos de
distância adequado, resvala numa incapacidade qualquer de promover essa
adequação afectiva, como diz Spinoza com relação aos maus encontros, dos
efeitos de outros corpos sobre nós. O problema é quando o encontro não
pode ser evitado, se o mau encontro é com um familiar, um chefe, uma
situação qualquer que se renova ao raiar de cada novo dia. Quando o afecto
sentido é ruim aparece a tristeza, a melancolia, ou seja, uma incapacidade
de ‘reagir’ (ou melhor agir assertivamente) e essa sensação de
incapacidade, toca os valores cardinais dessa mesma pessoa que vai
adoecendo aos poucos. Ao se referir a valores positivos, se a interpretação
estiver correta, significa aquilo que Nietzsche já pensava sobre como um
sujeito elege sua ‘tabua de bens’ (seus valores pessoais), que ‘denunciam
algo de sua estrutura de sua alma, e aquilo em que ela vê suas condições de
vida, sua autêntica necessidade’ (Nietzsche BM: 268). O outro (e seu
afecto), intruso e ruim, abre uma lacuna na tabua dos valores pessoais, pois
nos tira uma base qualquer de propositura de verdade, trazendo consigo o
rastro de uma injustiça qualquer cometida, a maioria das vezes, num lugar
de poder, de deliberação (como no caso dos chefes, juízes, etc). e que
causando um dolo qualquer, isso rumina, abre o espaço mental de
reparação. Ao mudar suas condições de vida e mexer na base de seus
valores (da justiça ou não justiça, de Deus presente ou ausente), isso se
volta a essa autentica necessidade de corrigir a ação do outro, de mostrar-
lhe o seu lugar, de impor a ele, um dano tão proporcional ou ainda maior
que isso exige toda uma reorganização mental que se torna necessidade de
condenar e ao mesmo tempo isso se voltar contra si mesmo – a um não
poder esquecer. Uma mãe simplesmente diria: - Como esquecer quem
matou o meu filho? Como esquecer aquele que me prejudicou
intencionalmente? Como ignorar a tirania vinda do outro?
Ao interiorizar o afecto, fazê-lo crescer interiormente – com planos de
vingança e raiva que conduz ao ódio – isso se volta contra si mesmo, ou

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seja, se isso não se descarrega para fora, isso infla e alarga a alma num
estado já doentio. Mas o que fazer para que o afecto saia para fora? E que
toda a raiva, todo o ódio, todo o desejo de vingança se anule? Como perdoar
o ofensor? O estuprador? Ou ainda o que me causou não só um dolo, mas
abriu uma ferida que não cicatriza. Aqui é ponto limite e tangencial, de
corte, em que nos separamos da psicanálise, pois a ferida aberta é da ordem
de um excessivo e não de uma falta. É Dionísio quem fala neste palco, e
não Freud. Não é Narciso e nem Édipo, mas Prometeu e ‘O espírito livre’
(que é o sinal da presença dionisíaca em Nietzsche), quem pedem que a
ação seja, desde o seu fundamento, livre, expansiva, criativa e espontânea.
A isso é computado a ordem do excessivo e não do faltoso. Portanto sair
para fora o afecto é da ordem de um excessivo estetizante, criador, que
supera o afecto do outro, não por ser melhor, mas por se tornar original.
Essa é a sabedoria trágica contida nos dizeres de Nietzsche, Pascal, Jung e
tantos mais, onde se revela que a dor e o sofrimento são possibilidades que
abrem a alma e a convidam a novos experimentos de vida e do viver.
Em Pascal – utilizando-se os argumentos céticos – temos a tentativa de
restituir o intelecto a seu estado original de inocência, para que daí resulte
crenças verdadeiras. Essa suspensão dos juízos utilizadas pelos céticos é
uma espécie de preâmbulo da condição de inocência posta por Dostoievski
em o seu ‘O idiota’. Aqui inocência e verdade se unem contra a ignorância
e os falsos juízos de valores. Na suspensão dos juízos, ocorre uma fator
terapêutico nobre (a tranquilidade mental em questões de opinião e a
moderação dos afectos), que visa o restabelecimento do que é belo, de uma
estética em que o belo é a verdade podendo ser dita, o eu e o outro se
entendem, se abrem a um convalescimento mútuo, e a verdade se torna a
base das relações entre os homens. A verdade e a beleza juntas abrem as
portas do processo terapêutico que visa um convalescimento.
Na suspensão dos juízos (do que é um bem em si), as perdas se tornam
suportáveis, a resposta afectiva imoderada que aponta para uma crença
acerca dos valores dos objetos de desejo (Dionísio), passam pela cognição
(Apolo) e as condições e situações de humilhação, ódio e ressentimento se
amenizam. Aqui se aposta nos acordos, em acordos mesmo que provisórios,
como bem apontou Nietzsche em suas pulsões estéticas (Apolo x Dionísio),
em que ambos acordam em não se mutilarem e destruírem, mas em fazerem
acordos, cujos resultados e efeitos são da ordem da criação de mundos e
novas possibilidade de vida.
Mas as grandes paixões, o ressentimento em sua máscara mais potente,
que é o espírito de vingança, se deixariam levar por uma suspensão de

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juízo? O primado da paixão sobre a razão não é um obstáculo a propensão
terapêutica apontada pelos céticos? O cético oferece uma série de objetos
de desejo em contraposição a tirania de uma única paixão, uma dispersão
calculada pela razão. Pascal pensa nas questões que mais importam, ou seja,
para se combater o ressentimento é preciso estar ciente do destino da alma
e da existência de Deus (ou ainda conhecer a si mesmo e amar a si mesmo).
Pascal propõe a busca (Deus) e não a ataraxia ou suspensão do juízo, pois
a condição humana é contraditória e paradoxal. Aqui Pascal e Dostoievski
se encontram, na medida em que para Pascal o homem é disfarce, hipocrisia
e mentira, não quer que lhe digam a verdade e evita dizê-la a outros, isso
como uma propensão de seu coração. Um coração vaidoso, propenso a um
exame de si e do outro repleto de inanidade e tolices. Pascal é um filosofo
que também quer se testar nas situações limite. As situações limite é um
experimento do pensamento, ou seja, o experimento da dúvida. Na dúvida
a razão, o intelecto, prefere a diversão, a fuga pelo prazer (toma como falso
aquilo que é verossímil). No limite, Pascal vê o homem corrompido em sua
inocência, pela queda adâmica, o que gera uma tensão limite, ou seja,
incapazes de abandonar a busca pela verdade e ao mesmo tempo sabedores
– que gera angustia e inquietação – de não conseguirmos chegar até os fins
últimos da razão e da vontade.
Por fim Nietzsche que dialoga com Pascal no Hades, lá onde a doença e
o sofrimento do pensamento, as conexões entre razão e coração, atingem
uma tensão e um limite máximo. O que se quer é a afirmação da vida, mas
antes a pedra de toque é o ressentimento, postado no meio do caminho.
Entre a paixão pelo conhecimento, busca da verdade, entre a metafísica e
o ressentimento pela vida (niilismo), está ainda a dualidade dos afectos, ou
seja, um cálculo hedonista (prazer e desprazer), onde se depreende a
utilidade de uma ou outra posição. Mas isso leva Nietzsche e mesmo Pascal
a uma constatação: o sujeito é desregrado, em meio a uma infinita
variabilidade de gostos. Ações que buscam o prazer e evitam a dor não são
más, nem adere ao princípio utilitarista em que uma ação é boa apenas na
medida em que ela permite produzir o máximo de prazer para as pessoas
afetadas pela ação. Ação subjetiva, que funda a ilusão do que me parece
valioso – o que brilha – como no caso do príncipe idiota, que detém o olhar
na lamina que pode ferir ou matar o outro. O quanto esse objeto me é
essencial num combate insano pelo amor de uma mulher.
O príncipe idiota escolhe não ter a arma branca que seu inimigo é
sabidamente portador. Ao não ceder a essa loucura, e não dar asas a fantasia
e excessos de seu pensamento, o príncipe deixa tudo por conta do instante

39
perigoso, lá onde tudo se dá e se decide. Quando não se sabe a verdade, aí
se encontra o perigo, pois o que vai preponderar ali, no instante, é
impossível dizer ou prever (calcular).
Para além do cálculo existe o demônio do poder, para além da nostalgia
da queda adâmica, mas na superação dos obstáculos, da pedra no meio do
caminho. No meio pascalino, o ideal cristão soa repleto de contradições,
um profundo desprezo do eu mais profundo, uma espécie de perigo de um
olhar amargo e repleto de vingança contra o mundo.

Citaçãos e frase sobre o sofrer...

As condições do experimento afectivo – retomar Giacoia

Uma psicologia do ressentimento tem como fio condutor a sabedoria de


que é sedimentado na memória (imagens de um para trás), implicam em
efeito meduzante, ou seja, cristalização de tudo o que cresce, ramifica como
novo (no sentido de diferença, de novas formas de experimentar a vida e o
viver).
O que é necessário dizer, e aqui se faz essa minha contribuição, é que
para se convalescer, não basta dizer que o sujeito ficou preso num circuito
de re-sentir tudo de novo, numa memória que se recusa a agir, a procurar
os bons encontros, por incapacidade ou falta de potência. É preciso dizer
ainda que, em meus estudos de meus próprios estados de alma o reafirma,
em se tratando de ressentimento: - Cabe ao enfermo, fazer um recuo e uma
solidão voluntária, para que se possa aí, neste interstício, que é mais do que
ficar triste, refém da depressão ou da melancolia (como quer a psicanálise)
e para além do medo ou receio de ir até o fundo de si mesmo, e não
conseguir voltar mais, se abrir a esse experimento. O que descobri é que, ir
até o seu inferno simbólico, acessar o seu Hades (como fizeram Jung - O
livro vermelho – e Nietzsche – descida ao Hades), é não só possível,
proveitoso em termos de solidão, mas necessário a quem quiser abrir para
si um convalescimento. E ainda mais, é possível fazer isso só, ou como
fizeram Jung e Nietzsche, em meio aos seus companheiros de viagem.
Mesmo Dante teve como companheiro de viagem o anjo Virgílio.

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O experimento

Se para Spinoza, o excessivo, é poder tocar a melancolia (contemplação


de um único objeto, tornando-se portanto obsessiva), e pode conduzir o
indivíduo a morte, e essa flutuação da alma é acompanhada sempre de uma
causa externa (o amante, o patrão, o homem utilitarista), com o excessivo
dionisíaco, inauguramos um ‘aport’ diferente para não temer o recuo e a
solidão, como as condições desejadas para o experimento.
A moderação dos afectos passa então por uma guinada nas tabuas de
valores (ideias inadequadas), e mais além de qualquer fatalismo, o
enfrentamento do ressentimento – a tudo o que é nocivo (sentido como) –
é um melhor esquecer, um não lembrar. Portanto não se trata de tentar
localizar o ressentimento somente nos tipos fracos, pois se esse problema
afeta a todos, fracos e nobres, em menor ou maior grau, pois já percebemos
que uma raiva ‘não curada’, pode gerar ódio, e um ódio que não passa, -
não esquecido -, pode se transformar em ressentimento. Um tipo tornado
ressentido, olha e passa a agir no mundo de outra forma. Não digerir mais
as vivências é um destes momentos indicados por Nietzsche, mas mais
profundamente, o ressentido não consegue mais fazer um recuo e uma
solidão que seja capaz de elaborar simbolicamente tais vivências, pois
quando faz algum recuo e vivência uma solidão, o que faz é somente remoer
um para trás. E sugere uma terapia para isso – que Jung seguiu a risca em
seu livro vermelho – a saber: utilizar ao máximo as potencias simbólicas,
recorrer regularmente a arteterapia: a uma ‘força plástica, modeladora,
regeneradora, propiciadora do esquecimento’ (Nietzsche, GM, I: 10).
Todos as pessoas cansadas de viver, propicias ao ressentimento, devem
passar por uma arteterapia que seja capaz de trabalhar nessa imensa frente
aberta por Nietzsche – como psicólogo e médico da cultura – ou seja, as
inclinações de todo doente, a se apegar aos modos ressentidos de como
Quíron, fazem um esforço para curar-se a si mesmo, e ao invés de se isolar
permanente numa caverna, em estado de melancolia, se abre a morte como
renascimento simbólico de si mesmo, ajudado por Héracles, que intermedia
esse processo de poder morrer ao trocar de lugar com Prometeu, condenado
a ficar acorrentado numa pedra pela eternidade afora. Para esquecer e
perdoar um inimigo é preciso um novo acordo simbólico consigo mesmo e
com o outro. Foi assim que Zeus pode esquecer o roubo de Prometeu, que
Filoctetes pode lutar contra os troianos a uma distância segura de Odisseu,
por conta de um algo maior, que no caso do humano, é a própria vida que

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em suas formas criativas, supera os maiores obstáculos. Vida que segue,
apesar dos pesares, mais que o individual, o coletivo é que não pode se fixar
em vivências repetitivas, pois se vida e viver são movimentos (de criação
ou transfiguração em detrimento a tudo o que é fixo, estável definido), o
que se segue é manter um orgulho ferido num outro patamar que sirva como
acordos provisórios dentro de uma causa maior (experimentos de vida que
se fazem em prol da fixação de um tipo ressentido).

Uma arteterapia para a construção de uma tríade: memória, esquecimento


e perdão

Conquanto esse não seja o escopo deste ensaio, uma arteterapia para o
ressentimento seria bem-vinda. É uma arteterapia voltada a um para trás,
ou seja, a renúncia do que foi feito no para trás, e não mais arrastar esse
para trás consigo. Isto implica evidentemente em renúncia (ao que foi feito,
ao dano ou ofensa). Para que esse processo possa ocorrer, e aí entra a
arteterapia, para que o dano ou ofensa, tenha livre curso, deixe de ser uma
cruz de um para trás cada vez mais duro de carregar. Para tanto a
potencialização máxima do simbólico, sugerida por Nietzsche passa por
aprender a dividir, compartilhar, assimilar, metabolizar, para a condenação
perca força em prol de um possível perdão, o que significa não o amor
incondicional ao inimigo, mas relativização do que vem do outro, renuncia
ao revide (vingança, ódio eterno), em prol de uma pouca ou nenhuma
memória do que foi em prol do que ainda está por vir. Giacoia comenta:
‘Perdoar é uma ação positiva, uma virtus: relevar, e tem como pressuposto
a assimilação e metabolização de uma experiência negativa, uma
capacidade ativa de incorporação e superação, uma força plástica plástica
de integração no continuum da vida psíquica, que torna possível que
vivências, especialmente negativas, sejam concluídas (fertig werden,
levadas a cabo, que seja possível acabar com elas. Ora, essa capacidade
exige uma força de assimilação de natureza semelhante á do esquecimento:
ela supõe que a memória não seja infectada, entravada e tornada dispéptica
por uma indigestão das experiências vividas. O que significa dizer que essa
força plástica tem a mesma natureza da força ativa do esquecimento. Tanto
poder lembra-se quanto poder-se esquecer, são, nesses termos, provas de
força, expressões de poder, não de incapacidade ou de impossibilidade: um
contrário de um não poder lembra-se, bem como de um não poder esquecer’
(Giacoia Jr. Revista em tempo).

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Então com estes argumentos, podemos ensejar uma arteterapia que,
valendo-se dos elementos plásticos, com um mesmo poder de vicejar um
esquecimento, é de grande ajuda ao enfermo, em seu convalescimento e na
busca de uma outra saúde. Por isso os pressupostos dessa nova arteterapia,
de cunho psicológico e filosófico, só pode se enunciar em um fazer que é
excessivo, e nunca faltoso ou de indigência, pois para que esse mesmo fazer
seja simbólico, que inclui a possibilidade do perdão e do esquecimento, isso
só pode acontecer na chave dionisíaca de uma plenitude, se um sobrar algo,
que é de uma riqueza outra – não faltante – que se não faz ou se refaz no
sentido vingativo, ou de retaliação, vai fazer de um outro ponto, numa outra
perspectiva, a saber, de que, saber, se eu renunciar a retaliação, abrir-se á
outros fazeres, um livre dar ou dar-se numa chave que, não sendo punição,
compensação, é um excedente d força que, fluirá para outros lugares, ainda
ignorados. Que isso passe, se afaste de minha pessoa, como uma capacidade
própria de assimilação, digestão e metabolismo, que vai ser feito no
processo que chamamos de recuo e solidão voluntários, que uma arteterapia
pode auxiliar, fornecendo esse campo de recuo e solidão acompanhado por
um companheiro de viagem que é o arteterapêuta e depois os própriso
companheiros de viagem advindos desse recuo e dessa solidão. Assim
como Nietzsche se utilizou de seu Zaratustra, de seus filósofos no Hades,
assim como Jung criou sua Salomé, seus personagens conceituais (Livro
vermelho), as capacidades simbólicas são a diferença entre abrir um
convalescimento e a impossibilidade em um não poder lembrar.
Um pouco de sossego, um pouco de arte, são as condições necessárias a
um convalescer. Para se pegar o resto do orgulho que resta a cada um de
nós, como fez Nastácia (O idiota), ao recusar ajuda do príncipe em seu
aniversário, e dar conta em seu estado febril, de que era necessário um recuo
e uma solidão e que ao invés disso, ela preferiu se divertir com Rogójin, é
algo em que, caso a caso, alguns preferem a promessa de liberdade via
prazer, diversão, enquanto outros compreendem que a libertação de
Prometeu só foi possível pela morte de Quíron, ou seja, na vertente dessa
dupla memória: o que devemos esquecer, e o que não devemos esquecer,
pois Quíron se ofereceu no lugar do outro. Esquecer a ofensa, mas não
esquecer que a criação, o devir inocente, só puderam acontecer por que
alguém se sacrificou. Este sacrifício de Quíron só pode ser entendido na
chave de que Prometeu representa as potencias simbólicas em ebulição e
Quíron, o momento reativo em que se é preciso ficar para trás – morrer –
para que se possa renascer (um quero e um outro querer e fazer) em outras
condições de vida e de viver. Um é um livrar-se do ferimento e outro é

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continuar querendo o fazer tudo de novo, em prol de um amor ao humano
em geral.
Para além de uma memória da ferida aberta (o que dilacerou e magoou),
as perdas podem ser mantidas não debaixo do tapete, mas sofrer uma
modelação que permita ao doente convalescer, ou seja, superar as vivências
ressentidas na chave de uma potência tendo como condição sua própria
enfermidade. Relativizar, perspectiva a dor e o sofrimento são certamente
as ferramentas que o homem possui para combates tudo o que cala fundo
demais, senão o que resta é sempre o circuito paralisante de medusa, presa
em uma caverna, guardiã de conhecimentos ancestrais, e como Quíron,
incapaz de usar tudo essa sabedoria, para se livrar das correntes. Por isso
devem morrer, para depois renascer. Na caverna, ou seja no recuo e na
solidão, tudo o que se torna culpado, reação imaginária do vingar-se, é
somente anestesia e narcótico da ferida aberta. Daí que o recuo e a solidão
por envenenamento de si, não abrem um convalescimento.
É preciso ainda uma espécie de contra-veneno, como dissemos, simbólico
e artístico, em que Nietzsche se baseou no chamado fatalismo russo, para
que a coragem – o maior dos matadores – possa agir no retardamento da
ação violenta em prol de uma outra que sabe esperar. É uma vingança ao
contrário (não de um prato frio e pelas beiradas), mas uma espera que
coloque essa vontade ressentida de molho, em ‘stand by’, ou seja, sob
controle ou domínio, até que se possa agir pelos instintos curativos e de
resistência ou assimilação ativa de um querer outra coisa, pela força plástica
do encontro de Si mesmo, de uma volta a si, pelo poder dos símbolos ativos
(Jung).
Ativar o si mesmo aqui corresponde a essas mesmas forças plásticas
capazes de tocar o coração do doente e como Teseu indo até o labirinto, até
o subsolo, fazer processar a morte do touro, via arte, via ajuda simbólica,
que são o escudo refletor, as sandálias aladas, ferramentas que ajudam a
manter o coração integro e intacto, longe da carência e da fata que se
deixam esquartejar, sem jamais juntar os pedaços ou renascer. Nietzsche
fala novamente das ferramentas dionisíacas para uma arteterapia da
exuberância e não da falta ou carência, pois o que se pretende como
psicólogo e médico da cultura é abundância de vida e não o seu contrário.
‘Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de
vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão
trágica da vida - e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que
buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o

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conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura’
(Nietzsche, Gaia ciência, prefácio).

Dois tipos de arte, de perspectivas de querer continuar vivendo e


sonhando um pouco mais. De um lado a arte de cura de Quíron, que se
esgota por falta dos elementos e ingredientes dionisíacos, no perigo de se
tornar um Quíron apenas um sacerdote asceta, que mantém a ferida em
aberto, e de outro a arte dionisíaca, que mesmo na solidão, no recuo até o
inferno, faz disso, com coragem e alegria, um algo que vai de encontro a
Prometeu, na esfera de um coração que ainda quer se manter integro e
intacto, com seu amor incondicional a humanidade, e manter seu presente
aceso, ou seja, manter permanente o fogo simbólico da criação, ou seja, da
capacidade de superação dos obstáculos, entre eles o ressentimento.

Se a chama ardente da vingança é bem diferente da chama criativa indica


que o afeto do ressentimento é apenas mais um dentre muitos outros
sentimentos, por isso Prometeu é quem foi resgatado, como perpetuador
desse fogo que consome toda a irritabilidade, as lembranças do para trás, a
melancolia vinda das feridas purulentas, em prol de uma descarga pelas
vias plásticas, seu consumo simbólico, por assim dizer, indicam ao menos,
os sinais indicativos para os que querem convalescer, os que querem se
libertar desse perigoso estado de alma.
Prometeu não reagiu, e nesta sua lógica, permaneceu a espera de uma
oportunidade, que veio com Quíron.
Se a liberdade de Prometeu representa simbolicamente o primeiro passo
para um convalescimento, isto equivale a dizer que Prometeu acorrentado
esperou (manteve sua potência) pacientemente sua libertação e Quíron que
por sua vez já aceitando a sua melancolia e uma não reação doentia, prefere
dizer sim a morte e não a uma decadência e impotência.
Tomar o seu destino, o que inclui espera ou mesmo a morte simbólica, é
uma tarefa para corajosos, pois esse segundo passo para o convalescer
supõe tomar a si mesmo como fado, como destino, e isto requer uma
sensatez de tomar o seu sofrer sem amaldiçoá-lo, de tomar a sua dor e não
intensifica-la ainda mais. Para Benjamin, para se perdoar é preciso a graça
de uma sublimação do sentimento de poder, e para Nietzsche a superação
da justiça da lei pela graça, ocorre numa transfiguração da força em beleza.
A beleza é uma questão portentosa, em Dostoievski, - O idiota – Nastácia
é a imagem de uma beleza sem freios, um tipo exuberante a beira da
loucura. Mas seria Quíron também, belo? justo esse centauro que detém

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uma ferida aberta pelo abandono da mãe, que o rejeitou? Em Nietzsche
talvez possamos encontrar uma espécie de redenção deste curador ferido.
O herói é descrito pelo filósofo como um tipo orgulhoso (altivo), preso em
seu estado primitivo da força, pois ele (o herói):
‘ainda não ensinou seu conhecimento a rir, sua paixão corrente ainda não
se acalmou na beleza’ o mais difícil para ao herói é, com a vontade
desprendida, é tomar o poder e torná-lo clemente, um vir aqui, para baixo,
torna-lo desprendido daquilo que lhe é mais caro: a sua imortalidade.

Em não podendo querer para trás, nem Quíron, nem Prometeu podem tomar
o tempo linear como aliados da vontade. Tempo é travessia, como foi o tempo
de Héracles e sua esposa tomada de assalto numa travessia de rio, feito pelo
centauro Nesso, barqueiro, cheio de sentimento de vingança contra o herói. O
que foi já era. Ao se acorrentar ao ‘era’, nem Quíron nem Prometeu podem se
movimentar. O acordo entre Quíron e Prometeu tem de se realizar em outras
bases, que não a da vingança sobre o que era, até um ponto a dizer sim a tudo o
que foi, a tudo como foi e para sempre será. Um amor fati, como diria Nietzsche.
A dor crônica tanto de um como de outro (Prometeu acorrentado e Quíron
ferido), é algo que não cabe permanentemente na psicologia dos herói
grego, pois essa condição é temporária, mesmo que isso represente séculos
a fio. Então uma solução deve ser apresentada, uma vez que torna-los
ressentidos de nada adiantaria. Zeus não poderia ser permanentemente o
agente causador da dor de Prometeu, nem Héracles ser acusado pela ferida
aberta de Quíron. Ficar entorpecido, paralisado, é para os homens, não para
os heróis. A ascese do herói via ressentimento não existe, e portanto, na
tragédia o herói passa necessariamente por outro caminho, que não esse de
manter-se sobre os grilhões do ressentimento. O ressentimento é para os
centauros filhos de Íxon, ou seja repetição da roda do mesmo, não para
Quíron de outra estirpe, que, não podendo se voltar contra seu pupilo, nem
contra a humanidade, prefere tomar o tempo linear com amor fati, sua maior
e mais nobre autoterapia. Só assim ao veneno da Hidra, alojado em suas
carnes, em seu corpo, pode se diluir em Pharmacon, em remédio para sua
cura de ferida aberta. Um impossível que se realizou.

Revisitação mítica do ressentimento

Na revisitação mítica, cabe aqui retomar o Édipo de Nietzsche (não ode


Freud), retratado em seu ‘O nascimento da tragédia’, onde se constata os
tremendos sofrimentos de Édipo, que agora, na condição de sem olhos

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(cego), é conduzido a contemplar seu próprio estado de alma, sua penúria
e miséria que o conduzem a um tipo de convalescimento sem igual.
Édipo é a imagem do que existe de mais horroroso na natureza. Qual
remédio encontrado por Édipo? Como Édipo consegue convalescer em
meio a um excessivo da chama da sua desgraça? Nietzsche aponta a
passividade contemplativa do herói, o momento limite, onde ele ‘alcança a
sua suprema atividade, que se estende muito além de sua vida...’
(Nietzsche). O que isso significa na perspectiva de um convalescimento?
Ao que parece, o incesto (na perspectiva de uma monstruosa transgressão
da natureza), deva forçar a compreensão de segredos (os mesmos que
Medusa guarda no fundo abissal de sua caverna) escondidos da natureza,
que apontam para a sabedoria trágica, lá onde Dionísio toca a ferida aberta
e questiona o saber anterior (como no caso de Quíron e Édipo), na lógica
dos sentimentos excessivos que, no limite, colocam o herói a beira do
abismo da destruição e a experimentação da desintegração dentro de si do
que este pensava ser a sua natureza humana. Esse limite, que é sentido e
não pensado, é a de perder-se a si mesmo, nas variantes que não cansamos
de apresentar: no limite, ou se mata, morre, enlouquece, e poucas vezes se
convalesce de si mesmo.
Um cuidado de si segue as pegadas dionisíacas de um tornar-se com a
própria natureza, ou seja, para além de um princípio geral de individuação,
para além de um insuflamento do eu, temos um encontro com os afectos,
com a descida até o Hades, ou seja, o enfrentamento do medo, um medo do
encontro do lado misterioso da vida, não apenas o seu lado sombrio.
Para além da condição meduzante de petrificação junto ao rochedo da
individualidade, Prometeu deu ao homem o fogo divino, a aptidão para o
trágico profundo, ou seja, uma aspiração ao titânico, que só pode ser feita
via transposição, que no mito é na forma de sacrilégio.
Em Édipo, a sua sabedoria foi capaz de decifrar enigmas o conduziu a um
sofrimento santo em que não é ‘olhado’ de cima e nem pelos que o
acolheram (Colono) como um castigo por sentir-se doravante infeliz. Até
mesmo porque sua transgressão é da ordem de um inconsciente que, no
caso de Prometeu não o é, pois o Titã escolhe deliberadamente fazer essa
ação, e sabe os efeitos da expiação dessa falta. Prometeu é sacrílego e deixa
essa reflexão que faz com Hefesto (o ferreiro que forjou suas correntes e
foi porta voz de Zeus em uma longa conversa realizada de sua prisão ao
rochedo), de que o que se recebe pela sabedoria (a aquisição das benécias
do fogo), é e só pode ser pago com um caudal de sofrimentos e pesares
(advindos do ato sacrílego). Mas, como vimos tudo isso tem fim, a

47
dignidade do ato sacrílego ganha a dimensão não de um pecado ativo ou de
uma ilusão mentirosa, como aponta Nietzsche, mas de uma contradição de
que fazemos parte, ou seja do que somos e do que podemos nos tornar.
Mas ainda é pelo dionisíaco, ou seja, pelas vias do coração e do
sentimento que o convalescimento ocorre, pois para além da reconciliação
entre o divino e o humano, está a simbólica de que o sofrimento não é eterno
(que transitamos pela doença e pela saúde). Tudo o que se abre ante o
rochedo das repetições o é pelo poder do elemento criativo, pelo que no
meio e entre os alelos possa acontecer, no fogo lento de tudo o que é novo
e diferente. O que acontece e se passa aí, ao meio-dia, no lusco fusco, entre
ambos os alelos (divino e humano), é algo de um plus, de um quantum
ligado ao mistério. É no meio de ambos que ocorre o revirão, o cruzamento,
a reconciliação, as dobras, o ponto de rubicão. Da batalha entre o humano
e o divino, nasceram a sabedoria trágica e a intuição de que a dor junto do
prazer formam esse portal mágico, por onde se passam os heróis míticos, o
Zaratustra de Nietzsche, e todas as máscaras e personagens conceituais que
afirmam a vida e o próprio convalescer como parte integrante da condição
humana aberta ao devir e a inocência.
Se Apolo dá uma necessária tranquilidade entre ambas as fronteiras, é
preciso lembrar que para se abrir um convalescer, para além dos efeitos
meduzantes (frieza e rigidez), a prescrição para essa doença que
compartilha o ressentimento como estado de alma, é necessário o
Pharmacon dionisíaco que é resumido no alerta nietzschiano:
‘Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente
justificável’ (Nietzsche, O nascimento da tragédia).

A dor como símbolo

A dor como símbolo do que somos, ou seja, contraditórios em nossas


possibilidades, torna as adversidades vivenciadas pelo indivíduo e pelo
coletivo, como partes integrantes do seu processo constitutivo, a saber:
tornar-se o que se é.
Isso implica em transitar pela saúde e pela doença, convalescer, renascer
tantas vezes quanto for preciso, numa única existência.
O símbolo da unidade (de poder afirmativo da vida), permeado e
abraçado numa amplo e irrestrito amplexo trágico, é um sentimento
poderosíssimo que nos reconduz ao nosso Self, ao nosso coração dionisíaco
e ao coração da natureza.

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A dor e o sofrimento não se curam somente com remédios, mas com a
reconciliação entre a justiça e a injustiça presente nos que sofrem e seus
diferentes motivos. Essa difícil relação pode ser simbolizada ainda na
figura das pulsões apolíneas e dionisíacas postas por Nietzsche em
constante luta, mas que nem uma suprimindo e matando a outra, há um
momento milagroso e frutífero onde: ‘Dionísio fala a linguagem de Apolo,
mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio’ (Nietzsche, idem).

O que padece, para além da divisão mente e corpo, é o que aqui designamos
de afectos, são os afectos (sentimentos) que se movimentam, se
convulsionam e se reviram dentro do coração simbólico. O que padece se
repete, rumina, faz mímica (uma sintomática dos gestos do
compadecimento, ou seja, daquilo que ficou e se fixou na memória e uma
vez superado e digerido, nos abre a possibilidade de sair da repetição, via
convalescimento). Algo fenomênico de que, voltamos a repetir, a
arteterapia poderia se apropriar com mais vagar e vigor. Uma arteterapia
aliada a musicoterapia para encenação e canto deste material vindo das
impressões e imagens afectivas, oriundas do corpo, na chave prazer e
desprazer que necessitam de transposições, de passagens metafóricas, para
serem aí sim intelectivamente compreendidas e digeridas e ou sanadas, para
não se fixarem no coração.
O que a linguagem do coração exprime, tem mais a ver com as imagens
intuitivas, com os signos e sinais de alguma coisa que possa ser simbolizada
previamente numa outra esfera que não a representação linguística e
conceitual (palavra), que é seu produto final e acabado. A isso Nietzsche
chamou de arte.
O convalescer necessita de uma força de fantasia, de criação artística para
criar novos símbolos, que transforma os sentimentos padecidos em
possibilidade expressiva, em uma disposição de querer continuar sonhando
um pouco mais.
Na doença chamada ressentimento de nada adianta desviar o sofrimento
da mente do sofredor, dirigindo essa descarga afetiva para o interior do
psiquismo, só faz, segundo Nietzsche processar um ‘entorpecimento da dor
por meio de um afeto’ (Genealogia da Moral). Sem poder renunciar ao afeto
(renuncia, santificação), cabe ao ‘homem do ressentimento’ um
fortalecimento.

O homem do ressentimento

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Em busca de uma reação espontânea e imediata.

Os afectos em Spinoza e Nietzsche

Os afectos não podem ser excluídos ou banidos do eu, das proposições da


consciência. Schopenhauer comenta que a apreensão objetiva e correta das
coisas que passam pelos afectos e sentimentos (paixões), distorcem o
conhecimento. É preciso manter, para alguns filósofos, a vontade em
silêncio, ou seja em grilhões. Um sujeito do conhecimento mantém preso
os seus afectos. É portanto, livre de todas estas peculiaridades. Ao contrário
de Schopenhauer, Nietzsche (Genealogia da moral) parágrafo 12 - 3 livro,
fala outra coisa, traz uma outra perspectiva, ou seja, ali se dá uma
valorização dos afectos. Um puro sujeito de conhecimento é fábula, na
visão nietzschiana, um olho interpretativo fixado sobre uma coisa.
Nietzsche fala de muitos olhares, múltiplos afectos, como condição mais
lata de conhecimento e não de sua impossibilidade. A riqueza dos afectos
produz efeitos generosos sobre os aspectos do ressentimento. O conflito de
todos esses afetos – rir, detestar (ODIAR), deplorar – produzem um
processo de ‘inteligir’, algo conciliador, de um certo arranjo dos impulsos
entre si e em constante combate. Inteligir é então a integração dos afectos,
quanto mais afectos mais conhecimento se faz, se processa. Somos
afectados por ideias e corpos. Os bons encontros, para além do ódio e
ressentimento, aumentam a potência do corpo. Ódio, ao contrário, é o
retorno do sentimento de tristeza, ou seja, expressão da impotência.

O sujeito do ressentimento – o estar doente como uma forma de


ressentimento.

O sujeito ao qual vamos nos referenciar neste ensaio é auto referente e


que se enxerga doente. Para se convalescer é preciso estar ladeado de
companheiros de viagem. Nietzsche era ladeado de espíritos livres e
Dostoievski vai até o subsolo para descrever um doente dos nervos. Para
isso é necessário um recuo e uma solidão.
Para se reagir a um estimulo, o sujeito tem modos diferentes de reação,
vide ‘O idiota’ de Dostoievski em que o príncipe recém chegado do exterior
e com pouquíssimo conhecimento da sociedade russa, é porta voz de
algumas situações críticas de um jovem irritadiço e que segundo su

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perspectiva, atravessa sempre o seu caminho (primeiros 9 capítulos da
obra). Gánia é um personagem comum e ressentido que acredita em sua
inteligência apolínea e observando a trajetória de seu pai fracassado, não
deseja repetir os mesmos erros e não se quer confrontado por alguém como
um príncipe idiota. Gánia ressentido e auto referente reage as falas do
príncipe alusivas a sua pessoa em tons variados, que vão desde a valoração
do ouro (quem é esse outro que me diz algo?) até a necessidade de retribuir
o que vem deste outro, em formas de ressentimento.
As auto encenações do ressentir em Dostoievisk, via personagem, como
o jovem ambicioso e utilitarista Gánia nos dão a ideia do sujeito plural ao
qual Nietzsche, por sua vez, também se propõe na sua busca estética pelo
pensamento que uma coração e razão. Um sujeito do pensamento para além
do conceito cartesiano (como representante de si e de auto constituição e si
mesmo), a produção simbólica de um sujeito, seu afirmar e negar
encontram solo mais rico na disposição múltipla, na ficção (para além de
entidades de causas e efeitos, de ações e reações para garantirem a
sobrevivência da espécie e preservação da vida) de um eterno fluxo de todas
as coisas, ou seja, na ideia de um sujeito perspectivista, de um sujeito
temporal que matura e digere lentamente seus estados de alma. Um sujeito
do convalescimento, sem a lei meduzante da paralização e cristalização
entre aparência e objetivação, sem as crenças metafísicas, sem a culpa e o
cálculo da razão, que conduze esse sujeito a uma possibilidade de
convalescimento, a saber, a uma consumação de seu ‘eu’ esgotado e fraco,
ou seja, a uma catástrofe de proporções trágicas. Os impulsos e afectos
entendidos via corpo, em Nietzsche, colocam o eu como mais uma das
unidades viventes do corpo e não a unidade vigente que onde tudo se dá e
acontece. Se existe vida para além de um único eu, e essa vida é inferida,
olhada simbolicamente como algo que foi sentido, desejado, pensado.
Sem convalescimento, o que há é doença, uma doença que uma chaga, já
vista por Nietzsche e que se chama niilismo.
Niilismo é meduzar, paralisar tudo o que é tipicamente humano, ou seja,
assassinar os espíritos livres, os companheiros de viagem, acessar a
subjetividade passa, portanto, pelo vivido, pelo experimentado alegre ou
sofrido do instante, onde tudo se dá e tudo se resolve.
Giacoia Jr comenta: ‘Vivência é um acontecimento vivido
imediatamente, corporalmente e m primeira pessoa. Na vida de alguém, um
evento torna-se vivência quando ocorre com intensidade e ressonância
capazes de torná-lo marcante, de significado duradouro’ (Giacoia Jr, A
escola de Kyoto e o perigo da técnica).

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Neste experimento (em seu sentido mais potente), se processa algo, algo
da ordem de um extralinguístico. Aqui estamos para além de um estado
egóico, por isso estas vivências processuais implicam o outro, como no
caso de Gánia e Míchkin, o príncipe idiota, que pra além do ressentimento
está interessado em Nastácia, a quem quer compreender afectivamente e se
comunicar em uma linguagem outra (que comporta um cuidado de si e do
outro). Nastácia é para Míchkin, um profundo encontro com sua vida, para
além da piedade, da dó pelo sofrimento que aquele rosto feminino expressa,
para além da face e da tristeza alheia, onde se esconde (via espelhamento),
a própria dor, para além de um sujeito egóico auto centrado, lá onde para
além de qualquer benefício próprio utilitarista, se dá a compaixão vista por
Dostoievski como experimento último que testa a nova saúde, que põe em
xeque todo o processo de convalescimento do príncipe estrangeiro.
Uma espécie de pergunta aberta sobre o para trás, sobre tudo o que já se
vivenciou e suportou. Desse para trás que ao invés de ressentir se ama.
Se ama para continuar vir a sendo inocente e continuar abrindo-se um
devir.
O registro sensório-corporal, para o homem doente, niilista ou ressentido,
tudo se dá e se passa como um para trás pesado e opressor, ou seja, o que
se experimenta agora é por meio de uma raiva impotente ou extravasada de
forma inadequada ou impotente ou ainda sentimento de resignação
(forçada, sem saída). O destino se torna fatalista ou um combate em que só
se resiste e se frustra ante os fatos do destino. Angustia é o resultado desse
embate. Para Nietzsche não se pode querer para trás, pois isso significaria
uma tribulação, um estado de alma tal que, só se poderia aplacar com a
ilusão de remover tais pedras passadas, por raiva e aversão, sentimento de
vingança, contra o tempo ou por impossibilidade de poder suportar seus
efeitos (o que já passou, já era). A vingança acorrentada ao que era, nos
remete a Prometeu, que ao doar o fogo criativo aos homens, recebe seu
karma-samsara.
Ao sujeito, nem tudo depene de sua vontade ou desejo, pois querer o
instante é admitir o sombrio, o cosmológico, o inconsciente, o fatum, o
destino, e tudo o que, não cabendo na linguagem, se faz como a condição
humana, como fado, como o que somos e naquilo que, desde tempos
imemoriais, nos tornamos.
Prometeu só pode sair de sua punição porque um outro assumiu o seu
lugar, mas a roda de Íxon continuou a girar, com seu ciclo agonístico de
grandeza e miséria, alegria e tristeza, agonia e êxtase, que no limite, diz de
uma uto-supressão da roda, do desejo de vingança, da vontade como poder,

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que ao tornar-se impotente como vontade abre o homem a algo. Algo para
além do para trás, do sofrimento, um para além do homem, do sujeito, algo
da ordem de uma outra força, de um outro poder, de um devir de
reconciliação com um todo e sua parte, de uma singularidade ante o
universal, algo ainda inominável.
A expressão do todo em mim e por mim é uma expressão da presença de
Dionísio, é ainda ‘O idiota’ de Dostoievski, que ao superar o ressentimento
da jovem da aldeia suíça, nas figuras do padre e do professor, volta a Rússia,
e ao dar de cara com um novo tipo de ressentimento – o de Gánia – a faz
entrar num patamar acima do espírito de vingança, que é o de Nastácia, que
não arrefece, não faz acordos nem procrastina, só avança inexoravelmente
ao seu fado, a um combate onde só é resolvido na chave de um assassinato.
Fica, portanto ao leitor atento, imaginar como o embate seria resolvido,
pois para além da própria compaixão está em como e em que chave o
ressentimento pode ser resolvido. O fatalismo russo propõe a resolução do
ressentimento em que tudo fere – como no caso de Gánia – já doente e
ressentido, escolheu ficar na doença, agitado, nervoso, irritado, esgotado,
até que ao ingerir um grande remédio, deixa de se revoltar. Preso em uma
aceitação muda, prefere não mais reagir.
É o caso de Prometeu acorrentado, que depois de muito reagir contra os
desígnios de Zeus, se deixa bicar pelo abutre, e de tanto se envenenar pela
bílis no estomago, fica a espera de um milagre (que acontece de fatum,
quando Quíron troca de lugar com o Titã). A proibição da reação ressentida
ao doente, é, para Nietzsche, uma prescrição, uma higiene (como fazem os
budistas), uma coisa que também o príncipe começou a fazer com Nastácia,
para que ela pudesse terá chance de convalescer: nunca se afastou, nunca
fez dela uma inimiga a ser combatida, como fez Rógojin, que terminou sua
paixão com a solução do assassinato.
Para sair de uma coisa assim, não basta assassinar, por término na vida
que incomoda, que prende, sair ileso, poupado, num sistema de usura, pois
ao querer proteger Nastácia, o príncipe Míchkin, não pode impedir nem sua
morte, nem reverter seu assassínio de seus desígnios, na medida em que
tudo gira nesta roda de Íxon, pois – ‘eternamente rola a roda do ser. Tudo
morre e tudo volta a florescer; eternamente corre o ano do ser’ (Nietzsche).
Giacoia propõe neste sentido: ‘somente Eu, em cada aqui e agora, sou
unicamente responsável por tudo aquilo que aqui e agora penso, sinto e
faço’ (Giacoia Jr idem).
O sentimento de opressão (príncipe), punição (Gánia e Rógojim), na via
ressentida ganham contornos existenciais dramáticos na pena de

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Dostoievski, e deixam evidente que a vingança jamais deixará rastros de
riqueza do espirito por onde passar.
A superação do niilismo, como passo do convalescer, do momento
decisivo em que se perde os valores, da negação da vida, da falta de
horizonte, da depreciação do corpo, em que se faz um sacrifício em
demasia, em seu máximo (Prometeu), traz a questão de alguma capacidade
por vir, de um olhar outro, que possa enxergar um novo horizonte, de ao
dissolver as interpretações de algo, uma ou todas as representações, uma
aurora surja, inventando um novo sujeito, com seus signos de um vir-a-ser
ainda não significados, não nomeados, recriado pelas cinzas do Titã e com
o coração inocente de Dionísio.
Uma subjetividade que pede ao Eu, escutar Dionísio, e quando essa
ventura acontece, uma ventura esmeraldina, algo se dá, a saber, a saída da
doença, a abertura labiríntica a uma simbólica tal que, despedaça.

MODOS DE AFETAÇÃO

Utilizando dos personagens de Dostoievski, podemos dizer que: A


disposição de Gánia é, com relação ao príncipe, vista sob diferentes
perspectivas fisiopsicológicas:
1- Reativa
2- Passiva
3- Ativa

A atitude reativa tomando Gánia como exemplo, é quando este se sente afetado
pelo príncipe na medida em que este relata os acontecimentos recém passados na
casa da generala e quanto ao bilhete que este mandou entregar a uma das filhas
dela. O relato é tido como inconsistente, ruim, e o príncipe nomeado de idiota. O
não fazer as coisas como manda, e a não resposta ao seu bilhete, são sentidas por
Gánia como ofensa, agressão que recai sobre a pessoa do príncipe. Gánia, um
tipo irritadiço e doente do ressentimento, descarrega sua frustração, mágoa em
cima de quem lhe pareça inferior e mais fraco.

A atitude passiva é quando já uma primeira vez, o príncipe é chamado de idiota


por Gánia e deixa passar, pois é recém chegado do estrangeiro, e portanto opta
em não responder a ofensa. Para as pessoas comuns, esse tipo de atitude pode ir
se acumulando e se somando a tantos outros acontecimentos em que não se
responde nada ao ofensor, mas gera, ao longo do tempo, o ressentimento.

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A atitude ativa e que simboliza a atitude saudável, que mais interessa a saúde
mental, é quando o príncipe esquece a primeira ofensa (portanto não acumulou
essa ofensa dentro de seu psiquismo) e na segunda vez em que foi ofendido é
colocado na situação de que já é possível entender que o encontro com Gánia se
torna desagradável, portanto, um mau encontro, e propõe que cada um vá para o
seu lado (um a esquerda e o outro a direita). O príncipe chamado de idiota, não
quer ser julgado como tal, e ficar preso nesta roda de julgamento e de reação de
seu recém conhecido, e faz o que tem de fazer, ou seja, sair do mau encontro.
Mas as desculpas de Gánia o fazem reconsiderar. Nem sempre é tão simples e
fácil recusar os maus encontros.

Para tanto, só desculpar não é suficiente, pois quem recebe uma ofensa, sem
que isto o conduza a uma batalha de vida e morte contra seu agressor, que o
perdoe, é preciso ainda manter a dignidade do príncipe, para que o poder ativo
do esquecimento seja feito em termos psicológicos, pois o acúmulo de ofensas e
a respectiva memória disso resultam em efeitos deletérios a alma, ou seja, em
incapacidade de digerir as ofensas diárias a que estamos expostos em nossos
diferentes encontros. A incapacidade de digerir tais encontros, podem tornar
algumas pessoas em disposição de animo fraca, comprometida pelo veneno
corrosivo de se sentir impotente, ou ainda instável em sua constituição psíquica.
Este é o caso de Gánia.
O príncipe, ao contrário, esquecendo as ofensas e escolhendo permanecer ao
lado de Gánia, lhe oferta o remédio correto para que possa abrir um
convalescimento de si, tornando-se seu espelhamento, seu ponto de vista e de
apoio favorável a continuar caminhando em busca de vida e potência de agir.
Dostoievski nos apresenta muito bem esta inversão de valores no caso das
relações afectivas entre o príncipe e Gánia, pois Gánia que poderia ser
considerado o elemento forte desta relação, que exerce seu poder utilitarista e
ditatorial, impondo ao outro sua vontade, é na verdade o elemento mais fraco,
pois é incapaz de esquecer, de não querer retribuir a pretensa ofensa ao outro,
elaborando sempre um plano oportuno de vingança. Incapaz de gerar uma força
plástica de esquecimento, vive por este outro apetite de poder, de tornar seus
encontros em momento reativo.
Então o que temos é uma regra de outro para a saúde mental:

‘Quanto maior a força plástica utilizada para um esquecimento, seja ele qual for,
maior e mais inteira é a sua assimilação, evitando-se assim um ressentir-se e em
agindo assim (corporalmente - fisiopsicologicamente) maior e mais inteira
permanece a constituição psíquica sadia’.

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Esquecer – que é diferente de perdoar – é uma pedagogia das forças ativas que
podemos vivenciar e guardar como memória forte daquilo que podemos nos
tornar e não como fez Gánia, em acolher tudo o que chegou de seus encontros
ruins como algo que penetrou na sua consciência e lá ficou, sem digestão. Um
pouco de sossego a consciência faz bem, diria Nietzsche, mas aqui podemos dizer
um algo mais, ou seja, um pouco de recuo e solidão voluntarias, também é bem
-vindo, pois o novo necessita desta solidão, da possibilidade de, como vimos
acima, de dar a ordem psíquica uma oportunidade única, uma possibilidade de
convalescer, ou seja, reaver sua jovialidade, felicidade, esperança, orgulho, de
como frisou o filósofo alemão, reencontrar uma nova saúde, de dar conta de
novamente enriquecer os signos e sinais vindos de Dionísio.
Para que a formulação de Giacoia que apontamos logo acima do texto (somente
eu, em cada aqui e agora, sou responsável pelo que penso e sinto) faça ainda mais
sentido, é preciso dizer que o presente, ou seja, o permanecer de corpo e alma no
aqui e agora, é uma pedagogia que só pode funcionar com o esquecimento do
para trás, e conforme preconiza a gestalten psicologia, também não deve se ater
ao futuro (gerador de ansiedade e angústia). Para trás é o moinho precursor dos
ressentimentos e para frente é o dispositivo genealógico que ilude e engana a
pessoa em torno de uma metafísica doa atos e valores considerados bons e maus).
Temos assim uma completa e mais significativa formulação de saúde mental para
tratar o passado e o futuro, em termos mais latos do que só a passagem do tempo,
e amplificando o que podemos tratar num para trás – todo o universo do
ressentimento – e num para frente – todo o universo da moral da salvação e
justiça divina.

Toda a gama de inversão de valores já descrita por Nietzsche nos coloca diante
de graves problemas de saúde mental, pois uma coisa é ver e enxergar o outro
como estimulo para que se possa dizer sim ao mundo, ao outro, a vida, na
complexidade em que ela nos traz as dificuldades e os problemas, e outra coisa é
ver e enxergar o outro como inimigo, como obstáculo negativo, em que nos
atravessa a vida e o viver.
Em termos fisiopsicológicos, como apontamos aqui, podemos dize que o
ressentimento é sempre, tanto para o homem moral e tanto para o homem doente,
uma forma de agir danosa, para si e para os outros, e por isso encerra as duas
perspectivas, a saber, um problema coletivo, de praga ou chaga emocional
(dentro da psicologia social), e um problema psicológico para o domínio de si
próprio, na medida em que o conhece-te a ti mesmo, fica comprometido pela
aquisição de saberes e práticas de si que não sabem operar dentro deste campo

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simbólico de abrir para si um convalescer, uma possibilidade de desenvolver sua
capacidade criativa que de conta de seu agir e de seu viver.
O que nos entristece não se resume as ofensas e humilhações sofridas, mas em
não poder digeri-las adequadamente. Para tanto é preciso separar o joio do trigo,
ou seja, aquilo que registramos afectivamente, se é o caso de permanecer tempo
em demasia com conteúdos ruins e que se tornam, ao longo do tempo, em
memórias fardos(as), pesadas, em cruz a ser carregada.
Para os parâmetros de saúde mental, de uma saúde fisiopsicológica, tomemos
ainda a escrita de Maria Rita Kehl:
‘O ressentimento é uma doença que se origina do retorno dos desejos vingativos
sobre o eu. É a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores
positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica eternamente condenada ao
não esquecimento’ (Kehl, ressentimento).

O mito de Prometeu nos diz sobre essa experiência quase que eterna de
permanecer ressentido com Zeus, em bloquear sua capacidade criativa, a partir
de sua doação do fogo aos homens, como se o próprio Prometeu, não se sentisse
agrilhoado e a aprisionado por Zeus, mas como se a sua fonte geradora de vida
(pois foi ele que criou os homens), ficasse estancada, incapaz de gerar qualquer
outra coisa que fosse da ordem de uma nova criação. Por isso se sentia, tal qual
Quíron, como morto em vida, com uma ferida incapaz de se curar. Ambos sem
devir, Prometeu e Quíron viviam a vida do para trás, da recordação de eventos
que já tinham outrora, realizados. Sem possibilidade de renovar a si mesmos nem
suas ações, o que restava era esperar o tempo fluir, e ver o tempo fluir sem riqueza
simbólica, gera ressentimento, ódio, espírito de vingança.
A diferença possível entre Quíron e Prometeu seja talvez que o primeiro não
possa ou queira esquecer sua memória efetiva de curador e que doravante é
incapaz de curara si mesmo, e o segundo que esquecendo sua punição no caucaso,
pode voltar a criar novamente.
A chave do problema do ressentimento que nos conduz a Quíron e Prometeu
talvez esteja na questão da impotência de Quíron ser mais profunda do que a de
Prometeu, no sentido de que Quíron está isolado e limitado no interior de sua
caverna e sem poder realizar o que mais deseja, de forma plena e integral, ou
seja, curar. Então prefere devolver a Prometeu sua potência, pois sabe que no
Titã, a ferida irá cicatrizar, após sua libertação do monte caucaso, onde jaz
aprisionado. É o mesmo movimento ativo de Filoctetes que, após se ressentir
com Odisseu, consegue fechar sua ferida do calcanhar em luta, em combate
contra os espartanos.

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Prometeu é menos frustrado do que Quíron, pois sabe que o fogo ofertado é
válido pela eternidade humana. Quíron não pode se vingar de Héracles (por tê-lo
ferido acidentalmente), nem viver uma vida plena, por isso não pode mais
continuar sendo ressentido e prefere a sorte dos mortais, ou seja, a morte como
fechamento de seu ciclo de quantidade de força dirigida ao homem (poder de
cura). Nesta perspectiva o movimento para fora, de cura, se volta para dentro, e
ao retornar para dentro produz um cisma, uma introjeção funesta, que o mantém
tão preso como Prometeu acorrentado.
Em saúde mental não é raro os casos de crises diversas, tais como os de
ansiedade, depressões que tendem a possuir uma raiz de ressentimento, e que
gravados na memória, retornam a mente sem cessar. (vide meu relato sobre o
caso do homem que vestia-se de preto – um luto ressentido).

Esquecer ou perdoar?
Ambos?
O mundo cristão ocidental oferece o perdão as ofensas como chave do
ressentimento, via o amor aos inimigos. São várias as passagens evangélicas em
que se pede para não resistir ao mau e oferecer a outra face ao inimigo. O amor
pelo diferente, no limite, conduz o homem cristão a um paradoxo: como amar
aquele que matou meu filho, que assinou meus parentes? Ou ainda quem estuprou
uma criança? Abrigar e amar o mau em seu próprio coração, é algo, em sua
maioria, da ordem de uma impossibilidade. Hanna Arendt tentou avaliar o grau
de maldade humana via holocausto judeu, na Alemanha de Hitler. Os crimes de
guerra, cometidos quando se suspende a lei, em estado de exceção, constituem
num capítulo à parte deste nosso ensaio. A lei, a sua definição jurídica, pressupõe
uma contenda, um inimigo que se desvia dela. Por isso o pune.
Mas a questão por ora é que o amansamento do coração humano, via oferta
cristã, é, do ponto de vista de saúde mental, pouco eficaz, ou seja, é melhor
entender as afecções, do que tentar fazer de conta que se perdoou o outro 7 x
setenta vezes.
No caso do holocausto, a preocupação era destruir o judeu ambiciosos,
devorador de riquezas alheias, e isso tornou o agressor em um tipo de homem
que simplesmente se preocupou em destruir, na ficção de uma Alemanha forte
seria reerguida e criada neste lugar de destruição e poder de destruição em massa.
Mas a capacidade criativa é coisa outra, e nunca se manifesta somente no caos
e destruição. O fogo criativo é da ordem mítica de Prometeu, que resgata a
capacidade criadora fora do âmbito do ressentimento contra Zeus, e o fogo que
consome e maltrata os cristãos são da ordem do Deus ressentido, e por isso não
se trata só de abrir mão da vingança, mas de agir conforme uma exuberância, que

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implica um mundo outro que, diferentemente do mundo cristão, alicerçado sobre
a promessa de punição dos pecadores, se age não contra os ofensores, mas em
fortalecimento dos afectos que aumentam a potência do agir.
Para que todos possa se tornar livres e criativos, a relação entre eu e o outro
precisa também mudar de bases, ou seja, mudar a chave utilitarista para a chave
inocente, principesca (como no caso do idiota de Dostoievski), onde se resgata
algo da sabedoria trágica, que aproxima os homens numa mesma unidade
comum, e onde os sujeitos sejam capazes de deixar suas forças excessivas
seguirem o fluxo dionisíaco de tomar algo para si (como um acontecimento), e
fazer disso uma algo novo. Mas como dissemos o novo não pode advir somente
de uma simples destruição. O caos e a destruição fazem parte de uma processo
mais amplo que inclui o convalescimento, o deixar um para trás de lado e ir até
o inferno, por meio de um recuo e uma solidão necessários, para só depois tornar-
se o que se é.

A morte de Deus

Em meu ensaio sobre as duas solidões de Zaratustra apontei para uma


importante problemática que está ligada ao ressentimento, ou seja, a de que para
convalescer é preciso ainda nesta volta para trás, que é um movimento não só
subjetivo e pessoal, mas coletivo, passar pelo luto da morte do Deus cristão, pois
só assim Zaratustra pode dizer algo sobre um renascimento dentro do pathos
trágico, que é nossa referência maior.
O voltar para trás, num recuo e solidão amplificados, ou seja, pessoal e coletivo,
nos tiras as bases do que Somos e do que temos nos tornado. Sem as bases que
formam a pretensa subjetividade (Eu sou), e sem os papéis aos quais nos
moldamos, e finalmente sem um Deus cristão para nos conduzir, o que sobra?
O que resta não são as estranhas figuras compensatórias advindas da solidão,
mas o surgimento de companheiros de viagem (aquilo que o psicólogo suíço C.
G. Jung chamou de personalidade n 2), o fato psicológico da morte de deus abre
mais uma porta para o convalescimento, na medida em que a perda de um modelo
ou de uma orientação estável para o mundo ocidental, deixa aquela ideia da qual
dissemos, ou seja, a de a solidão e um recuo não são uma descida caótica até o
inferno (Hades), mas uma espécie de condição para que se processo a criação, a
abertura para um inocente devir, ou ainda se processe a possibilidade de
experimentar em outras bases, o que ainda cada homem não viveu, não
experimentou, não desejou, e ainda quer experimentar, desejar, e sonhar um
pouco mais.

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Descer até o Hades não significa encontrar lá os inimigos, os fracos, os
decaídos, mas ao contrário, é uma descida em que ali se trava um combate entre
iguais, entre opositores que necessitam de uma medida, e esta medida é, em nosso
caso:
- Tomar o ressentimento como problema. Um problema de chifres, que demanda
uma pergunta sem resposta.

É num recuo e numa solidão, com a ajuda de companheiros de viagem que se


abre essa possibilidade de digerir os afectos duros gerados pelos estímulos
reativos e rancorosos e de outo lado, abre-se uma práxis coletiva, onde a
compaixão, o compadecer-se do outro que ‘pratica o mal’ dá a possibilidade não
de amá-lo sem limites (incondicionalmente), mas de tomá-lo como esse inimigo
trazido a uma proximidade tal que, sem poder querer eliminá-lo, nem subjuga-
lo, é preciso andar em uma distância de proximidade em que ambos sobrevivam
e façam acordos, mesmo que provisórios. Tomemos uma vez mais Prometeu, e
seu inimigo figadal – Zeus -, que desfez um acordo em troca de outro, que restitui
a Prometeu seu lado criador. Assim é também com Dostoievski, que põe lado a
lado o príncipe Míchkim e seu opositor Rógojin, na disputa de Nastácia.
A capacidade de resistência – resiliência – é um tema que implica a capacidade
não só de assimilar os golpes e aprender com ele, mas que mesmo na adversidade,
é possível ainda perspectivar. Resistir e perspectivar são capacidades simbólicas,
que aumentam a potência de agir e a alegria de querer continuar sonhando um
pouco mais, esperar e até mesmo esquecer o tempo linear em prol de uma
superação e até mesmo renascimento ante o que nos torna doente, num estado de
alma passivo e triste.

O ressentimento ante as capacidades simbólicas

Symbolon significa os signos e sinais de um reconhecimento. Um


reconhecimento de algo afectivo, ou seja, de tudo aquilo que nos une e ao mesmo
tempo pode nos separar. Por isso ao símbolo está presente nos momentos limites,
e dentro do processo de ressentimento. Pelo símbolo podemos construir e
constituir as imagens afectivas ligadas a uma tendência humana que é o ressentir-
se. Os signos e sinais empregados para se reconhecer a doença que é e se tornou
o ressentimento (em perspectiva coletiva), nos conduzem não propriamente dito,
a uma história do ressentimento, mas a um imenso e intensivo processo de doença
que resultou num modo de vida e de viver dilacerados. Dilaceração entre ser e
vida, entre conteúdo e forma, entre romantismo e pessimismo.

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Goethe separava os homens sadios pertencentes ao período clássico e os
doentes no romântico. O tipo romântico, fraco, portados de mascaras idealizadas,
se contrapõe ao tipo clássico, grego, cuja forma nobre significaria ter alcançado
um máximo na energia dos signos, o que equivaleria a dizer um homem ‘incitado
a máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas, algo jamais
experimentado...’ (Nietzsche, O nascimento da tragédia: 32).
Este homem novo apareceu nas máscaras dos heróis trágicos, nos heróis que
sentiram ressentimento e tiveram de se ater com ele, ou seja, simbolizá-lo em
metáforas novas, em ações dionisíacas por excelência. Ações que Nietzsche
talvez tivesse nomeado como pessimismo dionisíaco.
O pessimismo de Sileno é direto: ‘- Não ser nada ser e depois disso morrer
logo’. Então o problema não está no ser, mas num tornar-se. Se os gregos tinham
necessidade da tragédia, partindo de suas misérias, o pessimismo dionisíaco
parece ir além disso, ou seja, para além de uma necessidade, de uma propensão
intelectiva para o duro (sofrer e pesar), para o problemático da existência (o mal-
estar do ser no mundo), temos ainda algo que é da ordem de uma
superabundância. Mesmo diante da dor e do sofrer existe um plus, ou seria a
superabundância que geraria um sofrimento?
A dor como um teste, como inimigo desejado, o mais desejado. O signo é
traduzido como uma vontade de trágica e de pessimismo, que o homem nobre
carrega no peito. Armas simbólicas para combater o pior inimigo: as forças
ressentidas.
Coragem e o orgulho. A mesmo coragem que Nastácia (heroína de O idiota de
Dostoievski, usa para romper seus grilhões em sua festa de aniversário onde seria
dada em casamento, e o mesmo orgulho que a faz recusar um cuidado do príncipe
que deseja convalescer ao seu lado (casando-se com ela). Ao querer livrar-se do
pavor e da compaixão oferecida pelo idiota, Nastácia não se purifica de um afecto
perigoso, escolhendo o devir rua (o outro pretendente chamado Rogójin), ou seja,
um certo prazer em se destruir, o que é um signo e sinal do convalescimento.
Coragem e orgulho para suportar o que se pode empregar em seu proveito, num
sentido totalmente outro que não sendo utilitarista, é um ‘eterno prazer do devir
mesmo’ (Nietzsche). O dionisíaco como símbolo de algo que cura, que é
destinado a um cuidado de si, de uma vida que quer bons combates, e que toma
o sofrer do ressentido (empobrecido de vida) e o conduz a um novo patamar: o
da superabundância, a visão e ao conhecimento trágico da vida.
Se, por um lado, uma mulher como Nastácia foge de todo ideal romântico,
como uma espécie de enredamento numa autocondenação e desprezo de si, por
outro, sua grave enfermidade, sua crise a remete a um doentio desprezo pelos
homens, sua febre e sua fuga de casa a torna uma louca demasiada clarividente,

61
e por isso recusa um príncipe romântico, deixando de olhar a altivez de um
homem nobre, fazendo a diferenciação do homem que nunca havia falado assim
com ela, ou seja, como uma pessoa portadora de uma beleza que une dor e
abundancia.
A convalescença assim é uma ponte, que num processo, toma a doença que é
traduzida como a necessidade de cuidados para um outro lado, que é a abundância
de vida ou de saúde. A convalescença abre as possibilidades e as riquezas de um
tornar-se, dá a vida e o viver um novo impulso, necessário a um olhar que,
embebido de sabedoria trágica, criam novas realidades, outros valores, para além
do sofrimento e da dor em si mesmas. Por isso Nietzsche avalia que o ponto de
vista budista é superior ao cristão, por dar ao sofrimento um devir (Sansara).
Se Nastácia fica no meio do caminho, entre a dureza do olhar a vida e a ilusão
de felicidade com o ganhar a rua com um mujique, é porque ela mesma procura
uma redenção de si, uma convulsão e uma loucura no amor mais bruto e
primitivo, onde se vê naquele exato instante em que tem de decidir. Sua redenção
é a morte, e o morrer pelas mãos de outro, que a ama e é capaz de findar seu
sofrimento incomensurável.
Nastácia tem fome de liberdade, e desse excesso quer se tornar criadora de sua
nova vida de seu destino. O ser de Nastácia cindiu, esquizofrenizou-se em prol
de um devir incondicional. Porém, ela o faz sob o vínculo de um amor doentio,
de um homem embriagado e que quer toma-la a qualquer custo, que quer fixa-la
num retrato, numa bela a ser contemplada para todo sempre. E Rogójin fará isso
mesmo, ao matá-la em plena jovialidade.
Nastácia não quer dar a honra e prazer de ser aceita pelo príncipe, que lhe
oferece um amor calmo e prenhe de futuro. O empobrecimento de sua vida, se
deu por ser enjeitada, por acumular raiva e ódio desse afeto cujo efeito é uma
vontade louca de destruir tudo a sua volta. Fica em dúvida quanto ao príncipe,
como um idiota poderia trazer tanta riqueza em sua vida? Riqueza riquíssima,
simbólica, mesmo sendo através de uma negação destemida e que se alia a
companheiros de viagem duvidosos (perigosos seria a melhor expressão), e que
procurando uma renovação de ares e de pensamento, tem de lidar com seus
afectos poderosos, dissonantes, que mudam de gradiente a todo momento,
pendulando do príncipe ao mujique. Para se tornar um espírito livre, Nastácia
ainda necessita de um convalescer, de fazer algo parecido com que Jung fez
consigo mesmo, nos anos difíceis de separação com Freud e sua posterior descida
ao inferno (Livro vermelho): ‘Na medida em que conseguia traduzir as emoções
em imagens, isto é, de encontrar as imagens que se ocultavam nas emoções, eu
readquiria paz interior’ (Jung 2006: 212).

62
O símbolo vivo para Nietzsche é o seu Zaratustra, um de seus potentes
companheiros de viagem, e para Nastácia isso se deu no jogo de oposição entre
os afectos vindos do príncipe e de outro lado (opositórium), vindo de Rogójin.
Então temos os símbolos cheios de significações, repletos de uma riqueza
dionisíaca que procede diretamente do coração. É no coração simbólico de cada
um que se elabora não só os grandes pensamentos, comungando a conexão entre
razão e coração, mas é no coração dionisíaco que os afectos se resolvem ou não.
Mas é ainda necessário que esse mesmo coração não esteja antes de se chegar
a este ponto de conexão – razão e coração – cheio de gravidade, ou seja, uma
seriedade enganadora, que são – para Nietzsche – ‘as insígnias da vingança e do
ressentimento, voltados contra os sentidos, o corpo, a transitoriedade, a dor e a
morte, isto é, contra todas as potências do falso, do transitório, do simulacro, das
aparências ilusórias, da insensatez e da desmedida’ (Arte e filosofia: para uma
crítica dos ideais ascéticos Giacoia Jr. : 198).
O símbolo vivo, é aquele que sabe rir de toda seriedade e pesadume, sendo que
o maior dos pesadumes é o ressentimento. Nenhuma educação toca nesta questão,
a saber, a de se preparar para lidar com o ressentimento. Mesmo na Grécia antiga,
o futuro soberano não tinha a menor ideia de como trabalhar com essa poderosa
e funesta emoção. Os afectos são a parte integrante do que somos e do que nos
tornamos, e uma ponte para atravessá-las se faz necessária, sob pena de como
funâmbulo de Nietzsche (Zaratustra), cair no meio da praça, tentando fazer o seu
oficio. Para se ver no olho as labirintos e meandros do ressentimento, do que ele
é capaz, é preciso saber rir e dançar. A troca da ira pelo riso é ainda o melhor
pharmacon. Pois é preciso matar o espírito de gravidade. Zaratustra: ‘quem quer
matar mais completamente, ri’ (Nietzsche, assim falou Zaratustra). A missão de
quem se tornar livre e sem um pesadume, é lidar o quanto antes com o seu para
trás, retirar dele toda a seriedade rir, rir inclusive de suas próprias maldades, pois
‘no riso tudo o que é mau se acha concentrado, mas santificado e absolvido por
sua própria bem-aventurança’ (idem, ibidem). A bem-aventurança é ir, seguir
sem esse peso, por isso Cristo dizia a seus pecadores, vai e não peques mais.
Sem o pesadume da verdade, uma vez que ‘ilusão, cegueira, velamento, delírio,
engano, transfiguração, falsidade, erro, integram as condições da vida em geral,
então a crença no valor incondicional e exclusivo da verdade e a vontade de
verdade a qualquer custo não encontram justificativa num cálculo utilitário, cujo
resultado determinasse a absoluta e exclusiva necessidade e utilidade da verdade
para a vida’ (Giacoia Jr. Transformação: 99).

Ressentimento e orgulho

63
Tomando o mito e Ajáx como referência, tudo se dá quando da morte de
Aquiles e para quem suas armas (elmo, escudo e lança) serão destinadas. No mito
de Filoctetes as armas (arco e flecha) são destinados em vida ao jovem
companheiro de Héracles que o segue até o monte onde fará sua auto-imolação.
Mas é Odisseu quem irá sequestra-las na luta contra os Troianos (mesma guerra
onde Filoctetes luto com as armas de Héracles, após o impasse com Odisseu). É
esse mesmo Odisseu quem vai ser outorgado as armas de Aquiles, já morto.
Então foram os gregos, o alto comando grego, quem destinaram a posse das
armas de Aquiles ao maior herói da guerra, que como vimos, é o famosos
Odisseu.
Ajáx, tomado de despeito por essa ação, ou seja, se torna imediatamente
ressentido por essa desconsideração, humilhação e até mesmo ofensa por não ser
ele mesmo o fiel depositário destas armas. Da mesma verve que Aquiles, ou seja,
também propenso a uma raiva desproporcional, descomedida, e pelo orgulho de
saber vencedor, Ajáx talvez tenha imaginado em seus sonhos, que poderia se
equivaler a ele em ira, beleza e orgulho. Mas o fato é que Ajáx pensou, a partir
de seu ressentimento, em se vingar de Odisseu e Menelau mais Agamenon
(comandantes gregos) _ que já haviam se desentendido com Aquiles em vida por
conta de prêmios de guerra – e enlouquecido e alucinado passou a executar seu
plano de vingança imediata.
Saindo a noite e dissimuladamente, Ajáx chegou até as tendas dos chefes da
armada primeiramente, mas foi iludido pela astuta Atena, que lhe lançou sobre
os olhos uma ilusão sagaz que lhe desviou o intento ressentido até os rebanhos
ali perto. Atena, protetora de Odisseu pede agora que ele testemunhe o ataque
furioso de Ajáx aos rebanhos e não tema esse denúncia, pois uma vez mais irá
protegê-lo da fúria assassina de Ajáx, pois ‘desviarei de ti o seu olhar e não serás
reconhecido’ (Sófocles, Ajáx).
Atena é a maior incentivadora de Odisseu a tramar contra Ajáx, que soube bem
o que é se envolver em tirar as armas de Filoctetes. A deusa fomenta a inimizade:
‘Zombar de um inimigo é doce zombaria’. Mas trata-se de um homem louco, não
de qualquer loucura, mas aquela que advém do ressentimento, ou seja, de uma
espécie de loucura que até Odisseu tem medo, pois sabe que nesta loucura do
ressentido, o ódio é multiplicado as alturas, e de tudo é capaz de fazer o jovem
Ajáx contra até mesmo um sabido herói grego. Mas a deusa sempre coloca
garantias: ‘Ele não te verá, ainda que estejas perto’. Odisseu fica do lado de fora
da tenda de Ajáx, para escutar sua conversa com ele. Agora Odisseu é única
testemunha de um crime contra os animais e da conversa da deusa com Ajáx. Um
lugar privilegiado de escuta, a ser considerado.

64
A deusa astuta, entra na tenda, usa a métis (astúcia), se diz sua aliada, pergunta
se todos estão mortos, e ele diz que sim, e pede em seguida para que lhe tirem a
s armas, ou seja, sua sede de vingança havia cessado. Mas a deus instiga o jovem
a retomar seu ressentimento ainda vivo, apenas mitigado, pois ainda falta um, ou
seja, falta a vingança final contra Odisseu.
Na cabeça louca de Ajáx, Odisseu se encontra preso em uma pilastra e vai ser
açoitado até a morte. O diálogo entre a deusa e o jovem herói termina – com a
promessa dele de matar o último inimigo - e esta volta-se novamente para fora
da tenda, quando Odisseu percebe que o destino do outro (herói como ele), pode
também ser doravante o seu. A deusa diz que ele está certo e sendo assim evite a
soberba, o orgulho, para nunca dizer quaisquer palavras insolentes contra os
deuses. Mas todo herói tem seu calcanhar de Aquiles, e o de Odisseu era
exatamente esse: o de se exalçar, engrandecer-se agora mesmo pelo uso das
armas de Aquiles (como fez com Filoctetes).
O coro da peça de Sófocles entra e diz que paira sobre a cabeça de Ajáx muitas
calúnias, e ele sabe sobre esse perigo maior que o espreita. Em sua jovem cabeça
fica a ideia de que o caluniador é o próprio Odisseu, motivado por inveja. O coro
pede uma ação imediata de Ajáx, uma contra partida a Odisseu e aos deuses, que
ele saia de seu recuo e solidão e aja. Pois a condenação a morte é inevitável.
Mesmo que estando em delírio provocado pelos deuses a morte é certa e
eminente. Mas ente a morte certa e a recuperação da lucidez existe um interstício,
dito pela sua mulher Têcmessa:
‘Rememorar os males que ele mesmo se infligiu sem participação de qualquer
companheiro, só lhe deixa entrever sofrimentos infinitos’ (Sófocles, Ajáx).
O ressentimento e seus efeitos não cessam após a crise, isso é certo. Como um
bom médico Sófocles quer saber as causas do início do mal. Ajáx ao ser indagado
sobre suas motivações pela mulher responde: ‘O silêncio mulher, é ornamento
melhor das mulheres’ (Sófocles, Ajáx). Sua mulher diz sobre a vingança altiva
que ele parecia star fazendo, e aos poucos e em grande sofrimento, recuperou a
razão. Depois ficou parado, silenciosos e abismado.
Ao saber de tudo, chorou, e se prostrou em melancolia. A desgraça estava
premeditada e anunciada.
A solidão é esse lugar apartado de tudo e de todos, e um recuo necessário ao
que se passou – um para trás imediato, como de Ajáx, ou longo recuo como de
Jung – em que emerge daí, do que se experimenta aí, com o pensamento em meio
aos afectos enlouquecidos pelo ódio (perda), é sempre uma possibilidade de
convalescer ou não. Limpidez do olhar e altivez nem sempre este experimento
junto, resulta em convalescimento (vide Nastácia (O vide Nastácia – o idiota - e
agora Ajáx).

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Se o grande herói não escutou a voz da mulher (da verdade), o que dirão os
amigos? A resposta é crua e nua: ‘As desventuras de Ajáx, nosso herói, lançaram-
no numa agonia delirante, irreversível’ (Sófocles, Ajáx). Seria mesmo a entrada
no circuito do ressentimento um portal sem volta? Dostoievski vislumbra o
convalescimento para dois de seus personagens: Rodian, depois que sair da
prisão, ao lado de sua companheira de viagem Sônia e o príncipe idiota, que volta
a sociedade russa para seu enfrentamento afectivo, que é o que sente e o que pode
fazer por uma mulher louca. Diante da loucura que é o ressentimento, muito se
perde, por mais que se queira fazer algo a respeito.
A doença de se perder na memória passada é terrível, repercute na esposa e nos
demais. A chegada dos amigos dá-lhe alento, porque o herói pede que ele seja
destruído, morto, por mão amigas. Mas os amigos ofertam remédios dolorosos
demais. O sangue do ressentimento no qual se banhou Ajáx é escuro, ou seja
bilioso, vindo do ódio ao mais nojento dos canalhas, a saber, Odisseu.
Os amigos aplicam-lhe o remédio amargo: ‘Aconteceu; o que é não deixará de
ser’ (Sófocles, Ajáx). Como vimos, ao ser do tempo não há o que mais se fazer,
a não ser aceita-lo com amor fati. Ajáx se torna vulnerável (enfraquecido) neste
momento: ‘Aqui a ideia de que a vida não vale a pena ser vivida, associada aos
sentimentos de vingança e rancor, é tomada como sintoma mais evidente do tipo
fraco, decadent’ (Nietzsche, GM, III: 28). Nietzsche diz ainda, e esse parece ser
o caso de Ajáx, neste momento de sua loucura em que abate animais, que a
experiência de seu sofrimento recai no corpo, ‘um ódio contra o humano, mais
ainda contra o animal, mais ainda contra a matéria, essa repulsa contra os
sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por
afastar-se de toda aparência, mudança, vir-á-ser, morte, desejo, anseio mesmo’
(idem ibdem).

Um niilismo suicida se apossa de Ajáx. Ele desdenha dos deuses, quer que seus
inimigos morram logo, depois não se importa em morrer. Um herói por
excelência tomado de ressentimento, deixa de ser arrogante – orgulhoso de si e
de suas conquistas - para se tornar, após adoecer, um nada (humilhado e deixado
de lado). Sua memória ressentida age ante ao remédio dado pelos amigos, eles
lembra de Aquiles, que ele própria teria dado, em vida, as suas amas a ele, e
agora, sem armas e detestado por todos, só resta cair sem vida. Melhor a morte
do que dias vergonhosos, uma sucessão de dias de constante amargura (como
Quíron e Prometeu?).
A voz da verdade se pronuncia: ‘Que sorte miserável queres infligir-nos, a ele
(filho) a mim (mulher), morrendo agora?

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Ajáx fala ao filho: ‘nada sentir é a melhor coisa da vida. Essa inocência chega
ao fim quando aprendemos a grande diferença entre alegria e dor’
Oferece o escudo (arma) ao filho e a mulher que pare de falar. Essa
incapacidade manifestada diante do ressentimento, leva Ajáx a se tornar vítima
de um fado cruel, de evitar toda e qualquer compaixão (de Têcmessa e no caso
do Idiota, Nastácia recusa os cuidados amorosos do príncipe), ele vai até ás aguas
purificar-se de suas ‘culpas’ (na Grécia mítica, não existe culpa, mas sim ações
sobre as quais caem as graças ou desgraças dos deuses – punição seria um termo
intermediário) e depois se imolar.
O coro pede ajuda de Pan (Dionísio), de uma sabedoria outra para tal caso.
‘Nesse instante, só podemos pensar em nossa danças’ pois a sabedoria advinda
da dança e do riso podem ser o último remédio ofertado a Ajáx.
Mas é tarde demais, o companheiro de viagem de Ajáx, Teucro, chegou da luta,
e é recebido pelo ódio ressentido dos demais soldados gregos. Querem a morte
por apedrejamento. A notícia do companheiro de viagem, é que Atenas se
encolerizou e protegeu Odisseu apenas por um dia, e que os componentes do
Conselho real, o absolviam destes crimes praticados em estado de loucura.
Uma loucura finalmente revelada (suas motivações), pois foi quando Ajáx
pediu a deusa (Atena) que ajudasse o inimigo, porque os seus soldados nunca se
deteriam, que ela se voltou contra o herói cheio de Jactância – orgulho de si – e
que por isso mereceria uma punição (não par a se sentir culpado), mas por colocá-
lo em seu devido lugar. A ideia era de Ajáx poder ainda convalescer, salvá-lo e
não conduzi-lo a morte.
A saída trágica de Ajáx do acampamento é um sinal de que tudo parece perdido,
pois o grande herói está pronto para o sacrifício. Num prado a beira mar está Ajáx
com sua espada fixada a terra e pronta para seu último trabalho. Ele já está pronto
para seu fim melancólico, não quer mais saber de falatórios, faz seus derradeiros
pedidos e decide só falar agora com os habitantes das profundezas do inferno.
Ajáx lança-se sobre sua espada.
Os companheiros de viagem se atrasam, Têcmessa é quem avista o corpo inerte
do marido. Este era o seu destino. Como são temidas as possíveis gargalhadas de
Odisseu e dos dois reis chefes com a morte de Ajáx. É ainda uma segunda morte,
a de quem não pode mais se defender dos insultos futuros. A verdade (a mulher)
diz isso não faz sentido. Os companheiros de viagem nem sempre chegam a
tempo, mas eles existem e estão a disposição dos doentes que queiram
convalescer, isto vimos aqui em Ajáx e em ‘O idiota’, em que Nastácia
enlouquecida, recebe ajuda do príncipe, ofertando-se como seu companheiro de
viagem.

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Se aproxima Menelau, um dos reis. Cheio de ódio no coração, sabendo das
antigas intenções de Ajáx, quer deixar seu corpo na areia escaldante, servindo de
refeição aos abutres. Teucro, o amigo e companheiro de viagem rebate as
intenções do rei. Finalmente Menelau revela suas motivações, durante o diálogo
com Teucro: ‘Eu tinha ódio a ele, e ele me odiava’ (Sófocles, Ajáx). O rei e chefe
de expedição, em sua soberba (orgulho), reiterando sua disposição em não
enterrar o herói. A querele continua, aponto de uma disputa entre Menelau e
Teucro. O primeiro se retira, prometendo punição. O tempo da tragédia parece
não terminar nunca, um tempo recoberto de dores e cansaços sem fim.
Menelau volta e confronta Teucro novamente.
O rei invoca, com orgulho, seus feitos, e que Ajáx perdeu as armas de Aquiles
numa disputa correta, e pior ainda que as palavras de Teucro é um procedimento
insólito (vinda ainda de um escravo e não de um homem livre) que pretende
desestabilizar as leis humanas mais sólidas. Teucro responde que a paga do ódio
é a gratidão. Uma gratidão feita de memória dos feitos do morto. A situação se
agrava entre ambos, mas chega Odisseu, que é chamado a intermediar o conflito
de vida e de morte. Odisseu aconselha Menelau a não eixar insepulto o cadáver
de Ajáx, deixando de lado o rancor. Odisseu num ato de humildade também
admite que o grande herói foi também seu inimigo odiado, mas que agora morto,
tudo cessa. ‘Seus méritos foram maiores que seu ódio’ (Sófocles, Ajáx).
Menelau cede e Odisseu pede a Teucro que conceda as honras devidas ao herói
morto. Sófocles termina a tragédia com essa advertência: ‘Nós homens, tomamos
conhecimento de muitas coisas porque são visíveis, mas o futuro e nosso destino,
nunca existiu um único adivinho capaz de conhece-los com certeza’ (Sófocles,
Ajáx).

Como pudemos perceber, o ressentimento, par e passo com o orgulho não é o


mal do século, mas existe por milênios, nasce nos mitos, atravessa o platonismo
(niilismo cristão), e chega até nossos dias como um aguilhão do coração.
A literatura de Dostoievski também nos dá uma amostra do ressentimento em
“O idiota’ na passagem famosa do livro em que Nastácia responde não ao
príncipe, que a pede em casamento. Ela diz: ‘Eu também sou orgulhosa’. O
príncipe a recorda de que ao pedi-la em casamento: ‘há pouco eu lhe disse que é
você que me confere essa honra, e não eu a você. Diante dessas palavras você
sorriu, e ao redor, eu ouvi, todos riram. Talvez eu tenha me expressado de modo
risível, e posso mesmo ter sido ridículo. Mas tive sempre a impressão de que eu...
compreendo bem o que é a honra. E estou certo de que disse a verdade. Não é
possível que sua vida esteja arruinada para sempre. Pouco importa que Rogójin
veio a sua casa e que Gravila tentou enganá-la. Por que você insiste em se lembrar

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disso o tempo todo? Ora, poucos são capazes de fazer o que você fez, volto a
repetir’ (Dostoievski-trip: 31).

Uma vida arruinada pelo que? Pelo ressentimento, pois o que ela não deixa de
lembrar, de se recordar é o que, em sua mente ressentida, foi uma promessa de
ser cuidada e amada pelo homem que a ‘adotou’ depois da morte e falência de
seu pai.
Diante da obsessão das ideias e da melancolia, o melhor mesmo é uma
arteterapia para ser capaz ainda de manter o coração integro e intacto, e poder
reencontrar ou mesmo criar nossos companheiros de viagem. Coisa que Nastácia
recusa na pessoa do príncipe idiota e infantil, que a reconhece no retrato, como
convalescente (como ele o foi e ainda é).
Fazê-los chegar (os companheiros, os personagens conceituais) é uma arte
simbólica, uma estética da ‘introvisão’, um estilo singular, uma forma de
convalescer e chegar a uma nova saúde mental.

Crueldade e vingança

A noite longínqua dos tempos primeiros convidam o psicólogo Nietzsche a


sonhar. Um pesadelo talvez, pois se um prejuízo qualquer encontrava respaldo e
apelo no agir vingativo, a ação de causar dor ou sofrimento nos acompanha desde
sempre. É a nossa segunda capa (ou máscara). Se moramos nessa casa
compensatória e se vestimos essa segunda roupagem chamada crueldade
travestida de vingança, então o que somos, desde tempo imemoriais, é
caracterizado por uma tipologia agressiva. Seja em Freud (totem e tabu e os
rituais parricídios e antropofagia), seja em Nietzsche, no salto do animal livre em
social, por meio de algum puro ato violento de ‘assujeitamento’. Então esses
instintos de liberdade continuam a pedir satisfações, por outros meios, ou seja,
algo vindo do psiquismo ou do corpo, pois ao voltarem-se para dentro, se
internalizam. A interiorização do homem para Nietzsche é enfático em suas teses
ancestrais: ‘Ver sofrer produz bem estar; fazer sofrer produz mais bem estar
ainda’ (Nietzsche, GM). Se sofrimento não há festa, pois no limite, força e prazer
se encontram.
Ao estabelecer os contratos psicológicos de medir, calcular, comparar, o
homem (Nietzsche), esse hábito passou (transposição) também - agora dentro de
um âmbito social – de relacionamentos interpessoais – a comparar potência com
potência (como dissemos anteriormente, capacidade de medir o outro, a sua

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alma). Agora não é só possível coagir o outro (pelo cálculo), mas também
ressentir-se ainda mais.
Se era necessário obediência as regras (contrato social), o ressentimento pode
correr solto e sem rédeas na interioridade do sujeito, pois se de um lado cresce a
obrigação da palavra (promessa, dever, cumprimento), por outro, cresce a sombra
disso tudo, os afectos que, independentemente do medo de um castigo, se
satisfazem em planos de ódio e vingança.
Mas expulsar para fora da coletividade o indivíduo que lesou alguém equivale
a satisfação do espírito de vingança, satisfaz o ressentido? O direito penal anula
os afectos do ressentimento? A base do contrato social está para Nietzsche posto
numa certa possibilidade de existir um equivalente ao dano, em nome dos
sacrifícios feitos pelos ancestrais, em nome da proteção e prosperidade que o
coletivo oferece. Não se trata de piedade, mas de dívida com os deuses ancestrais.
Ao tentar desenvolver uma consciência de culpa, pela obrigação não cumprida
ou prometida, o sujeito interioriza e espiritualiza gradualmente os instintos de
liberdade (em parte pois ao mesmo tempo de tento me culpabilizar, voltar-se
contra mim mesmo, em outra parte também não deixo de sentir desejo de
vingança e punição com as próprias ações e meios disponíveis, porque para tudo
existe também um outro culpado externo). A má consciência cria portanto, não
só ideias negativos, como valora a vingança e o ódio negativamente em prol de
manter vivo os seus instintos mais primitivos.
O ressentimento é esse refinamento mais sofisticado, complexo, que Nietzsche
aponta como satisfação compensatória dos instintos, que ainda reclamam suas
exigências, e vão dando a esse subsolo ressentido, elementos e energias com a
aliança da imaginação. O mundo interior do homem vai ganhando assim um
leque extenso de imperativos morais – deve-se, obriga-se, cumpra-se, ordene-se,
aprenda-se, sinta-se, o que só amplia o para trás e o torna muito, por demais
propício a uma contra reação do tipo ressentido.
Um para trás tão endividado (consigo mesmo e com Deus), que nesta chave de
condições de surgimento do tipo homem, o ressentir-se é uma questão maior, na
perspectiva de que ela ocorreria e acompanharia este tipo de home em todo o seu
devir. Talvez por isso Nietzsche insista em um mais além do homem, ou seja, um
tipo outro, em uma chave outra que o filósofo definiu como dionisíaco por
excelência.
Se toda dívida impagável trás em bojo rebelião, hostilidade, estamos falando
do imenso campo do ressentimento, que Nietzsche traduz como sentimento de
niilismo (existência não valiosa em si), desejo de ser outro, de nada ser, onde se
situa a contrapelo desses sentimentos o de ser mal. Então as forças ressentidas

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que nos querem culpados materialmente e espiritualmente, conduzem esse tipo
até o seu limite: ou se mata, ou se morre, enlouquece ou as vezes, convalesce.
Nietzsche se mete numa sinuca de bico, pois se a eticidade do costume –
verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo – torna esse mesmo homem mais
previsível, calculável, dócil no trato social (a valoração positiva de um dever ser
assim), por outro, toda essa prescrição gigantesca resulta também em algo de
uma suspeita, a saber, de que a autoridade que prescreve retira de onde suas
prescrições? Nietzsche diz que é do sagrado, de um Deus intocado. Tu deves ser
assim e pronto (manda quem pode e obedece quem tem juízo). Este grande
experimento institucional para estabilizar o que é o ser humano, se enraíza no
coração de todo homem, mas em seus labirintos ainda vive algo.
Esse algo forte e poderoso, de natureza instintual, que se mostra de forma
tortuosa, nas manifestações ressentidas, cujo diagnóstico Nietzsche não deixar
de ofertar, um homem:
‘mais enfermo, mais alterável, mais inseguro, mais indeterminado que qualquer
outro animal, disso não há dúvida, ele é o animal enfermo: de onde provém isso?
É verdade que ele também ousou, inovou, desafiou, afrontou o destino mais que
todos os demais animais em conjunto: ele, o grande experimentador consigo
mesmo, o insatisfeito, o insaciado, o que disputa o supremo domínio com os
animais, a natureza e os deuses’ (Nietzsche, GM).

O animal que foge ao cálculo, que não se pode medir inteiramente, pois sempre
surpreende (favoravelmente ou não), como surpreendeu Nastácia (O idiota) o seu
noivo ao recusar uma pequena fortuna para declinar de seu pedido.
Se a crueldade sempre esteve na base da eticidade dos costumes, a memória da
dor é seu complemento mais razoável, pois para perpetrar um sentimento de
obrigação, de um imperativo ‘tu deves’ foi preciso se fazer uma memória. Uma
memória que só permanece ativa, viva, pela dor, não somente um castigo, mas,
como vimos, por um ressentir tudo de novo, uma interiorização de costumes
(representação mental de uma consciência que deve ser assim ou assado) e de um
instinto livre voltado contra si mesmo. Outra coisa é o que Nietzsche diz do tipo
soberano, que une liberdade, lei e a sua vontade própria de segui-la, ou não.

O problema do ressentimento

O problema do ressentimento é afectivo, ou seja, trata-se de saber se o mundo,


as condições de vida desse mundo, não sendo o melhor nem o pior dos mundos,
nem podendo se dizer como se portar nesse mundo, isso gera um ódio a vida e
ao viver.

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Nas palavras de Nietzsche: ‘movimento da vida que se move contra a própria
vida’ (Nietzsche KSA 8:133). Pelos efeitos do ressentimento sabemos o que
somos (uma forma de autoconhecimento), do que somos capazes (de cometer e
sofrer injustiças, de utilizar a imaginação para criar planos de vingança
imaginários), e de adoecer os afectos passageiros (transformar perda em raiva,
raiva em ódio e ódio em sede de vingança).
Os efeitos dessa perspectiva: a punição do que somos, pela interiorização da
culpa, a punição em forma de justiça, a ideia de que somos maus e isso indispõe
o sujeito a vida e o convida a uma vida miserável, a um conhecimento impuro a
respeito de si mesmo, da vida e do viver neste mundo.
O desprezo a si mesmo já é sentido como uma forma de ressentimento, e
Nietzsche vê isso como uma forma de ascese, de sofrer o bastante, o suficiente
para fechar a ferida e retirar o aguilhão do pecado. A tese de Nietzsche é forte
para os problemas do ressentimento, pois para o filósofo, vida é expansão, busca
de poder, sendo as funções básicas da vida: ofender, violentar, explorar, destruir.
Então a questão do que é justo ou injusto, só vai a aparecer muito depois, quando
o homem instaura as leis e os bons costumes na vigência de um contrato social.
Os poderosos estabelecem entre si, um pathos de distância, promovendo
acordos entre si, e os demais, seguem forçosamente na esteira dos que possuem
poder em abundância.
Portanto o que há de implícito e explícito nos poderosos são acordos e não
meros atos de ressentimento em pleno furor, como é o caso de Ajáx, na mitologia.
Mas, se a comunidade é fraca, o ressentimento paira ali, como uma grande
sombra, uma nuvem escura e negra que nunca passa e oprime os corações dos
homens. É preciso lembrar ainda que retomamos a questão dos mitos, onde ainda
não existia a questão da culpa ou de uma consciência voltada a culpabilidade, e
que, como já apontamos na descrição do mito de Ajáx, não se trata apenas de
culpabilização de um a quem deveria ser castigado, mas na relação de deuses e
homens, que intervém numa forma de justiça outra, o que implica a noção de que
o homem deve se tornar grato aos deuses, em suas intervenções, as mais estranhas
e imponderáveis, como no caso de Ajáx, onde sua punição era por apenas 01 dia.
A soberba de Ajáx (solicitando a deusa Atena a ajudar os troianos), o coloca
numa situação louca, por se acreditar maior que a deusa. Toda e qualquer vitória
é passageira, e isso não podia ser esquecido por Ajáx. Daí resultou sua punição:
‘Para o grego, hybris é a tentativa de se exibir a si mesmo... como sujeito e
proprietário da felicidade, hybris é a crença de que felicidade seja outra coisa que
não um dom dos deuses que podem retirá-lo a qualquer momento, como a cada
momento podem infligir ao vencedor uma imensa desventura (que se pense no
retorno de Agamenon) ... Nenhum herói pode se vangloriar dos próprios méritos

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na luta, nem o melhor deles pode enfrentar aquele que os deuses enviaram contra
ele e que, mais forte, o põe em terra, jogando-o no pó’ ( ).
O que devemos ter em mente é que os deuses punem a ignorância dos homens
frente as coisas do destino, punem sua ‘hamartia’, cegueira que conduz ao erro,
não de cálculo, mas de seus afectos – paixões – que o tomam e como em Ajáx, o
faz agir de forma ressentida e cruel. O destino deve ser entendido nesta
perspectiva como constelação do qual todo vivente participa, em sus relações,
cujo horizonte mais lato é a hybris, que conduz o herói até seus pontos limites.
No limite, e só no tocante as questões limites, é que tudo se dá e acontece: o
orgulho, o egoísmo, as pretensões do homem aí se mostram, incluindo a medida,
em como o homem aprendeu a medir outro homem.
A constelação afectiva diz respeito ainda a todos esses sentimentos que orbitam
em favor do ódio, da inveja, do rancor, do orgulho, e da vingança, são as
roupagens que os homens utilizam para tentar lidar com os sofrimentos, com as
perdas, contra os que abundam em poder. O problema se torna enfermidade,
doença, quando estes sentimentos ficam interiorizados, não digeridos, não saem
para fora, como se costuma dizer, e a partir disso essa constelação age contra o
sujeito, tornando-o ressentido. Os efeitos dessa não digestão são o
aprisionamento emocional, o incremento da dor e sofrimento – aumento
exagerado do ato que provocou a dor – a um ponto limite. É uma espécie de
insanidade de loucura, que não é catalogado no CID 10.
O problema todo reside no que tenho chamado de capacidade de enfrentamento
da vida, capacidade de se colocar em luta, em querer o bom combate para si, sem
culpar nada nem ninguém, ou seja, o que vem do mundo é o que temos para hoje.
Se revoltar ou culpar algo ou alguém em nada muda o que se tem para hoje. É
o que já citamos anteriormente como fatalismo (russo). A maioria dos homens
diz: - não pedi isso, não aceito essa situação. Isso é injusto, isso não poderia
acontecer, é maior que minhas forças.

A percepção da própria fraqueza leva e conduz a muitos homens a situação de


paralisia emocional, ao impedimento de viver o presente, pois ao fraco e
ressentido só duas coisas interessam:
1 remoer o para trás – paralisado na caverna de Medusa.
2 esperar algo futuro, enquanto espera sair viva do emparedamento de Antigona.

Ao atingir um patamar coletivo, pensa-se em uma peste emocional. Uma


doença emocional.

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Se ao animal homem foi dado fazer promessas e isso se tornou um problema
de chifres, pois o não cumprimento de promessas implica e respinga nas questões
do ressentimento, o desafio de que os instintos que não se descarregam para fora
e se interiorizam continua. A questão pulsional do homem permanece aberta e
irrespondível.
Uma tipologia que passe pelos afectos é uma questão também aberta, então
prefiro concentrar a artilharia pesada nas possibilidades de se abrir um
convalescimento, ao invés de dizer que um tipo forte (nobre), assimila ativamente
uma dificuldade ou problema, enquanto o tipo fraco (escravo), em que pese a
tendência depressiva ou melancólica. No convalescimento temos a questão
limite, os pontos limites que o destino do sujeito (o que reúne o todo em si
mesmo) possa nos conduzir e aí é que tudo se dá, e tudo se decide. No momento
em que o sujeito se depara com um limite extremo, de cunho afectivo, ele se
defronta com sua constelação afectiva, e age, conforme seu estado de alma. Por
isso ficamos com a literatura de Dostoievski, mestre no drama de engendrar as
situações limites em seus livros e personagens. No convalescimento tanto o
ressentimento pode se tornar criador, como um movimento para fora, mesmo que
reativamente. A questão é sempre se se isso será suficiente para abrir um
convalescimento de dobra, de atravessamento, de interstício, onde se consegue
lograr uma outra saúde. A constelação, como ela vai se dar ou ocorrer, para além
de qualquer cálculo, Nastácia e Ródian nos dão um exemplo ímpar, pois tudo se
decide e muda em questão de segundos, em cada novo gesto, em cada nova
palavra, em como isso toca e chega nesta constelação afetiva, que nada mais é do
que a soma de todo esse para trás. Sempre mais forte e renovado pela intervenção
da fantasia, o ressentimento é o oponente a ser vencido, a batalha a ser travada.
O para trás é um polvo com muitos tentáculos, capaz de tomar todas essas
impressões afectivas e uma vez tornadas imagens – que se repetem e se
desdobram em outras tantas outras – impulsionam o psiquismo nas profundezas
de um subsolo, na base de uma memória forjada a ferro e fogo – dor e sofrimento
– e faz deste tipo, um sofredor, um enfermo, cuja potência se dissipa, em
suscetibilidade doentia, em doença dos nervos, em sede de vingança.
Pior ainda, a negação da vontade de viver – plasmada nos ideais ascéticos que
renunciam ao corpo – trazem as figuras do ressentimento em forma de ‘potência
enganadora da imaginação e das paixões’ (Giacoia Jr, Arte e filosofia: para uma
crítica dos ideais ascéticos: 2). Se este tipo de vida ascética é, para Nietzsche, os
signos e sinais da presença rançosa do ressentir-se contra a vida, algo que se volta
contra o físico e o mental, contra o corpo e até mesmo contra a dor e
transitoriedade do que somos, o que esperar desse espírito de gravidade?

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Se os efeitos do ressentimentos já estão bem definidos, na perspectiva de uma
doença individual e coletiva, então o que nos resta é tentar definir espaços e solos
onde a batalha possa acontecer em outras bases, ou seja, no solo do qual ‘cresce
o meu querer, meu poder – eu o último discípulo do filósofo Dionysos, - eu,
mestre do eterno retorno’ (Nietzsche, O nascimento da tragédia).
Da reversão a lógica platônica, até a seriedade do riso (como a arte nova
desconhecida até de Prometeu), passamos pela sabedoria trágica, como
possibilidade de problematização da verdade (como valor), e chegar até o resgate
de uma experimentação outra – dissolução da moralidade – num ambiente
protegido onde se possa partir para o mar, ao desconhecido, ao incerto, numa
possibilidade que envolve risco e aventura. Assumir um risco em meio a
companheiros de viagem é ainda uma segunda possibilidade que, do ponto de
vista da exuberância, e não da falta e da indigência (pena de si mesmo), abre-se
um convalescimento, de força capaz de buscar uma nova saúde.
Se podemos ficar acima da moral (culpa e rigidez), sem medo de escorregar e
cair, então temos de brincar com isso, com essa seriedade, e como diz Nietzsche,
não podemos deixar de prescindir da arte, do parvo, de não se envergonhar do
que se é, nem do que se tornou.
A partir destas considerações, interessa-nos, sobremaneira, a ideia de pensar os
espaços de convalescimento. Um espaço protegido (dentro e fora de saúde
mental) em que a constelação dos afectos se tornem propícios a plasticidade, ou
seja, que se tenha como propiciar um convalescimento (enquanto possibilidade)
e que neste espaço protegido possam emergir os companheiros de viagem, na
possibilidade de um espaço de transição, de um interstício entre o que já está
decidido, o que se transformará em ação niilista, em algo como dissemos – matar,
morrer enlouquecer – ou se ainda há esse instante de dúvida, da possibilidade de
criação, ou seja, pegar do instante acontecimental algo – um signo, um sinal –
em que se possa, a partir daí, passar um devir, um sonho, um gerar novas formas
de vida, de realizar o pensamento num grande amplexo de afecto e razão (o
grande amplexo de Rogójin e o príncipe, presente também na ‘besta humana’ de
Zola). A alteridade dada em Dostoievski, nos coloca diante dessa questão aberta
que é o ressentimento. Em ‘Crime e castigo’ Ródia necessita de Sônia e vice-
versa, em ‘O idiota’, Michkín necessita de Nastácia e Nastácia necessita do
príncipe. A morte dela une Michkín e Rogójin, num horizonte que une os
opositorium num único e mesmo amplexo: em cima e em baixo, num sol
indecifrável de meio dia. Em ambos a possibilidade de um convalescer se
apresenta uma vez mais.
O ressentimento impede e afeta drasticamente a alteridade. As diferenças não
se tornam impedimento.

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A imagem do mundo moderno é para Heidegger, no qual o homem se fixa e se
orienta, é que o próprio mundo se tornou imagem, representabilidade do ente.
Representar significa ‘por diante de si mesmo e de volta para si mesmo’
(Heidegger, Imagens de mundo). Um sujeito em meio ao ente, fica entre um
sujeito subjetivo e individualista ou um sujeito útil, e o perigo desse sujeito se
perder no gigantesco e agora mundo virtual das imagens de mundo a disposição
e prontas para o consumo. A isso queremos ainda dizer sobre os enfermos e
ressentidos: a imagem que mais importa ao pensamento, é a imagem de seus
companheiros de viagem, pois serão eles que definirão a batalha que está
acontecendo em seu subsolo, em seu coração em meio as pulsões. Isso importa
mais do que vencer a guerra, pois desde Nietzsche já o sabemos: entre os
combatentes não pode haver vencidos e vencedores, apenas um bom combate.
Então como disse Hemingway: ‘Quem está nas trincheiras ao seu lado? – e isso
importa? – mais do que a própria guerra’ (E. Hemingway).
O ressentimento se dilui a partir do campo protegido e da aproximação dos
companheiros de viagem, campo em que não exige a ira, nem estabelece culpa
alguma, nem tem a necessidade de colocar sua dignidade a prova em qualquer
contexto, como Ajáx.

Formação dos valores bem e mal

Já salientamos (via Nietzsche) que o homem, num determinado momento,


passou a avaliar e a medir outro homem. Para se poder medir um homem foi
preciso os valores de bem e mal, pois são esses modos de julgamento que são
empregados para se interpretar as motivações e bem como para manter o tecido
das relações e interações sociais, sob o horizonte de uma perspectiva moral.
Dentro de um tipologia moral, todo homem é sumariamente culpado e ao
mesmo tempo medido em sua orientação – ação – por meio destes valores
cardinais (bom e mal). A imagem deste tipo de homem – justo, bondoso,
compassivo, onde predomina a razão em detrimento do afecto – não diz o quanto
perigoso isso é e se torna historicamente para o homem em geral. Pensar por
obediência, por dever, por saber de antemão o que é bem e mal (como algo
[universal] dado, algo que não carece mais ser interpretado em sua utilidade), o
que serve e o que não serve ao homem (desde Sócrates: nada em demasia e
conhece-te a ti mesmo), soa como um despropósito tal que, para Nietzsche isso
se torna problemático.

Experiência cristã do ressentimento

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O homem cristão, sob a égide dos imperativos morais, não sabe mais agir de
forma natural e espontânea e criativa, pois sua tradição é de estar em constante
jugo, em um estado de culpa permanente, em vigilância contra o corpo e tudo o
que se apresenta como intensivo que, a compreensão desta atrocidade, ou seja de
sua própria fraqueza ou doença, o deixa atônito, paralisado. Um efeito desse
estado de alma é o ressentir-se: ‘O homem ressentido não é franco, nem ingênuo,
nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os
subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo,
...' (Nietzsche, Genealogia da moral). Essa moral sacerdotal, criada pelo povo
judeu, se espalhou pela Europa e até hoje é disseminada pelo cristianismo
paulino. Este mundo é para ser desprezado, em prol de um outo, melhor, futuro.
A tese psicológica de Nietzsche é cristalina: - ao homem de gênio, de espírito
livre, encarnação de um tipo mais nobre, que não se agrilhoa a um ressentir-se, o
mundo e o viver fluem e se movimentam sem amarras ou hybris. Foi dele, de
seus atos espontâneos e criadores que o valor bom e ruim se iniciaram:
‘Foram os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e
pensamento, que sentiram e estabeleceram para a si os seus atos como bons, ou
seja, de primeira ordem, em oposição a tudo o que é baixo, e vulgar e plebeu’
(Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos).

Esse egoísmo de artista ou de gênio, que não prescinde da guerra, do acumulo


de vitórias, sabe que no ressentimento a coisa psicológica é bem diferente, pois
o ressentido toma sua dor e a transforma em um outro eternamente culpado,
maldito mil vezes (porque ousou ser agressivo).
A visão ressentida distorce e volta esta distorção contra si mesmo ou contra o
mais forte, enquanto que a visão nobre tem sua felicidade na ação, no Sim a vida,
é este tipo que pode dizer a verdade como ele a vê e interpreta, a todos, sem
exceção. É assim que ‘O idiota’ (príncipe em sua estadia na Suiça, na vila com
as crianças soube desenvolver e aplicar essa pedagogia) aprendeu em seu
convalescer: Dizer toda a verdade, até as crianças, sem nada esconder ou ocultar.
É de Reich a seguinte afirmação: ‘o erro humano desnecessário é uma
qualidade patológica do caráter humano’ (Éter, Deus e o diabo: 51). O
ressentimento é, nesta perspectiva patológica, induz ao erro desnecessário, pois
sua mente e seu coração ficam inundados das imagens de vingança, de uma
imaginação que distorce os propósitos da vida e do viver. Vingança é
imobilidade, é encouraçamento. Vida é mobilidade, ‘o prazer, o anseio, a
ansiedade, a raiva, a tristeza são, aproximadamente, nesta ordem, as emoções
básicas da vida. Elas se afirmam na mobilidade completamente livre do
organismo’ (Reich, idem: 57).

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Formação da consciência moral a partir do espirito de vingança

O efeito medusa (imobilidade, paralização da vida) produz peste emocional


(Reich) ou um tipo fraco (Nietzsche), e a impossibilidade de fazer
enfrentamentos, produz na vida dessas pessoas enfermas, dentro de seu recuo e
solidão uma coisa que temos aqui destacado, e que é fundamental ao
entendimento do ressentimento: no recuo e na solidão, além do perigo da tristeza,
de se permanecer num estado melancólico, o que existe é um incremento da
imaginação, e isto é saudável, é necessário para se abrir a possibilidade de um
convalescimento, pois é através da imaginação e da fantasia que se processa e
traz ao campo da reflexão, os amigos ou companheiros de viagem. Mas se a
imaginação de desvia do convalescimento, ela se torna em engenhos imaginação
de satisfação mórbida e doentia em prol dos atos de vingança (em fantasia) contra
outros. Nestas fantasias contra o outro, o aspecto preponderante é a descarga dos
afectos via punição, nas formas mais sádicas e raivosas possíveis.
O regalo do sofrimento imposto fantasiosamente ao inimigo, torna esse tipo de
descarga afectiva fixada num único objeto, e de tal forma odiado que, nunca se
torna renunciável, deixado de lado. Aí se estabelece o circuito emocional que já
identificamos:

Perda, mágoa, raiva, ódio, ressentimento. Tudo isso numa roda viva, que passa e
repassa no mesmo ponto: fazer justiça, punir o inimigo. A cada novo giro da roda
deste eterno retorno da constelação afectiva ressentida, uma nova fantasia surge
e emerge, cada vez mais potencializada para não permitir que o coração se uma
a razão se unam em prol de um convalescimento.

O que surge daí é algo que Nietzsche percebeu e que diz respeito a uma
patologia que o ressentido começa a depositar suas esperanças, já que sua ação é
sempre ineficaz, imobilizada, numa esfera moral divinizada, que lhe fará justiça,
que punirá seu agressor, já que aos olhos e Deus, tudo se abre e nada fica oculto.
A fé nesta punição divina e futura impõe ao ressentido uma única obrigação:
penitência, medo de sofrer ele próprio as sanções que tanto quer aplicadas ao
outro.
‘O ressentido impossibilita ao indivíduo que sofre desse transtorno afetivo
desenvolver uma relação de alteridade com homens que não são adeptos de sua
visão de mundo, reservando para eles, portanto, todas as suas mais ríspidas
invectivas. Esse procedimento do homem ressentido, decorre de sua

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compreensão parcial da realidade, nalgumas circunstâncias pode vir a motivar a
formação, nas suas disposições de ânimo, de um sentimento ilusório de
superioridade em relação aos demais, justamente por considerar que a sua visão
de mundo é mais perfeita do que a adotada pelos outros’ (Bittencourt: 38).
Mas essa mesma esperança de punição fuura, é ao mesmo tempo
impossibilidade de reação, de violência, o que coloca o homem ressentido numa
condição ainda mais penosa, de eterna e constante fraqueza vital, numa situação
de espera agonizante, de degenerescência fisio\psíquica, sorvendo o próprio
veneno de maldade, mantendo as suas feridas abertas e cujo sangue bilioso a tudo
contamina e impregna. Nestas condições de alma, o ressentimento se torna
praticamente impossível de abrir-se a um convalescimento.

Os sentimentos

Anseio vem de anxietas (latim), que significa angustia, figurativamente, causar


tensão.

Outro aspecto contributivo vindo da psicanálise de Freud é seu estudo sobre as


neuroses traumáticas, mais especificamente o seu tratado sobre as vicissitudes da
pulsão, que remete ao seu estudo de uma criança (seu neto) de 05 anos que repete
a experiência desagradável de deixar sua mãe ir embora sem protestar. Freud
atina que a criança elabora esse ‘ir embora da mãe’ através de uma espécie de
jogo, que ele chamou de ‘fort’ (ir) ‘da’ (ali). Neste jogo a ‘satisfação da pulsão
de dominação’ se faz da passagem de ter sido deixado pela mãe à outra situação
mais elaborada, ou seja, a de ativamente inverter essa situação em afastar a mãe
de si. Ao recuperar o prazer da ação através do jogo, do brincar, a chave do
ressentimento ganha alguma luz. Se essa inversão em passivo em ativo é uma
importante passagem na vida dessa criança, o é porque assume o controle do seu
destino. Quíron também passou pelo abandono, e seu destino o transformou em
curador. A chave da especulação teórica de Freud reside em que: ‘Mesmo sob a
dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o
que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na
mente’ (Freud, além do princípio do prazer, 1920: 28).

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A questão é quais são as maneiras e meios para que a rememoração se torne
passagem e elaboração psíquica. Como algo pode ser simbolizado até o ponto de
findar uma repetição? (do mesmo).
Se o neurótico é uma pessoa que tem um ego proibitivo e que resiste a tudo o
que causa desprazer, por isso repete o mesmo, determinada por experiências
infantis (lugar de onde decorrem as mesmas coisas e exigências não satisfeitas),
o caráter conservador das pulsões atingem um limite máximo quando operam n
a chave de excitação excessiva do ressentido, em suas imagens que a religam a
um prazer sádico, que ao se repetirem, não saltam a um novo desenvolvimento
psíquico, ao contrário, mantém a pessoa neste único lugar (antigo e já conhecido,
cujo limite extremado é o inorgânico).
Nesta perspectiva sádica, a pulsão de agressividade é remetida e endereçada a
um outro, buscada no lugar da própria morte (desejo de). A forma sádica de
agressividade é entendida nesta perspectiva freudiana na chave das perversões,
que por sua vez suporia ainda uma forma pulsional anterior, uma regressão da
ordem masoquista. Esse masoquismo primário deu a Freud uma nova visão sobre
o ódio, que é um componente intrínseco ao tipo ressentido.
O ódio revisto por Freud ganha as cores de uma agressividade para fora do
corpo e como disposição de destruir o outro. Mas isso a partir de uma disposição
ou tendência de destruição também de si mesmo, ou seja, uma imago (ou
protótipo ou função autodestrutiva) interna já pré-existente.
O ressentido então se ajustaria a uma pulsão de morte, que insiste em conduzir
o sujeito a morte, como caminho para se conhecer Thânatos. Se a pessoa quer
morrer ao seu modo, o ressentimento se presta a essa forma ou escolha de
constelar sua forma de morrer aos poucos, incendiado e queimado pelas imagens
de ódio e vingança imaginários. O conflito e a interação destes dois instintos, ou
pulsões foram exploradas por Nietzsche em sua teorização estética sobre o
apolíneo e o dionisíaco.
A este conflito pulsional de ordem intrapsíquica, muitos são os senões, o que
inclui Reich que aponta não um instinto inato que objetiva a morte, tendo como
subproduto o ódio descarregado contra um outro, pois este defende a tese de que
a pulsão agressiva (autodestrutiva), pode se originar da ordem de um excessivo
– frustação – um conflito mais de ordem externa (entre necessidade e mundo
externo), com uma internalização posterior, via superego.
Em ‘O caráter impulsivo’, Reich desenvolve uma tese em que a repetição do
mesmo, é impedida de elaboração. Neste caso o ressentimento (visto como
doença), é refém de suas pulsões, cujo efeito é um padrão comportamental
impulsivo, permeadas de impulsos sádicos e masoquistas, como o são o fantasiar
ressentido.

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O problema é, para Reich, que o montante de frustrações não seriam fortes o
suficiente para tornar uma criança em adulto ressentido, pois nem os pais nem os
educadores proporcionam uma indiferença, um nada absoluto, mas sim uma
grande identificação com o que adulto que aplica-lhes as frustrações. Por isso e
só assim as suporta. Mas se estas figuras não servem de modelo, aí surge o
problema, ou seja, a impulsividade, numa ideia de estase sexual, ou seja energia
acumulada e represada, onde ‘o ódio depende da intensidade da recusa do amor,
o instinto de destruição depende da estase libidinal’ (Reich, 1927: 218).
Nesta perspectiva desprazer não é pulsão de morte, pois vida é a tensão, o
conflito com a esperança de uma possibilidade de alívio. Talvez essa esperança
seja bem descrita pelos prisioneiros de guerra (Alemanha nazista), que retiveram
em seus corações a esperança até o último instante. Para Reich morte é tudo
aquilo que se tornou rígido e fixo (imóvel).
Para tanto um mecanismo que o conjunto fisio-psiquico se utiliza para lidar
com desprazer é a agressividade, que quer se livrar da fonte de perigo. ‘Destruo
uma situação perigosa porque quero viver e não quero ter nenhuma angústia’
(Reich, 1942: 138).
Agressividade que serve a vida e ao viver, diferente de destruição, que é a meta
ressentida. A angústia vinda da ameaça de punição do mundo externo resulta no
mecanismo que Nietzsche já havia identificado, que é a introjeção de cada novo
impulso, dando origem a uma nova antítese: a parte agressiva não se descarrega
no mundo e quando se volta contra o ego produz desejo de nada (nirvana). A
condição de desesperança, como vimos, é o pior dos mundos, pois a volta ao
silêncio, sem amigos, sem personagens conceituas, companheiros de viagem, é o
mesmo que a morte em vida. Em 1951, Reich vai reconhecer uma energia (DOR),
que impede o movimento pulsional e inibindo as funções vitais, pode levar o
indivíduo a morte. Uma energia cristalizada potente o suficiente para que a soma
de frustações de uma pessoa se volte para fora, causando destruição, dor e a
própria morte.
Por isso é que a terapia do esquecimento, como força ativa da mente – zelador
da ordem psíquica, da paz – é uma ferramenta a serviço da plasticidade pulsional:
‘Em sentido próprio, forte é aquele que possui uma força plástica de
esquecimento e assimilação mais inteira, mais organicamente sadia’ (Nietzsche,
Ecce Homo, 2001: 84\5).

Esperança então é uma forma de dizer que o corpo tem a sua sabedoria, sua
capacidade própria de agir criativamente. Esperança mediante a superação, o
atravessamento, o revirão, a metamorfose, o ponto de báscula, o rubicão ante os
obstáculos e preservação do movimentar-se novamente após o recuo e uma

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solidão, voltar a se movimentar, a agir e criar valores que digam sim a vida. A
eliminação dos afectos tristes, como vimos em Spinoza, nos ajudam também a
separarmos o joio do trigo, ou seja, de tomar os afectos que nos querem tristes e
leva-los para longe do coração em conjunto com uma sabedoria trágica, que nos
impele a aceitação fati – amor fati – a tudo o que existe e é contraditório.

O coração integro e intacto

O mito de Dionísio se repete em O idiota, de Dostoievski, pois o príncipe


percebe que o segredo da sabedoria trágica lhe foi revelado em seus anos de
reclusão na Suiça, pois foi lá que pode manter seu coração integro e intacto no
convívio com a s crianças da aldeia. Foi este intercâmbio com elas que lhe abriu
o convalescimento. E estas mesmas condições de apesar dos pesares, apesar do
grande sofrimento de Nastácia que o ele se aproximou dela, ofertando-lhe
cuidados, se oferecendo como companheiro de viagem a ela, para que ela própria
pudesse convalescer. O príncipe só é príncipe, simbolicamente falando, pois o
caráter do nobre é se oferecer como companheiro de viagem. Este é o gesto mais
nobre e magnânimo de todos, que supera a compaixão, na chave de um dever ou
obrigação para com o próximo. O tipo nobre descrito por Nietzsche cabe nesta
chave de ‘O idiota’, pois o príncipe configura um tipo inocente, um cordeiro a
ser imolado pelo outro tipo descrito por Dostoievski (utilitarista), que significa o
de coração mantido integro e intacto.
O doente pode ou não convalescer. O doente que não consegue abrir um
processo de convalescimento, entra em certo sentido, num ‘modus ressentido’,
pois ao se cobrar e ao ser cobrado (em todos os sentidos dessa cobrança –
individual, social, familiar) para reaver a sua saúde perdida, e conseguir a sua
volata ao estado normal, o processo emperra, pois no meio do caminho tem uma
pedra, tem uma pedra no meio do caminho. O sujeito sofre um efeito catastrófico,
paralisante (efeito medusa), onde a inocência e a integridade do coração, fica sob
a égide da ratio utilitarista, que utilizando da palavra útil, cria e aprofunda uma
desconexão ainda mais profunda e sem volta entre a vida do coração e a vida do
dever e do cotidiano. Bataille em ‘A parte maldita’ menciona as formas de
despesas improdutivas, a perda como um estado, sinônimo de despesa. Mas
esquece que a doença é também essa parte maldita, um tipo agora rejeitado e cuja
renúncia – a sua própria saúde – o coloca numa condição de eterno sacrificante:
doravante não poderei mais convalescer, estou destinado a ficar neste lugar – de
doente eterno – sem lugar útil entre os homens sadios e produtivos.

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O fim da doença, que seria da ordem de um convalescimento e de encontrar
uma nova saúde se perde, e se fia na condução dos especialistas – médicos
terapeutas, fármacos – que prometem uma cura que nunca chega e cuja utilidade
esconde fins outros que se imiscuem dentro das chamadas despesas com pessoas
ou coisas improdutivas. Não há dádiva na doença.
A estabilidade do doente ou da doença, entre o que ele fala e como fala e os
olhares em derredor sinalizam uma ‘clinica’ onde se confundem o corpo saudável
e as formas adequadas de viver, num campo de instabilidade tal que, os princípios
‘normais’ e ‘patológico’ não são mais posições ou princípios, mas lugares de
onde se deve prestar contas, seja da saúde perdida, seja de uma outra saúde, nunca
reencontrada.
A ideia de que o convalescimento supõe um recuo e uma solidão, é de fato um
lugar outro, onde, não se necessitando de uma prestação de contas, de culpa,
interiorizada ou frente ao jugo de olhares e julgamentos morais, se pode se liberar
e desatrelar de fins úteis, ou de cuidados de si mesmos empenhados em processo
de despesas.
Estar livre da obligatio, da culpa é ainda o espírito tornado livre de Nietzsche,
que foi criado para mantê-lo alegre em meio a muitos males, em que a falta de
finalidade ou falta de uma nova saúde, isso se depara com seu presente, seu aqui
e agora, as condições de seu bem estar, para dar lugar ao tipo guerreiro.
Nastácia e Michikín – nostalgia da pureza – manter o coração integro e intacto

Os tempos primevos é algo de que não sabemos, por isso deliramos a respeito
de nossas origens. A vida pulsional humana talvez tenha sido marcada, desde o
início, pelo trauma e o traumático seria marcado por um traço excessivo, ou seja,
se tornaria uma marca, uma tendência a repetição. Mas o que é o excessivo?
Dentro de nossa perspectiva do ressentimento, temos que o psiquismo quer fazer
desaparecer (eliminar, circundar, enfrentar) os estímulos excessivos torturantes,
compulsivos, que no caso do ressentido, se tornam delírios, fantasias de
perseguição, eliminação do outro. No tipo ressentido a pouca predisposição a um
acordo, ou aceitação do outro em seu agir. A felicidade ou gozo do ressentido é
fazer da passagem do delírio ao ato. Este é uma das perspectivas de entendimento
de ‘Memória do subsolo’ de Dostoievski, em que um tipo ressentido procura
convalescer através de um enfrentamento em via pública, - trombar de gente com
ele, não desviar seu rumo, sua viação - de um outro que lhe é tido como superior,
mais nobre. O ressentido quer descansar de sua pulsão, desta tensão ressentida,
via descarga agressiva, enfrentamento via delirante. Mas isso quase nunca se
realiza ou concretiza. Com isso a identificação com o agressor, com quem o

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humilhou, permanece. O ressentido fica aprisionada em algum processo
regressivo, o que temos chamado mais amplamente de ‘para trás’.
O problema todo do ressentido, nesta perspectiva traumática, é de que as
impressões sensíveis colhidas no outro, não se resolvem, são levadas ao sonho e
mesmo assim não se resolvem, por isso tende a se repetir compulsivamente, até
se desgastarem, até se tornarem menos poderosas, e a um custo energético
absurdo. Por isso o ressentido só pode viver para se permitir a fantasiar e delirar
modos de vingança, e assim o sujeito passa a fabricar esses modos de vingança
sem que contudo isso se resolva ou cesse. Para se desfazer do choque do que o
outro lhe fez sentir (ressentir), seria preciso inverter o trauma, o choque, em algo
suportável, familiar, o que no caso do ressentido, é quase impossível, na medida
em que esse outro lhe deve algo.
No ressentido o outro lhe abre feridas narcísicas que não cicatrizam de
imediato, pois toca nesta sensibilidade fina em que o outro se arvora no direito
de retaliação, de punição pelo excessivo que vem do outro torturador e
perseguidor. Este dizível, essa nomeação do que somos vinda da boca de um
outro (que nem me conhece e nada sabe sobre mim), é sentida como insuportável,
onde nenhum sacrifício, nenhum ritual próprio é o suficiente, o bastante para
fazer cessar ou deslocar esse conteúdo, em algo suportável ou processado pelo
fazer simbólico. Ao golpe sofrido pelas costas, o ressentido só pode se virar ao
agressor em forma de revide, único móvel que pode dizer que não se trata de
covardia, mas de orgulho em poder fazer um enfrentamento de frente, em não
mais aplicar o veneno contra si mesmo. Ao não conseguir evitar de sentir o ódio
contra um outro, o sacrifício deixa de ser uma resposta, pois se sacrificar-se
implica em golpear-se a si mesmo, e não o outro ofensor, isso gera não o alívio,
não uma tolerância para com o ofensor, mas uma dobra, um ponto excessivo tal
que o veneno toma o sujeito e o faz louco. A doença ou a loucura do
ressentimento, inverte a tese de fuga para a frente de Turcke (Filosofia do sonho),
e sinaliza ainda que essa combinação explosiva, excessiva de autopreservação e
autodestruição no caso dos ressentidos, é mais complexa do que a princípio se
imaginaria.
No conceito de Pharmakon, temos que o veneno em doses pequenas e
purificadas, se torna vacina, ou seja, um algo capaz de desopilar (FAZER FLUIR
A BÍLIS NEGRA, ESQUECER) o fígado, produzir alegria. O ressentimento é e
tem um efeito catastrófico na vida mental de uma pessoa acometida desta
sensibilidade que se torna uma defesa inventada contra o outro e contra o viver,
que conduz não só a uma paralisia do desenvolvimento afectivo, emocional, mas
também uma retomada da fantasia, ou mesmo da soma de todos os traumas
vividos por uma pessoa (uma memória archetípica?) em que o devir se encapsula

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num processo de autodestruição ativa, não para se criar novas possibilidades de
vida e de viver, mas para a representação do irreconciliável, do não
esquecimento, do não perdão se eleve ao máximo, como potencialidade de
clivagem psíquica onde Apolo e Dionísio se querem mutilar, destruir, aniquilar
e não mais fazerem acordos. Quando se fala de Apolo e Dionísio na forma de
instintos ou pulsões, propostas por Nietzsche, se esquece de perguntar o que
acontece quando isso não se efetiva, ou seja, se caso ambos quiserem por em
marcha todo o poder de cada um contra o outro, o que disso resulta, em suas mais
profundas consequências vitais.
Então para além do recalcamento freudiano, em que os elementos
irreconciliáveis são mandados para o inconsciente, a fim de preservar a
autonomia do eu, no caso de uma rigidez do afecto, o que temos é uma não
plasticidade das pulsões, uma autoplastia que implique a morte do eu ressentido,
e que no tipo ressentido implica só em destruição – de si e do outro – ou tudo
junto e misturado. Nesta perspectiva do ressentido que fica fixado na guerra, no
caos pulsional, a destruição não implica em nova construção de um eu, de um
novo modo de vida, mas em uma identificação com o agressor, não de forma a
lhe permitir um lugar dentro da cadeia social, mas de fundamentalmente, poder
destruí-lo como um piolho, uma barata. É assim que a ideia de Ródian é
apresentada em Crime e castigo, na certeza de que se pode eliminar os piolhos
utilitaristas, sem maiores problemas de culpabilidade ou quetais.
Na descrição de Dostoievski, o herói guarda para si o seu feito, mas é preciso
ainda dar testemunho desse ato – o assassinato de uma velha usuária, do piolho
social do qual os homens de bem se ressentem – mas não um testemunho a
polícia, ao investigador que dele desconfia de algo. O testemunho é para Sônia,
a mulher que não julga, que é a partir de sua confissão, tomada como
companheira de viagem em sua posterior ida a prisão. Esse testemunho em
particular guarda não só a memória de uma cena traumática que implicaria em
culpabilidade por parte do assassino, mas para além disso, um desejo de voltar a
ter potência, em fazer suas pulsões se moverem para frente, sem estar fixada aos
grilhões de uma promessa qualquer (no seu caso o de resgatar sua pobre família
a beira da miséria que se sacrificava por ele). O desejo é de renascer em potência,
após um ato heroico, que livra a humanidade dos piolhos indesejáveis.
A promessa lembra também esse tempo que não passa, e de que todos os
esforços que o devedor fizer para pagar ou resgatar sua dívida serão insuficientes,
ou seja, jamais deixará de ser devedor e se tornar algo que não seja isso.
Encriptado no ressentimento, o espaço protegido do simbólico fica
comprometido, ou seja, é impossível abrir um convalescimento nesta viação
pulsional. A dimensão do ressentido, é revisitar seu túmulo, seu inferno próprio

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e voltar de lá ainda mais travestido da pele de seus fantasmas, fazendo-os tão
vivos que não se pode mais enterrá-los. O ressentido se torna máscara de sua
própria cena traumática, de sua narrativa fantástica do que o acometeu. Aí não
há esperança de trégua, como em Filoctetes na ilha abandonada, em que só a
imaginação se apresenta a quem foi abandonada por um outro (Ulisses).
No âmbito coletivo o desejo de vingança é algo que se pode problematizar de
geração a geração, como no caso o desejo de vingança das vítimas (de
holocausto, de assassinatos familiares, de povos contra povos, de nação entre
nação).
O ressentimento é algo a ser compreendido, pois se antigamente os povos
primitivos comiam seus rivais (rituais antropofágicos) e lhe restava ainda a força
dos mesmos incorporada, agora entre os ressentidos nem isso fica, pois essa
incorporação e identificação da força do inimigo, do rival, do agressor é ausente,
presa na roda de Ixón, ou seja, em mimetismos e repetições que só fazem atiçar
a fantasia doentia de vingança e punição adequada ao ofensor.
Quando sinto o ódio em minhas veias, sou o ódio, quando sinto medo, sou o
medo em minhas faces, quando me vingo do outro, ofendo a mim mesmo.
Num para trás, feito de um recuo e uma solidão significativas, que abre o devir,
temos um retorno a um estado sem angústia, sem o terror e angústia, livre das
fantasmagorias que preenchem o sonho conveniente do tipo ressentido e todo a
constelação em torno de um possível ressarcimento do que foi levado ou perdido:
a dignidade, a humilhação, o desejo de viver.
As imagens oníricas do ressentido irrompem na existência do sujeito, em
lampejos e cálculos de como e de quando fazer algo a respeito do que sente, como
o homem do subsolo de Dostoievski, que mede seu oponente diariamente e sonha
o dia de não desviar sua rota, seu corpo do dele, e quando finalmente assim o
fizer – não mais desviar – seu ódio irá passar, pois o tomou como um igual. Mas
serie esse o enfrentamento do convalescente?
O poeta Frances Baudelaire, fala do convalescente, de que neste estado de alma
se lhe altera as percepções:
‘A convalescença é como um retorno à infância. O convalescente goza, no mais
alto grau, tal como a criança, da faculdade de se interessar intensamente pelas
coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais ... A
criança vê tudo como novidade, ela está inebriada. Nada se parece tanto com o
que chamamos de inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma
e a cor’ (Baudelaire: ).

A inocência da criança que faz parte da sabedoria trágica, de uma inocência


que abre o devir, nada tem de paralisia, congestão dos afectos, mas sim com a

86
coisa mítica, com a narrativa em que se toca a verdade, falando o que se se passa,
sem rodeios. A descrição do príncipe Mickhín de Dostoievski é narrativa no
tempo mítico em que ele passa na aldeia suíça junto as crianças.
A tipologia de Nastácia é equivalente e oposto ao príncipe – um é compassivo
e o outro inquieto e errante, no fundo são dois órfãos, que em suas respectivas
destinações, um foi apadrinhado e cuidado sendo a outra violada, seduzida. Em
ambos uma nostalgia da pureza. Ela que foi maculada e denegrida por Totski, um
sensual, parece perder o seu coração, sente-se indigna de relacionamento sadio.
Duas pessoas fora do comum. Não respeitam códigos sociais. Um por não
conseguir se adequar, e a outra por ressentimento, por reagir a tudo o que é
máscara e hipocrisia. Tirar as máscaras ou códigos sociais, incita a agir, a
convalescer, e isso provoca ressentimento.
Degradação por ressentimento, impedimento de convalescimento.
A beleza do trágico – as belezas de Nastácia e Agláia. Arte e o belo salvarão o
mundo.

A produção simbólica

Os símbolos devem estar em conexão com os sentimentos, ou seja, desde


Melanie Klein, sabemos que o uso de símbolos de cada criança devem estar em
conexão com seus sentimentos e ansiedades. Se, de fato, os processos simbólicos
estão na base das atividades expressivas do homem, então os símbolos estão no
cerne da criatividade e por conseguinte, os usos das capacidades simbólicas
evitam o adoecimento e servem sobremaneira ao convalescimento. Atividades
podem assim assumir um caráter ansiógeno –fixação – ou criador – sublimador.
Se o excesso de ansiedade ou sua falta são signos e sinais de como pode andar
e se processar os símbolos, ou seja, no caso da criança, o nível de curiosidade
deve ser mantido, e no adulto, a vida de fantasia adquire um caráter criador. Klein
diz ainda que a existência de um ego arcaico serve justamente para lidar com a
ansiedade (cisão, introjeção e projeção) e flutuações das experiências afectivas
do bebe que tanto pode receber amor como frustração e ódio, que desintegram
tanto o ego como o objeto. É neste momento que o processo de simbolização de
busca de representação simbólica deveria funcionar, substituindo o medo e a
culpa por algo da ordem de um não cindido ou ausente.
A função simbólica atua nos afectos de forma a disponibilizar a sublimação
para o que é meduzante – ambivalência, perda culpa, controle do objeto – em
luto, superação da perda, equalização da ansiedade. O símbolo é visto então como
cicatrizador da dor (possessão, agressividade), como cuidado de si pelo uso
máximo das capacidades simbólicas, ‘como estímulo para deslocar a

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agressividade do objeto original e, dessa forma, diminuir o medo e a culpa da
perda’ (Segal, :173). Do objeto original ao transacional (Winnicott), temos o
primeiro símbolo, e melhor ainda, a experiência do bebe de poder ilusoriamente,
criar o mundo, criar um espaço protegido dentro de si, o que tenho chamado de
recuo e solidão, para construção da capacidade inventiva – simbólica –de tomar
para si, os companheiros de viagem necessários a uma boa saúde mental. Vide
meu ensaio sobre Luciano chagas.
Alucinar, sonhar ainda um pouco mais sempre foram e se constituíram como
os espaços criativos que permitiram, dede criança, ao enriquecimento afectivo
que resulta em capacidade simbólica e concreção do corpo como repositório de
uma sabedoria que Nietzsche diz corpórea, potente em um Self capaz de
responder efetivamente as experiências catastróficas a que muitas crianças
ficaram submetidas. Para além de um ego corporal, temos um Self organizador.
Klein relata ainda em fantasias primitivas do bebe que expele excrementos
nocivos, expelidos com ódio, projetados na mãe, para dentro da mãe, e sendo que
essas identificações projetivas, vindas das impressões sensórias do bebe – seu
corpo – ou ainda suas experiências afectivas -, e que devem ser reenviadas pela
mãe de forma tolerável, amorosa, ou seja, capacidade d formar símbolos ricos
em algo que possa ter significado e depois, posteriormente, pensado.
O ressentimento que não é suportado e projetado em um outro, necessita de
uma volta, ou seja, um reenvio (reverie) de que a alucinação do que vem eivado
e carregado de uma carga de ódio insuportável, possa ser tolerado por esse outro
– como no caso da mãe – que suporta amorosamente essas projeções, e que nessa
possibilidade de fazer conexão, isso não fique no terreno ideativo de uma defesa,
mas que como Atlas que suporta o peso do mundo – as dores do homem e da
humanidade – cuide de metabolizar a bílis negra em imagens outras que
esteticamente simbolizadas, de forma a aproximar Apolo e Dionísio, ou seja, a
cognição do afecto, a razão do coração.
No recuo e na solidão os elementos projetados são recolhidos, passam pelo
tratamento simbólico e num fazer arteterapêutico são de certa forma
reintrojetados sem a carga de ódio que fixa e paralisa a pessoa em seu mundo
imaginário.

Hécuba, a mais sofredora das mortais

A vingança de Hécuba é exemplar. De rainha a escrava, Hécuba tem a visão do


filho morto – Polidoro – que lhe aparece, dizendo que foi morto por quem o devia
proteger (polimestor). Em meio a um tempo que se cristaliza, pois os gregos não
podem voltar a Atenas por falta de ventos favoráveis, o sofrimento de Hécuba se

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aprofunda ainda mais – descida ao inferno – quando recebe a notícia de que
Polixena é sacrificada (por um suposto pedido do fantasma Aquiles que falecera
na guerra e que em vida tinha visto e observado sua beleza).
Aquiles que desejava casar com Polixena, foi traído por Hécuba, que lhe
preparou um sórdido plano de lhe prepara uma emboscada no templo onde a
virgem lhe seria entregue em casamento.
A mesma Hécuba que, para se vingar da morte do filho, também atrai o
assassino a sua tenda e o cega, e aproveitando a oportunidade, mata também os
filhos dele. Assim feito, Hécuba, tomada de um daimon, e recebera uma predição
de Dionísio, de onde de sua sepultura será gravado os seguintes dizeres:
‘túmulo da infeliz cadela, um sinal para os nautas’.

Mas que sinal é esse aos navegantes, a aqueles que empreendem sua jornada
rumo ao recuo e solidão? Um sinal claro: de que o ressentimento é visto e
observado pelo deus dos excessos. De que os excesso da guerra, a descida até o
nível da barbárie não é tolerada nem pelo deus das paixões. Estamos diante de
um processo de recrudescimento dos afectos uma espécie de animalização da
pessoa que sofre desmedidamente, o que a torna tão cruel e desumana como seus
agressores.
Poder se movimentar de um lado e outro, é uma condição do espírito tornado
livre, inclinado a se tornar oposto a qualquer convicção ou ideal, e voltar-se para
as maneiras de deixar intactas as relações entre razão e coração.
‘a madura liberdade do espírito, que é também autodomínio e disciplina do
coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários – até a
amplidão e refinamento interior que vem da abundância, que exclui o perigo de
que o espírito se perca e se apaixone pelos próprios caminhos e fique inebriado
em algum canto, até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e
restauradoras, que é precisamente a marca de uma grande saúde, o excesso de
que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e
oferecer-se a aventura: o privilégio de mestre do espírito livre’ (Nietzsche,
Humano demasiado humano, parágrafo 4).

Para além dos decifradores de mundo e da necessidade de certezas e valores,


voltamos uma vez mais ao conceito de útil – o que é mais útil ao homem?
‘o verdadeiro mundo – uma ideia de que não é útil para mais nada, que não é
mais nem sequer obrigatória – uma ideia que se tornou inútil, supérflua,
consequentemente uma ideia refutada: expulsemo-la!

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Dia claro, café da manhã, retorno do bom sens e da serenidade, rubor de vergonha
em Platão, alarido dos demônios em todos os espíritos livres’ (Nietzsche,
Crepúsculo dos Ídolos: 332).

Se dançar a beira do abismo exige coragem de matador, se para se pensar o


lugar de uma liberdade possível, temos que passar, atravessar esse obstáculo
chamado ressentimento, eivado de bílis raivosa de nacionalismos, idealismos de
todo tipo, de relações em que o olhar de um para o outro comporte um pouco de
serenidade, como espíritos livre que abrimos enquanto possibilidade de
experimento consigo mesmo e com os demais.
Experimento de vida, enquanto o medo da vida é o caminho, a procissão de fé
do tipo ressentido, e quando a vida via e ativa é ainda a superação da culpa e o
restabelecimento da liberdade entre o que vem do coração e da razão, em que
isso se expressa no aforismo 408, descida ao Hades.
O pior momento de dor e sofrimento, lá onde a cura se desfaz ou aparece como
um firmamento longínquo, é nesse momento limite que Nietzsche tenta se livrar
do ressentimento, em prol disso que é um retorno a si mesmo, uma espécie de
cura, de dizer sim ao convalescimento, como processo.
A pergunta: - Sou livre?
Devemos a ela a tentativa de retirar antes de uma possível resposta, tudo o que
existiu como peso a liberdade humana – culpa, ressentimento, imperativos
morais, ideal – que acorrentou o espirito e que agora, mais uma vez, deseja-se
liberto, se prende a uma riqueza outra, que Bataille anunciou:
‘para a liberdade de espírito a busca de uma solução é uma exuberância, um
supérfluo: isso lhe dá uma força incomparável.’ (A parte maldita: 53).

A exuberância é Dionísio, uma riqueza riquíssima que faz do recuo, do para


trás, da solidão voluntária, a força para o salto. Para além das necessidades, é o
luxo (o resto que sobra, a exuberância, a extravagância, a riqueza riquíssima são
quem colocam o homem diante do abismo e o preparam para o salto no escuro.
No salto o homem pode adoecer, encontrar lutas e obstáculos incomensuráveis,
e isto o obriga a recuar, a andar uns passos para trás. O problema não está no
recuo e no para trás, pois isso é temporário, é um momento de refazimento de
saltar para outros modos e possibilidades de retomar o experimento de vida e do
viver, mas se o sujeito insiste em fazer do caminho ‘O Caminho’, o único
caminho, então ai surgem as brechas para o ressentir-se, para um combate único
e exclusivo, onde as energias se concentram numa necessidade de castigo, de
obrigação, de culpabilização. A necessidade, como vimos não é liberdade, mas
paralização da vida.

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Um sujeito pode viver sobre regras, mas sem se deixar aprisionar nelas. Odiar
a regra é uma luta ressentida, enquanto que o ‘vielgestaltige’ é uma capacidade
dionisíaca. O recuo como correção do ressentimento é um êxito de justiça, um
êxito do convalescimento, que faz justiça ao espirito que sequer tornado livre.
Descobrir o que há de ressentimento em si mesmo, é legitimar a luta contra
esse excedente pulsional que se quer único e legitimado enquanto forma de luta
e justiça realizada em forma unidirecional. Fixar os elementos do ressentimento
– afectos, pensamentos – como real, como verdade última é adoecer do que pode
ser experimentado como fluido, dinâmico, plástico, como uma interpretação
dentre tantas outras.
O recuo e a solidão levam o sujeito ao seu meio dia, ao meio do caminho, lá
onde no rio, a correnteza é mais forte, é o momento de escolha e decisão. Chamo
isso de momento limite, onde dor e prazer se confundem, momento de esperança
última de convalescimento, de libertação de si do homem. É o apogeu do instante
em que sempre se volta –como eterno retorno – pois ai aparecem os signos e
sinais de Dionísio – para que uma vez mais o sujeito queira convalescer, até um
ponto de sombra onde não se reconhece mais a presença do deus e o
convalescimento não é mais possível, nem provável.
O eterno retorno da luta entre Apolo e Dionísio se faz mais intensivamente,
como bom combate, nos momentos limites, em que o sujeito tem de superar-se a
si mesmo, em ter de lidar com a adversidade de seu eu e seu outro convalescente,
em que a doença que ainda encontrou o fio condutor de uma nova saúde.
As novas maneiras de se viver passam pelo convalescimento, pela retomada
dos afectos tristes que querem fazer dos acontecimentos um peso e um estorvo,
como o são a doença e o doente.
O momento limite supera, em potência, em possibilidade, os medos, as
angustias, os desgostos, e abre um convalescer. Passagem que une novamente o
simbólico ao sujeito, coração e razão, mantidos ambos íntegros e intactos.
O coração integro e intacto abriga as metamorfoses do sentimento, sendo a
mais enraizada delas a do ressentimento que necessita de uma potência de força
simbólica que o interprete, empurre este resto não para um para trás, mas a um
convalescer, do plus que só a riqueza riquíssima se desdobra em criação, devir.
Se o tempo de autofortalecimento do homem é chegado, para além da
moralidade dos costumes e a hierarquização dos instintos numa configuração
domesticada, anunciando os novos tempos de sujeitos soberanos e auto-
legisladores, e por isso responsável por em colocar em andamento, seu
convalescer quando se sentindo cristalizado e preso pelo ressentimento.
Responsabilidade pela sua posse de uma boa medida, ‘O orgulhoso
conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência

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dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele
[homem soberano] até sua mais intima profundeza e tornou-se instinto, instinto
dominante (Nietzsche, GM, parágrafo 2).

Os estados mais abrangentes e a superação do tipo homem, passam pelo


instinto que degenera, ou seja, que se volta contra a vida e trabalha na
interioridade do psiquismo, um luxo sem refinamento. Para além de um direito a
vingança, a uma agressividade permeada de impulsividade, temos a força
conjunta da razão e do coração, em meio a inocência.
O ressentir é uma questão que aponta para o tipo decadente, cansado desse
mesmo movimento re-sentir tudo de novo, uma vez mais, nunca por fim ao
processo. O pensamento repetitivo e cansado de retornar e revisitar temas e
motivos, o que gera um combate com vários antagonistas, muitos deles
dramatizações imaginárias, que levam o sujeito a exaustão, a um profundo
desgaste interno. Doença (preponderância dos sentimentos de desprazer, ante os
sentimentos de prazer). A constante excitabilidade abre-se ao experimento de
todo tipo de paixões, sendo as preferidas de Dostoievski, o alcoolismo, a loucura,
as doenças dos nervos.
A vingança continuada lembra ainda o ‘Pharmacon’, ou seja, altas doses de
ódio e ressentimento matam, ao invés de curarem o doente. Re-sentir torna-se um
tormento, uma obsessão, um sofrimento não mais dirigido a alguma coisa ou
alguém, mas contra a própria vida e o viver. Automortificação, sobrevida
degenerada.
A incapacidade de esquecer ou mesmo ‘perdoar’ impõe ao doente uma força
inibidora passiva, cada vez mais potente, que Nietzsche chamou de
minemotéctica, uma memória da dor, pois infligir dor a outrem é gratificante,
prazeroso. Medir o outro pela promessa feita é também uma raiz dos processos
ressentidos. Avaliar é esse momento em que se ajuíza um possível prejuízo
sofrido e a forma de se aplacar esse dano aberto e cobrado sempre com os juros
e correção monetária do ódio ressentido. Ao inimigo, a pena capital, ou seja, a
perda de qualquer direito de proteção e a excomunhão, ou seja, a perda da graça
(doravante desgraçado, sem crédito algum). Dano e dor, as armas do
ressentimento. Mas aqui um esclarecimento importante, se a má consciência se
desenvolveu num momento crítico, de ruptura, de mudança, como atesta
Nietzsche (GM), contra a qual não havia luta nem sequer ressentimento, então o
não poder mais exercer livremente esse princípio instintual de infringir dor ao
outro, é tirado e com isso é preciso justificar sua não mais livre utilização. A
explicação moral é que mais coube dentro princípio, pois o mau, o criminoso, o

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espúrio doravante tem de ser medido e avaliado por um conjunto de normas
sociais, pertencentes as questões de e do direito.
Quem exerce a crueldade sob forma de penalidades é um terceiro, neutro,
imparcial, o que não aplaca a sede de vingança do que não pode mais diretamente
fazer uso dessa prerrogativa direta e imediata. Prudência de quem cobra e de
quem deve. Aprendizagem de ambos, troca dos impulsos inconscientes pelo
cálculo da razão. Interiorização do homem.
Assim os ‘velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre
esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem
livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo’ (Nietzsche, GM
II, parágrafo 16).
Uma profunda elaboração do que foi tirado do homem, em prol de algo maior
é uma questão complexa, que já passou pelos mitos, até pelo mal estar de Freud,
e se apresenta como uma questão aberta,

93
ENSAIO FILOSÓFICO

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MOMENTO SUPREMO DE JESUS
GETSEMANI
ONDE TUDO SE DÁ

JOSE RAVANELLI NETO


PIRACICABA
2018

GETSEMANI

Nos momentos limites, a solidão é necessária, isso já o dissemos em ensaios anteriores, é


aliás, a linha condutora de que nos servimos para dizer sobre o que mais importa ao
pensamento, ao pensamento em conexão com o coração, bem dito.
Jesus em pleno sentimento de angústia e tristeza (não depressão), vai buscar um lugar onde
possa estar consigo mesmo (sua solidão), um lugar chamado getsêmani, ou seja, o lugar onde
se prensa as olivas, os frutos das oliveiras.
Ele está prestes a fazer seu maior experimento, ou seja, a fazer aquela ligação entre o
coração e a razão para buscar sua sabedoria suprema, aquele que lhe dá forças para afastar o
cálice e cumprir seu destino.
É mister lembrar que Jesus não vai a caça de Judas, não procura lançar nele o anátema de
traidor, nem procura demovê-lo de seus passos tortuosos de dizer onde Jesus está para em
seguida ser levado preso e condenado a morte por crucificação.

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O que Jesus sente é maior do que o desprezo, a raiva e o ódio pelo ato menor de Judas,
pois Jesus não tem por seu apóstolo um desejo ressentido, nem de vingança, seu experimento
é mais além disso, ou seja, seu modo de proceder é outro, aliás seu modos operandi é
surpreendente:

- JESUS COMO VIAJANTE, NÃO TEM CASA NEM PARADEIRO, MAS SABE QUE
SUAS ANDANÇAS TEM UMA ÚNICA MOTIVAÇÃO: TRANSITAR PELA ALMA
HUMANA, DESPERTAR NELA A CENTELHA DIVINA, QUE É SIMBOLICAMENTE
FALANDO, PREPARAR CADA HOMEM PARA SEU MOMENTO DECISIVO.

Cristo havia chegado ao seu e não queria estar dormindo nem descansando como seus
discípulos. E isso por 3 vezes o chamou sua atenção. Jesus mesmo diante de seus 3 discípulos
mais próximos, viu e percebeu que eles não podiam ser seus companheiros de viagem para
aquele momento limite, por isso O Senhor lhe enviou outro companheiro de viagem: Um
anjo. A sabedoria suprema que une razão e coração, que afasta o cálice e aceita o destino é
da ordem do anjo e não dos apóstolos.
É o anjo quem o mantém desperto e preparado para não sucumbir ante os sentimentos que
se tornam então excessivos, ou seja, dionisíacos e sem controle, sujeitos a uma
desorganização mental tal que Jesus poderia sucumbir, ou seja, simbolicamente adoecer, sem
a possibilidade de convalescer.
Enquanto os apóstolos estavam no âmbito do sonho e do sonhar, num torpor que os
desligava da realidade do momento supremo em que chegavam, e do qual chegava Jesus,
como personagem principal, e para o qual foi preciso um anjo para consolar daquilo que
vinha do coração de um homem que chegava como qualquer outro homem, ao seu momento
limite, aquele em que tudo se dá.
Nesta perspectiva Jesus sentiu o que é peculiar a cada homem em redenção, ou seja, um
misto de emoções que perigavam chegar ao abismo da loucura, do desvario.
Momento que o destino reclama, e que põe a prova tudo o que se pensa e sente, em que o
perigo é potencializado ao máximo, ao ponto de ruptura e para além das emboscadas e
armadilhas que estavam a espreita do homem e vivida como transformação de si ou redenção.
Na solidão Cristo busca a oração. Mas o que é a oração. Oração é a sabedoria de que nos
servimos quando o coração está em pesadume e angustia. O coração em conexão com a
oração produz o conhecimento supremo. A oração abre as chaves para as portas do que
chamamos de ação sincera, tal qual a criança dionisíaca diante do Titã.
Se havia tanto a fazer ou suportar, tanto melhor seria orar. Se o sentimento da alma sendo
de tristeza, a ponto de morrer, isto era um algo excessivo e por isso o coração de Jesus
necessita derramar-se diante de Deus, de outra forma, ou seja, sem cair na depressão
paralisante, ou na angustia de morte. Desse excessivo outro, chamamos de sabedora suprema
ou trágica. Sabedoria trágica que une terra e cosmos juntos, por isso Jesus simbolicamente
coloca seu rosto na terra e olha para o alto em sua oração maior.
A aflição de Jó (a contraface humana do momento limite) – cujo peso de sua aflição é mais
pesado do que as areias dos mares – nos dá a ideia do que chamamos de pesadume. Nietzsche
comenta sobre o pesadume: ‘a vida e a terra parecem-lhe pesadas, e é isso que quer o espírito
do pesadume. Aquele que, porém, deseje ser leve como uma ave deve amar-se a si mesmo:
Assim predico eu’.

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Nietzsche sentiu isso em sua alma, e por isso acrescentou que esse amor não é dos
enfermos, mas o que suporta si mesmo, ou seja, daquilo do que nos é próprio e é pesado
levar. Manter-se de pé no momento supremo, é para Nietzsche aprender a esperar a ‘mim
mesmo’, ou seja, ainda assim, apesar dos pesares, pôr-se a andar, correr, saltar, a trepar e a
bailar.
Ter tempo para orar é ter tempo para falar consigo. Estamos mais perto de sbar o que é
bem e mal nos momentos limites, é aí que tudo se dá. A contraface humana dos discípulos
são o sonhar da fantasia, o sonho que perde o momento de convalescer e curara a si mesmo.
Momento supremo, pois é sentido por Cristo e filosofado por Nietzsche: ‘Mas eu queria
que fosse assim! Assim o hei de querer!’. Esta coragem e força eram as que o Cristo
necessitava quando fazia seu silêncio de convalescimento.
Uma ação que se faz por potência do ato, e não por esperar algum tipo de recompensa
futura, eis o perigo de todo cristão, fazer esperando algo em troca ou esperança futura.
O mito de Prometeu é exemplar neste sentido, ao dar o fogo aos homens, Prometeu
descumpriu um acordo divino e foi punido por isso. Como Titã, só encontrou redenção
quando em sua solidão vivida na rocha fria e longe dos humanos, pode perceber que os
homens possuíam já o fogo dentro de si mesmos, que seu sacrifício, foi num certo sentido,
em vão. O momento de Cristo é antes de tudo para si mesmo, e não para salvar os homens.
Esta premissa vai contra todo o arcabouço cristão de que o pecado só pode ser resgatado na
pessoa e no sacrifício do Cristo. O que podemos dizer aqui é o que poucos sabem, ou seja,
para além da ideia de bem e mal, há antes o momento limite, e é ali em que tudo se decide.
É com esse momento supremo que todos os homens tem e terão de se haver. O que há,
para além de bem e mal é viver a vida. A nobreza do Cristo não reside em sua morte pelos
homens, assim como Prometeu o havia feito, a nobreza de Cristo está em passar como
homem, em meio a vida dos homens, pelo momento supremo e suportar seu destino ereto,
ou seja, nobremente.
Libertar-se do passado, do pecado, significa olhar para frente – devir – isso é o que a
sabedoria trágica chamaria de redimir, convalescer ou simplesmente caminhar como
viandante, como Cristo o fez. Transcender o ranço, a raiva e o ódio dos que querem trazer o
cálice para mais perto de Jesus, significa sentar-se à mesa, como Cristo o fez com seus
discípulos e para que seus estômagos não ficassem revoltos, deu-lhes o seu próprio sangue,
ou seja, simbolicamente encenou ali, no meio de seus amados a sua morte, que deveria
embarcar na barca da morte para que os homens pudessem viver, não livre dos pecados, mas
que mesmo ante a morte e o morrer, se anda de pé, fica-se de pé até o último instante, sem
cansaço ou desesperança (afastar o próprio cálice).
Nietzsche diz, e penso que isso se aplicaria perfeitamente aos apóstolos, que dormem
enquanto Jesus ora: ‘Mais vale, em verdade, que o deixeis onde caiu até que venha o sono
consolador, com um rumor de chuva refrigerante. Deixa-o deitado até despertar, até que
repila todo o cansaço e tudo que nele demonstrava cansaço. O que haveis de fazer, meus
irmãos, é afastar deles os cães, os preguiçosos casmurros e toda essa praga invasora. Toda a
praga invasora de gente ilustrada que se alimenta do suor dos heróis’
O suor de sangue do Cristo não é para alimentar os apóstolos, nem dar-lhes ilustração, mas
é para que olhem o experimento que o Cristo está fazendo e como ele o está processando.
Isso é sabedoria trágica e suprema.

97
Apolo é o deus do sonho, da bela aparência (necessidade da imagem). Então qual era a
imagem que fica no monte das oliveiras, qual é a imagem forte do getsanime. O que fica é
essa necessidade de solidão, de uma solidão outra, que processa um experimento de si
mesmo, que tem efeitos de um cuidado de si para si próprio. Jesus não afasta o seu cálice,
sua finitude, ao contrário, o havia sorvido em meio aos seus mais próximos, a quem amava.
O pharmacon de Jesus, seu experimento vai para além dos sonhos ordinários, dos desejos
transitórios, em prol de uma realidade mais ampliada, a um drama mais amplificado, repleto
de linhas delicadas de uma sabedoria outra que atua para além do patológico, da
enfermidade, lá num limite mais estendido em que uma imagem se paralisa na forma bela,
no sonho de uma vida boa. O fim é sempre trágico, e mesmo que se diga que o Cristo é
aquele que sonha com outra realidade, extra mundana, a imagem que fica é a do sonho que
quer um pouco mais, ou seja, continuar sonhando, mas não com a bela individuação de si
mesmo, através dos diferentes usos da razão, mas sim que a individualidade, a própria beleza
comporta a dor, o momento limite, onde tudo se dá. Isto equivale a dizer que a vida e o viver
são um experimento a céu aberto, que toca e recorta o caos, tendo em vista a criação a partir
do momento supremo. Ser capaz de viver de modo trágico é um pensamento outro que Jesus
experimentou no monte das oliveiras, pois mesmo intuindo sua crucificação, seu sofrer, sua
ação foi de extrair prazer desta luta, e isto seria uma melhor definição do ‘bom combate’ dito
pelo apóstolo Paulo.
Se impor como medida, como imagem que se sustenta e vai até o final de seu caminho,
mesmo diante do caos e da dor, é a imagem que fica do Jesus em Getsanime.
A dignidade de Jesus, de sua vida e que o impeliu a viver o momento seguinte – sua prisão,
a traição e sua morte – não se paralisam na cruz - mas seguem adiante, num movimento de
comunhão entre céu e terra.

Conclusões

O experimento do andarilho, do peregrino Jesus, é de que em seu momento supremo,


aquele em traz para perto de si 03 apóstolos, os mais queridos pelo coração, para que eles
testemunhassem este seu momento supremo, que tirassem dele uma sabedoria. O que poderia
ser olhado como um momento de fraqueza humana do Cristo, um ato censurável de rendição,
de deixar-se tomar pela raiva, ódio ou ressentimento, era para ser sustentado com um olhar
daquilo que vemos e nos olha de volta, ou seja, de que Cristo gostaria que ao deixar seu
orgulho de espírito enviado por Deus, ele se colocava como sofredor, como todo e qualquer
home que sente uma dor intensiva e que pode, no limite, conduzir a loucura ou a doença.
Isto para que os seus discípulos vissem e fossem olhado de volta por Jesus. Mas como isso
se daria se eles dormem. Como eles chegariam a sabedoria suprema e trágica, se por 3 vezes
dormiam. Enxergar as coisas e através das coisas é um algo é para poucos, e Jesus não se
zanga com seus discípulos, pois seu experimento de solidão deu forças para seguir adiante,
dar o próximo passo. O próximo passo não é o Nirvana, ou sequer o paraíso, mas sim a luta,
o bom combate. Quando Jesus pretendeu ser educador trágico de seus discípulos, ele
dormiam, estavam exauridos.
A grande dor de Jesus como libertador de seu espírito, passa batido pelos apóstolos.
Jesus não se fortifica prometendo o céu aos seus mais próximos, ao contrário, diz para que
eles, no momento limite, possam também seguir adiante. A fortificação de Jesus passa, como

98
vimos, pelo seu imediato convalescimento das fortes emoções, de sua paixão. Este
convalescer é feito pela oração, pelo encontro de um anjo, um companheiro de viagem mais
adequado ao momento do que os apóstolos, que dormem, e pela saída de toda e qualquer
forma de ressentimento.
A paixão que se deixa levar pelos afectos vingativos, pela imaginação apolínea que
esquadrinham as formas mais reativas da ação, não são bem vindas, não fazem parte do
momento, do bom combate do Cristo. pois qualquer ideia de vingança, incluindo para aquele
que estava por vir (Judas), não fazem parte da tipologia do qual Jesus faz parte: Jesus é
aquele que perdoa, ou seja, esquece as ofensas e abre seu próprio devir.

José 2018

Ensaio Psicológico

99
A tresvaloração junguiana no livro vermelho

José Ravanelli Neto

2017

Para contextualizar o livro vermelho de Jung

A mudança de valores em Jung foi dramática, radical, pois necessitou sair de uma
valoração em que o bem deve vencer o mal, a verdade deve prevalecer diante da mentira, a
luz ás trevas, para outro ponto em que, a maneira nietzschiana, ambas as forças se respeitam,
se coadunam em alguns breves instantes, para produzir o novo, a união entre duas potências
impossíveis. Em Nietzsche isso ocorreu entre Apolo e Dionísio – em que uma pulsão não se
sobrepôs a outra em definitivo, nem aniquilou, mas juntas processaram a vida e novas
possibilidades de viver.
Com Jung deu-se a mesma coisa, ou seja, bem e mal não são opositores de morte, mas
potências a serem respeitadas e integradas no mesmo e único coração.

100
Para que a mudança de valores siga seu grau máximo, ou seja, tresvalorize, temos um
processo:

1- Um momento adequado – o que chamo de momento limite, ou seja, algo que nos
empurre para um recuo e solidão. Esse algo geralmente é uma dor, um sofrimento de
alguma espécie insuportável, para além de uma mal-estar.
2- No momento limite (matar, morrer, enlouquecer, e quem sabe ainda convalescer), algo
se dá, ou seja, algo a nível simbólico, que engloba uma espécie de fazer.
3- Uma pessoa só consegue elaborar uma dor e sofrimentos insuportável, fazendo algo,
alguma coisa que é uma simbólica, algo que tenha a ver com as capacidades
simbólicas de cada um.
4- Um fazer simbólico é portanto, uma necessidade para convalescer, ou seja, processar
uma dor uma doença para uma outra coisa que é uma saúde, uma nova forma de vida
e de viver.
5- Algo que para Jung tinha a ver com a alquimia, com os alquimistas que transformavam
sua psique na medida em que faziam algo (buscavam uma totalidade outra) que tinha
a ver com reunião e separação dos opostos, unir e separar partes de sua própria psique,
fazendo alquimia.
6- Quando a pessoa não consegue mais integrar as polaridades, ela adoece até um ponto
limite, ou seja, até onde a consciência fali, pois só conseguiu seguir o espírito do
tempo. Sucumbiu ao cotidiano. Vide passagem do livro vermelho Salomé e Elias, a
casa da floresta, e sua biblioteca e sua filha que diz sobre o cotidiano e comum.
7- Para convalescer Jung necessita de mediadores, de companheiros de viagem, que vão
funcionar, dentro desse seu recuo e solidão, como intercessores, como elementos que
possam fazer com que o encontro das polaridades tenha efeitos de convalescimento.
8- O caminho do meio em Jung não é hegeliano, é dionisíaco, ou seja, no meio está o
mais intensivo, o que possibilita não engendrar outras teses dialética, mas verdadeiras
revoluções valorativas. O livro vermelho não é hegeliano, mas nietzsche ano.
9- Antes de Dionísio de Nietzsche temos a mitologia, um conhecimento ou sabedoria
trágica: ali tocamos a nossa alma. O mito é nosso sonho remoto vivo, ainda vivo dentro
de cada um de nós. Jung vivia esse mundo mítico, e só podia curar pessoas se vivesse
isso dentro de si, tal como Nietzsche que só escrevia o que podia experimentar dentro
de si mesmo.
10- O recuo e a solidão, fazem com que o fazer de convalescimento vá atingindo
uma linguagem outra, que é ess ao qual temos referenciado, ou seja, uma linguagem
do meio-dia, no lusco fusco, que meio enigmática, pois é uma linguagem meio
imaginativa, figurativa, de sonho, de quando se está meio acordado, meio dormindo,
em quando não se é tarde nem manhã. É a fala do meio, em que se manifesta essa
sabedoria outra.
11- É no meio que o rio e sua correnteza é mais forte, e é no meio que Jung via e
falava com seus mortos e fantasmas.
12- Os fatores limites de Jung o levaram até a sua experimentação simbólica
fundamental: ir até ao espírito da profundeza, ou seja, descida até o inferno,
experimentar seu limite, convalescer pelo caminho do meio que é simbólico.

101
13- Jung não negou a dor em prol da mantenitude de sua felicidade exterior (sua
fama, seu reconhecimento pessoal). Preferiu ao invés disso, buscar um tornar-se, e o
tornar-se é algo que Nietzsche já pontuava como uma questão aberta para que o
espírito permaneça livre, que o homem tome para si o além do homem.
14- Então temos um arquétipo do convalescimento, ou seja, uma possibilidade da
psique diante da dor e do limite, agir com a sabedoria pulsional, como drama que
Dionísio já representou em seu teatro, que é experimentar um fazer de refazimento,
de morte e renascimento.
15- Esses personagens universais estão dentro de cada um de nós, a disposição para
um encontro dramático, que ocorre lá em nosso inferno, e acenando com a
possibilidade de que após esse encontro, possamos convalescer, ou seja, fazer uso
experimental de todas as nossas capacidades simbólicas.
16- O uso das capacidades simbólicas ao máximo, é uma espécie de loucura divina.
Nietzsche é o profeta louco, Goethe é o louco sábio, e Jung é o louco que fala do que
virá, ou seja, o profundo é Dionísio (Zaratustra, Mefistófilis).
17- Jung é o caminho meio entre Nietzsche e Goethe, enquanto Dionísio
reconstituído, numa nova versão, que é o caminho de descida e subida do inferno, pelo
convalescimento que ele próprio experimentou como digestão do mal personificado
em encontros lá dentro do Hades.
18- A possessão pelo espírito da profundeza por Jung é um convalescimento, ou
seja, tomar os opositórios em um bom combate. Tresvaloração do mal em pulsão de
vida, em instintos artísticos, tais como Nietzsche fez com o par instintual Apolo e
Dionísio.
19- No livro ‘lamento dos mortos’ Sono e Hilman chegam a uma conclusão
interessante sobre a outra linguagem dramática utilizada por Jung no livro vermelho:
‘Estamos no reino de Dionísio, que era o patrono, o deus do teatro’. E adiante: parece-
nos que Dionísio tem tentado entrar na terapia já há um longo tempo, como viajante
indesejado’ (Sono e Hilman: 41).
20- O reaparecimento do dionisíaco, soa como algo inevitável, como a profecia
junguiana que indica um pulsional de outra ordem, pois aqui levantamos a suspeita
deleuziana de que Dionísio não é falta, mas produção de novas e ricas possibilidades
de um tornar-se próximo da revivescência do que está no meio desse tornar-se, ou
seja, um simbólico embebido de imagens e de vozes que vem de longe, mas que
reverberam no coração daquele que o mantém integro e intacto.

E assim, escrevemos uma pequena parte do que pensamos ser um dos fios condutores do
livro vermelho, ou seja, um tornar-se entre aquilo que Nietzsche apontou como doença e
saúde, saúde que aceita o adoecer, e o adoecer que dá lugar a uma outra saúde, de um tipo
dionisíaco por excelência, em que o lado titânico convive, se não em harmonia, mas ao
menos sendo olhado pelo brincar inocente e instigante de Dionísio criança.

Jose - 2017

102
ENSAIO PSICOLÓGICO

103
JUNG DESCE AO HADES
O INFERNO DE DIONÍSIO

JOSE RAVANELLI NETO


2017

Considerações sobre o Inferno

Como vimos, Jung desce progressivamente até o inferno. Em o seu ‘livro


vermelho, temos um capítulo inteiro sobre o inferno. Após um recuo de 25 dias
no deserto, Jung menciona um sentido supremo, um reverdecer em meio a
solidão.
Jung está cheio de muitas vozes e em meio a esta multiplicidade se dá conta de
que cai. Cair no abismo sem fundo é tal qual Alice no país das maravilhas que
cai até se acostumar com a caída e quando se acostuma, readquire um certo

104
equilíbrio sobre a queda e pode enfim, em algum momento, pairar sobre o ar, tal
qual os paraquedistas mais experimentados o fazem.
A uma grande profundidade, Jung enxerga uma pedra com brilho vermelho.
Neste lugar há uma imensidão de vozes aos gritos. Sangue jorrando e secando.
Uma imagem terrível, com cobras encobrindo o sol e fazendo-se escuridão
completa. O caminho do sentido supremo passa por aí, o viés dionisíaco. A figura
do assassinado surge. A sabedoria dionisíaca nos diz algo a respeito dos
assassinados? Não é o herói que dramatiza nos palcos gregos o drama ático dos
que se aventuram em demasia e morrem? O que significa a morte do herói?
O herói é aquela vítima voluntária de seu destino? Ou seria como Lacan sugere
em seu seminário 7 (A ética da psicanálise), um sujeito que, em sua solidão, não
convalesce, ou seja, não faz apelo ao campo do Outro (desejo do outro do qual
se deve apropriar).
Aqui tomamos o herói como aquele que representa o drama universal, ou seja,
a apresentação dos tipos assassinados. Esse não é um problema do ‘Logos’, mas
do inferno, da efervescência de vozes de mortos, destas figuras de mortos que
reclamam o direito a fala, de alguém que se torne solidário e eles.
Jung se coloca ao lado dessa realidade vivida, dos que pereceram e deixaram
de viver algo, um resto que reclama a atenção. Estes perderam a medida (hybris)
e isso não significa o pecado, como os fizeram acreditar.
Então o trágico em Jung é o seu acontecimento limite, aquele em que o fez
deixar seu mundo seguro e bem alinhado de segurança e felicidade ilusórias, para
outro, de queda infernal, difícil de suportar, e por isso mesmo sujeito aos agons
e em meio ao pathos que acompanhará Jung em todo o seu percurso de descida e
subida do abismo. Assim como assassinado não tem descanso, o pensamento de
Jung também não. É uma pressão mental enorme, contínua, sem descanso. É um
primeiro limite:

1) O PENSAMENTO QUE NÃO PARA E NÃO DESCANSA


Isso é a proximidade do pathos da loucura, do não sossego. ‘os meus
pensamentos uivam em torno de mim’ (Jung: 134). Tudo o que se quer
neste instante, é um pouco de paz, de recuo e solidão para descansar o
pensamento. Mas isso é impossível a Jung nesse momento, ele segue
adiante, é aqui, que Jung faz a separação do joio do trigo, ou seja, da
multidão de vozes e imagens, ele deve escolher as que mais importam ao
pensamento
2) AS IMAGENS QUE MAIS IMPORTAM AO PENSAMENTO NÃO SÃO
DA CIÊNCIA NEM DA LÓGICA, QUE JULGAM E SÃO
SUPERFICIAIS.

105
Essas imagens não são terapêuticas, pois a loucura divina é aquela em que está
presente as imagens que dizem respeito a vencer o espírito de época, em prol do
espírito da profundeza, que está prenhe do horror. É necessário assassinar o herói
louro, ou seja, o espírito da mediocridade, o mundo filisteu, a vida rotineira
cansada.
Jung vai pescar no inferno essas figuras outras, como é a do assassinado, para
poder produzir, as avessas, essa linguagem outra, em que o homem comete
delitos contra si mesmo.
A imagem de Jung mais significativa no inferno, é essa necessidade de matar
o herói louro dentro de nós, não o irmão de fora, para que desse assassinato surja
nova vida, renovação do pensar e dos modos de viver (devenir). Consumar o
assassinato para que a potência de vida renasça, eis o que Dostoiévski perseguiu
o tempo todo em seu ‘Crime e castigo’, através de Ródian, o herói que quer
convalescer matando uma velhota. Mas como disse Jung o assassinato não é do
outro de fora, pois isso não fará o sol das profundezas renascer. Assassinar o que
não serve mais é difícil, pois gera dor e sofrimento, ‘nascimento é sangue e
sofrimento’ (Jung: 139).
Jung convida a cada um que deseja convalescer a experimentar o inferno pessoal,
não aquele em que o outro é culpado e paga a sua pena máxima, mas aquele
Hades onde é a nossa mão e não a de outrem que pé capaz de fazer as mesmas
atrocidades que nos fazem tremer na imagem que é um outro que é capaz de fazê-
lo. Há anônimos em nós, que querem matar o soberano, o eu embebido pelo
espírito de época, e isso que agora soa como ruim é bom ao lingo do tempo do
devir. É tudo uma questão de perspectiva e então podemos dizer que:

3) PERSPECTIVAR É UMA SAÚDE

Quem sabe perspectivar aproxima de si uma saúde mais robusta, nascida da


multiplicidade dos pontos de vista sobre uma mesma coisa, uma vida cheia de
transformações para ‘chegar a ser o que se é’ (Pindaro).
Ver o inferno por múltiplos olhares só é possível a Jung porque descer não é
uma perda, mas um ganho em ‘capacidade interior’ (Jung: 141). Capacidades
simbólicas, bem dito, pois o subsolo, ‘o lixo de todos os séculos em nós’ (Jung:
141), é o que foi chamado de bem, é o que nos faz fracos e doentes e o que foi
considerado ruim e mentiroso pode ser nesse momento e dentro desta
perspectiva, transvalorado, ou seja, inverter valores eternos, pois a eternidade
para Jung foi definitivamente abalada, ao menos no quesito que dizia respeito de

106
que o bem floresce sem a sombra do mal ou de que a verdade dispensa a mentira,
e assim por diante...

Conclusão

Jung em sua descida ao inferno retoma Nietzsche e a duplicidade apolínea e


dionisíaca, que afirmam a vida em detrimento da universalidade dos valores
cristãos tradicionais que arruínam a sabedoria do corpo e colocam no inferno
essas almas que lamentam uma vida não vivida pela ilusão de que o dever o
imperativo moral ‘tu deves’, fosse suficiente para viver eternamente, alcançar o
paraíso, e de-repente, mortos, se dão conta de que deixaram ao largo aquilo que
mais importava, ou seja, seu próprio coração integro e intacto que abre os devires.

Apêndice

Uma perspectiva junguiana sobre o mito de Dionísio

No final do livro vermelho, após tecer considerações sobre os 7 sermões para


os mortos, seu fiel escudeiro, Filemon, fala sobre uma figura negra com
sofrimento silencioso e longo descanso. Uma figura triste que traz a visão da
morte, mas que anuncia brevemente uma natureza estelar a Jung.
A natureza estelar, é um mistério, que na visão de Jung um céu reluzente que
parecia formar a imagem de uma mulher. Filemon pede algo a essa mulher mãe,
é um pedido especial, da ordem do mistério dos mitos mais antigos e trágicos:
‘Queiras aceitar seu nascimento. Fazer com que se renove’ (Jung, O livro
vermelho: 474).
A renovação ou renascimento é um fio condutor forte no livro vermelho, e
exige de Jung a condição de filho do mistério. Mas antes de ser aceito como filho
do mistério, a voz ou imagem de feminina exige uma purificação, ou seja, que
Jung mantenha separado sofrimento e alegria humanos. Humanos e não alegria
ou sofrimento estelar. Em seu recuo e solidão, Jung tem a visita de uma nova
figura (médico sábio) que vem lhe falar sobre a alegria:
1) Alegria como fogo curador (algo como o amor das mulheres), que cicatriza
a ferida aberta, as dores e chagas da humanidade. Para tanto um último
sacrifício, ou seja, a dilaceração. Tal qual como Dionísio criança diante do
Titã, uma alegria pura diante de seu destino: melhor brincar do que
qualquer outra ação. O melhor é agir mesmo diante do fim. Melhor é não
ressentir ante a dilaceração. Amor fati ao destino.

107
O maior receio diante do dionisíaco é a dilaceração seguida da perda da
individualidade. É isso que Jung teme e ressente em seu encontro com a imagem
da dilaceração. Mas nada a se fazer a não ser descer até o reino invisível, e lá no
inferno, na raiz mais profunda, esperar que o milagre do renascimento aconteça,
ou seja, permanecer em meio a um silêncio de morte ante ao que não se viveu.
O que ‘não se viveu’ é o inferno dilacerante de Jung e das vozes que lá estão.
Dionísio criança amou o Titã, dedicou-se a ele de corpo e alma em seu brincar,
e não o rejeitou em instante algum. Só assim a dilaceração pode ocorrer, ou seja,
por ato de amor puro e inocente.
‘como poderia experimentar de outro modo a morte, do que do fato de ficar fiel
ao amor e assumir sobre mim livremente a dor e o sofrimento do amor?’ (Jung:
476).

O renascimento de Dionísio se dá pela mistura das cinzas titânicas e do coração


integro e intacto. Mas aí há o mistério, pois não é mais Dionísio que renasce, mas
uma nova raça humana. Jung sente esse mistério da seguinte forma:
‘Só a fidelidade ao amor e a entrega espontânea ao amor podem desfazer essa
vinculação e mistura e trazer de volta a mim aquelas partes de meu si mesmo que
estavam secretamente com as pessoas e coisas’ (Jung: 477).

Então para se chegar a essa natureza estelar, ao seu si mesmo mais autêntico,
simples e único, é preciso esse amor fati ao destino, e na versão junguiana do
mito de Dionísio, é preciso ainda se ligar a pessoas e coisas desta destinação que
faz com que o ser humano seja vinculante em sua natureza terrena, mas em
excesso, em demasia, o aproxima demais ao outro e as coisas, de forma a perde
seu si mesmo. O desapego do desejo do outro, as coisas que julgamos mais
valoradas se faz como processo de convalescimento dionisíaco, que visa a morte
e renascimento numa nova saúde e cuidado de si mesmo, ou seja, revela nossa
outra natureza, para além do humano: Estelar.
Essa outra natureza de ordem estelar, aponta para além da noite escura, um céu
estrelado, uma alegria para além dos outros e das coisas, pois é uma alegria
nascida do fundamento mais trágico, que separa e junta alegria e dor, para depois
separar alegria e dor, e neste ciclo interminável e paradoxal do pecado. Jung quer
vencer o pecado da separação e abrir num devir a alma perdida no inferno, dar-
lhe asas estelares, para que alegria e dor, sejam as asas que juntas e misturadas,
elevem o ser humano ao seu mistério, e faça do mistério a questão que mais
importa:

108
Viver a própria vida, sem imitação, antídoto sublime para a vida não vivida.

José 2017

Ensaio Livre

Sobre tudo e nada


Tudo junto e misturado

109
José Ravanelli Neto
2017

Tudo o que eu penso aqui é com respeito a saúde.


Tudo o que se lerá neste ensaio é a esse respeito, diz disso direta ou indiretamente.
Tudo o que eu sei é que a saúde da alma, da alma e do corpo juntos e misturados é uma
pergunta sem resposta.
Tudo o que posso dizer então é: a saúde passa por um convalescer, um convalescer é um
processo em que se se passa da doença a busca de algo que chamamos uma outra saúde, que
passa por aquilo que se é, ou seja, suas fantasias, sonhos, imaginações e que isso é para além
de um normal, e de uma determinação, seja médica, psicológica, etc.

Então...
Imitar é a moda. Sempre foi, sempre alguém dispara algo esperando que os demais imitem.
O pior e pior ainda, se é que pode piorar, são os imitadores de Cristo...
Tem um livro chamado ‘Imitação de Cristo’, de um monge. Jung foi quem falou dele no
seu ‘O Livro Vermelho’. Para Jung, o livro é uma catástrofe de proporções inimagináveis.

110
Quando Jung desceu ao seu inferno pessoal, descobriu lá uma massa enorme da
humanidade que havia perdido suas almas, justamente por tentarem imitar Cristo, e agora
estavam lá, no inferno, em busca de redenção.
Jung conseguiu a sua – redenção – pois aprendeu a convalescer, ou seja, a subir de volta
do inferno, mas a massa gigantesca dos que imitaram ficaram lá. Acho que Jung nunca
conseguiu se livrar inteiramente dessa sua visão dos imitadores de Cristo. Sentiu culpa
talvez, pena, sei lá...
Imitar é, nesta perspectiva, algo igual a perder-se, ou ainda quem imita não tem alma, tem
mimetismo, vocação para se inscrever siamescamente na ordem de um esperado, de uma
subjetividade tomada pelas forças que já domadas torna o imitador, fraco, pouco potente.
Dostoievski sente isso em sua alma de escritor, de psicólogo russo, devidamente
reconhecido e abalizado a tal função, nada mais nada menos por Nietzsche. Seu herói de
‘Crime e castigo’ é exemplar neste sentido.
Existe algo pior do que imitar algo ou alguém? Esta pergunta valise, sem resposta, remete
o pensamento a outo ponto limite, a saber, a dos que se deixam engambelar. Engambelar
significa que o outro ao olhar um alguém, sabe-o que está em suas mãos. Um saber sem
palavras, apenas sabe-se que se pode dobrar o outro como e quando quiser, pois este se
encontra, literalmente já deposto e preso em suas mãos. Nesta ordem de engambelados
sistematicamente e ininterruptamente, inundado de todo tipo de coisas utilitaristas do outro,
estão os tolos, os bobões, os idiotas, os compassivos, especialmente estes últimos.
Ah! Os compassivos, os que engolem tudo e ainda tem espaço para achar que imitando um
amor ao próximo, estão c caminho de Jerusalém. Pensando e se gabando de um amor
altruísta, se deixam levar por sacerdotes ascetas, por utilitaristas de toda gama.
No que o tolo ou o imitador, ou ambos juntos numa mesma e só pessoa, se tornam? Em
ressentidos. Isso mesmo, em ressentidos, naquilo que Nietzsche tem de psicólogo e que sobe
trazer a baila em forma de livro – Genealogia da moral – neste lugar que, sem ser acadêmico,
científico ou mesmo filosófico, soube dizer o que um ressentido é. O ressentido é o lado
satânico, aquele em que se torna vítima e cúmplice ao mesmo tempo. Vítima de si próprio e
seu para trás e cumplice de um ódio que resiste aos mais sublimes argumentos, tais como Jó,
Filoctetes, etc, que se revoltam contra a ita de Deus pi dos deuses. O homem entregue a si
mesmo, ressente, e nem mesmo os sacrifícios podem tornar o ressentido em aceito, acolhido
por alguma divindade benfazeja.
O homem tem esse fundo violento, maligno, do qual Nietzsche, Dostoiévski, Jung dão
mostras, e o quanto o homem diante de sua angústia pode estar longe de seu coração. Para
todos esses homens: Idiotas, imitadores, ressentidos, á uma ação purificadora e redentora,
libertária, existiria um conhecimento, um saber, a se aprender? Entre o trágico e o sofista há
alguma ponte?
A vontade de acreditar em algo sempre foi muito poderosa. Crer no ser, no deus, nos
deuses, no herói, no diabo, e assim por diante. Mais do que na verdade e no sentido das
coisas, crer é um ato da fantasia, de uma ilusão ao qual todo homem aceita e muitos
sucumbem. A fantasia, a ilusão, a mentira, o sonho, são os motores do mundo e do viver
humano. São talvez até a fonte primária de sua própria sobrevivência. Para além ou antes
mesmo da transcendência, temos a imaginação.

A fantasia ou imaginação

111
No trágico, o herói parece culpado aos homens, mas dá um passo além, ou seja, sacrifica
valores, tresvalora, como diria Nietzsche. A desmedida, sentida como falta, é também o que
salva, mesmo na morte iminente. Para o herói a morte é mais um dos inúmeros limites, aos
quais se pode tocar, e inclusive perecer. A morte simbólica é para além do corpo, ou seja,
pode-se morrer de múltiplas formas, e mesmo assim pode-se também abrir um renascer que
se faz ante um convalescer; que pode chegar a cada herói e a cada um de nós, enquanto
possibilidade, como devir, um fazer de abrir janelas para a alma.
A morte, desmedida máxima do que aparentemente se deveria evitar, é então pedida e
buscada pelo herói mítico, que ao invés de evitá-la como ensina Sócrates, aceita sua sombra
constante e perigosa, como esse ‘plus’, como parte integrante de sua jornada, como encontro
quase que inevitável.
Mas é preciso lembrar, que na antiga Grécia, não havia culpa, então a princípio, o herói
não carrega consigo uma culpa, uma falta anterior. Então esse herói vive a sua vida sem
aquele medo de decepcionar algo ou outrem. Ele vive a vida integralmente, correndo ao lado
da morte, não como fantasmática, mas como parte do que ele é e sempre continuará sendo:
Finito. A vida não vivida é algo sem justificativa a um herói trágico. O herói como a música
ditirâmbica, possuem um gozo em seu próprio fazer e dizer do viver, pois se consumir
vivendo, é algo que não precisa se dito, na medida em que está posto: viver é sempre será
consumir-se num fazer qualquer. É uma música ao vento, é uma intensidade que se
intensifica até explodir, e em sua explosão oferece ao cosmos uma fagulha de luz e depois
sombra. O cantor e a música são uma só e mesma figura, e só os grandes cantores dão vida
ao instante único e simples eu é viver e tornar-se.
A fantasia do herói não é vida de outro herói, mas tornar o seu combate, digno de ser
considerado como tal. A imaginação do herói não é destruir um outro ou algo pelo prazer da
destruição, mas fazer do combate um momento precioso, de vida e morte, mas de uma vida
e de uma morte que se consomem num drama único e sem igual, por que esse encontro foi
obra de um destino estelar, e assim o inexorável ganha contornos de proximidade que não
pode ser contornada, e como fato incontornável, o que resta é a luta, o bom combate.
O bom combate não tem para trás, ou seja, a imaginação de um encontro para se tirar a
limpo uma rusga, um ódio antigo, um ressentimento qualquer. Aqui não se fantasia o mal do
outro, mas a quase que certeza de que no meu caminhar o encontro com o que me faz sonhar
é inevitável e incontornável.

Com o que sonha o herói?

O herói sonha com aquilo que o faz tremer, ou seja, em um dia, ao meio-dia, poder
encontrar-se com as figuras que estão no meio caótico de seus maiores pesadelos.
Antecipação de um algo querido e pressentido. Sua destinação mais abissal e profunda.
Enfrentar seus pares e fazer seu bom combate. Não é o mal ou a figura diabólica do mundo
cristão, mas as figuras de Dionísio. Não há tristeza nesse encontro dramático de vida e e
morte, apenas a impressão forte de que assim foi e não diferente do que foi.
Um sonhar ativo heroico que, em seu caminhar, não fica esperando o melhor momento
chegar, mas procura dentro do que lhe chega, a métis de uma criação potencializada dentro
daquilo que chega, mesmo que isso custe a vida. O desprendimento do herói é então retirar

112
a força até lá onde no limite, só reste o que se obste a um bom combate, é um contínuo não
reagir e sim agir, mesmo que cavalgando um tigre.
O herói é aquele que em combate, vive a sua própria ascese, ou seja, como aquele que não
tem apego em coisas ou pessoas, e sua virilidade e nobreza estão aí, na perspectiva mais
ocidentalizada do herói, podemos dizer que que este não vive e quer a contemplação, mas o
fogo que mesmo infernal, mesmo que conduza ao mundo dos mortos, requer ação.
A ação de todo herói é não reativa, ou seja, sem ressentimento algum com o quer que seja,
de caráter nômade, pois seu caminhar é feito em meio a dissolução, em meio ao curso do que
Jung chamou de Espírito de época, em meio a processos que o herói não pode deter, e por
isso não quer se aprisionar neles. O herói é quem exerce, em seu agir ativo e nobre, o
pharmacon, u seja extrai, seja do instante ou do tempo histórico em que vive ou percorre, a
sua saúde e não se deixa fixar na doença ou no veneno por muito tempo.
O herói é esse homem diferente, que processou não uma individuação, mas em sua ação,
se libertou do homem e do espírito de época, e atingiu o espírito livre, ou seja, o domínio
espiritual, estelar (Jung), em que a suposição de que o herói ‘pode fazer qualquer coisa’ é
perspectivada em nosso momento atual, na imagem de que fazer qualquer coisa não é o que
fazemos com o sexo, com a liberdade licenciosa, que é uma subversão ao conhecimento
trágico e dionisíaco, trazido por Nietzsche. Poder fazer qualquer coisa ou liberdade de
espírito, é ainda tomar-se a si mesmo, para poder continuar, mesmo que no caos.
Assim o herói que desce até o inferno, faz dessa ação algo muito pessoal, para poder
continuar caminhando, tendo uma nova saúde, quando descer até o subterrâneo implica em
subir ao encontro de uma nova aurora. O que chega com uma nova aurora, é para Nietzsche,
o que se dá ao meio-dia, ou seja, o que do inferno e das luzes, desse encontro, o que disso
resulta, quais efeitos isso produz na ação do herói.
É o encontro dos mortos do inferno, com aqueles que, vivos, devem viver suas vidas, sem
o medo ou o receio (culpa), do que virá, do que ainda não se experimentou, ou seja, o
encontro com seu próprio devir.
Então o herói é esse representante ou imagem daquilo que chamamos de divino, de
experiência de combate, de criação e destruição numa única pessoa, de forma que se possa
combater sem medo ou preocupação com a própria sobrevivência.

José 2017

113
Ensaio Psicológico

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Jung e o olhar que volta
Os mortos falam
Para além do lamento do Hades

Jose Ravanelli Neto

Piracicaba
2017

Sobre o que se vê e aquilo que nos olha de volta

Jung tinha algo que o empurrou para um recuo e solidão


Esse algo tinha a ver com a ruptura com Freud, com a sensação de guerra no
ar, com as mentiras do cristianismo, e isso tudo e muito mais que desconhecemos,
empurrou Jung até essa solidão voluntária e o fez experimentar uma descida até
o inferno.
Experimentar a descida de seu jeito, ou seja, fazendo seu livro vermelho o
conduziu a um limite: estar situado e sitiado entre a vida e a morte. Momento
perigoso, estranho, que é a mesma de muitos mortos que, no limite, se
perguntaram: estou vivo, morri? Estava morto em vida e não sabia? E agora
morto de morte morrida de vida sem viver, o que sou? No que me tornei?
Momento que Jung heroicamente transformou em liberdade, em instante de
graça absoluta, pois aí ou se mata, ou se morre, enlouquece e raras vezes,
convalesce.
O estado de graça de Jung, entre a vida e a morte, é ‘o livro vermelho’, e foi
esse fazer que o fez convalescer, reencontrar sua alma de volta.

115
O livro vermelho é então um traço, um signo e sinal, que atravessou Jung e
pode atravessar as eras, de um nova linguagem, de um novo fazer, que diga
respeito não só a Jung, mas de como podemos abrir nossos devires, em como
podemos chegar aos momentos limites e como heróis de verdade, poder ainda
convalescer e conduzir essas questões em respostas até um caminho onde não
sendo o que esse tipo de cristianismo indicou, ou qualquer outra religião, a um
patamar, a uma região onde se possa enriquecer de uma sabedoria outra, de um
saúde maior, em que se tenha condição de perguntar o que mais importa ao
pensamento, esse pensamento aliado a essa linguagem nova, que faz conexão
entre pensamento e coração, corpo e alma.

Dito isso...

O mundo dos vivos é olhado pelo dos mortos? Eis uma questão valise, uma
questão sem resposta. Muitas são as questões não respondidas no mundo dos
vivos, e Jung não escapou a elas em seu momento limite, ou seja, quando em seu
recuo e solidão voluntárias, resolveu ir até o inferno ou Hades.
Ir até o Hades em busca de resposta de reconciliação com os mortos e com sua
alma parece uma questão louca, mas é dentro dessa possibilidade louca que
alguns grandes homens já se aventuraram: Hércules, Odisseu, Orfeu, Jesus,
Dante, Nietzsche e mais recentemente, Jung.
Temos ainda o termo Katabásis em grego que significa descida, rumo aos
mistério desconhecido, ao mundo subterrâneo e ctônico, onde se podia ouvir mais
livremente não apenas o lamento dos mortos, mas aprender e promover encontros
com alguns deles. Ir até lá, significa um algo importante, necessário, ou seja, só
se visita o Hades quando se chega a um limite, a um instante supremo, perigoso,
onde ou se mata, morre, enlouquece, ou ainda convalesce.
O que mais importa aqui é o convalescer, ou seja, chegar a um limite, e no
próprio núcleo de um recuo e solidão com vistas a uma transformação ou devir,
se vai até o Hades.
Mas não se vai ao Hades sozinho, ou seja, para descer até o subsolo, é preciso
ir acompanhado. Jung assume o risco, que não é apenas poético, mas literal, e se
propõe a fazer sua descida, acompanhado de seus companheiros de viagem.
Joyce em ‘Ulisses’ se aventura no Hades, e as sombras dele vão dando
contornos ao infernal em meio a paisagens inglesas, mas é Jung quem vai
conversar com as figuras do Hades e fazer disso um algo para si mesmo,
convalescer e para esses mortos, já que o link, a conexão com eles é que eles já
passaram por esse momento limite, e fizeram de seu instante algo muito precioso
para desperdiçar, para ignorar a fala e as imagens dos mortos.

116
Mas não é qualquer imagem que interessa a Jung, pois no Hades estão uma
legião de almas que não puderam se conectar com seu destino e seu devir. A
conclusão trágica de Jung é que essa multidão de almas se perderam em meio a
seus processos de tornar-se o que se é, algo que dentro da história humana Jung
identifica como pessoas sem alma, ou seja, pessoas que passaram a vida tentando
imitar um modelo e nisso se perderam: consumiram a si mesmas como borboletas
que se aproximam em demasia das chamas.
Jung teme a loucura, teme o espírito da época e pressente o grande perigo que
é a descida. As imagens que dão a pensar em Jung no ‘livro vermelho’ são
aquelas que se personificam em figuras, em personagens conceituais que ele
retira desse fluxo ou turbilhão de almas errantes que se perderam e que podem
lhe proporcionar encontros significativos, ou seja, que emergiram de sua
imaginação prenhe de uma linguagem outra, que pode ser descrita como
linguagem para além do que ele mesmo entendia por inconsciente.
Essa linguagem outra é estético-artística, filosófica, mítico-trágica. Tudo isso
foi um esforço imenso para dominar a loucura, o caos e dar ao ponto limite de
sua experimentação, uma dose de embriaguez certa, ou seja, uma pitada de
‘pharmacon’, de conduzir seu experimento até um convalescimento ou
embelezamento de si.
O sentido de ir até o Hades talvez seja próximo do da mandala, que é definir
um espaço sagrado para o encontro com o centro ou meio, vivenciando as
imagens que mais importam. A descida é o momento de tomar isso no lugar da
impermanência, da dissolução e desmembramento de tudo o que não serve mais,
para que a subida e o enfrentamento sejam feitos no plano imanente do devir e
não da contratura de um para trás.
Descer não significa parar nos pontos de fixação do que está para trás, como o
são as neuroses descritas por Freud, nem do ressentimento trazido por Nietzsche.
Cair no abismo é tentar durante a caída articular o que nos olha de volta, de fazer
algum entendimento de como sua experiência com a psicologia profunda, com
Freud e sua cisão, com tudo aquilo que chegava em forma de sonhos, visões
pudesse se ligar ao simbólico, ou seja, elucidação em forma de sabedoria trágica
sobre tudo o que lhe ia acontecendo, em ir ligando tudo isso a uma alma múltipla,
para não se perder de vez. Seu encontro com a sua alma é múltipla, ou seja, se dá
intensivamente nos encontros que vai se conhecendo nas diversas ambiências do
Hades.
É fazendo com que os mortos circulem e se movimentem suas questões mais
caras ao espírito que, vai também empurrar Jung para suas questões e mais
importante, para o que sua alma ainda não viveu nem experimentou
(principalmente no quesito coração\sentimento). Ao seu separar o joio do trigo,

117
ou seja, selecionar os personagens com que vai entabular conversações, processa
seu devir-convalescer, para poder enriquecer-se um pouco mais com a sabedoria
dionisíaca que abre esses devires e faz com que a subida seja possível. Tudo esse
recuo e solidão voluntários com vistas aos enfrentamentos, para que as lutas
sejam viáveis, dentro de uma nova lógica e linguagem simbólica onde o que se
quer é um tornar-se que ainda está por vir neste momento.
Nesta perspectiva, ‘O livro vermelho’ tem esse tom profético, pois o
convalescer é o que todos almejam, não como meta, mas como coisa genérica,
comum a todos os humanos, ou seja, dor, alegria, saúde doença, e no meio disso
tudo, o convalescimento como algo e que os mortos podem dizer mais disso do
que os vivos. Na profecia de Isaías que abre ‘O livro vermelho’ temos aquele que
sabe sobre a enfermidade, ou seja, alguém sem igual que sabe o que fazer com a
enfermidade. O que o divino faz com a enfermidade é parte desse mistério
humano: tornar o homem saudável, torná-lo um criador de símbolos. Símbolos
da transformação.
A completude da vida e do viver passa pelo convalescer e Jung fez isso com e
através do ‘livro vermelho’. O que virá então é parte disso que a humanidade
tentou simplesmente imitar, um modelo de perfeição que não funcionou. O
modelo ocidental esperou um Cristo e o imitou, e isso fez perder milhões de
almas que Jung percebe no Hades, em sua descida até as profundezas.
A escuta de Jung no ‘livro vermelho’ é então dirigida de um lado, a estes
mortos que ‘parece-me que esquecemos algo importante que também era para ser
vivido’ (Jung: 298), e esse ‘algo importante’ é e se dá no interstício em que ecoam
as questões sem respostas na psique de Jung e na do ‘outro’ situado mais no
aquém e além, até ganhar corpo e textura em meio aos seus personagens
conceituais que estabelecem a conexão necessária a se poder continuar descendo
e buscando a alma perdida. Assim é Filêmon, afigura do velho sábio, assim é
Salomé e Elias, seus pares complementares, que são e formam a multiplicidade
de sua alma: Jung possui muitos eus e todos eles são e compõem a sua alma.
Numa perspectiva mais filosófica, o que ficou esquecido de ser vivido é o
corpo, e isso Jung bebeu em Nietzsche, em seu Zaratustra (em ‘os desprezadores
do corpo’: ‘Eu sou todo o corpo e nada além disso, a alma é somente uma palavra
para alguma coisa do corpo’). O corpo é em Nietzsche um poderoso Si-mesmo,
pois é dele que brota uma sabedoria que foi esquecida pelo cristianismo paulino.
Jung necessita neste momento de descida ao Hades, incorporar e assimilar os
mortos, tornar a vontade de viver algo mais – o corpo - perdida nos mortos em
potência criadora de nova forma de vida e de viver, ou seja, Jung tinha de tonar-
se o que se é, dominar esse desejo de imitação e transformá-lo em criação de si
mesmo.

118
Em Jung não há negação da morte, mas o encontro figural com ela, assim como
o Dionísio criança não temeu o Titã, mas brincou com ele, assim temos que fazer
com a morte: brincar com ela quando ela nos chama e visita. Só assim podemos
renascer como homens brincantes diante daquilo que mais temem ou ignoram,
pois morrer, é também um recomeço.
Para além do assombro da primeira guerra, Jung necessita de uma solidão, para
se reconectar com a vida e viver, mesmos sob a sombra de milhões de mortos já
se forma e destes que estão por vir. Paradoxalmente é esse jogo de vida e morte
que não só diz sobre o trágico e sua sabedoria, mas que vida e morte estão mais
imbrincados do que nossa vã filosofia pode supor. Se os modos de vida são de
morte, como indicam as guerras e as formas tristes de viver, então que mal tem
em ir diante dos mortos e retirar deles novas formas de vida e de viver? Jung
estava morto em vida, mesmo achando que vivia em plena gozo de vida e de
viver, pois tinha fama, era reconhecido, tinha carreira, mas não tinha alma. Então
não tinha nada. Por isso foi preciso renascer das cinzas, salvar só o coração puro
e inocente.
O que pensa Jung, neste momento limite, é o que todos os mortos já pensaram
antes, ou seja, como viver uma vida rica e plena em todos os sentidos e
perspectivas possíveis, utilizando-se de todas as armas e ferramentas disponíveis,
o que inclui um recuo e uma solidão necessárias e uma descida até o inferno.
Deixar de viver sua própria vida em função de algo ou alguma coisa alheia a
esse desejo ou vontade é o trágico em si. Viver uma vida que não lhe pertence, é
o que todo herói trágico faz, pois abomina essa vida miserável e presa.
Quem vive a vida de outros é o tipo decadente (Nietzsche), enquanto que os
que criam valores são os que aspiram a uma grande saúde. Jung, leitor de
Nietzsche quer realizar inúmeras experimentações com seu pensamento e com
seus personagens que lhe oferecem os mais diferentes pontos de vista sobre a
enfermidade e o convalescer.
Com seus personagens Jung experimenta diversos modos de querer, sentir e
um pensar outro que o possibilita não só questionar o espírito da época, mas
ultrapassá-lo. Vivenciar a própria enfermidade na forma do ‘livro vermelho’
revela um Jung aberto a suas questões e dos mortos que ficaram para trás.
A descida até o inferno é um experimento de mutação, os quais foram
registrados num fazer, um fazer de embelezamento de si, algo belo que não se
trata de arte, mas de um fazer processual, sem ficar preso nele ou nas imagens
realizadas. Isso é muito da mente oriental, onde se faz sem a intenção de que seja
algo durável, ou para venda. No oriente o processo de tornar-se o que se é, é
levado mais a sério, e lá se faz algo sem o peso da perfeição.

119
A descida até o Hades é então um volta para trás em forma mítica, ou seja, algo
que Nietzsche já havia percebido em o seu livro ‘O nascimento da tragédia’, que
diz sobre o fenômeno estético, ou essência da arte (que não é essa arte moderna):
‘pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem dos
contos de fadas, que é capaz de revirar-se e contemplar-se a si mesma, agora ele
é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador’
(Nietzsche: 45).
Nesta perspectiva Jung tomou Nietzsche a sério, ao tentar elevar nossas
capacidades simbólicas ao máximo, pois ao tomar as imagens que mais importa
e dar a ele personificação conceitual, ou seja, mortos que falam e personagens
que conversam sobre o que mais importa pensar, Jung fez o que precisava para
convalescer.
Contemplar-se a si mesmo é não só trazer do inferno essas imagens e figuras,
mas fazer disso um experimento de encontro, ou seja, fazer como se fazia nos
contos de fadas e os mitos, que é dramatizar o encontro. Dramatizar significa
encontro com Dionísio, e encontrar-se com Dionísio é algo terrível, perigoso e
ao mesmo tempo, necessário ao convalescer.
Então dramatizar a descida até o Hades é fazer como nos mitos antigos, ir até
o fundo sem fundo do pensamento trágico, que é o mito de Dionísio que se
encontra com o Titã, para brincar e depois morrer, encontro do qual só restou o
coração puro e intacto – após o despedaçamento – o que equivale a dizer:

- Um encontro onde junta-se paradoxalmente a alegria do brincar com a


proximidade da morte.

Assim o drama de Jung é posto em andamento, até o ponto limite, ou seja, lá


onde se mata, morre, enlouquece ou convalesce, o que equivale a dizer, em algum
momento, também rir-se de si mesmo.

Cabe a observação de que Nietzsche fala em ‘O nascimento da tragédia’ de um


retorno ou reencontro de um ‘estado primordial’, ou seja, algo sobre uma tradição
ou sabedoria primordial, que aqui ligamos a Dionísio e a sabedoria trágica, que
fora das terapias convencionais, é aqui colocada no meio, no centro do fazer.
Jung retoma isso na ‘lenda do graal’, e aqui cabe apontar também que Dionísio,
para além da imortalidade, resgata o simbolismo do renascimento, das mutações
aos quais aqui tentamos aproximar aqui neste ensaio daquilo que chamamos de
processo de convalescimento.

120
José 2017

ENSAIO MÍTICO

SOBRE DIONÍSIO E O TITÃ


O Coração Renascido

121
JOSE RAVANELLI NETO
PIRACICABA
2017

Introdução

Por que pensar neste momento, nesta ponto do mito onde o Titã se encontra
com a criança divina chamada Dionísio?
Num momento em que Hera, esposa de Zeus, empresta seu desejo de vingança
e destruição dos filhos espúrios que o marido tem fora do casamento divino, aos
Titãs. Os Titãs que também neste momento específico está a solta tramando
contra Zeus, desejosos de destroná-lo e destruí-lo por inteiro.
Os Titãs que só conseguiriam ter acesso a criança se informados de seu
paradeiro, ao qual Zeus tratou de esconder o mais que pode. Mais do que
vingança, talvez pudéssemos falar de traição dela para com seu esposo divino,
uma vez que Dionísio poderia ser sucessor do próprio Zeus, assim como Freud
escolheu Jung para sucedê-lo no empreendimento psicanalítico.
Uma informação privilegiada dada aos Titãs, que não podendo destruir a Zeus,
destroem seu possível, sucessor, destroçando-o completamente, em partes, só
ficando sem cozer o coração que escapa por acaso, ou por algum milagre.
O todo atingido em suas partes menores, eis uma questão intrigante que os Titãs
deixam como resto, assim como resto, é o coração da criança escondido na areia,
sem qualquer pretensão de que isso iria ocorrer.
Dionísio tem um processo de individuação às avessas, ou seja, ele não se torna
Dionísio, mas numa certa perspectiva da variante da estória mítica, o seu coração
se une as cinzas do Titã fulminado por Zeus e dessa mistura surge uma nova raça
humana, meio titânica meio divina, com um coração de criança inocente.

122
Dionísio se torna muitos, se torna um tipo humano completamente novo.
Dionísio vem reinar na terra e não nos céus, como desejava Zeus.

O mito em questão

Assim que souberam (através de Hera) onde Dionísio se encontrava, trataram


de ir ao seu encontro. Tudo tinha de ser feito muito rápido, pois se Zeus
descobrisse sua intenção de matar a criança, tudo estaria perdido, enquanto um
projeto de vingança duplo, ou seja, de Hera e dos Titãs.
O que destoa no mito é a parte onde um mais Titãs chegam ao lugar onde está
Dionísio e em lá chegando, elaboram, o que não é muito comum, como atrair a
criança para junto de si. Qual o intuito disso, pois na ilha onde se escondia
Dionísio, só existiam mulheres, e isso não seria impedimento algum aos Titãs,
que poderiam destroçar a criança e elas todas se necessário, em questão de
instantes.
Mas algo se impunha aos Titãs, algo imperioso, de uma ordem de preparo
completamente estranha a pressa que os Titãs teriam quanto a execução do plano
de matar a criança divina. O mito relata que os Titãs trouxeram consigo
brinquedos (peão, ossos, etc), e ainda mais estranho, ao menos um se pintou para
se aproximar de Dionísio.
Brincar e pintar a face, estes são os dois elementos, os dois signos e sinais
estranhos ao mito, ao menos numa primeira impressão. Pouca adianta dizer que
é um procedimento para atrair a criança, que isso faz parte da poética do mito, é
preciso ir além, é necessário ir até a imaginação deste(s) Titã(s). Em sua
imaginação o brincar conduz irremediavelmente a dor e a morte por
despedaçamento, uma pequena alegria do encontro brincante entre criança e
monstro, entre inocência e brutalidade, que indica que o prazer e dor andam
juntos, numa proximidade muito perigosa, que no limite, destroça (seja o
princípio da individualidade, seja a emoção da cena trágica, que são signos e
sinais de um plano imanente sempre entrecortado pelo estranho, adverso,
imprevisto, caótico, como símbolos de uma vida ou existência trágica.
A crueldade da natureza o qual é investido os titãs, é salvo pelo seu brincar, ou
seja, mesmo o mais cruento espírito vingativo, conseguiu pela arte do brincar
salvar a si e o menino, num sentido e perspectiva mais ampla, pois de ambos o
que restou após o desmembramento foi o coração do menino e as cinzas dos
Titãs, que juntos formaram algo novo: a vida, ou seja, novas formas de vida, pois
a junção de ambos coração e cinzas, resultou numa nova raça humana.

123
Poder renascer das cinzas é para o processo de individuação, um duro golpe,
renascer é da rodem do ilimitado, do cosmológico, enquanto individuar-se é
limitado, termina numa só existência.
Para Heráclito o tempo é uma criança jogando, brincando. Ela própria não fez
nada contra os Titãs, por isso não expia, ao contrário, sem culpa, diz sim ao
sacrifício de ser objeto de Hera e dos outros titãs vingativos, que trazem o prazer
de destruir. Mas antes disso, brincaram, ou seja, disseram para si mesmo, que
ainda resta um coração, que é também criar.
A auto-satisfação do brincar é para ambos, e isso é mais do que atrair a criança
para a morte, pois, como dissemos, os Titãs não necessitavam disso.
O abismo entre a criança inocente e os Titãs instintuais é quebrando quando a
ponte do brincar se estende sobre amos. Ai neste espaço, neste interstício se cria
a nova raça humana, meio titânica (cinzas), meio sentimento e imaginação
(coração).
O Titã ressentido

O ressentido é: - um impotente, ou ainda uma ação inibida em sua potência.


Todo ressentido ao agir, tem, mais do que uma ação imediata ao dano, um plus,
ou seja, tal qual o Titã diante de Dionísio criança, há um interstício, uma escanção
entre a ação lesiva e a reação vingativa. Se o Titã ressentido quer trazer alguma
justiça ao poderoso e lesivo Zeus, ele precisou e necessitou para além de uma
simples descarga de força bruta diante da criança divina, uma espera, um brincar
para se aproximar de uma criança inocente e indefesa. Não é um ato mecânico o
que o Titã propõe, um atrair brincante. Se o Titã imaginou-se brincando com uma
criança, isso soa muito estranho e insólito, pois esse brincar é um paradoxo.
Explico: ao imaginar uma brincadeira para atrair Dionísio, esse jogo, esse brincar
abre essa questão insolúvel a todo espírito de vingança, ou seja, uma ação que
seja vingadora, efetiva enquanto tal. No caso do Titã, o brincar aproxima e atrai
não só a vítima, mas sua aura perigosa, que é sua inocência, seu coração puro e
espontâneo. Ao aproximar esse pathos inesperado da inocência, o Titã pode se
perder, ou seja, perder seu propósito maior: vingar-se. Ao ver a criança divina,
algo se dá. Algo se trai no espírito ressentido do Titã, ele talvez não suporte por
muito tempo o brincar, altamente lúdico, não pode haver outra reação que não o
propósito inicial, o de matar, destruir, destroçar o filho predileto de Zeus. As
reações do brincar são outras: espontaneidade, risos, alegria, vida em movimento.
Nada disso condiz a vingança, ao ódio dos ressentidos. No entanto foi isso que o
Titã se permitiu a fazer. Essa reação autêntica, contida no brincar (como no
dançar), é vedada ao Titã, pois só o divino, o nobre age assim, nunca um Titã.
Mas esse Titã em particular, quebrou essa promessa, esse cálculo instintivo, essa

124
propensão ao ódio. Ao experimentar o brincar, pois algo muito incomum o
preparou para isso, na medida em que até se pintou para isso, como um artista
circense o faria, ou seja, passou uma base de argila no rosto (como o clow, o
palhaço de circo o faz a cada novo espetáculo), se permitindo a encarnar para
além de seu eu comum, o ser alegre que vai brincar com a s crianças no meio do
picadeiro, recolhendo destes pequenos o amor de que necessita. Paradoxo, pois
se o Titã veio com o coração cheio de ódio e vingança, como pôde se propor a
receber algo de uma criança, como pôde brincar na máscara de um verdadeiro
palhaço. Um Titã as avessas, que por um triz pode trair a causa titânica, por tudo
a perder no exato instante em que se propõe a brincar com a criança. Inocente.
Porque esse Titã não poderia se contentar com uma vingança imaginária, e ficar
ali brincando eternamente, esquecendo seu ressentimento. Talvez a cada nova
brincadeira pudesse digerir um pouco mais seu ressentimento, até não restar mais
nada, até se curar e se desprender da égide da criança a ser odiada e morta. Mas
isso é muito perigoso e tentador a um Titã que se prese. Por um instante não
precisar mais desmembrar o outro. Será que foi este lapso de instante que fez
com que o Titã esquecesse justamente o coração de Dionísio para trás? Pois é
justamente o para trás que os ressentidos não deixam passar.
O Titã é tomado então desse processo reativo, e se lembra, se recorda que, está
ali não para brincar, mas para uma descarga súbita e sorrateira de uma descarga
afetiva de busca de atrair mais um culpado, mais uma vítima sacrificial, com o
propósito de negar Zeus e seu possível futuro sucessor (Dionísio).
Ah! Na cabeça tortuosa de um Titã, Dionísio é mau, tão mau ou pior que seu pai,
que aprisionou todos os Titãs para uma eternidade. Como se pode brincar com
quem, do ponto de vista divino, vai perpetuar sua maldade contra todos os Titãs.
Mas a sua frente está apenas uma criança: nem boa nem má, apenas brincante,
que ri e aceita as brincadeiras com o palhaço.
No brincar tudo se confunde, não é possível mais valorar nada, apenas jogar,
pular, dançar, se divertir. Esquecer.
Mas esquecer é algo terrível e perigoso para um Titã. O ato de Zeus, de punir os
Titãs dessa forma, é ruim, portanto Zeus é ruim. É preciso punir Zeus. Lembrá-
lo por uma dor sem igual, que jamais poderá esquecer ou deletar de seu
pensamento: matar Dionísio é preciso. Como pôde Zeus achar-se mais que os
Titãs? É preciso inverter isso, um Titã é tão igual a Zeus, ou melhor, pois não é
um Titã de origem tão divina quanto o poderoso Zeus? O titã talvez se achasse
tão feio, inferior, que necessitou pintar-se ante Dionísio, para poder atraí-lo para
a morte sacrificial, mas ao pintar-se, algo se deu. O artista veio a tona, a máscara
falou mais alto, a alma de artista aflorou dentro do Titã e sua apavorante

125
coerência – atrair e matar – foi suspensa. A equação do brincar era outra: brincar
e jogar era a própria vida e o viver.
A promessa do Titã junto a seus irmãos o consumia: não esquecer o que veio
fazer ali, ou seja, eu quero eu o farei...
Sentir tudo de novo, por si e pelos seus, eis a destinação de um Titã odiento e
vingativo. Mas o brincar, a esse brincar é tão nobre, tão vital, que faz esquecer.
Assimilar o brincar é assimilar o novo, a liberação da promessa... Ah! Isso não,
melhor não seguir adiante com isso, ou seja, para imediatamente de brincar, antes
que a excitação do sangue, do gosto quente do sangue sendo derramado, se deixe
avessar por outra, embriagante, brincante.
Um medo toma conta do Titã, que se não matar, pode ser posto de lado por seus
irmãos: o medo da exclusão, do anátema: vade reto o Titã que quebrou a
promessa, para sempre excomungado, estragado pelo brincar.
Mas medo não condiz a um Titã, pois as vítimas dos atos de Zeus é legítima a
vingança. É preciso a um Titã, demonstração de sua força letal e destrutiva.
Momento supremo de manifestação do que é um Titã: impossível voltar atrás,
renegar o que se é. A manifestação da força titânica tem uma causa única: Zeus.
A criança é só um efeito, pois é a Zeus que se quer atingir, em seu próprio coração
divino. Neutralizar Zeus e seu pretenso poder absoluto. Momento de
determinação que implica em coroar o ressentimento que os Titãs nutriram contra
Zeus, ferir de morte o seu coração.
A relação de poder estabelecida entre Zeus e os Titãs fica suspensa neste brincar
outro de um Titã com o devir do poder de Zeus, encarnado na criança meio
homem meio divina. Dionísio não é Zeus, nem pensa como Zeus. Não merece,
portanto o desprezo total do Titã. A ficção de uma igualdade entre Titãs e Zeus,
é algo que não se repete no brincar: ali são dois diferentes unidos num instante
que faz desaparecer as ficções e barreiras do pensamento ressentido em prol da
brincadeira, dos diferentes que se aproximam num novo pathos: o espaço
possível para uma liberdade estendida de um a outro, de um para o outro.

Conclusão

Dionísio criança ante os vingativos titãs representa a não angustia de um


infante que não tinha porque temer a presença e o encontro com a alteridade
destrutiva, com um outro potencialmente perigoso.
Sem medo a criança brinca, potencializa a vingança num momento supremo de
esquecimento, pois enquanto brincam esquecem de tudo, inclusive o ódio
vingativo. Mesmo que por um instante, um átimo de segundo, que indica, como
vimos, o tempo outro, de Aion, o qual Dionísio preside.

126
Os Titãs não possuem o cálculo de esperteza que chamamos de busca da
verdade, pois o cálculo dos Titãs não é o utilitário científico, e o da criança divina
também não é o de deixar-se enganar ou não pelo jogo dos Titãs. Então a lógica
deste encontro é outro, é da ordem do instinto com a inocência do coração. É a
do instinto elevado a pulsão, ou seja, para além da confiança e desconfiança, a
pulsão artística proposta por Nietzsche (Apolo e Dionísio) é algo que no mito
pode ser descrito como o momento limite onde o pensamento perde o coração e
o coração perde a conexão com seu pensamento. Desta cisão, deste
desmembramento, o sentimento inocente se perde, até ser restaurado na junção
com as cinzas titânicas, a fim de constituir uma nova raça humana, que é a que
tem a possibilidade simbólica de refazer esta cisão, abrir-se a um
convalescimento capaz de ligar pulsionalmente o coração ao pensamento.
A beleza desse encontro entre Titãs e o menino divino é o renascimento, não
dos egos anteriores – da criança e dos Titãs, mas do espírito da vida em suas
múltiplas possibilidades do viver.
O ato vingativo de Zeus – fulminar os Titãs – resulta numa metamorfose
estética, numa gestação de uma nova raça, que tem ambas as representações.
Da vingança que nunca gera nada de bom, surge a coisa estética, que é da
sabedoria trágica, que une dor e prazer em algo novo, uma alma nova a raça
humana, um sentido novo ao belo, em que a aura que se forma de um tal encontro
- Titãs e criança divina - só pode ser a da luta que resulta em um momento
dramático, em que o instinto, o animal titânico, cheio do espírito de vingança,
brinca...
Quando o animal instintual imagina, brinca, como fazem os Titãs, é sinal de
que algo se deu, uma passagem nova se abriu.
Essa passagem, essa possibilidade é a aquela onde o mundo e a vida é dotada
de alma, uma alma estética, capaz de aiesthesis, de um olhar com o olho do
coração, ou seja, a alma do Titã, para além de ódio momentâneo, o que equivale
a dizer, uma alma do mundo, em meio a dor e a finitude do viver.
José 2017

127
Ensaio psicológico
Instituto Eranos

O livro vermelho
Jung ante seu próprio pensar e sentir

128
Piracicaba 2017
Jose Ravanelli Neto

No início era o profeta e a profecia...

O psicólogo suíço C G Jung em o seu ‘O livro vermelho’, abre o liber primus,


com uma passagem bíblica, citando especificamente Isaías, considerado por
alguns estudiosos, o príncipe dos profetas. Dentre todos os antigos profetas, foi
Isaías aquele que mais sistematicamente e entusiasticamente anunciou a vinda de
uma criança divina. Este profeta viveu em tempos turbulentos na história de Judá,
e talvez isso seja um dos inúmeros motivos para que Jung o tenha escolhido para
a abertura de seu caminho de busca para a alma, em meio a turbulências, as portas
da primeira guerra mundial (vide a visão de Jung sobre o dilúvio e o mar de
sangue sobre os países nórdicos), em meio a sua crise pessoal e ainda em meio
ao século das luzes, que prometia a conquista da natureza e do mundo por meio
do uso da razão.
No fechamento do liber primus, outro profeta ressurgido do caldeirão de
imagens que compõem a descrição do inferno junguiano, fecha o mistério de seu
encontro com tudo o que do espírito da época e o espírito da profundeza. É um
diálogo surreal, narrado num contexto altamente improvável, que reúne o velho
profeta (Elias) e uma mulher cega (Salomé) em meio a um momento fundamental
da descida ao inferno, lá onde Jung deseja muito seguir adiante na busca de sua
alma, pois ali, naquele exato momento, está em jogo a morte do Jung mundano e
o respectivo nascimento do Jung enriquecido pelo simbólico, isto é, essa mesma
via simbólica que enriquece o coração desértico pela chegada da criança divina.
Desta forma profetas e sua profecias versam sobre um mundo novo e mágico
de imagens que fazem toda a diferença para o homem destruído poder conseguir
se olhar de volta (tudo está resumido no que vemos e naquilo que nos olha de
volta), numa perspectiva de assumir seu próprio processo de convalescimento.

129
A profecia

O texto bíblico escolhido por Jung traz Isaías versando sobre o milagre de quem
crê, pois quem crê e ouve a revelação, sabe (sabedoria do coração) que, mesmo
na terra mais seca e desertificada, nasce o rebento que, sem beleza ou esplendor,
é capaz de trazer o deleite do desejo de volta, renascido agora mais forte e
esplendoroso.
Porém, a parte mais intrigante da passagem de Isaías é onde ele relata
fortemente quem é esse rebento, tipo nascido na adversidade:
‘... um homem sujeito a dor, familiarizado com a enfermidade, ‘ (Isaías).

Palavras precisas, justas, cirúrgicas, que tocam a raiz de uma sabedoria outra,
que nem a ciência, nem a razão utilitarista conseguem se aproximar ou entender.
O que significaria dizer ‘familiarizado com a enfermidade’? se alguém cresce em
meio a enfermidade, isto poderia significar que os que convivem com um tipo
assim podem estar doentes, e que a doença do homem não passava desapercebido
ao olhar deste rebento divino. Se este diagnóstico estiver correto, a criança divina
teve de conviver com enfermos o tempo todo e todos nós sabemos que conviver
com doentes, nos torna aparentados, iguais ao doente. Por isso se diz que o
doente, o enfermo é aquele que abre um buraco para sie e arrasta para ele o maior
número de pessoas possíveis. Mais forte e potente que a doença, a enfermidade
é poder ainda sair dela, ou seja, abrir-se para uma outra e nova saúde. A isso
chama-se convalescer de si mesmo, ou ainda, deixar nascer em seu coração
ressequido a criança a qual a razão o eu, não pode mais virar ou torcer o rosto.
Jung chamou a esse processo de busca da alma e mais tarde, processo de
individuação.
O rebento junguiano, porém, não é uma vítima sacrificial, pois ele não carrega
os sofrimentos de todos os homens, ao contrário, o convalescimento se dá em
cada homem, em seu coração simbólico, lá onde a terra seca se transforma, onde
a água jorra do deserto, pois é lá que a estrada ou o caminho sagrado se abre
como possibilidade de cada um poder elevar suas capacidades simbólicas em
grau máximo (como diz Nietzsche em o seu ‘O nascimento da tragédia’).
A função do símbolo é abrir o homem em seu devir e em seu tornar-se o que se
é. O que faz convalescer é isso: é quando, no limite (onde se mata, morre,
enlouquece), ainda se pode convalescer pela reconexão entre o coração e a razão,
quando o simbólico é reativado em suas capacidades que fazem com que
possamos usar novamente o fogo de Prometeu, e criar a nós mesmos, salvar a
nós mesmos.

130
Jung contrapõe lado a lado o humano diante do espírito da época, cheio de
vaidade e em meio aos sons do lucro e valor e de outro o espírito da profundidade,
cheio de se possa produzir um sentido supremo. Supremo, pois é rico de tudo o
que tem sentido e de tudo o que é absurdo. Antes de Jung, a filosofia de Nietzsche
foi buscar o período mais rico da cultura grega, lá onde os gregos aproximaram
e tencionaram ao grau máximo a proximidade, a convergência, a conexão, o
ponto de interstício, o rubicão entre dor e prazer, bem e mal, luz e sombra, e isto
era conhecido como sabedoria trágica, Dionísio puro.
É essa sabedoria trágica que Jung busca, ao dizer que tudo é grande e pequeno,
amplo e estreito. Ao incorporar o lado sombrio da divindade, Jung deu um passo
enorme em direção as imagens que mais dão a pensar sobre o simbólico que
conduz ao convalescimento, ao caminho sagrado de uma outra saúde e de uma
sabedoria outra.
A interfusão (do que é quente e frio, etc), é a loucura que vem do coração de
Jung em sua descida ao inferno. Isso significa que nessa dimensão da alma, os
dois tipos de pensamento (mítico e racional) se unem num caminho do meio,
sendo possível vivenciar e experimentar as imagens que mais importam pensar
para o ingresso no processo de convalescimento que é a possibilidade de elevar
as capacidades simbólicas ao seu máximo.
Para se chegar a interfusão, ao sentido supremo, é necessário entrar na
dimensão da solidão. Uma solidão que não carrega os pecados do mundo, mas
que prepara esse sacrifício outro, em que quebra-se as correntes de Prometeu, e
em estado de graça, pode-se ‘pronunciar de outro modo as palavras da
profundeza’ (Jung: 112). A síntese destas palavras são:
‘Em nós está o caminho, a verdade e a vida’ e ‘Portanto vivei a vós mesmos’
(Jung: 114).

Segundo encontro com um profeta, só que agora acompanhado...

Para encontrar o saber (trágico) do coração e encontrar a plenitude do seu viver,


Jung necessitou de duas ferramentas básicas para reativar seu símbolos e as
imagens que mais importavam ao seu pensar, a saber:
1) Desenhar, pintar
2) Criar companheiros de viagem, pois ninguém desce ao inferno sozinho

Os primeiros companheiros de viagem de Jung em sua descida ao inferno, a


fim de reencontrar sua alma foram Elias e Salomé. Aqui neste ensaio, vamos
separar alguns trechos desse diálogo. Vejamos:

131
‘que milagre vos uniu?’

Jung já sabia, através de Nietzsche algo a respeito desse milagre, ou seja, o


filósofo alemão conseguiu unir Apolo de Dionísio como duas pulsões artísticas
ou estéticas em que um não matando ou destruindo a outra, juntas produziam
centauros e estrelas bailarinas, ou seja, símbolos vivos e poderosos.
A união de opositórios é a pedra angular para que amor e ódio se aproximem
num pathos de distância razoável (em que um não queira eliminar o outro e que
dessa batalha, desse encontro improvável, resulte o processo criativo de abertura
do devir. Devir como tudo o que ainda não vivi, experimentei, o que ainda não
sonhei e gostaria de continuar sonhando um pouco mais.
Admirado, Jung pergunta ao profeta:
‘Como é possível que essa mulher depravada e tu, profeta de teu deus, sejais
um?’

Esta unidade (Um), não sendo dialética é da ordem de um simbólico ou de uma


realidade possível? Este é um problema de chifres, ou uma pergunta sem
resposta, pois se de um lado os companheiros são reais, falam e manifestam seus
desejos e opiniões, de outro lado, são criações que vem de algum lugar ignorado
do psiquismo. Os junguianos se apressam em dar a resposta a essa pergunta,
dizendo que se trata de amplificação histórica, porém o que temos aqui é o ‘desde
sempre’ e ‘desde a eternidade’ (como no caso da união entre Salomé e Elias), são
parte disso que chamamos de ‘pathos de distância’, ou seja, tudo o que opera
dentro das relações de amor e ódio, tem um meio, e esse meio é chamado de
ressentimento (vide Nietzsche e sua ‘Genealogia da moral). As alteridades para
além das amplificações são de ordem de um acordo entre Salomé e Elias, que
representando o amor pela totalidade do real, dão mostras de que para se chegar
a alma, é preciso antes, vencer o ressentimento, a diferença basal entre Salomé e
Elias. O resto, a diferença entre ambos só pode ser resolvida na chave da
sabedoria trágica, que é quando o enigma da morte do herói é definitivamente
resolvido por Jung.

A morte do herói

Jung mata o herói, numa emboscada, pois sabe que é mais fraco que o primeiro.
Esta astúcia só pode ser resolvida quando se diz que o herói tem de morrer, de
um meio ou de outro, pois ele já cumpriu sua jornada. Um herói fraco morre,
desaparece, para que outro ocupe seu lugar.

132
Elias – o sábio – mantém um phatos de afinidade com Salomé – a jovem –
próximos sem o peso do ressentimento, assim como a serpente (imagem da
natureza terrena do homem e que observa ambos de uma distância segura) que
não pica o pé do profeta evitando-lhe uma ferida aberta e sem cicatrização
(comum nos mitos trágicos). A serpente em questão é outra, pois não tenta
Salomé, como no caso da serpente do paraíso adâmico. Do pathos entre Logos e
Eros resulta um rebento, chamado Nous (espírito livre), algo da ordem entre a
perseverança (Logos) e o movimento livre (Eros), cujo efeito é um devir, um
convalescer.
Mesmo estando no inferno o lugar onde Elias e Salomé habitam é brilhante,
feito das luzes das pedras preciosas. O brilho dentro do inferno é uma coisa muito
diferente do brilho de Apolo, pois o brilho da profundeza agrada e exalta a
criação, o Dionísio embriagado que salta para lugares impossíveis.
Salomé é dionisíaca em excesso, ela é cega e carrega consigo, em seu coração
o assassinato do santo (João Batista) e o incesto (casada com parente próximo).
A redenção de Salomé é da ordem de Édipo, que depois de arrancar os olhos se
torna sábio em outro lugar que não é mais a sua cidade onde reinou. Salomé
procura sua sabedoria ao lado de Elias, seu condutor. Mas disciplinar Eros não é
uma tarefa fácil, é para poucos. Jung sente sua aproximação:
‘Tu vais me amar’ (Jung: 168).

Na condição terrena, alinhar prazer e sabedoria não é um trabalho tranquilo,


pois o prazer faz perder o pensar que mais importa ao espírito (Nous). O caminho
do prazer conduz a petrificação (Medusa). Porém, não se pode evitar nem
hostilizar Salomé. A grande sacada junguiana (insight) é buscar o meio, no meio
de Elias e Salomé está a serpente:
‘a serpente está entre aquele que pensa e aquele que sente. São mutuamente
veneno e terapia’ (Jung: 165).

Existe um termo grego para esta posição – o meio – pois é no meio que a
correnteza é mais forte e potente, este termo se chama ‘Pharmacon’, ou seja, o
veneno que mata se purificado, cura, torna-se vacina. Eis aqui alguns ricos
princípios gerais para se buscar a alma e entrar no convalescimento de si mesmo.
Só assim Jung pode reconhecer e amar Salomé, pois sem essa união entre sentir
e o pensar, o coração não poderia seguir, nem caminhar mais um passo sequer
em direção de sua alma perdida no inferno.

José
2017

133
ARTETERAPIA

Módulo 1) 3 encontros

O QUE É A ARTETERAPIA?

ABRIR PORTAS DO SIMBÓLICO – O que é o simbólico desde os gregos, o LIVRO


Vermelho de Jung

NECESSIDADE DA SAÍDA DO MUNDO DA RAZÃO, DA LINGUAGEM


(PALAVRA) – RECUO E SOLIDÃO ENTRADA NO MUNDO DO MISTÉRIO
(TOCAR O MISTÉRIO).

CAPACIDADE DE SONHAR – DESDE OS GREGOS


1- OFICINA EXPRESSIVA: VAMOS SONHAR E ABRIR O DEVIR?

CAPACIDADES SIMBÓLICAS elevadas ao máximo


RODA FINAL DE CONVERSA

MÓDULO 2) 3 encontros

CONTAÇÃO DE MITOS – OFICINA LUDICA E EXPRESSIVA

A LINGUAGEM DOS SENTIMENTOS – OFICINA EXPRESSIVA

ARTE – DIONISÍACA
TERAPÊUTICA – INTUIÇÃO DO TRÁGICO – SABEDORIA DO

INTRAVISÃO – OLHAR PARA TRÁS DE FORMA MÍTICA

OLHAR REENCANTADO – REENCANTAMENTO DO MUNDO E DO VIVER


O QUE VEMOS E O QUE NOS OLHA DE VOLTA

O PROCESSO ARTETERAPÊUTICO – O SEU FAZER COMO SIGNOS E SINAIS DO


PRÓPRIO CONVALESCIMENTO E O TORNAR-SE O QUE SE É

134
NÃO HÁ RESPOSTAS E SIM A PERGUNTA SEM RESPOSTA

RODA FINAL PARA TROCA DE EXPERIÊNCIAS

ENSAIO FILOSOFICO

A GRAVIDEZ DE NIETZSCHE

135
JOSE RAVANELLI NETO
PIRACICABA 2017

APRESENTAÇÃO

Nietzsche engravidou, embaraçou-se, está prenhe deste ‘enrabamento’ por trás,


para usar uma expressão deleuziana. Desta relação nasceram centauros, e quem
sabe, estrelas bailarinas, tal qual Quíron, o curador ferido, que dá origem a
constelação de Sagitário (cuja significação é flecha).

Estrela bailarina

Tal como Foucault lembra em seus escritos, uma flecha atirada no ar pode
seguir em qualquer direção, a criação do tornar-se o que se é também pode seguir
os caminhos mais estranhos e impossíveis ao eu que não representa o si mesmo
maior e mais amplo (como quer o caos interior dentro de nós mesmos). Mesmo
Hércules, em sua mestria de arqueiro, atinge sem intenção a Quíron em meio a
batalha com os centauros. Quíron estava sitiado no meio, entre Hércules de um
lado e seus guerreiros e de outro os centauros. No meio é o acontecimento
decisivo em que recebe a flecha atirada sem direção de Hércules.

No meio a correnteza é mais forte, como indica Deleuze. No meio algo se dá,
ali tudo acontece, pois é no meio onde as intensidades se excedem e extrapolam
os sulcos, os limites, as direções.

No meio, no limite de um algo, se mata, se morre, se enlouquece, e as vezes,


mais raramente, se convalesce.

No meio se sonha com o nascimento de estrelas e centauros. Signos e sinais de


um convalescer de si próprio.

No meio entre coração e razão algo se dá: é ali que se formam os símbolos. Um
símbolo é aquilo que une conteúdos irreconciliáveis, aquilo que chamamos acima
de limite.

136
Estar no limite de alguma coisa, é experimentar dentro e fora de si, a dor da
oposição, um conflito sem resposta aparente. É isso que os mitos trágicos contam.

Nietzsche, Jung, cada um a seu modo, descobriram que é necessário uma união
entre os opostos, para que possa se abrir um convalescer. Jung chamou esse
processo de simbolizar os opostos de função transcendente, e Nietzsche
aproximou os opositoriuns em unidades provisórias e nomeou essa perspectiva
de intravisão, ou seja, Apolo e Dionísio juntos, um para trás ampliado, que, sem
ressentimento amplia o devir, gerando centauros.

O convalescimento é algo que que faz conexão profunda com a sabedoria


trágica, com as perguntas sem respostas que nos empurram a vivenciar coisas
para muito além do eu, de tudo o que chamamos consciência racional ou
utilitarista.

Em Jung temos um processo que se chama individuação, em Nietzsche temos


um tonar-se o que se é. Ambos nos abrem a perspectiva de que para convalescer
é necessária ainda, primeiramente, um recuo e uma solidão voluntários. Jung em
seu recuo e solidão processou o seu ‘O livro vermelho’ e Nietzsche em sua
solidão gerou, através do enrabamento dionisíaco, centauros e estrelas bailarinas.

Na solidão encontramos companheiros de viagem: Jung encontrou o par Elias


e Salomé, Filemon, entre outros e foi ali que Nietzsche também encontrou o seu
Zaratustra.

A parte estética de Nietzsche se inicia em seu livro inicial, ou seja, em ‘O


nascimento da tragédia’ e a de Jung em o seu ‘O livro vermelho’. Nietzsche, em
‘Ecce homo’ no prefácio para ‘O nascimento da tragédia’ fala da arte como
possibilidade de se eliminar o pessimismo.
Convalescer é então em grande parte e medida psicológica eliminar o
pessimismo e não se deixar prender na teia do ressentimento, de tudo o que se
avoluma como um para trás intragável e insolúvel.

Centauros

Para falar de centauros temos que falar de Quíron, o centauro diferente, uma
nova possibilidade para o tipo de centauro comum, os descendentes de Íxion e o
simulacro de Hera, Nefele, que só sabiam agir por instinto cego e sem controle
algum, ou seja, não sabiam lidar com a força de seu lado dionisíaco.

137
Quíron era, ao contrário de seus meio irmãos era descendente de Filia e Cronos,
e tinha inocência em seu coração. Amigo de Héracles, ferido pelo amigo
acidentalmente, traz em si a ferida e a cura, a dor no limite da morte, a escolha
de morrer e com essa morte sacrificial libertar o que deu ao homem o fogo
simbólico, ou seja, o Titã Prometeu.

Um paciente de saúde mental me disse: - Alemão, prefiro a liberdade, a rua, a


liberdade é a melhor coisa, a coisa mais preciosa, liberdade irmão, liberdade... e
foi embora do Caps. Nietzsche criou os ‘espíritos livres’ para dialogar em seu
recuo e solidão. Desde jovem, Nietzsche perseguia o caminho das formas
artísticas de um tornar-se o que se é, o que alguns chamam de uma nova
metafísica de artista. Ser salvo para Nietzsche significava encontrar seus espíritos
livres e com eles dialogar no Hades e não no céu estrelado. Só depois destes
múltiplos encontros é que ele poderia olhar para o céu e encontrar sua estrela
bailarina.
O registro simbólico do centauro implica em Nietzsche o nascimento de uma
sabedoria trágica que une ciência, arte e filosofia. Desta intersecção resulta em
uma impossibilidade tal que; como um centauro, outra coisa impossível ao
homem, a não ser em sua imaginação; disso só entendemos no registro de uma
outra linguagem. Como filólogo, Nietzsche sabia que a linguagem que resultaria
da união em ciência, arte e filosofia, ainda não existia e precisaria ser inventada.
Parir um centauro é então da ordem das impossibilidades, do que ainda não foi
tentado. Os que tentam construir algo neste terreno são poucos (Joyce, Guimarães
Rosa, Jung, Dostoiévski, etc), pois exige uma criação feita de sangue, de
experimentos realizados consigo mesmo, lá num recuo e solidão voluntário e
necessário ao coração.
Longe de uma dialética, Nietzsche pari algo que se por um lado concilia arte,
filosofia e ciência, por outro a imagem do centauro nos conduz diretamente a
Quíron, como centauro que foge a regra de seus meios irmãos. A injustiça sofrida
por Quíron, curar a todos e não poder se curar, pois a flecha de Hércules possui
o veneno da Hidra, põe a céu aberto a ilusão de que um dia a ferida se feche, ou
seja, a cura possa advir. A libertação de Quíron, é pela construção de algo novo,
a saber, a substituição de Prometeu acorrentado por Quíron que toma seu lugar
no castigo eterno dado por Zeus. Aqui chegamos a um ponto limite, onde a cura
não sendo possível, faz o centauro retomar constantemente a sua memória os
eventos que não se deixam esquecer. Para não se tornar ressentido, Quíron
prefere morrer. O espírito livre é isento de ressentimento, é aquele espírito que
ao lembrar algo ressentido, inova, cria, sai deste lugar doentio e paralisador da
vontade.

138
A doença em Nietzsche é deslocada no recuo e na solidão em possibilidade de
caos, ou seja, ao se aproximar de Dionísio. Ao deixarmos fecundar-nos por
Dionísio, várias imagens simbólicas emergem, tais como o diabo, o inferno, o
Hades. Em contato com essas imagens, tudo o que éramos, pensávamos e
sentíamos, vira caos.
Caos é na mitologia é um dos deuses primordiais, uma de suas atribuições era
a de ampliar, ou seja, ampliar a doença não é torna-la patológica, ou cronificada
(olhar medusante), mas tratá-la com dignidade. Nas palavras de Jung:
‘ citar ‘ (O livro vermelho: ).

Esta dignidade dada a doença por Jung é a presença de Eros, que tomando a
doença pela sua raiz a possibilita tornar-se em convalescimento. A figura
temática de Nietzsche para esse processo de convalescer é dar a luz a uma estrela
bailarina.
Se o caos pede uma escrita bailarina é porque dançar pede o corpo, um corpo
integral, feitos de pulsões excessivas, artísticas que querem expressão. O gozo
não é localizado, é de um corpo que se permite dançar em sua integralidade.
Dançar para sair do ressentimento e mais profundamente, libertar Prometeu e
seu fogo original, algo que faria todo o sentido para Quíron, que ocupou o seu
lugar no rochedo chamado Cáucaso.
Perseguir um devir criança, bailarino é como dar a angustia constante não uma
compreensão, mas uma saudade sabe se lá do que...

Conclusões

Uma menina que fugiu do regime norte coreano, andando pelo deserto de Gobi
com sua mãe, sem a ajuda da bússola, se guiava só com a ajuda das estrelas, rumo
a liberdade. Sentia que só as estelas estavam com elas.
Sócrates em seu recuo e solidão de morte, o que faz? Ele faz um fazer de
experimento final com seu desejo, ou seja, musicar as fábulas de Esopo. Algo
que talvez estivesse lá no Fedro: ‘- Mas e por um milagre esse observador se
tomasse de uma paixão pela dança?’ Sócrates experimentado antes da morte, esta
última liberdade de movimento.
Antes do corpo rígido, paralisado pelo veneno, um devir criança, um conto de
criança musicado. Antes mesmo de ingressar, via morte, a uma comunidade mais
elevada, Sócrates cantou e dançou como uma criança com seu fazer de
encantamento final, ou seja, enquanto ainda tinha corpo soube elevar-se nos ares,
soube ser sublime.

139
Se a arte é a grande possibilitadora da vida, então Sócrates antes da saudade de
um outro mundo, de uma outra vida, experimentou em si mesmo o seu próprio
movimento de convalescer, dando a luz a sua vida em vias de findar-se e ainda
dentro dum corpo e com isso salvando-o do caos da simples e pura dissolução da
matéria, ofertando-lhe para além de todo e qualquer julgamento, uma última e
decisiva vez, a possibilidade de vê-lo (seu corpo velho e duro) voar e dançar.

José

140
ENSAIO MÍTICO

HÉRCULES E SUA DESTINAÇÃO


COMO SE TORNAR UM HERÓI

JOSÉ RAVANELLI NETO

141
2017

APRESENTAÇÃO

Jung em o seu ‘O Livro Vermelho’ em sua parte final (Aprofundamentos)


comenta: ‘Eu te darei a oportunidade de mudar de pele’ (Jung, O livro vermelho:
408). E em seguida: ‘Vem cá, vou costurar-te um remendo na pele para que sintas
como é bom’ (idem: 408). Ao conversar com seu Eu, em uma espécie de recuo e
solidão voluntária, Jung sente o nojo deste eu que, não sendo nem representando
sua alma, quer sempre ficar por cima.
Hércules também sempre quer ficar por cima, quer se tornar herói aos olhos de
Zeus, vai cumprindo tarefas e mais tarefas, e ao final de cada uma delas pergunta
a si mesmo: - agora vou virar herói, com esta nova tarefa feita, Zeus finalmente
vai me reconhecer como um grande herói. Porém, esse dia nunca chega, a essa
mesma pergunta reenviada uma vez mais a Zeus, a resposta é sempre a mesma:
- Ainda não.
O eu de Hércules se revolta, se queixa por este tormento não ter chegado ao
fim.
O fim, a apoteose de Hércules vai chegar de outra forma, a menos previsível,
de uma maneira que o aspirante a herói nunca imaginaria nem em seu pior
pesadelo. Eis como tudo se dá, voltemos ao mito e atentemos a seguinte
passagem...
Hércules está seguindo viagem para Tráquis, se detém diante do rio Eveno. Ele
tem um problema, está acompanhado de Dejanira, sua mais nova esposa, e se
socorre de um barqueiro que faz o transporte no rio. Em troca de uma moeda,
Nesso – antigo desafeto de Hércules – é um centauro ressentido, carrega consigo
o ódio e o espírito de vingança contra o herói. Hércules não se lembra de Nesso,
nem repara em sua intenção belicosa, pois o seu Eu é de uma soberba que não
comporta a ideia de que alguém, muito menos um mero centauro, tentaria algo
contra ele ou sua amada. E assim Hércules optou em atravessar o rio só e deixar
o centauro transportar sua jovem e bela esposa ao encargo do centauro. Deleuze
tem uma expressão rica em seu vocabulário filosófico. Ele diz: - ‘É no meio do
rio que a correnteza corre mais forte’. É no meio onde as intensidades são mais
fortes e potentes.
O que corre mais forte no rio Eveno é a chegada do evento do destino que abre
e marca o ponto limite do herói, ou seja, ali, ou se mata, ou morre, enlouquece

142
ainda abre-se a possibilidade de um convalescimento. No meio é onde acontece.
Ali ao atravessar Dejanira, o centauro Nesso duplamente enlouquecido (ódio e
de paixão pela jovem mulher) se atreve a abordá-la, a tocá-la de maneira
impudica. Ao gritar por socorro, Hércules, que maneja o arco e flecha como
ninguém, consegue ferir de morte o centauro nas costas. Antes de morrer porém,
no meio da travessia algo impossível se dá. Nesso profere suas últimas palavras
a Dejanira, a ponto de fazer acreditá-la numa espécie de sortilégio ou magia, ou
seja, o centauro oferta a jovem uma poção, feita de sangue e talvez esperma do
próprio Nesso moribundo, capaz de manter para sempre o amor de Hércules.
Dejanira tomou a poção encantada e escondeu-a até poder utilizá-la na capa do
leão de Neméia, que o herói fazia uso. Ao se dar conta de que a capa lhe
entranhara nas costas e na carne, Hércules passa por um processo parecido com
o luto, ou seja, se revolta contra a destinação e tem antes da auto-imolação, um
tempo (Aion), para poder pensar em tudo o que lhe aconteceu, uma espécie de
recuo e solidão com vistas a um derradeiro encontro com sua alma. Como
Sócrates antes da Cicuta, Hércules tinha de digerir o acontecido com alma de
herói e não com seu Eu que só chegaria no mesmo lugar já ocupado por Nesso,
ou seja, um lugar de ressentimento.

O recuo e a solidão de Hércules

Se por um lado Dejanira sucumbe ao remorso e a dor da culpa pelo ato


cometido, Hércules tem de tomar uma decisão sobre o fato de sentir dores
terríveis e feridas incuráveis. Certamente o herói deve ter se lembrado de um um
centauro, Quíron, que também padecia de uma flecha sua e levando o amigo a
uma situação limite. Agora era sua vez de ser seu próprio curador, e para tanto
deveria fazer uma escolha. Uma escolha que refletiria em Zeus, em seu
companheiro de viagem, Filoctetes, seu guarda armas, que num futuro breve
também provaria de uma solidão e de uma ferida aberta que não cicatrizava.
O que pensar de Dejanira e sua atitude infantil e desesperada de salvaguardar
um amor romântico e duradouro? O que pensar de um ato de traição? (já havia
sido anteriormente traído por Mégara) Mais do que tudo isso, teria de eleger
como terminaria os seus últimos dias, em guerra contra alguém, ou em paz
consigo mesmo.
Não sabemos como foi esse recuo e essa solidão de Hércules, o que sabemos é
que ele foi decisivo para Hércules torne-se um herói reconhecido por Zeus
esperado por Hera (esposa sempre irada de Zeus, com filhos dele fora do
casamento), que o aceita no Olimpo como imortal. Esta espera festiva significa
algo, um algo que foi elaborado pelo herói como algo da ordem de um sacrifício,

143
pois levado ao monte Eta por amigos, pediu que Filoctetes construísse uma pira
e fosse acendida para que ali fosse queimado vivo, de forma sacrificial, e o mito
relata que enquanto ardia seu corpo envenenado, raios de sol brilhavam forte no
céu, ao mesmo tempo que uma nuvem de fumaça cobria a pira, em meio a trovões
que soavam no céu. Uma mistura de impossibilidades que resultaram no sumiço
do corpo do herói, tal qual como Cristo em sua cripta, os restos mortais
simplesmente desaparecem. A ascensão de Hércules pode significar que a união
dos opostos se concretizou, formando assim uma nova unidade para Hércules
que, recebe a deusa Hebe como esposa divina (a deusa da eterna juventude).
Mas o que significa convalescer no mito de Hércules? Ante uma ferida
incurável, o herói já havia, como dissemos, ferido acidentalmente a Quíron,
centauro de uma outra linhagem (filho de Saturno e da ninfa Firila), encontrado
e criado por Apolo, tinha o dom da cura, e conhecido por preparar os futuros
heróis, o qual Hércules fazia parte. Quíron com uma ferida aberta em sua parte
animal (coxa, perna ou pé), se retira, ou seja, faz um recuo e uma solidão a espera
de uma solução possível, que vem do próprio Hércules, que troca sua
imortalidade pelo castigo de Prometeu e pode assim morrer e encerrar seu ciclo
de provação, entre corpo humano e animal. A sabedoria aqui é o que se faz com
o sofrimento intensivo, com a ferida aberta e sem cura? A essa pergunta sem
resposta, o que se pode concluir provisoriamente é que o ciclo de sofrimento tem
de ter um fim, mesmo que se diga eterno, como no caso de Prometeu.
Para se livrar de algo eterno, só morrendo e renascendo. Se não focamos presos
a roda de Íxon.
Essa participação direta do herói no destino de seu mestre Quíron, deve ter
deixado indeléveis impressões no psiquismo de Hércules, a ponto de incidir em
su própria questão e decisão final de se auto-imolar. Se o conflito de Hércules se
situa entre (no meio as intensidades são mais potentes) seu Eu inflado e
assoberbado e os efeitos deletérios de uma suposta onipotência ilusória,
exemplificada na ação iludida de Dejanira, o que disso resulta é que a
transformação em herói passa, sua transcendência e seu convalescimento passam
pela sabedoria trágica.

Conclusões

O caminho ou a jornada heroica contém um simbolismo que nos ajuda a fazer


nossos próprios enfrentamentos e nos conduzem a um processo que Jung chamou
de ‘individuação’ e Nietzsche de ‘uma nova saúde’. Uma jornada bem sucedia,
implica em um momento de recuo e solidão. É ali que tudo se decide, para o bem
ou para o mal, ou para além do bem e do mal.

144
O antagonista final de Hércules não foi o centauro Nesso e sua astúcia e engodo
frente a Dejanira, mas entre a sua ascendência divina e seu Ego humano.
A aceitação do que está para além do individual do incognoscível, como no
caso de Quíron, é algo da ordem de um para além da loucura, coisa que Hércules
já havia enfrentado quando da volta do Hades e mata seus filhos e esposa por
ilusão ensejada por Hera.
Os 12 trabalhos para Euristeu, proposto por Apolo com vistas a imortalidade
ensejam a não linearidade do que é dito pelo oráculo (como no caso do filho de
Apolo – Íon – na sua pergunta sem resposta: - quem é o seu pai? O qual obteve
como resposta: - é o primeiro homem que deitar o olhos) e que a dita imortalidade
é consequência e processo, e não causa e fim dos trabalhos realizados pelo herói.
Por um desse acasos, o último trabalho de Hércules é voltar do Hades (o que já
é em si uma proeza grandiosa), ou seja, ir até as profundezas e poder voltar, o
que não é para qualquer um, haja visto Jung e Nietzsche que formam ao inferno
e voltaram, porém modificados, ou seja, transformados. Voltar do Hades e logo
em seguida ao preparar um sacrifício purificatória a Zeus e em seguida ser
tomado de loucura a mando de Lissa e Hera, indicam que esse herói em
particular, já passou por muitas dores e provações, seria necessário então um
outro tipo de sacrifício purificatório que somado a estas experimentações de si
mesmo o conduzissem não a um suicídio, mas a uma morte voluntária, de
fechamento de ciclo. A mesma questão socrática, onde Sócrates não rejeita a
cicuta e se torna um herói da polis, por aceitar sua destinação.
O amor fati, ou seja, o amor ao destino, é algo sublime, e é a contraposição do
ressentimento. Hércules conheceu a si mesmo, em meio a provações, sendo
empurrado a olhar para sua natureza animal, instintiva, percorrer os afetos através
de suas inúmeras mulheres e finalmente tomar seu lado dionisíaco – nada em
demasia – de uma maneira singular, pois só quando em seu recuo e solidão antes
da morte pode finalmente, e isso é nossa hipótese, tornar seu lado dionisíaco em
algo sublime, em pulsão estética, que soube agradar a Zeus e Hera – Apolo e
Dionísio respectivamente – e só assim conquistar a imortalidade e um lugar ‘no
meio’ dos outros deuses.
A punição da soberba de Héracles, cumpre assim sua necessária destinação no
tempo de Aion, e não no de Cronos, onde a hýbris e Dionísio cumprem papel
decisivo.
José março 2017

145
ENSAIO MÍTICO

PROMETEU DE ÉSQUILO: UMA VIAGEM AO


TRÁGICO

JOSE RAVANELLI NETO


PIRACICABA 2016

APRESENTAÇÃO

Tudo acontece na solidão: ‘região de Cítia, solitária e inacessível’ (Ésquilo,


Prometeu acorrentado: 5). Acessar a solidão para retirar dela um

146
conhecimento trágico é, para a rígida lei apolínea da individuação um
momento cada vez menos propício, pois isso se mostra como uma
monstruosa transgressão como já apontava Nietzsche e m seu ‘O Nascimento
da Tragédia, cap. 9: 62).
Foi preciso acorrentar Prometeu, eis o castigo para quem faz um recuo e se
atreveu a pensar dionisiacamente a individuação dos homens, o seu fazer no
mundo e a sua nova destinação: - o poder de criar, a partir do fogo simbólico.
Mas o que fez Prometeu? Qual sua transgressão mais severa? Ah! O fogo
divino e sagrado. Mais que o fogo em si, o medo de Júpiter era a de uma raça
que pudesse criar. Eis a razão de sua punição. Desejo de possuir o fogo
voltado para uma raça que poderia se igualar em feitos de criação; ao menos
um instante; se aproximar do pathos simbólico dos deuses. Prometeu quer
presentear os homens com fogo. Um fogo simbólico, especial, decisivo para
as criações de gênio, aquelas que mudam para sempre o olhar (o que vemos
diante daquilo que nos olha de volta).
Trata-se mais do que uma punição severa, trata-se de uma expiação.
Expiação significa ‘expiatione’ (latim), um meio para se lidar com o
sofrimento. Um tipo especial de sofrimento: aquele derivado de um desejo
excessivo, sem controle, algo da ordem de uma desmedida (loucura).
Satisfazer o desejo em prol de uma criação ou uma estética do trágico é
algo incomum, ou seja, nos remete a uma outra individuação que não a
apolínea. Em Prometeu temos a indicação de uma individuação que une
Apolo e Dionísio juntos, um amor que une deuses e humanos numa
comunhão que gera uma estirpe titânica e olímpica.
Poder e violência juntos, numa boa medida, para que a solidão de uma raça
nova e com esse plus simbólico não seja penosa, pois a solidão agora é vista
com outros olhos. Olhos de sonhador, olhos de quem agora sabe fazer um
recuo para trás. Coragem e solidariedade juntos, para que o distanciamento
de outros homens não fosse um sol ofuscante.
Mas para Prometeu, seu sonhar em seu recuo longe de Júpiter, de que tal
solidão fosse tranquila para a busca dessa coragem de fazer seu desejo
transgredir em favor de sua criação, para que ela perpetrasse o ato de criar e
que com isso poderia aproximar numa aproximação perigosa em demasia
deuses e humanos num mesmo prato de justiça, era ainda uma coisa futura e
muitíssimo duvidosa.
Héracles, seu futuro libertador da expiação, nem sequer tinha nascido
ainda. O devir de homens e deuses se tornara aberto e caótico, e não havia
nenhum outro exemplo de tal procedimento já realizado. Por isso sua punição
deveria ser exemplar e definitiva.

147
O que está feito, está feiro, amor fati ao destino. Não há remédio para isso.
Mas o que a sabedoria trágica aponta, é que mesmo o que foi feito e assim
nada pode ser mais desfeito e voltado para trás, aponta para um resto, ainda
sobra um algo, um plus, um excessivo do desejo, seja ele humano ou divino.
Prometeu seguiu e cumpriu seu desejo até o final: presentear os homens
com o fogo simbólico da criação.
A esta honra Prometeu tem de expiar sozinho, junto ao Éter, rios e sob o
olhar solar, ao qual dirige suas súplicas: ‘Quando virá o termo de meu
suplício?’ (Prometeu: 16). É preciso resignação, amor fati ao destino. A
solidão traz as ninfas, que veem o seu sofrimento. Prometeu sabe que existe
coisas piores que o roubo do fogo, que Júpiter corre perigos maiores, mas há
de se calar sobre isso, até ser libertado.
Esse perigo maior tem nome: Os Titãs. Prometeu sabe quais armas se pode
vencer os Titãs. Não se trata mais de poder e violência, que são as armas
habituais usadas por Júpiter, e que foram empregadas contra Prometeu.
Agora é necessário uma superior sabedoria: ‘o ardil tão somente decidirá a
vitória’ (Prometeu: 18). Júpiter só pensa em aniquilar, e isso inclui a raça
humana, ao que Prometeu se opõe. Mas porque não aniquilar essa raça?
Prometeu tem orgulho de sua criação (a raça humana), pois ela aprendeu a
fazer um remédio contra a dor e o sofrer: ‘Dei-lhes uma esperança infinita
no futuro’ (Prometeu: 21). Os homens não querem mais morrer, querem
desejar, criar, usufruir desse excessivo dionisíaco que agora descobriram em
si mesmos.
O ardil é que esse poder, essa vontade de mais, não é usada somente para
destruir os inimigos, que são vistos como perigos para subtrair as conquistas
e as devidas honras aos vencedores. Para honrar é preciso estar vivo e não
morto ou aniquilado. Estar vivo e se tornar não um igual, mas um outro que
também saiba usar o fogo para criar. O dispositivo de criação não é só de uso
dos deuses, que detém esse poder, pois doravante, com a descoberta de
Prometeu, os homens se tornaram a expressão estética maior do uso do gênio,
pois seu ardil era superior ao divino neste instante, pois estes aprenderam a
lidar coma dor e o sofrer com sua estética simbólica. Isso nem o poder e a
violência isoladas podiam dar a Júpiter. Por isso Prometeu aceita
forçosamente seu destino de expiação. Uma expiação que tinha uma
perspectiva futura: deuses e homens lado a lado, num outro pathos de olhar.
Se libertar significa então ver chegar esse dia miraculoso, onde homens e
deuses, num ‘sentimento de dependência recíproca’ (Nietzsche: 63),
Prometeu tinha de esperar sem ressentir com os demais deuses que não
vinham lhe libertar.

148
Prometeu já vive e experimenta esse sentimento único e legítimo. Agora
tem como amigos e companheiros de expiação, as ninfas e o próprio oceano:
‘Eu o vejo, Prometeu: 24). Ver e ser olhado de volta, eis a astúcia do
simbólico, a métis que Prometeu evoca com seu sofrer e sua expiação, não
mais como exemplo de punição autoritária, mas como o primeiro a ofertar
ao outro, ao diferente, a possibilidade de tornar-se. Um novo devir a raça
antes limitada. Mais do que um ato de desafio, de desobediência, o que temos
em Prometeu é o de uma amorosidade extravagante: dar o que se tem, juntar
seu melhor e pior. O ardil, a trama que recebe o auxílio de um acaso, não se
consistiria nisso? ou seja: saber olhar e receber de volta do outro um algo,
um plus, com o qual posso pensar em coisa outra que não só destruir, colocar
em baixo da bota um igual combatente? Não é isso que faz Júpiter, em seu
olhar medusante?
Prometeu recebe o conselho do Oceano: ‘concentra-tes em ti mesmo’
(Prometeu: 24). O conselho de processar a individuação vindo desse
companheiro de viagem é exemplar, pois seu momento de reconciliação com
Júpiter precede o instante glorioso de solidão e recuo diante de si mesmo,
com o qual sonha preso junto ao rochedo. Curvar-se sob o jugo de Júpiter, é
uma vez mais, aceitar o destino.
Júpiter caminha sob um rastro de ódio, cujo símbolo maior são os Titãs
dominados, que um dia se rebelarão contra seu fiel opressor, que usa o poder
e a violência para conquistar seu trono ascendente.
O ardil, a métis, não faz isso. Estes esperam o momento oportuno e não se
chocam diretamente contra a cólera alheia. Isso é da ordem de uma outra
sabedoria e legislatura de poder. O ardil se aproxima da ingenuidade, ou seja,
ante o perigo, recua e espera estrategicamente, para só depois fazer o
enfrentamento. Astúcia de guerra. Ora de calar.
No silêncio a queixa se torna benefício. Torna-se um pharmacon que pode
ajudar Prometeu e agora a sua ascendente raça humana, a aprender a
convalescer, a buscar uma outra saúde.
Prometeu, tem de curar a si mesmo, ou seja, aprender a convalescer sem
ressentimento pelo seu mais profundo desejo já manifesto, assim como os
homens estão tentando fazer, olhando-o neste momento divino. Um elo, uma
ligação profunda agora une homens e Titãs, deuses e uma raça capaz de criar
para si remédios simbólicos para seus males.
É preciso saber interpretar os signos e sinais do ignoto, do desconhecido,
do que se lança aos ombros, de tudo o que chega de forma imprevista e
estrangeira. E isto inclui o desejo.

149
Eis aí o cerne da sabedoria trágica, Apolo e Dionísio juntos e sem que um
tente dominar ou matar o outro de forma definitiva. Aqui, nesta aproximação
impossível, se preserva o desejo, também impossível, de Prometeu.
Que é, e quem domina a fatalidade? ‘As 3 parcas, e as Fúrias, que nada
perdoam’ (Prometeu: 35). Fúria, Rancor e Vingança, formam a tríade
perfeita do que é um ‘para trás’ ressentido, ou seja, reúnem as condições
psicológicas (amor fati) para se estabelecer o que Nietzsche chamou de
‘ressentiment’. Prometeu está sujeito a estas condições (sina, destino), assim
como os homens, e ninguém sabe dizer exatamente quando Àtropos (uma
das Moiras) vai cortar a linha ou o fio que decide o término de uma vida ou
de um sofrimento.
Neste momento de sua solidão, Prometeu recebe uma visita inesperada: Io,
trazida pelo fado do destino, ela que como uma louca vive a fugir de seu
perseguidor (Juno), ou seja, o destino reúne ali no fundo abissal de um recuo
e de uma solidão querida, dois deuses que desejam fugir de seu destino, por
vezes recusando-o, pois é neste instante de cuidado de si que estes
acontecimentos se apresentam como coisa maior do que se pode suportar
(vide o irmão de Prometeu; Atlas; que sustenta o mundo nas costas). Como
lidar com isso?
Ambos buscam seu remédio, seu Pharmacon único. Uma é louca, erra e o
outro está preso e fixado em seu abismo sem fundo. Io recorda, com pesar,
sua história de perseguição junto a companhia de Prometeu. Obrigada a sair
de casa, pois Júpiter a desejava excessivamente, foi obrigada a errar, em
exílio permanente. O aguilhão de Io faz com que Prometeu adivinhe o fim
de tamanhos tormentos pelo qual Io ainda tinha de passar e aconselha a
jovem (assim como Oceano o aconselhou): ‘dirige teus passos para a porta
do Oriente’ (Prometeu: 46). Lá está o país das Citas nômades, povos armados
de flechas e que deverá evitar. Deverá chegar ao Cáucaso (monte) e lá escalá-
lo até ao topo, e ao descer, encontrarás as Amazonas, que detestam os
homens, e lá elas ‘conduzir-te-ão com prazer’ (Prometeu: 47). Será preciso
a Io atravessar o mar e chegar em outras terras e outras paragens (Oriente).
O remédio prescrito por Prometeu se chama – travessia – atravessamento,
avessamento, experimento de si mesmo levado até o limite extremo: lá, no
estrangeiro, no olhar outro, tornar-se-á livre e liberta de qualquer poder e
violência, mesmo que divina. Mudança de perspectiva, travessia
eminentemente simbólica.
Sabedoria trágica: não estamos ligados a culpa, a cumprir nossa destinação
na chave de uma culpa que nunca se esgota nem resgata. Os homens assim

150
pensavam quando se sentiam culpados por terem ofendido os deuses,
transgressores que eram por se apropriarem do fogo simbólico.
Nietzsche comenta a contradição entre homens e deuses: ‘O melhor e mais
excelso do que é dado à humanidade participar, ela o consegue graças a um
sacrilégio, e precisa agora aceitar de novo suas consequências, isto é, todo o
caudal de sofrimentos e pesares com que os ofendidos celestes afligem o
nobre gênero humano que aspira ao ascenso: é um áspero pensamento que,
através da dignidade que confere ao sacrilégio, contrasta estranhamente com
o mito semítico do pecado original, em que a curiosidade, a ilusão mentirosa,
a seduzibilidade, a cobiça, em suma, uma série de afecções particularmente
femininas são vistas como origem do mal’ (Nietzsche: 64).
Júpiter nem imagina que dará a luz a um filho (Zeus) que o destronará em
breve. Ele vingará a mãe e seguirá adiante a ideia de força – alguém mais
forte – mas ainda sem essa outra astúcia de que a sabedoria trágica alerta.
Os homens e os deuses sucumbem as ilusões, as promessas, as afecções,
enquanto isso Prometeu aprende a esperar ser liberto por um filho futuro de
Io. O poder e a violência geram a desgraça, fazem rodar a roda de Ìxon,
fazendo retornar os inimigos que o dobrarão até a queda final e assim
sucessivamente. O desejo de Prometeu é mais forte que o poder e a violência,
que o retorno do mesmo princípio, daí que disso resulta num desejo
excessivo que pode tomar a frente e fazer superar a expiação, a falta, a
afecção feminina que marca o desejo freudiano, sempre faltoso.
Mas Júpiter tem orelhas de Dionísio, e manda um mensageiro – Mercúrio
– para que Prometeu fale quem é o usurpador do seu trono, ao que Prometeu
retruca: ‘Volta sem tardança ao lugar que vieste: nada mais saberás de mim’
(Prometeu: 61).
Prometeu, por sua vez, ainda tem vencer definitivamente seu para trás, o
seu ódio aos imortais que lhe fazem mal, para saber qual o remédio a ser
ingerido. O ressentimento de Prometeu é maior do que as assertivas de
Mercúrio, que o ameaça com novos tormentos: ‘- o cão alado de Júpiter –
virá arrancar de teu corpo enorme pedaços e, comensal não desejado, voltará
todos os dias para se nutrir de teu fígado negro e sangrento’ (Prometeu: 66).
Narrativa extremamente simbólica, uma vez que sem resolver o para trás,
não há cura, convalescimento e nem uma outra saúde, apenas repetição do
mesmo, sem abertura ou possibilidade de devenir.
Esse tormento só terá fim se um outro deus ficar no lugar de Prometeu.
Mas Prometeu espera, sabe perseverar em seu erro cometido. As ninfas não
o abandonarão, o que significa dizer que Prometeu terá companheiros e
companheiras de viagem até o fim de seu recuo e de sua solidão. Quando

151
algo novo e inusitado abrir o seu devir, aí ganhará sua sabedoria trágica, a
compreensão de seu experimento desejosos, tudo o que ainda é dessa ordem
de um excessivo para si e para os demais. Esta penúria chegada a este ponto
de viramento e avessamento, não se trata mais de desejo faltoso, mas de uma
individuação que avessa o faltoso em excessivo, plasticamente, pois o que
existe é desejo e não buraco faltoso. O poder e a violência, seus golpes que
chegam via destinação, impedem o curso do desejo, tornando-o ressentido e
voltado para trás. Mas isso tem cura, tem pharamcon.

Conclusão

Em Nietzsche vimos que a contradição das coisas não está num mundo
(divino) ou no outro (humano), mas que tanto em Prometeu quando nos
homens, ambos sofrem de um processo chamado individuação. A raiz do
processo de individuação é de ordem desejante. O que a sabedoria mítica
revela é que para se chegar a uma individuação é necessário Apolo e Dionísio
juntos, e que disso resulta um desejo excessivo, que não sendo via de regra
faltoso, nem concentrado em poder violento, tem efeitos num despertar de
prazer e júbilo que conferem ao sofrimento uma aceitação tácita, espécie de
amor ao destino, Um querer que assim fosse porque eu o quis. Métis e
astúcias da razão aliada ao coração,
Se os deuses e o próprio homem aspiram o titânico junto ao sublime que
faz o coração permanecer integro e intacto, é porque o autoconhecimento e
o comedimento ao excessivo, exigido por Apolo, não podem se congelar em
rigidez e frieza, tal qual como Medusa nos ensina como portadora que é dos
segredos do conhecimento ancestral. O olhar que toca o coração, jamais
paralisa o tornar-se.
Então faz-se jus a formulação contida em Prometeu: ‘Tudo o que existe é
justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificável’ (Nietzsche,
cap 9: 66).

ENSAIO PSICOLÓGIO\FILOSÓFICO

152
SOBRE O DESEJO EXCESSIVO

JOSE RAVANELLI NETO

PIRACICABA SET\2016

INTRODUÇÃO

Para falar de desejo é preciso falar de Sileno. Representado na


mitologia grega como um velho gordo e na maioria do tempo
embriagado, foi tutor de Dionísio, ou seja, fazendo a contraposição
criança e velho, temos entre um velho e uma criança inocente uma certa

153
unidade provisória, que no limite, aponta os extremos da vida e do viver
e de uma educação voltada ao desejo excessivo. Em algum momento o
velho e a criança irão se encontrar. Um encontro decisivo, como o de
Sileno com o rei Midas. Neste caso, o desejo abre o toque de Midas,
onde tudo vira ouro, mas nem tudo se torna dourado pelo seu toque, ao
contrário, tudo se desertiza.
Jung em seu ‘O livro vermelho’, fala de seu encontro com a criança,
num mito que diz sobre um rei solitário que gostaria de ter um filho e
depois se arrepende para fazê-lo renascer uma vez mais e coroá-lo rei
em seu lugar. A passagem que se abre de um mais velho dando lugar ao
mais novo e forte, abre a conexão devir entre o que foi e o que ainda se
tornará. O que se foi tem de aceitar que um outro tome seu lugar, mas é
urgente que isso seja um ato do coração e não da razão medrosa.
Numa perspectiva psicológica, o encontro do velho com a criança pode
ser a da vida dentro da multiplicidade dos muitos eus que nos habitam.
Simbolicamente o que é velho e deve morrer para que um outro eu nasça
e isso é da ordem de uma renovação da ordem do necessário a um
convalescimento.
Em ‘O Idiota’, Dostoiévski descreve o processo de um tipo que
conserva puro e inocente o seu coração em confronto com o velho e
desgastado modelo russo de enfrentamento do problema Silênico por
excelência: - O que é preferível ao homem? É preferível ao homem
manter a vida em consonância com o seu coração integro e intacto. Eis
a resposta a uma pergunta sem resposta que é da ordem de uma
alternativa ou possibilidade ao impedimento ‘não nascer e ou morrer o
mais rápido e breve possível’.
No encontro com o Titã, Dionísio criança prefere não chorar, gritar,
mas enfrentar o destino que se abre ante o espirito de vingança que
chega, e mesmo sem o saber, ser parte de um morrer de forma trágica e
sem se deixar contaminar pelo espírito ressentido do Titã. Só assim
ambos podem renascer, dando origem a uma forma humana nova que
alia as cinzas instintuais do Titã e o coração puro da criança divina.
Nasce então um tipo metamorfoseado, uma raça que reúne em seu
nascimento o instinto bárbaro junto ao amor da ordem de cupido, que
advém do olhar da criança que aceita o titânico, a ponto de interagir e
brincar com ele. Em nenhum momento Dionísio criança repele o olhar
que vem do Titã, mesmo um olhar que vem ao seu encontro com máscara
de argila (Clow), e propõe jogar e brincar antes de despedaçá-lo e cozê-
lo num caldeirão alquímico onde ebule os caldos do viver ressentido.

154
Ao festejar o surgimento desse tipo estranho e singular, a vida une o
mais improvável e impossível: um coração de criança a um monstro
repulsivo e instintual. O conto ‘A bela e a fera’ é uma versão mais amena
do mito dionisíaco, é como se lá atrás a criação dotasse esse tipo humano
nascente com um desejo excessivo por excelência, algo que Nietzsche
antecipou lá em seu ‘O Nascimento da tragédia’: um humano capaz de
elevar suas capacidades simbólicas ao máximo, ou seja, um tipo
excessivo que chora e ri ao mesmo tempo. Um tipo que deve aprender a
processar o que o salva o conduz a uma saúde mais forte e ao mesmo
tempo destrói, traz o caos para dentro e fora de si.

Essa é raiz trágica da qual não escapamos em momento algum, pois o


trágico se mostra exatamente nos momentos limites. Dostoiévski
poderia ter dito: - No momento limite matamos, morremos, ou ainda
enlouquecemos. Num mais além podemos juntar Dostoiévski com
Nietzsche e acrescentar: No momento limite, matamos, morremos,
enlouquecemos ou ainda, convalescemos (buscamos uma outro saúde,
tornamos o espírito livre) quando processamos numa solidão e num
recuo estético e artístico, aquilo que aqui vamos desenhando como
desejo excessivo.

Voltamo-nos uma vez mais ao coração integro e intacto, o início e o


fim de tudo.

A velhice

Em seu ‘O livro vermelho’, Jung no capítulo sobre o Mago diz que seu
companheiro de viagem – Filemon - é aquele que necessita exorcizar sua
velhice. Mas a questão toda está em que só se pode exorcizar a velhice
com a sua criança divina, que ainda habita em seu peito, dentro de seu
coração guerreiro que já enfrentou inúmeras e diversas batalhas. Não se
exorciza a velhice com uma mulher mais jovem ao lado, implorando o
seu amor (Salomé), nem com o conhecimento retirado dos livros lidos e
absorvidos durante tanto tempo (bibliotecário). Nem tão pouco com a
religião tradicional e seus valores antiquíssimos e já gastos e pruídos
(Elias). É preciso e é muito salutar e necessário dar novas máscaras a
Salomé e Elias, revigora-los e uni-los numa nova unidade, ou seja, pô-
los a falar dentro de uma linguagem outra, que no limite, atinge o
coração, ou seja, a criança divina. É urgente falar a linguagem das flores,

155
que o mago rega a cada nova manhã, e que desabrocham nutridas pelo
que a mãe terra dá. O mago gira em torno do que nasce e renasce e do
que cuida, para que esse processo se repita uma vez mais e mais. Cuidar
das coisas que são parte da sabedoria trágica, que engloba o nascer e o
renascer, é tarefa do mago, e não há nada de novo nisso. Estamos aqui
inteiramente situados no reino de Dionísio, e num momento muito
delicado onde se lida muito mal com o que vem do deus. A magia deste
nosso século consiste então em: - resgatar Dionísio criança, fazer com
nosso espíritos velhos exorcizem o conhecimento, a razão como única
forma de conhecimento, não deixar que o coração seja despedaçado pelo
Titã. Ao contrário, o mito de Dionísio, ensina que se deve a todo custo,
manter o coração, mesmo diante do trágico, manter o coração integro e
intacto.
Toda esta magia de um resgate dionisíaco na forma de criança, se
encontra em ‘O idiota’ de Dostoiévski, que retrata a chegada de um
príncipe com o coração integro e intacto e seu enfrentamento perigosos
com o tipo russo doentio, descrito magistralmente pelo autor russo.
Nesta obra primorosa, o Wotan de Jung, o Dionísio de Nietzsche,
renasce na figura do príncipe de coração integro e intacto que luta para
que quando se apresente o instante supremo, o momento mágico do
mago, ele empreenda a sua ação ou não ação de forma não ressentida e
voltada inteiramente a abertura de um devir possível. Em ‘O Idiota’, o
instante limite é sempre em que: - ou se mata, ou se morre ou
enlouquece. O príncipe criança sabe o que é adoecer e convalescer e
sabe que isso é a vida, a única vida em que se pode tentar renascer uma
vez mais, depois da morte de Sônia, a mulher louca que foi assassinada,
onde um abalo do coração dorido por tudo que seus olhos viram na volta
a pátria mãe, faz com que o príncipe necessite de um novo recuo e uma
nova solidão no estrangeiro, para quem sabe, convalescer, uma vez mais
e voltar a sues enfrentamentos com uma nova saúde.
No limite, o que intuímos, é que um novo cansaço se abate sobre o tipo
pós-moderno, que chega mais longe que o homem do subsolo de
Dostoiévski, pois estamos, quem sabe, cavando um pouco mais fundo.
No fundo sombrio, o Dionísio que tem subido é desejo sexual. É o apelo
de Salomé, no diálogo junguiano do livro vermelho. Tempo de ocaso,
onde o velho mago, já cansado, olha tudo em meio a um ‘lusco-fusco
pálido e oscilante, iluminado pelas luzes do passado, pouco temeroso da
escuridão daquele que virá’ (Jung, o livro vernelho: 350). Aquele que
virá não é promessa de um Messias, nem de um mais além, incerto, ao

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contrário, aquele que virá, virá nesta vida, nesta única vida, se
contrapondo a decrepitude, a desesperança.
Em tempos de doença, pois de alguma forma estamos adoecendo, o
que importa pensar é se o desejo de ajudar – médico, psicoterapêutico –
não é tragado pela doença e o doente juntos. Qual magia nos protegerá
dos vacúolos de solidão, da descida até o Hades, do inferno que é viver
sem coração? A ferida aberta pelo Titã, pelo desejo de vingança nos
guia até hoje e nos confere a magia de poder renascer, ainda uma vez
mais, em meio ao trágico humano, que necessita do ferramental
simbólico para lidar com Dionísio, que é da ordem de um algo, um plus,
que está a disposição de quem queira e faz conexão com esse coração
rico, que não está situada nos usos da razão instrumental. A magia seduz,
pois é o negativo daquilo que podemos conhecer racionalmente. Salomé
seduz, mas nesta sedução não há nada a compreender. Quando se é velho
não se tem nada a compreender, então a razão diminui por si mesma, e
dá lugar a algo simbólico, fruto da libido em profusão, que surge quando
se renuncia aos frutos da consciência. Sem razão é como ser bobo – um
bobo da corte – que que está mais próximo de Dionísio do que um tipo
racional, sem nada no coração.

O desejo após a morte de Sócrates

A excessiva licenciosidade do corpo se contrapõe as Leis de Apolo ou


Zeus, que requerem dos jovens a temperança e a coragem, e por outro se
abster dos prazeres. Não se deter sobre a embriaguez em geral, mas ao
mesmo tempo passar o tempo em comum bebendo vinho, tem um papel
na educação. Uma paidéia que chegue a Dionísio, isso é uma novidade.
A virtude que possa reunir o corpo e a alma são questões antigas e coube
a Nietzsche re-traduzí-las em o seu ‘O Nascimento da tragédia’. Prazer
e dor juntos, como 2 conselheiros a disposição que se pode ouvi-los
quando for necessário. As forças contrárias nos lembram o mito de
Prometeu, do desejo do Titã em dar o fogo aos homens e os efeitos sobre
si desse desejo transgressor as leis de Zeus.
De um lado a embriaguez que excita e torna tudo mais vivo e de outro
a parte racional, que se lembra, promete e forma um valor. Mas voltemos
a nosso fio condutor simbólico. A embriaguez abre o que se chama o
canal da ilusão e da fantasia. Nietzsche percebeu que a embriaguez
permitiu ao povo grego um algo espetacular, ou seja, querer continuar
sonhando um pouco mais. Ao pretender elevar as capacidades

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simbólicas ao máximo, a embriaguez cumpre a sua parte, que é
justamente a de restabelecer a conexão com a força imaginária, mítica,
cujas raízes estão no coração humano.
Uma tese que se propõe a paidéia grega é que para se exercitar o
controle da audácia, é preciso se mostrar excessivamente audacioso. O
que embriaga pelo prazer e resulta numa ação sem reflexão, ou seja, o
excessivo da ordem da desmedida da cólera, covardia, riqueza, beleza,
etc, e que Nietzsche chamou de ressentimento, tem necessidade de um
pharmacon, que não só permite conhecer algumas das disposições da
alma e do corpo, mas proporcionar uma estética de um cuidado de si,
reconhecendo o poder do excessivo e da embriaguez. Os mitos trágicos
trazem esse excessivo em Íxon, Filoctetes, Prometeu, Édipo, e tantos
outros heróis que nos mostram a atuação do pharmacon, que cicatriza as
feridas, ao invés de deixa-las abertas eternamente (como em Íxon).
A educação se dá então, no meio, entre os prazeres e as dores. A
música é esse meio, onde Apolo e Dionísio se encontram.
Um encontro caro e rico a muitos escritores, filósofos e psicólogos. É
sabido que Nietzsche fazendo uso de sua embriaguez visitou o Hades
muitas vezes, que Jung desceu até o inferno (The red book), que Alice
escorregou pelo buraco do coelho, que Heidegger se isolou na floresta
negra, que Descartes preferiu seu quarto mudo, que até mesmo
Dostoiévski, em seus anos de reclusão engendrou aquilo que foi sua
regeneração, ou seja experimentar como os demais, o lado sombrio da
vida: ‘é possível escrever apenas com cores alegres? Como se pode ver
o lado claro de um quadro sem o lado escuro? Pode haver um quadro
sem que a luz e sombra estejam juntas? (J Frank, Dostoiévski, os anos
de provação: 74).
Uma paidéia estética, artística, arteterapêutica em excelência,
comporta então esta junção e conexão entre Apolo e Dionisío,
embriaguez e vicio e racionalidade e virtude, entre sombra e luz numa
formulação que resulte em saúde, uma nova saúde que aproxime num
pathos de cura pelo pharmacon, tocado pela sabedoria trágica dos mitos
e de Sileno, abrindo aos que desejam se aproximar de um recuo e solidão
necessários a possibilidade de um convalescer, que cada pensador dá um
nome: tresvaloração de valores, conhecimento de si mesmo, mundo do
ser, regeneração.
O que importa aqui é que todos os fizeram um recuo e uma descida até
as sombras, puderam voltar de lá mais enriquecidos de um algo, um plus
que chamamos desejo excessivo, e não só faltoso. Um enriquecimento

158
que só pode ser reconhecido, quando no momento limite, na virtú
(escolher a coisa certa a se fazer no momento certo), o sombrio foi
levado em conta. Uma educação que faz o que mais importa ao homem,
aprender a convalescer, a entender via sabedoria trágica, que a resposta
certa mata a pergunta, que no momento decisivo, o coração entra no jogo
e pesa a favor ou contra o instante. O instante que abre o portal, o instante
onde se mata, morre, enlouquece, ou ainda quem sabe, convalesce.
O instante, o momento comporta o que chamamos devir, um tempo
para além do tempo histórico, cronológico, que comporta um processo
de um tornar-se. Tornar-se é na Grécia antiga um modelo de governo, as
leis instituídas na pólis, e depois a formação de tipos que se querem auto-
governar. Possibilidades de auto-governo ou cuidado de si, passam pelo
que pode o corpo e o que pode a alma, agora juntos, unidas numa unidade
provisória, chamada vida. Potência de vida.
Assim como polis e cidadãos devem caminhar junto em seu conjunto
de leis, corpo e alma desejam, juntos, um caminho que não sendo o de
uma destinação já feita, desejam um devir aberto e promissor de
realizações em um plano onde reinaria o espírito livre, a liberdade
possível diante dos acontecimentos. Isso não significa arbítrio, mas
experimento de si mesmo, levados e conduzidos até as alturas, ou seja,
as portas do devir, de um tornar-se o que se é, dentro de uma pólis.
Virtude de desejar nem um extremo nem outro, ou seja nem a guerra,
a barbárie de um povo sobre outro, nem o egoísmo, as leis em causa
própria. A vontade humana aqui é aliada a sabedoria, a não ignorância
do poder das sombras, da parte sensível vinculada ao prazer e a dor que
formam a massa e a multidão dos que são governados pelos reis e
senhores, é que formam aquilo que se chama sombra e que não pode
estar desconectados da luz, pois ambos são uma só coisa.
Se o mais forte comanda e o mais fraco obedece, isso sem passar pelo
coração vira tirania. Toda ação tirânica recebe mais cedo ou mais tarde
uma carga de ressentimento, um ódio acumulado que Nietzsche chama
de mergulho num para trás, adentrando-se no espírito de vingança dos
tipos ressentidos. O desejo voltado para trás é doença, e os que obedecem
de forma consentida, são poucos. Daí resultou a ideia de democracia
ateniense. A desmedida é então o tema que nos leva de volta ao desejo,
numa perspectiva histórica, os reis e monarcas de vida viciosa, excessiva
levando seus impérios e povo a ruina, como Xerxes (Persas) e como as
cidades de Messênia e Arcos na Grécia. A virtude, em sua totalidade
(aliando coragem e temperança), tem no outro extremo a excessiva

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liberdade, que faz esquecer a solidariedade entre as cidades gregas. É
diante do pavor de perder a honra e o respeito pelas leis antigas que surge
o poder da música, em forma de cantos (incluindo o ditirambo), que
compunham as leis musicadas. Que se desrespeitadas, levavam com o
tempo a liberdade excessiva que arruína a cidade.
O lado titânico instintual é domado quando Prometeu é acorrentado,
quando Filoctetes vai para a guerra, quando Íxon é acorrentado, quando
Dionísio criança desmembrado pelo Titã, é unido ao mesmo, em suas
cinzas para compor um novo tipo humano: coração de criança e nervos
titânicos, quando a pulsão dionisíaca se aproxima da pulsão apolínea.
Entre a autonomia de Prometeu e as leis de Zeus, a boa medida se torna
algo como uma questão sem resposta, pois todas as qualidades
submetidas a temperança da alma, devem ainda passar pelo corpo. O
bem da alma e do corpo ditos pelo diálogos de velhos, como é o caso
deste tópico vai agora chegar ao fim, a procura de jovens legisladores.
O jovem, a criança divina, representa nesta perspectiva, a cidade
transitória, situada no devir.

SOBRE O DESEJO

Sobre a problemática do ‘desejo’, o que é, do que se trata um desejo?


nos incita a que? A palavra desperta a curiosidade justamente quando
abdica da posição analítica (desejo sempre faltoso que retorna) em prol
de uma concepção outra que, ao colocar esse mesmo desejo dentro da
ordem de um excessivo, sinaliza um registro que é susceptível e atrelado
ao instinto dionisíaco concebido por Nietzsche.
A percepção e o diagnóstico de Nietzsche, desde ‘O Nascimento da
Tragédia’ é muito instigante a respeito da formação e transformação de
si mesmo, e isso passa pelo entendimento dos instintos, seja na versão
dos instintos cansados (indianos) e do instinto forte (grego trágico) que
sofre devido a própria superabundância. O cuidado de si (Foucault), ou
a arte de viver, é pontuada no estoicismo, como embelezamento de si,
não pelo que é valorado como belo, mas pela virtude, pelo cuidado da
capacidade de compreensão e consequente não esquecimento.

O excessivo aqui é expresso pela vontade de querer sempre mais e


mais, e quase nunca se contentar com o que já se tem. Gozar eternamente
de si mesmo, como paixão. O problema é querer o que acontece, um
permanente dizer sim ao mundo e o viver.

160
O nosso fio condutor aqui não é o desejo faltoso, ao contrário, pautado
pelo que sobra, pelo que se tem e se espalha, como rizoma.
O mito de Prometeu indica um mais além desse querer, e seguindo a
via do excessivo, quer distribuir e espalhar o fogo para os homens.
Seguimos de perto esse ponto em que geralmente ‘querer’ implica usura
e morte do outro do qual se extrai uma força que indica e sinaliza esse
contentamento de poder retirar aparentemente do outro o que nos falta,
ou mais além, queremos independentemente se nos falta ou não. A
literatura de Dostoiévski – Crime e castigo – nos dá bem uma ideia sobre
o que falta a Ródian, o herói do livro, e que desdobra a falta nesse mais
além, invertendo a propositura da falta em seu outro lado (excessivo),
em que matar significa abrir a possibilidade de encontrar esse mais
poder, movimento pulsátil de caminhar por cima do que é para trás, sem
olhar, e seguir adiante.
Uma particularidade desse uso é o conhecido termo popular de ‘usar
até gastar’ ou extrair do objeto até o último centil. Em Prometeu abre-se
um algo novo, ou seja, de que o uso da força e da violência para garantir
o uso e gozo do fogo é nulo é inútil e no limite, acontece o seu inverso,
pois esse poder aplicativo – não podes, nunca deves - não garante que
este será propriedade dos deuses indefinidamente, nem que o seu
partilhar é um sinal de menos poder. O poder de Zeus sobre os demais
deuses, o que inclui a exclusividade do domínio do fogo pelos
olimpianos, só processa um para trás ressentido e orgulhoso do uso do
poder e um retorno do mesmo ponto, a saber, no limite, o que é uso
exclusivo de um se tornará uso de todos. Haja visto que Prometeu é um
Titã, e suas raízes são as do passado feito de ressentimento pelo que Zeus
fez com a maioria dos Titãs que não aceitaram seu poder unilateral. Ao
trair o que Zeus determina em relação ao uso do fogo, Prometeu é
instrumento de algo maior, excessivo, e faz uso de seu excessivo pela
via do artístico, criando uma raça humana também ela estética e
dotando-a de uma possibilidade de tornar-se que chega em seu limite, lá
onde só o fogo pode fazer dobra, abrir uma possibilidade outra de
continuar tornando a raça, o tipo humano em travessia, e isso é seguir a
via desse excessivo aberto, de uma viação em que algo gera e cria sem
cessar. O mito titânico desvendado traz essa novidade dionisíaca em sua
formulação: - tornar o instinto forte, estético, mesmo ante as imagens do
terrível, do enigmático, do fado e da dor de todo existente, só foi possível
pelo fogo simbólico, que se revelou dionisíaco, desde o seu nascimento.

161
A amizade do divino com o humana tem uma abertura de coração que
agora volta ao humano de forma inusitada, através da ciência que volta
a aproximar perigosamente homens e deuses, através da virtualidade, da
nanotecnologia, onde o homem volta a aspirar a imortalidade, a questão
é esse novo homem, esta nova raça virtual, ainda é homem?

A pergunta capital de Nietzsche é: - Existem neuroses da sanidade? ou


seja, uma loucura mítica que torne o instinto debilitado e fraco em pulsão
forte e criadora, ou seja, passar para o registro de uma outra saúde?
Nietsche fala com o coração, ou seja, ah! O quanto é proveitoso um
pouco de loucura, livre das exigências morais, um pouco mais de caos,
um mais além que alcance a ilusão e erro como parte integrante dos
processos de criação e renovação das coisas. Estamos delineando um
campo para as novas formatividades do homem e seu viver.
O desejo faltoso é errático, é próximo de tudo o que frustra o homem
em sua busca de poder e por isso, tende a ser reprimido.
O desejo excessivo é errático e também é próximo do poder, e em
alguns tipos, nada o detém, e quase nunca é reprimido.
O primeiro pode ser perspectivado mais próximo da raiz cristã, o
segundo na ordem de uma sabedoria trágica.
O desejo excessivo é potencialmente perigoso, pois ele conduz o corpo
e o espírito a lugares que os fazem tremer. O excessivo é, soa como o
zunido da desgraça, é a musicalidade do puro sofredor. É representado
pela figura mítica do herói. A saga de Édipo é a mais citada nesta
perspectiva de que a sua atividade heroica começa depois de suas ações
deliberativas, ou seja, suas escolhas culminam em seu olhar abissal, onde
após retirar seus olhos de sua própria órbita, começa a pensar o que mais
importa, ou seja, como se tornou um execrável a seus olhos e aos demais.
Esse desejo perigoso é representado na imagem de Prometeu,
roubando o fogo divino e dando-o de presente aos homens. Viver é
perigoso, já dizia Guimarães Rosa, e a vida perigosa é a do herói trágico.
Nietzsche resume bem as representações estéticas vividas no mito do
herói:
‘em suma, a exemplificação daquela sabedoria de Sileno ou, expresso
em termos estéticos, o feio e o desarmônico sejam, em tão incontáveis
formas, com tanta predileção, representados sempre de novo, e
precisamente na idade mais viçosa e juvenil de um povo, se justo nisso
tudo não se percebesse um prazer superior?’ (Nietzsche, O nascimento
da tragédia: 138).

162
Pois bem, o que é expresso em termos estéticos e sempre de novo, em
diferentes épocas, é tomar o desejo e conduzi-lo a um prazer supremo,
artístico, mesmo diante do feio, do desproporcional, e sem ser tomado
pelo espírito da compaixão, medo, culpa, fazer do desejo um algo que
mesmo diante da dor, do desarmônico, um algo que justifique
simbolicamente ou mesmo provisoriamente o mundo, a vida e o viver.
Conduzir a vontade ou o desejo até este ponto limite, é algo de revelador,
um momento mágico em que o ‘lúdico [pode] construir e descontruir do
mundo individual...’ (Nietzsche, idem: 140).
O desejo é plástico, é tomado como força para a realização de um
tornar-se o que se é, de formas criativas e estéticas. É excessivo porque
numa vida, numa única vida, temos um processo ininterrupto deste
tornar-se, ou seja, na perspectiva de uma saúde mental, temos uma saúde
que se perde e uma doença que procura um convalescer e busca uma
outra nova saúde, sempre de novo e de diferentes perspectivas e
formatividades.
Como o herói faz e ao fazer se torna e se experimenta, aqui já temos o
fio condutor de uma ideia outra para aquilo que chamamos de processo
de individuação. Simondon é um teórico que aponta alguns dos signos e
sinais dessa individuação trágica, feita no ‘modos dionisíaco’, ou seja,
não estável que:
‘exclui o devir, pois corresponde ao mais baixo nível de energia
potencial possível [...], e o sistema, tendo alcançado seu mais baixo nível
de energético, não pode se transformar novamente’ (Simondon, 1989:
14).

O campo formado pela proximidade entre deuses e homens dá a


Prometeu a experiência estética do trágico, de adquirir não o que lhe
falta, mas de justamente de fazer rodar o desejo de mão em mão, de fogo
em fogo, comum agora a homens e deuses, momento limite de se chocar
com o poder e a violência de Júpiter, num limite disruptivo, até o nível
mais alto da tensão entre o seu desejo de ajudar o homem e transgredir
o divino, não mais em sua falta, mas num excessivo que os aproxima no
que mais importa, ou seja, criar, tornar-se. Esse novo fazer de mestria,
atravessa a loucura e o ressentimento para um plano de individuação
outro que, pelas informações trazidas pelos seus companheiros de
viagem – ninfas, Oceano e Io – pode conduzir Prometeu ao seu pré-
individual, ou seja, ao seu titânico por excelência. O seu Titânico que,

163
deslocado esteticamente, produz novas criações, a saber, algo que é
corolário na raça humana, lugar onde não repete mais Zeus, a saber, o
uso de mais poder e mais violência. Aí Prometeu abre o seu devir e sai
da mera repetição de um gozo de poder, que é o caso de Júpiter e do seu
filho que irá destroná-lo mais adiante.
A estabilidade divina, pelo uso da força e da violência, é quebrada pelo
ato transgressor de Prometeu que instaura nesse campo de retorno do
mesmo, domínios mais variados e amplos, pois a raça humana que agora
compartilha o fogo simbólico criador, desestabiliza essa perspectiva do
uso do poder, introduzindo aí, nas barbas do legislador, a possibilidade
de mais intensidade, mais formas de vida, para além dos limites divinos.
E isso avança de forma irreversível, e nem Júpiter nem Prometeu,
podem voltar atrás. Isso obriga o divino e aos humanos pensar uma outra
forma e uma outra possibilidade de relação entre um plano e outro, que
não só a antiga forma de prestar as devidas homenagens e como render
culto aos deuses.
Aqui, neste ponto limite entre deuses e homens, temos para além da
incontornável medida de imortais e mortais, o co-compartilhar do fogo,
agora de ambos, as perguntas sem respostas. Pois criar e simbolizar, é
aquilo que mais importa a ambos.

O ato heróico

Uma possível dúvida sobre Prometeu fica aqui posta: - Teria Prometeu
agido ou motivado em seu ato heroico por amor a raça humana? Em
Platão no célebre Banquete, temos Diotima que discursa que o ato
motivado pelo amor na verdade o são pelo desejo de ser imortal.
Prometeu aspira a memória imortal no seio de sua própria criação. Essa
imortalidade simbólica é o que espera Prometeu. Ao se inscrever na
memória dos homens ele vai ser lembrado como aquele que tornou
possível a experiência humana sem limites ou fronteiras. Essa é uma
questão trágica. Sócrates foi lembrado como o que tomou a gota de
cicuta, e em se destruindo, ao mesmo tempo se eternizou. Mas Prometeu
já é imortal, então sua astúcia, sua sabedoria deve ser outra. Já que não
aspira o Belo, seu desejo não é de nenhum além, mas de um devir ao
gênero humano, por isso o roubo do fogo.
Aqui não há nenhum objeto perdido que se espera encontrar no outro
– agalma – como quer a psicanálise de J. Lacan, mas tão somente
vontade, excesso dirigido a força e o desejo de criação. Aqui subjaz a

164
ideia de campo aberto, de algo simplesmente revolucionário (G.
Deleuze).
Prometeu está experimentando, após a sua criação, a multiplicidade de
afetos possíveis, um algo excessivo, tanto pelo que sentia por Júpiter e
outros deuses, quanto o sentimento que nutre para com os humanos que
agora compartilham o fogo e suas vicissitudes. Essa vontade ou desejo
múltiplo é que vai resultar a balança, o diapasão da sua própria saúde e
sua doença, cuja matriz, cuja teia destinal e o engendramento da sua
criação as avessas já comporta o germe de sua libertação futura e de
como vai ser lembrado doravante. Prometeu simbólico e esteticista abre-
se ao desejo de produção do novo, do diferente, em fluxos que unem o
excessivo em canais outros que misturam o divino e o humano, em novas
possibilidades de relações entre aspirações divinas e a existência
possível dos homens, entre vida e modos do viver, que se repetem dentro
de ciclos finitos.
Prometeu criador de corpos desejantes, de uma raça inteira, sofre agora
em seu próprio corpo o fluxo excessivo do poder criador divino, o gozo
desse poder, e sua sombra, expressa na chave de sua prática violenta por
quem detém o poder simbólico. Mas para além desse poder reativo, que
é ainda um triunfo momentâneo desse poder tirânico encarnado por
Júpiter, temos ainda uma ‘orexis’, uma alegria de artista que goza do
prazer fundado no útil (utilidade do fogo a raça humana), um bem ainda
maior e mais poderoso que esse outro poder, pois Prometeu, em êxtase,
se alegra dessa transgressão de artista, que possibilitou a vida humana
uma apropriação do desejo, da necessidade do fogo simbólico para poder
continuar a querer um pouco mais (sonhar).
O homem experimentador de si mesmo, o desassossegado, impelido
por essa força desejante, sempre enfermo e exposto a perigos, sabe
doravante, que necessita criar-se a si mesmo.
Esse homem que também tem vontade de poder, uma força
ambivalente, como o é a relação entre Prometeu e Júpiter, alternando
amizade e submissão. O fogo simbólico que agora é substituído pela
realização atingida pela ciência e técnica, que dá ao homem uma
idealização materialista, corporal, mas utópica, na medida em que
radicaliza na conquista tecnologia um bem maior, a cobiça da
imortalidade. Já não temos mais deuses, natureza, obediência a alguma
deidade, pois o enfrentamento do homem é agora, virtualizado num
coletivo anônimo, cujo nome – tecnologia – força o homem a uma
consciência sem meta, pois o ‘Nous’ tecnológico assume essa função, a

165
ponto de explorar o desejo num processo de circulação e desgaste pela
busca do humano perfeito. Um eterno retorno do mesmo, na perspectiva
tecnológica, é gastar energia, elevar esse gasto excessivo até a altura de
uma espiral infinita. Um ciclo convertido em cálculo, numa
configuração de forças que visem um progresso das forças dos desejos
que decidem entre quem vive e quem deve morrer, ou pior ainda, nem
nascer, encaixotando tudo numa caixa de Pandora, guardando os
espectros de fantasmas do que somos e do que estamos nos tornando,
para que algum dia isso se abra e se volta contra nós mesmos. Em meio
a paixões e conflitos de várias ordens, Prometeu é agora símbolo da
tecno-ciência.
O desastre desse signo da vitória da tecnologia, faz do desejo e da
vontade, um algo sem rosto e sem nome dentro de um novo cenário,
onde o humano quer não o fogo criador, mas a imortalidade fria e sem
desejo. Uma nova raça para além do homem: a inteligência artificial. Um
tipo descaracterizado em sua principal disposição: o desejo, ou seja, um
humano sem coração.
Ao invés dos companheiros de viagem, implantes neurais, nano
felicidade.
A catástrofe de Prometeu muda os rumos do humano, onde o ponto de
partida – desejo de compartilhar o fogo – até que o próprio homem abra-
se ao seu próprio criar, a partir de seu desejo estético– seu fogo
prometeico – em que ele também possa engendrar, como um deus, uma
nova raça, seja ela qual for, mesmo que sintética, em seu ponto limite,
ou seja, a chegada desse desejo feito de vontades titânicas e próteses
humanas, que recobrem o coração feito do excessivo artificioso. Ciclo
de retornos infindáveis aos elementos protéticos que impedem que o
coração do homem permaneça integro e intacto. Permaneça fiel ao
horizonte mítico, lá onde o desejo é o fio condutor de uma estética que
se cunha um querer que faz retornar o desejo em sua face excessiva e
criadora.
O humano de Prometeu carrega uma natureza titânica, não humana,
um campo pró-dionisíaco, terrível, sombrio, mas quando dominado –
nos seus fluxos de paixões violentas – promove o humano a sua inscrição
pulsional do que se faz ato, num enfrentamento outro que faz da
crueldade, do poder e da violência, a abertura de se fazer prosperar o
espetáculo aristotélico das grandes alegrias, encetadas dentro de uma
cultura múltipla, cuja origem simbólica é um Logos sem fundamento,
mas atenta ao que útil, numa boa medida entre a carência e o excesso. A

166
isso o filósofo chama de um bom diálogo entre o homem temperante e
corajoso, que faz concordar razão e desejo.
Poder e violência não são princípios divinos, nem fundamentos com o
qual o humano deve-se apoiar em sua balança desejante. O simbólico é
abissal, catastrófico, com infinitas possibilidades e tem um peso nessa
balança farmacológica, do que é falta e do que é excessivo pulsional.
Prometeu foi responsável pelo roubo do fogo, e essa aceitação fati disso
foi a impressão do caráter prometeico, pois cabe ao homem também a
impressão de seu caráter, ou seja, construir sua própria singularidade e
espontaneidade.
Abre-se em Prometeu, um além do homem, ou seja, a possibilidade de
encarar a existência sem as próteses divinas e aberto a sua experiência
de tempo finito e o sentimento de estar diante de sua própria morte. É o
que Prometeu vive em sua nova morada, o monte Cáucaso, onde pensa
em como pode continuar vivendo assim, uma vida aprisionada e
repetida, invejando a possibilidade de desejar a morte, tão presente
dentro de sua criação humana. Mas se assim o é, que assim o seja
também uma sorte, um revés querido até o fim, até quando chegar o final
desse ciclo aparentemente infindável em que o processo simbólico é
percorrido em prol de uma nova saúde, de um ato tresloucado que
resultou não em tirania do desejo, mas em dinâmica do excesso.
A relação do homem com um algo é sempre da ordem cíclica e de uma
criação, ou seja, é um movimento processado por Eros, por desejo e
vontade de afirmação, potência. Para muitos um ciclo que perpetua amor
e ódio (Empédocles), Apolo e Dionísio (Nietzsche), Deus e o Diabo
(Jung), Uno e Múltiplo. Se em Empédocles o ciclo termina em morte –
Ser para a morte, tanto no amor com no ódio - , já em Platão o desejo é
tratado como faltoso, que se precipita na busca pelo belo, pelo idealismo
de ordem platônica.
Passando por Aristóteles, caminhamos pela via aberta do desejo até o
reconhecimento do desejo pela via do excessivo, ou seja, a dimensão
dionisíaca, para não dizer que desejo é sempre algo da ordem de uma
falta. Esse excessivo caminha então para o que está para além dos
sentidos, das dualidades, do mero prazer e faz com que os personagens
se comuniquem. É assim em ‘Alice no pais das maravilhas’, no ‘O livro
vermelho’ de Jung, e nos personagens de Dostoievski.
Tudo que é forte demais, abre um interstício, um excessivo, que ajuda
o convalescente a abrir-se para uma vida liberada das prisões, dos
olhares medusantes, criando as linhas de fuga deleuzianas, lá onde a vida

167
e o viver se aproximam da ficção, dos espíritos livres, de Alice
atravessando o espelho, de Ródian (Crime e Castigo) encontrando Sônia,
de O idiota, retornando a sua solidão de convalescimento.
Aqui entramos naquilo que o excessivo tem de mais rico e precioso,
ou seja, fazer abrir um devir:
‘Devir não é imitar, nem fazer como se, nem se conformar a um
modelo...não há um termo do qual se parta, nem ao qual se chegue, ou
ao qual se deva chegar. Não se trata também de dois termos que trocam
de posição... pois a medida em que alguém se torna, aquilo que ele se
torna muda tanto quanto ele’ (Deleuze, Mil Platos: 45).

Se Holderlin reinventa Antígona, pondo em sua boca o verso em que


Antígona fala do destino de Níobe, agora transformada pelo olho de
Medusa, em pedra: ‘Sei que semelhante ao deserto ela se tornou’
(Holderlin: ). O mesmo deserto que Jung foi buscar sua alma de volta.
Jung em seu duro combate com o prazer, cheio de intenções e desejos,
mas métis junguiana deve aliar esperteza, astúcia e simplicidade.

No limite do excessivo temos Melville, o capitão Achab, que de tanto


perseguir sua vontade de matar Mob Dick, acaba topando com o nada,
um nada querer Schopenhaueriano, até chegarmos em outro limite
chamado Bartleby, com o seu ‘eu prefiro não’ e tocar essa vontade que
renuncia a si própria. Todos os diálogos abrem, neste limite para além
do literário, um deserto, uma solidão já percorrida pelo Cristo, pelo
louco, e pela grande embriaguez que são os que portam um coração
dionisíaco.

Entre Cristo e Dionísio o que encontramos no deserto está mais para


os demônios, os sonhos, os delírios, os interstícios, ou seja, no limite
temos a pergunta provocadora e sem resposta. Aqui fica a imagem de
um espaço tempo que é o mesmo entre Dionísio criança e o titã que
brinca ao seu lado (mito). Um titã que a procura de vingança, brinca
primeiro e depois, vencido pelo ressentimento, esquarteja a criança,
deixando de lado, seu coração integro e intacto. É desse excessivo que
transborda, que o titã abre espaço para uma contra-vingança de Zeus,
que o aniquila e o transforma em pó, mas também abre um devir para
além dos ressentimentos e de quem está com a razão, ou seja, com o
coração e as cinzas do titã surge um algo novo, uma nova raça humana,
meio titânica meio inocente ou criança. Ao fabricar ou criar esse novo

168
arranjo, Zeus digere os ressentimentos e amplia as formas da vida e do
viver. Deste estranho fluxo processado entre Dionísio criança e o Titã,
salta algo que é entre o que morre, o que nasce e o que é eterno.
Metamorfose, já presente em Kafka, em cupido (com asas de borboleta),
algo de uma paciência que temos que ter e exercer com relação aos
desejos.

Prazer se busca, desejo se atravessa, como uma passagem, um buraco


que se abre quando se chega aos pontos limites. No limite, Dostoiévski
faz sua regeneração, Jung sua descida ao inferno, Nietzsche sua
tresvaloração. Parturientes, estes escritores, filósofos, psicólogos, dão a
luz centauros, estrelas bailarinas, almas, poéticas, pinturas, afectos,
perceptos, dramas intensivos e excessivos que, em todos os seus matizes
e coloridos, são feitos de alegria e dor.

Ao nascerem juntos, Dionísio e o Titã se conhecem, ampliam o seu


brincar juntos e disso resulta algo novo, uma consistência para o que
ainda não viveram juntos, num pathos de proximidade sem igual.

Se o desejo permeia um construir-descontruir, junta um artista e uma


criança, é porque o fogo ativo e permanente de Prometeu, seu desejo se
dar ao homem esse presente simbólico, é da ordem de um
embelezamento, um plus de energia ante a face e os tipos ressentidos,
um processo feito com inocência, com o tempo de Aion, que faz com
que um dia desses Quíron tome seu lugar no rochedo onde permanece
acorrentado pela eternidade afora, como forma e expressão de uma
vontade vitoriosa. O mesmo Zeus que pune e é ressentido, liberta e
promove o devir, consciente disso ou não. Como todo desejo forte, que
destrói ou promove o caos, há também a espiritualização dos instintos,
que vem do coração da criança divina, assim os afetos afetam afetos e
disso resulta o poder da astúcia do desejo, abrindo efeitos de poder, de
afecções, de verdades perspectivas, de formas de vida e de modos de
viver impossíveis.

A dimensão trágica do desejo é por fim, é fazer com que ele seja
intensivo o suficiente para que se abra um convalescimento, um para
além do ressentimento, de uma minha culpa, sua culpa, para que o sim
ao brincar esteja sempre para além do Titã que desmembra e leva ao
caos. Sem castigo e sem expiação inocência e devir se aproximam, num

169
tempo criança que o fundamento de que é certo ou errado, se perde e
esfumaça na dança da individuação que se faz em meio a metamorfoses
e não em sujeitos distintos e singulares.
Se o desejo está em meio a outros desejos, o processo de si mesmo é
um jogo permanente que goza de uma liberdade sem finalidade aparente.
Neste sentido o trágico é um olhar desejante que, para além de medusa,
faz nascer um olhar novo, rico e prenhe de metamorfoses, de criação.
Para além das memórias de um para trás, a metamorfose deixa para trás
a lagarta e dá-lhe de presente asas de borboleta.

Esquecer é sossegar, é dar a consciência um lugar para o novo, como


indica Nietzsche. Para convalescer é preciso utilizar-se de ferramentas,
e entre elas a do esquecimento ajuda numa nova saúde. A liberdade
trágica é a da transgressão de prometeu, o interstício do seu desejo ante
a proibição de Zeus. A liberdade da criança é brincar, mesmo ante o
titânico, a beira do abismo que a olha de volta. Um intermezzo é ainda o
poder desejante de uma saúde cultivar e experimentar encontros.
Espinoza privilegia os bons encontros, aqueles que alegram e
intensificam meu desejo de mais vida, mas não esquecer a prudência, a
proximidade do caos pede sempre uma métis prudente, pois a sede dos
corpos, a fome por convivência, não excluem a solidão, nem o recuo.

Se um corpo é aquilo que pode e pelos afetos dos quais é capaz de


produzir e processar (Deleuze), então o devir é essa aliança com o
trágico, com Aion, com a criança e o Titã.

Se estamos na ordem do desejo excessivo como uma força não de


troca, mas de misturas, o que resta é processar esse bailar, é dançar
conforme a música, como diz o ditado popular.

José 2017

170
ENSAIO PSICOLÓGICO\ARTÍSTICO

Capacidade simbólica em Jung e Nietzsche

171
José Ravanelli Neto

Piracicaba – 2015

Sobre a capacidade simbólica

Seja o que for que chamemos ‘olhar para trás’, essa questão assume do
ponto de vista desse ensaio, algo de uma problematização que ainda hoje
não testemunhamos todo o seu alcance. Aqui vamos nos interrogar sobre
duas destas perspectivas que o olhar para trás assume, cada uma a seu
modo, porém no exato ponto em que ambas confluem para um ponto
comum, a saber: o mito. O mito trágico, mais especificamente. Destas
duas perspectivas citadas, tomamos por empréstimo algum
conhecimento tanto da psicologia analítica de C. G. Jung como da
filosofia de F. Nietzsche, que ao olharem para trás encontram em algum
momento, a base mitológica para seus dizeres, e é deste encontro comum
dentro do campo mitológico que aqui vamos falar com brevidade, mas
pontuando o que mais importa pensar sobre esses dois pensadores. Não
se trata de um estudo acadêmico, mas de uma olhar com, entre ambos,
sobre ambos, pois a necessidade de olhar para trás em Jung e Nietzsche
trazem efeitos de uma busca de saúde mental.
Jung encontra o mito, em sua descida ao inferno – o livro vermelho –
e Nietzsche no seu testemunho singular de uma época – grega – com o
mito trágico dentro do seu ‘O nascimento da tragédia’. Mas o que mais
importa pensar é que esse encontro se deu quando ambos tiveram

172
necessidade de um olhar para trás, não da perspectiva histórica, mas em
momento de profunda tensão, um em meio a eventos limites, ou seja, a
guerra. Nietzsche, experimentando a assim chamada batalha de Wörth e
Jung as portas da Segunda Grande Guerra.
Numa outra maneira psicológica de introduzir a questão, poderíamos
dizer que: - O olhar par trás se faz necessário quando a dor, o sofrimento
pessoal ou coletivo chega até esses pensadores, e é aí que a visão da
batalha eminente se aclara, e aquilo que somos, ou seja, visceralmente
guerreiros, lutadores, contendores, isso se avoluma ao olhar.
Para ambos a ‘boa batalha’ é o que se faz necessário. Em ambos tudo
se inicia na psique. As imagens primitivas inseridas no psiquismo são as
de luta, da tensão entre a luta pela sobrevivência e só muito depois os
conflitos e das vivências da realidade concreta, das interações que
culminam no que chamamos relações sócias e culturais e o mais
profundo da pessoa e de seu eu débil e delirante. Para Jung:
‘O homem primitivo é de uma tal subjetividade que é de admirar o fato
de não termos relacionado antes os mitos com os acontecimentos
anímicos’. (Jung 2003 i18).
Para Jung os mitos provém da alma, são imagens de uma disposição
humana em geral que para além do instinto, da força instintual é um fator
transcendente, que em Nietzsche é feito pela dobra instintual/pulsional
chamada de Apolo/apolíneo e Dionísio/dionisíaco.
A disposição humana em geral é mito, é mítica. Em Jung isso se chama
inconsciente coletivo, representação de uma psique coletiva/arquetípica.
Arché como ordenadores inconscientes da representação. De qualquer
forma os mitos para Jung necessitam serem experimentados ou
vivenciados, como condição de um cuidado para com a alma.
Em Nietzsche a Grécia tem um valor especial na formulação da
questão do valor existencial na forma mítica como fator psicológico
protetivo em forma representativa de criação dos deuses, na medida em
que eles governavam o mundo e as pessoas. O mundo trágico dos gregos
seduziu Nietzsche e o levou a formular a seguinte questão:
‘Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não
apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão
[anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à
duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a
procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e
onde intervém periódicas reconciliações’ (Nietzsche, O nascimento da
tragédia: Cap 1:24).

173
Dito essas considerações preliminares podemos colocar uma hipótese
de trabalho: A de que toda vivência forte ou experimentação intensiva
deixa as suas marcas no psiquismo. Para Jung marcas profundas e
inconscientes, um para trás coletivo e impessoal. Para Nietzsche marcas
do combate que levam o sujeito a cismar, a recuar, e processar um olhar
para trás que ele chamou de intravisão.

O processo simbólico tem a ver com essa experimentação intensiva,


em recolher os signos e sinais dos acontecimentos, incluindo os
traumáticos e a partir destes signos e sinais ir processando tudo isso num
recuo, num para trás, de forma a poder ir refletindo sobre essas vivências
até o momento de dar nome a tudo isso que é delírio, fantasias, sonhos e
imagens. Ao abrigar e recolher os signos (capacidade de reter e
rememorar pela via inconsciente), a consciência tem o poder de conferir
nomes aos acontecimentos intensivos e marcantes. A luta e os conflitos
não são em vão, surtem um efeito psicológico que é dentro das lutas e
batalhas um momento de recuo e solidão necessárias a formação de um
caráter, de um tipo duro, guerreiro, mas ainda com um coração (ou uma
alma, nas palavras de Jung). A alma para Jung é um ‘rizoma subterrâneo,
e se encontra em melhor harmonia com a verdade quando inclui a
existência do rizoma em seus cálculos, pois a trama das raízes é mãe
universal’ (Jung Símbolos da transformação: XV). Esse rizoma é aqui
tomado em seu sentido filosófico (Gilles Deleuze), como uma forma de
crescimento diferenciado (uma raiz que cresce sem uma única direção,
pois é polimorfo, e se espalha horizontalmente como as gramíneas).
Freud já falava de uma sexualidade polimorfo perversa, para dizer da
criança tomada como pura e inocente (sentido angelical e sem
sexualidade alguma). O sentido rizomático indica o escape das tentativas
totalizadoras, do qual Jung é tentado a trilhar posteriormente. Mas no
início 193, Jung é ainda (guarda os signos e sinais) plural, pois fala de
uma alma rizomática, ou seja, que tem no mito uma de suas linhas de
fuga, na medida em que o grego ou o homem moderno necessita se
perguntar sobre seu mito próprio: O que é o mito que você vive?
Para Nietzsche, os gregos fizeram essa pergunta e viveram
intensivamente seus mitos, a ponto de criar uma estética ao sofrimento.
Isso como vimos tem nome: trata-se de ume estética da introvisão, de
poder olhar para trás como nos contos de fada, ou seja, sem ódio,
ressentimento ou espírito de vingança. Uma atitude que abre o devir, faz

174
conexão com uma certa inocência e retomam o corpo e a sabedoria dos
instintos em sua plenitude: Apolo e Dionísio em combate, mas gerando
centauros.

Capacidade simbólica em Jung

Ao estudar o livro vermelho de Jung, percebemos que conforme o


psicólogo suíço descia em direção ao inferno, passando pelo seu passado
pessoal (infância) e se aproximando da camada mítica e das imagens
impessoais, a sua experimentação se aproximava de algo processual da
esfera interior que necessitava de nome. Nomear a verdade empírica como
processo instintivo é dizer que é deles que ‘provem a força motriz do
símbolo’ (Jung, Símbolos da transformação: 217). A libido que desce, tem
de subir, ou seja, quem se recolhe em uma solidão em um recuo, tem de saber
dispor essa energia em prol de sua própria saúde, e isso se faz neste processo
de recuo, descida, recolhimento de verdades simbólicas enquanto sobe, para
produzir analogias dos processos instintivos, e assim libertar a libido em um
algocriativo, que talvez pudéssemos nomear como arteterapia ou cuidado de
si.
Arte Jung se recusou a nomear, talvez porque arte fosse um nome um tanto
desgastado para expressar um experimento de tamanha magnitude e
importância vital ao psiquismo enfermo/doente que necessitava de um
convalescimento, ou seja, uma nova saúde para a alma.
Mas o porque da recusa de Jung não chamar seu experimento de arte?
Lembrando que Jung na época acompanhava os movimentos artísticos
vigentes, como o expressionismo, dadaísmo e pinturas simbólicas.
Participava também de visitações em museus e tinha contato próximo com
pintores e artistas de seu tempo. É preciso ainda pensar que o seu livro
vermelho era a sua tentativa de recuo particular das coisas do mundo, uma
suspensão diária do cotidiano para ali tentar elevar sua capacidade simbólica
a um ponto máximo, limite. Limite entre a patologia e uma nova saúde.
A discussão sobre a libido e o rompimento com Freud empurram Jung ao
seu ponto limite em que a dor, o sofrimento o obrigam a descobrir e a abrir
os canais expressivos que o homem se utiliza desde os primórdios. Jung para
usar uma expressão nietzschiana, necessita tornar-se o que se é. ‘O que se
passava em mim’ era a pedra de toque para as suas conexões pessoais, sua
autoexperimentação, o seu cuidado de si. Mas neste mesmo sentido a arte
toca as pessoas, ou melhor, atinge como uma flecha certeira, o coração. É o
coração de Jung que está em jogo, suas fantasias são visuais e dramáticas,

175
encenam um desenvolvimento superior, para um processo de saúde que o
psicólogo chamou de individuação. Mas antes de falar de individuação Jung
tematizou a função transcendente que lida com as oposições conectando-as.
Desta aproximação, deste pathos de distanciamento surge o símbolo, como
expressão desta luta, deste combate em que o real e o imaginário se
digladiam.
Na linguagem nietzschiana diríamos passagem para um contato com a
sabedoria corporal (psicofisiologia), com as tensões apolíneas e dionisíacas,
e mais aforisticamente, criação de um novo tipo, da ordem da soberania, em
conexão com mefistófeles, ou seja, o dionisíaco, o tipo nobre.
Jung não queria uma psicologia da adaptação do individuo, ao contrário da
conformidade, a individuação pressupunha criação de valores que não os
sociais. Entrar em contato com as suas fantasias, pintar, desenhar, esculpir,
para trazer para mais perto de uma formulação ou compreensão criativa
daquilo que Jung entendia como expressão concreta ou simbólica do estado
de alma de uma pessoa ou indivíduo. Isso não seria arte? Uma arteterapia
rudimentar?
Deleuze é quem descobriu o rizoma (um rizoma não começa nem conclui,
ele se encontra sempre no meio – intermezzo). Mas é a partir de Nietzsche
que somos sabedores que o combate, a luta, se desenvolve no meio. É no
meio que a correnteza é mais forte. Por isso no meio está tanto a arte, como
a capacidade simbólica. No meio não se está nem de um lado nem de outro,
e é no meio que algo novo pode se dar, pois não necessita se aliar a nenhum
dos lados do conflito e a partir deste lugar pode valorar mais livremente,
pode agir mais em conforme o momento e a situação. No meio se pode fazer
um acontecimento que pode ser da magnitude da arte como da capacidade
simbólica. Quando não se exclui ou elimina um lado ou outro, o que resta do
combate é a água de gosto bom, o caminho para o si-mesmo. Arte e símbolo
não são excludentes são o meio. Desta forma podemos vislumbrar em nossa
hipótese inicial a ideia de que um olhar para trás, tem efeitos de uma saúde
mental em cada pessoa, introduz um recuo e uma solidão que faz processar
os signos e sinais que dão o que pensar, nomear e vontade de transformar em
arte, com um canal expressivo que cada sujeito mais se identifique. É uma
abertura a possibilidade fazer conexão com essas vias expressivas mais
primitivas que nos colocam de volta ao rizomático, a alma que não é de hoje,
e por isso tem força de produzir ainda mais inconsciente (Para Deleuze o
rizoma produz inconsciente ao explodir em todas as direções, ao deixar viver
e deixar o desejo escapar), a partir dessa raiz difusa e que se espalha em cada
um de nós.

176
Capacidade simbólica em Nietzsche

O jovem Nietzsche, a partir da leitura de Hartmann (filosofia do


inconsciente), tenta aproximar a linguagem do instinto, ou seja, leva em
conta o inconsciente e o instinto como nascimento das capacidades de
representação. Se a linguagem se prende ao inconsciente, e não somente a
uma consciência, que se desenvolve a partir do primeiro, então nossa
hipótese avança até o momento do recuo, ou seja, lá onde inicialmente
deliramos (Filosofia do sonho), aprendemos a fazer dos signos e sinais um
algo simbólico. Atividade primitiva, corporal, formas antigas de elaboração
da linguagem, das quais o homem moderno perdeu contato. É dessa arte,
desta estética a que nos referimos aqui neste trabalho, como aquela
capacidade de produzir e processar uma estética da existência (como foi a
arte trágica) e a partir dela poder viver sem um para trás sanguinolento, mas
de elevação das capacidades simbólicas a um grau máximo.
A riqueza da expressividade simbólica reside justamente em não
simplificar as vivências e limitar as experimentações a um grau de linguagem
comum. Ao viver a dor e experimentar o limite do sofrimento, vamos
desaguar neste sentido trágico em que ao olhar para trás, de forma estética
(introvisão) e para além do ódio e dos ressentimentos, vamos encontrar a
linguagem mítica e a sabedoria de Sileno que responde ao rei Midas o que é
melhor e mais preferível ao homem: ‘O melhor de tudo é para ti inteiramente
inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor
para ti é logo morrer’ (Nietzsche, Nascimento da tragédia: 33).
O valor expressivo reside em poder conduzir o homem até seus limites do
sonhar, delirar, tomar dentro de si (descer até o inferno se for preciso), as
suas raízes rizomáticas e querer continuar sonhando um pouco mais. É
necessário então como indica Nietzsche, tomar Prometeu como companheiro
de viagem, e através de nossas capacidades artísticas tomar o fogo em
criação, tornar-se apto ao sofrimento, suportar a existência, mas com o olhar
renovado, mítico, ou seja, fazer a conexão antiga e primitiva funcionar:
aproximar arte e vida.
A capacidade simbólica em Nietzsche é um grande espelho transfigurador,
coloca a vontade ou o desejo em modos operante artístico, ou seja, ao olhar
para trás, no sentido que está indicado em Nietzsche (olhar para trás como
nos contos de fada), e transfigurar o ódio e o ressentimento em algo superior,
idealizado, que isso não se transforme em imperativo ou culpa, mas ao
contrário, possa abrir a pessoa a fazer o seu recuo e sua solidão para que

177
possamos: ‘nos abstrair por um instante de nossa própria realidade’
(Nietzsche: 36). Eis o simbolismo da arte, tomar o principio de individuação,
caro a Jung e a todos os tipos modernos em liberação do desejo e dos fluxos
da alma rizomática em aparência, naquele delírio inicial, primitivo, em que
o homem das campinas tinha visões redentoras que o permitiam ir
novamente ao meio da floresta, enfrentar seus medos, avançar e recuar
conforme sua natureza titânica e bárbara.
Essa embriaguez fala não da totalidade, de toda a verdade do ser, que
conforme Sileno, não existe, mas diz do indivíduo, ‘com todos os seus
limites e medidas’ (Nietzsche : 38), tomado em todas as suas contradições e
nem por isso menos atrativo aos olhos dos deuses imortais e perfeitos. Ao
tomar a ilusão primeva em detrimento das ilusões do eu, isso não quer dizer
que a razão é posta afora, mas trata-se de reconhecer que é graças ao espelho
da aparência, cada pessoa, cada individuo fica protegido da unificação e da
fusão com as suas figuras que no recuo se produzem. Jung, em sua descida
ao inferno, tinha várias figuras para conversar e refletir o seu instante, e nem
por isso enlouqueceu. Para Nietzsche também são necessários os
companheiros de viagem, por isso os gregos tinham os seus deuses. A figura
do poeta lírico diz bem isso, na medida em que o poeta expressa
rizomaticamente a ‘eudade’ e não um único ‘eu’.
Em nossa riqueza riquíssima, somos criadores de mundos, todas as
imagens e projeções artísticas são nossa significação mais antiga, mais
mítica e simbólica. Para Nietzsche isso é música para os ouvidos, é o trágico
em ação, é como Prometeu o fez, sentir-se vivo e real, participante do drama
da vida e do viver. Um mundo como queria Jung, dotado de credibilidade e
realidade. Ao homem moderno, se não pode voltar a ser primevo, ao menos
em suspensão do cotidiano, pode brincar com as imagens, de se tornar pastor
de si mesmo, de se afastar um pouco das ilusões culturais e ver a si mesmo
‘encantado como sátiro’ (Nietzsche: 55).

Conclusões

A capacidade de sobrever, introvisão, de voltar-se para trás com olhos


outros, é a raiz de uma estética, de uma arte que se afigura como perdida,
desconectada da alma do homem moderno, muito racionalizado e fazendo
uso de uma métis completamente centrada na consciência. Essa métis que
calcula é encontrada na literatura de Dostoiévski que apresenta esses tipos
que calculam em seus romances (principalmente Crime e castigo e o Idiota).
Um cálculo que, sem sombra de dúvida, embota e torna o sujeito cada vez

178
mais enfraquecido em suas ações, que o conduzem ao ressentimento, a um
para trás perigoso e o empurra ao momento limite em que: ou mata, ou se
mata, ou enlouquece.
Nietzsche, Jung e mesmo Dostoiévski (citado tardiamente, mas a
propósito), nos abrem a possibilidade de uma quarta via para um para trás,
ou seja, a via do convalescimento, a de uma saúde em meio ao caos, onde as
ilusões sobre o ser e a sua verdade, ao princípio de individuação, de forma
que o encantamento do mundo e do viver possam colocar dentro da visão do
drama humano, ingredientes simbólicos. Trata-se de uma pitada de Dionísio,
um tempero simbólico riquíssimo, para que ainda e um pouco mais possamos
cantar, transfigurar, sonhar, traçar um círculo mágico e protegido onde o
recuo, a solidão não se patologizem, na soberba de um eu, não se tornem
fantasmáticas a serem afugentadas quando o instante limite se apresente
(viver é perigoso, mata-se, morre-se, enlouquece-se).
O ar novo sugerido, ao qual um tipo moderno aspira é numa incrível visada
para trás simbólica (estética), do mesmo ar que o tipo primitivo, bruto,
titânico, também aspirava. É deste sofrimento dionisíaco que ninguém
escapa, por isso a necessidade de transformar em água, terra e fogo, as nossas
vivências e experimentações mais fortes e intensas. O mito nos diz do herói
ferido, mas com olhar de brilho, que com todo o seu excesso de força, está
moribundo, a espera de uma morte e agora como fica registrado aqui, a
espera de um convalescimento, que é para aqueles poucos que se atrevam a
olhar para trás, para além do tipo moderno (homem ressentido, acabado) e
inserir estas introvisões no éter da arte de um homem, de um tipo que ainda
quer tornar-se, abrir-se a um devir.

Referências Bibliográficas

Jung
Nietzsche
Deleuze
Dostoiévski
Türche

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181
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