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SAM H A R R I S

Carta a uma
nação cristã
Tradução
Isa Mara Lando

Prefácio
Richard Dawkins

Is reimpressão

C OMPANHIA D AS
L ETRAS
Para minha esposa
Sumário

Prefácio — Richard Dawkins, 9

Nota ao leitor, 13 Carta a uma

nação cristã, 19 Dez livros que

recomendo, 87 Notas, 89
Prefácio

Richard Dawkins

Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Ele es- (rcve
diretamente para o seu leitor cristão, chamando-o de "você", e lhe dá a
honra de levar a sério as crenças que "você" defende:"[...] se um de nós
está certo, o outro está errado [...] < ;<>m o decorrer do tempo, um
dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado
realmente sairá derrotado". Mas você não precisa (como posso atestar
pessoalmente) se encaixar no perfil desse "você" para desfrutar este
maravilhoso livrinho. Cada palavra sai zunindo como uma elegante
flecha, desferida de uma corda tensionada ao máximo, e voa veloz,
traçando um gracioso arco e atingindo o alvo bem no centro, para
grande satisfação do leitor.
Se você faz parte do alvo, desafio-o a ler este livro. Será iim teste
saudável para a sua fé. Se você conseguir sobreviver .1 barragem da
argumentação de Sam Harris, poderá enfrentar o mundo inteiro com
equanimidade. Mas perdoe-me se duvido: Harris nunca erra o alvo, nem
em uma única frase, e é por isso que este livro tão breve tem um poder
devastador tão desproporcional. Se você já compartilha das dúvidas de
Harris, e minhas, acerca da fé religiosa e não faz parte desse alvo, este livro
lhe dará armas poderosas para argumentar contra o outro lado. Ou talvez
você seja cristão, mas não faça parte do alvo. Este livro reconhece que
existem cristãos que adotam, segundo eles próprios crêem, uma visão mais
nuan- çada:"[...] os cristãos liberais e moderados nem sempre vão
reconhecer a si mesmos nesse cristão' a quem me dirijo. Mas com certeza
reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de
americanos".
E este é o ponto principal. Foi a ameaça desses 150 milhões que
motivou este livro. Se as crenças religiosas que você adota são tão vagas e
nebulosas que até as flechadas mais certeiras ricocheteiam sem ser
notadas, Harris não está escrevendo diretamente para você. Mesmo assim,
você deveria se preocupar com essa situação de emergência que tanto
preocupa a ele — e também a mim. Enquanto eu, como educador
científico, fico desalentado ao constatar que 50% da população americana
acredita que o mundo tem 6 mil anos de idade (o equivalente a acreditar
que a distância entre Nova York e San Francisco é menor que um campo
de crí- quete), Sam Harris se preocupa com outras crenças desses mesmos
50%:

Portanto, não é exagero dizer que, se Londres, Sydney ou Nova York de


repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da
população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de
cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor
coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de
Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco
ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro — seja na
esfera social, económica, ambiental ou geopolítica. Imagine as
consequências se algum componente significativo do governo americano
realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar, e que o fim do mun-
do será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana
acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser
considerado uma emergência moral e intelectual.

A nação cristã para quem o livro foi originalmente escrito é,


naturalmente, os Estados Unidos. Mas seria descaso e loucura se
descartássemos a questão como se fosse apenas um problema americano.
Os Estados Unidos ao menos são protegidos por uma esclarecida
separação, colocada por Jefferson, entre Igreja e Estado. Já na
Grã-Bretanha a religião faz parte, historicamente, do nosso establishment
oficial; neste momento a liderança política do nosso país, a mais piedosa
desde Gladstone, está decidida a apoiar as "escolas religiosas". E não são
apenas as escolas cristãs tradicionais, note-se, pois nosso governo, açulado
por um herdeiro ao trono que deseja ser conhecido como "Defensor da Fé",
tem simpatia ati- va pelas outras "comunidades de fé" que vão balindo "nós
também", ansiosas para obter uma doutrinação religiosa para seus filhos
subsidiada pelo Estado. Seria possível conceber uma fórmula educacional
mais capaz de gerar dissensão e discórdia? E, o mais importante, a única
superpotência mundial da atualidade está perto de ser dominada por
eleitores que acreditam que o universo inteiro começou depois da
domesticação do cão. Acreditam também que serão pessoalmente "ar-
rebatados" para as alturas celestiais ainda durante seu tempo de vida, fato
que será seguido por um Armagedom muito bem-vindo como arauto do
Segundo Advento de Cristo. Mesmo aqui do outro lado do Atlântico, a
expressão de Sam Harris, "emergência moral e intelectual", já começa a
parecer até moderada.
Comecei dizendo que Sam Harris não é amigo de divagações sem
rumo. Um dos seus argumentos é que nenhum de nós pode se dar a esse
luxo. Carta a uma nação cristã vai perturbar você. Seja para incentivá-lo a
uma ação defensiva ou ofensiva, este livro com certeza vai exercer uma
mudança em você, de alguma maneira. Leia, nem que seja a última coisa
que vá fazer na vida. E com a esperança de que não seja a última.
Nota ao leitor

Desde a publicação do meu primeiro livro, The end of faith:


Religion, terror, and the future of reason [O fim da fé: religião, terror e
o futuro da razão], milhares de pessoas já me escreveram para dizer que
estou errado em não acreditar em Deus. As mensagens mais hostis vêm
de cristãos. É uma ironia, pois os cristãos em geral imaginam que
nenhuma religião transmite tão bem como a sua as virtudes do amor e
do perdão. A verdade é que muitos que afirmam ter sido transformados
pelo amor de Cristo são intolerantes à crítica — de uma intolerância
profunda, até assassina. Podemos atribuir isso à natureza humana, mas
é claro que tal ódio recebe considerável apoio da Bíblia. E como eu sei
disso? Entre os meus correspondentes, os mais mentalmente
perturbados sempre citam capítulos e versículos bíblicos.
Embora se destine a pessoas de todas as religiões, este livro foi
escrito sob a forma de uma carta aos cristãos dos
Estados Unidos. Nele, respondo a muitos dos argumentos que os cristãos
conservadores apresentam em defesa de suas crenças religiosas. Assim, o
"cristão" a quem me dirijo ao longo do texto é um cristão em um sentido
limitado da palavra. Uma pessoa assim acredita, pelo menos, que a Bíblia é
a palavra de Deus, escrita por inspiração divina, e que apenas os que
acreditam na divindade de Jesus Cristo terão a salvação depois da morte.
Dezenas de pesquisas de opinião, realizadas de maneira científica,
sugerem que mais da metade da população americana acredita nesses
postulados.1 É claro que essas crenças metafísicas não se limitam a
nenhuma nacionalidade e a nenhuma denominação especial do cristianis-
mo. Os cristãos conservadores de todos os países e de todas as seitas —
católicos, protestantes de linhas majoritárias, evangélicos, batistas,
pentecostais, testemunhas-de-jeová e assim por diante — estão todos
igualmente implicados na minha argumentação.
Embora nenhum outro país desenvolvido se iguale aos Estados
Unidos em termos de religiosidade, hoje todos os países precisam conviver
com as consequências de tudo em que meus compatriotas americanos
acreditam. Como é bem sabido, atualmente as crenças dos cristãos
conservadores exercem uma influência extraordinária sobre o discurso
público neste país — em nossos tribunais, nossas escolas e em todas as
esferas do governo. Se o propósito mais amplo do meu trabalho é dar
munição aos secularistas de todas as sociedades contra seus opositores,
cada vez mais fervorosos, em Carta a uma nação cristã me propus
especificamente a demolir as pretensões intelectuais e morais do
cristianismo em suas formas mais ardorosas. Assim, os cristãos liberais e
moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse "cristão" a
quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos —
e mais de 150 milhões de americanos.
Não tenho dúvida de que muitos cristãos que vivem fora dos Estados
Unidos se sentirão tão perturbados como eu por essas bizarras convicções
da direita cristã. É minha esperança, porém, que eles também comecem a
perceber que o respeito que concedem às crenças religiosas em geral acaba
por dar abrigo a extremistas de todas as religiões. Embora a maioria dos
crentes não arremesse aviões contra edifícios, nem organize sua vida com
base nas profecias apocalípticas, poucos questionam a legitimidade de
criar e educar um filho de forma que ele acredite que é cristão, muçulmano
ou judeu. Assim, até as religiões mais progressistas dão seu apoio táti- co
para as divisões religiosas do nosso mundo. Contudo, em (larta a uma
nação cristã me dirijo à cristandade em seu aspecto mais desagregador,
destrutivo e retrógrado. Nesse aspec- to, tanto liberais e moderados como
não-crentes podem reconhecer uma causa em comum.

Segundo uma pesquisa recente da Gallup, apenas 12% dos


americanos acreditam que a vida na Terra evoluiu através de um processo
natural, sem a interferência de uma divindade. Para 31%, a evolução foi
"guiada por Deus".2 Se a nossa visão do mundo fosse submetida a um
plebiscito, os conceitos de "design inteligente" derrotariam a ciência da
biologia por quase três votos a um. E isso é perturbador, pois a natureza
não apresenta nenhuma prova convincente da existência de um "designer
inteligente" e apresenta incontáveis exemplos de "design não-inteligente".
Mas a atual polémica sobre o chamado "design inteligente" não deve nos
impedir de perceber as verdadeiras dimensões da confusão e ignorância
dos americanos religiosos no alvorecer do século xxi. A mesma pesquisa
da Gallup revelou que 53% dos americanos são, na verdade, criacionistas.
Isso significa que, apesar de um século inteiro de descobertas científicas
que atestam como é antiga a vida na Terra, e mais antigo ainda o nosso
planeta, mais da metade da população americana acredita que o cosmos
inteiro foi criado há 6 mil anos. Diga-se de passagem que mil anos antes
disso os sumérios já tinham inventado a cola. Os que têm o poder de eleger
presidentes, deputados e senadores — e muitos dos que são eleitos —
acreditam que os dinossauros sobreviveram aos pares na arca de Noé, que
a luz de galáxias distantes foi criada a caminho da Terra e que os primeiros
membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito
divino, em um jardim com uma cobra falante, pela mão de um Deus
invisível.
Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos estão sozinhos ao
adotar essas convicções. De fato, tenho a dolorosa consciência de que meu
país hoje parece, como em nenhum outro momento da sua história, um
gigante belicoso, desengonçado e mentalmente obtuso. Qualquer pessoa
que se preocupe com o destino da civilização faria bem em reconhecer que
a combinação de um grande poder com uma grande estupidez é
simplesmente aterrorizante, até para os amigos.
A verdade, porém, é que muitos de meus compatriotas talvez não se
preocupem com o destino da civilização. Nada menos que 44% da
população americana está convencida de que Jesus vai voltar para julgar os
vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinquenta anos. E,
segundo a interpretação mais comum da profecia bíblica, Jesus só vai
voltar depois que as coisas derem errado — terrivelmente errado — aqui
na Terra. Portanto, não é exagero dizer que se Londres, Sydney ou Nova
York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem
significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem
em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de
que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a
acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que
crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um
futuro duradouro — seja na esfera social, económica, ambiental ou
geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo
do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a
acabar e que o fim do mundo será glorioso. O fato de que quase a metade
da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma
religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. O
livro que você agora vai ler é minha resposta a essa situação de
emergência. Meu sincero desejo é que para você ele seja útil.

Sam Harris 19 de novembro de


2006 Nova York
Carta a uma nação cristã
Você acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, que Jesus é o filho de
Deus e que apenas aqueles que têm fé em Jesus alcançarão a salvação
após a morte. Como cristão, você acredita nessas afirmações não
porque elas o fazem sentir-se bem, mas porque crê que são verdadeiras.
Antes de apontar alguns problemas que essas crenças apresentam, eu
gostaria de reconhecer que há muitos pontos em que concordo com
você. Nós concordamos, por exemplo, que se um de nós es- tá certo, o
outro está errado. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, ou não é. Ou Jesus
oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação
(João 14,6), ou não oferece. Concordamos que ser um bom cristão é
acreditar que todas as ou- I i as religiões estão erradas, e profundamente
erradas. Se o cris- i ianismo está correto, e eu persistir na minha
descrença, devo esperar que um dia irei sofrer os tormentos do inferno.
Pior .linda, já convenci outras pessoas, muitas delas próximas a mim, a
rejeitar a própria idéia da existência de Deus. Elas também irão padecer
no "fogo eterno" (Mateus 25,41). Se a doutrina básica do cristianismo
está correta, então desperdicei a minha vida da pior maneira que se
possa conceber. Eu reconheço isso, sem restrição alguma. O fato de que
a minha rejeição do cristianismo, pública e contínua, não me preocupa
nem um pouco já demonstra o quanto considero inadequadas as suas
razões para ser cristão.
É claro que há cristãos que não concordam nem comigo, nem com
você. Há cristãos que vêem outras religiões como caminhos igualmente
válidos para a salvação. Há cristãos que não têm medo do inferno e que
não acreditam na ressurreição física de Jesus. Esses cristãos costumam
se definir como "religiosos liberais" ou "religiosos moderados". Do
ponto de vista deles, tanto você como eu não compreendemos
corretamente o que significa ser uma pessoa de fé. Existe, pelo que eles
nos garantem, um vasto e belo território entre o ateísmo e o
fundamentalismo religioso que muitas gerações de cristãos ponderados
já exploraram discretamente. Segundo os liberais e os moderados, a fé
se baseia não só no mistério e no significado, mas também na
comunidade e no amor. As pessoas elaboram a religião a partir de todo
o tecido de suas vidas, e não apenas de suas crenças.
Já escrevi em outros textos sobre os problemas que vejo no
liberalismo religioso e na moderação religiosa. Aqui só precisamos
observar que o problema é mais simples e, ao mesmo tempo, mais
urgente do que os liberais e moderados costumam reconhecer. Ou a
Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou
Cristo era divino, ou não era. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era
um homem ionium, então a doutrina básica do cristianismo é falsa. Se a
Uíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a
história da teologia cristã é a história de homens es- ludiosos
dissecando uma ilusão coletiva. E se os princípios básicos do
cristianismo são verdadeiros, então há surpresas extremamente
desagradáveis à espera de descrentes como cu. Isso você compreende.
Pelo menos a metade da popula- c,.io americana compreende. Assim,
sejamos honestos: com
0 decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente venccr essa
discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado.

Pense nisto: cada muçulmano devoto tem as mesmas razoes para


ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não
acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a
palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam
nisso tão piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre
ela própria. I lá uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do
ponto de vista do islã, prova que ele foi o mais recente dos profetas de
Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus nãotra
divino (Corão 5,71-75; 19,30-38), e <|uc qualquer pessoa que pense
diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos
de que a opinião < le Maomé a respeito desse assunto, assim como de
todos os outros, é infalível.
E por que você não perde o sono pensando se deve ou 11.io se
converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único
e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não
visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa
provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas,
considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ónus da prova
de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até
agora eles não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações
feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser
comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um
que não tenha se anestesiado com o dogma do islã.
A verdade é que você sabe exatamente como é ser ateu, em
relação às crenças dos muçulmanos. Pois não é óbvio que os
muçulmanos estão enganando a si mesmos? Não é óbvio que qualquer
um que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não
leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã
representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação
honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira
como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os
muçulmanos devotos vêem o cristianismo. E é dessa maneira que eu
vejo todas as religiões.

A SABEDORIA DA BÍBLIA

Você acredita que o cristianismo é uma fonte inigualável de


bondade humana. Você acredita que Jesus ensinou as virtudes do amor,
da compaixão e do altruísmo melhor do que qualquer outro mestre que
já viveu. Você acredita que a Bíblia é o livro mais profundo jamais
escrito, e que seu conteúdo suportou tão bem o teste do tempo que só
pode ter sido escrito por inspiração divina. Todas essas crenças são
falsas.
As questões morais são questões de felicidade e sofrimen- lo. É
por isso que eu e você não temos obrigações morais em relação às
pedras. Até onde nossas ações podem afetar a experiência de outras
criaturas, de maneira positiva ou nega- i iva, as questões de moral se
aplicam. A idéia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é
simplesmente espantosa, em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida
cie que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os
filhos saem da linha, devemos bater neles com uma vara (Provérbios
13,24; 20,30; e 23,13-14). Se eles tiverem a pou- ca-vergonha de nos
responder com insolência, devemos malá-los (Êxodo 21,15,Levítico
20,9, Deuteronômio 21,18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7).
Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério,
homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar
fei- l içaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários, bis aqui
apenas um exemplo da sabedoria eterna de Deus:

Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do
teu amor, ou teu amigo que amas como à tua própria alma te incitar em
segredo, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses" [...] não
concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás com piedade, não o
pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será
a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo.
Apedrejá-lo-á até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu
Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão [...1. Quando em
alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te dá, para ali habitares,
ouvires dizer que homens malignos saíram do meio de ti e incitaram os
moradores da sua cidade, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses",
que não conheceste, então, inquirirás, investigarás e, com diligência,
perguntarás;
e eis que, se for verdade e certo que tal abominação se cometeu no meio
de ti, então, certamente, ferirás a fio de espada os moradores daquela
cidade, destruindo-a completamente e tudo o que nela houver, até os
animais.
Deuteronômio 13, 6, 8-15

Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa


barbárie, nos termos mais claros imagináveis, e pregou uma doutrina de
puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo
Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do
Velho Testamento.
Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou
um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que
violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar
aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém,
que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos
céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos
escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.
Mateus 5,18-20

Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja


2 Timóteo 3,16-17). É verdade, claro, que Jesus disse coisas profundas
sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro1 é realmente um
preceito moral maravilho- so. Mas numerosos mestres já deram essa
mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confúcio,
Epicteto...), e incontáveis escrituras discutem a importância do amor
que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que .1
Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência
que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo
Testamento. Se você acha que o cristianismo é .1 expressão mais direta
e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece
bem as outras religiões.
Veja, por exemplo, o jainismo. Essa religião prega a dou- l ri na da
absoluta não-violência. É verdade que os jainistas acreditam em muitas
coisas improváveis acerca do universo; mas nao do tipo de coisas que
acenderam as fogueiras da Inquisição. Você provavelmente pensa que
a Inquisição foi uma perverso do "verdadeiro" espírito do cristianismo.
Talvez tenha si- (lo. O problema, porém, é que os ensinamentos da
Bíblia são Ião confusos e contraditórios que foi possível para os cris-

1 Regra de Ouro: versículo do Sermão da Montanha (Mateus 7,12): "Tudo aquilo,


portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os
Profetas". Ao mencionar a lei e os profetas, Jesus se refere ao preceito já citado no Velho
Testamento: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico 19,18). (N. T.)
l.ios queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, duran- le cinco
longos séculos. Inclusive foi possível para os mais venerados patriarcas
da Igreja, como santo Agostinho e santo lómás de Aquino, concluir que
os heréticos deviam ser tor- 111 rados (santo Agostinho)3 ou mortos
logo de uma vez (santo lómás de Aquino).4 Martinho Lutero e João
Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas,
judeus i feiticeiras.5 Naturalmente, você é livre para interpretar a Bí-
!>lia de outra maneira — mas não é espantoso que você tenha
conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do cris- l ianismo,
enquanto os mais influentes pensadores na história «l.i religião cristã
falharam nesse ponto? É claro que muitos < i islãos acreditam que uma
pessoa inofensiva como Martin
Luther King Jr. é o melhor exemplo da religião cristã. Mas isso
apresenta um sério problema, pois a doutrina do jainis- mo é,
objetivamente, uma orientação melhor do que a doutrina do
cristianismo para quem deseja ser como Martin Luther King Jr. Não há
dúvida de que King se considerava um cristão devoto, mas ele assumiu
seu compromisso com a não- violência basicamente a partir dos
escritos de Mohandas K. Gandhi. Em 1959, King até viajou para a índia
a fim de aprender os princípios do protesto social não-violento
diretamen- te com os discípulos de Gandhi. E com quem Gandhi, um
hin- duísta, aprendeu a doutrina da não-violência? Com os jainistas.
Se você acredita que Jesus ensinou apenas a Regra de Ouro e o
amor ao próximo, deve reler o Novo Testamento. Preste atenção
especial à moralidade que ficará em evidência quando Jesus voltar à
terra, deixando um rastro de nuvens de glória:

se, de fato, é justo para com Deus que ele dê em paga tribulação aos que
vos atribulam [...] quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os
anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que
não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de
nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição,
banidos da face do Senhor e da glória do seu poder.
2 Tessalonicenses 1,6-9

Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do


ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam.
João 15, 6

Se levarmos em conta a metade das afirmações de Jesus, podemos


facilmente justificar as ações de são Francisco de Assis ou Martin
Luther King Jr. Levando em conta a outra metade, podemos justificar a
Inquisição. Qualquer pessoa que acredite que a Bíblia oferece a melhor
orientação possível em assuntos de moralidade tem idéias muito
estranhas — ou sobre orientação, ou sobre moralidade.

Ao avaliar a sabedoria moral da Bíblia, é útil considerar questões


morais que já foram resolvidas para satisfação geral. Considere a
questão da escravidão. Hoje, o mundo civilizado inteiro concorda que
escravidão é uma abominação. (.Hie instrução moral recebemos do
Deus de Abraão a esse respeito? Consulte a Bíblia e você descobrirá
que o criador do universo espera, claramente, que nós tenhamos
escravos:

Quanto aos escravos ou escravas que tiverdes, virão das nações ao vosso
derredor; delas comprareis escravos e escravas. Também os comprareis
dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas
famílias que estiverem convosco, que nasceram na vossa terra; e A'os
serão por possessão. Deixá-los-eis por herança para vossos filhos depois
de vós, para os haverem como possessão; perpetuamente os fareis servir,
mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não vos assenhoreareis com
tirania, um sobre os outros.
Levítico 25,44-46
A Bíblia também deixa claro que todo homem tem liberdade de
vender sua filha como escrava sexual — apesar de que nesse caso se
aplicam certas restrições sutis:

Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como
saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu
a desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um
povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas, se a casar
com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho outra
mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos,
nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá
sem retribuição, nem pagamento em dinheiro.
Êxodo 21,7-11

A única verdadeira restrição que Deus aconselha acerca da


escravidão é que não devemos bater nos nossos escravos tão
severamente a ponto de ferir seus olhos ou seus dentes (Êxodo 21,
26-27). Nem é preciso dizer que esse não é o tipo de orientação moral
que conseguiu abolir a escravidão nos Estados Unidos.
Em nenhum ponto do Novo Testamento Jesus faz obje- ção à
prática da escravidão. São Paulo até exorta os escravos a servirem bem
aos seus senhores — e especialmente bem aos seus senhores cristãos:

Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne


com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo [...]
servindo de boa vontade, como ao Senhor, e não como a homens.
Efésios 6, 5-7

Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda


honra os próprios senhores, para que o nome de Deus e a doutrina não
sejam blasfemados. Também os que têm senhores fiéis não os tratem com
desrespeito, porque são irmãos; pelo contrário, trabalhem ainda mais,
pois eles, que partilham do seu bom serviço, são crentes e amados. Ensina
e recomenda estas coisas. Se alguém ensina outra doutrina e não concorda
com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino
segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por
questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação,
difamações, suspeitas malignas [...)
1 Timóteo 6,1-4

Deve ficar bem claro a partir dessas passagens que, embora os


abolicionistas do século xix estivessem moralmente <, cr tos, estavam
do lado perdedor da discussão teológica. Como disse o reverendo
Richard Fuller em 1845, "Aquilo que I )eus autorizou no Velho
Testamento, e permitiu no Novo, não pode ser pecado". 6 Aqui o
bondoso reverendo pisava em lei rcno firme. Não há nada na teologia
cristã que busque remediar as espantosas deficiências da Bíblia acerca
dessa ques- i.io moral, talvez a maior — e a mais fácil— que nossa so-
t iedade já teve de enfrentar.
Em resposta, cristãos como você muitas vezes notam que também
os abolicionistas obtiveram na Bíblia uma considerável inspiração.
Claro que sim. Há milénios as pessoas escolhem a dedo determinadas
passagens bíblicas para jus- I iíícar cada um de seus impulsos, sejam
morais ou não. Isso não significa, porém, que aceitar a Bíblia como a
palavra de I )eus seja a melhor maneira de descobrir que sequestrar e
es- i lavizar milhões de homens, mulheres e crianças inocentes c
moralmente errado. Com certeza não é a melhor maneira de chegar a
essa conclusão, em vista do que a Bíblia realmen- le diz sobre esse
assunto. O fato de que alguns abolicionistas usaram certos trechos
bíblicos para repudiar outros trechos não indica que a Bíblia seja um
bom guia para a moralidade. Tampouco sugere que os seres humanos
precisam consultar um livro para resolver questões morais desse tipo.
No momento em que uma pessoa reconhecer que escravos são seres
humanos como ela própria, com a mesma capacidade de sentir o
sofrimento e a felicidade, ela compreenderá que, obviamente, é
crueldade possuí-los e tratá-los como se fossem equipamentos
agrícolas. É notavelmente fácil para qualquer pessoa chegar a essa
brilhante conclusão — e, contudo, ela teve de ser difundida a ponta de
baioneta em todo o Sul dos Estados Unidos, entre os cristãos mais
piedosos que este país já conheceu.

Os Dez Mandamentos também merecem alguma reflexão nesse


contexto, pois, ao que parece, a maioria dos americanos acredita que
eles são indispensáveis, tanto do ponto de vista moral como do legal.7 É
verdade que a Constituição americana não contém nem uma única
menção a Deus e que foi amplamente condenada, na época de sua
elaboração, por ser um documento não-religioso. Mesmo assim, muitos
cristãos acreditam que nosso país foi fundado sobre "princípios
judaico-cristãos". É estranho, mas os Dez Mandamentos muitas vezes
são citados como prova incontestável desse fato. Se a relevância desses
mandamentos para a história dos Estados Unidos é questionável, nossa
reverência por eles não é acidental. Afinal, essa é a única passagem
bíblica tão profunda que o criador do universo sentiu necessidade de
escrever fisicamente, ele próprio, gravando os mandamentos na
I" (Ira. Sendo assim, poderíamos esperar que estas fossem as 11 .ises
mais grandiosas jamais escritas, sobre qualquer assunto, em qualquer
idioma. Aqui estão eles. Prepare-se...

1 — Não terás outros deuses diante de mim.


2 — Não farás para ti imagens esculpidas.
3 — Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão.
4 — Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo.
5 — Honra teu pai e tua mãe.
(-> — Não matarás.
7 — Não cometerás adultério.
8 — Não roubarás.
9 — Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo.
10 — Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher,
nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o
seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo.

Desses preceitos (Êxodo 20, 2-17), os primeiros quatro ii.io têm


nada a ver com a moral. Tal como são expressos, proí- I »oni a prática
de qualquer religião que não seja a judaico-cris- l,i (como o
hinduísmo), a maior parte da arte religiosa, o uso dt* expressões com a
palavra "Deus" e a execução de todo e qualquer trabalho corriqueiro
durante o sábado —tudo isso Job pena de morte. Podemos nos
perguntar até que ponto esses preceitos são vitais para a manutenção da
civilização.
Os mandamentos de 5 a 9 de fato tratam da moral, embora não se
saiba quantas pessoas já honraram seus pais ou se abstiveram de
cometer assassinato, adultério, roubo ou perjúrio por causa desses
preceitos. Admoestações desse tipo são encontradas em praticamente
todas as culturas, em Ioda a história humana registrada. Não há nada de
especial - mente incisivo na maneira como são apresentadas na Bíblia.
Existem razões biológicas óbvias pelas quais as pessoas tendem a tratar
bem seus pais, e a fazer mau juízo dos assassinos, adúlteros, ladrões e
mentirosos. É um fato científico que emoções morais — tais como o
senso de justiça ou o horror à crueldade — precedem qualquer contato
com as escrituras. De fato, estudos sobre o comportamento dos
primatas revelam que essas emoções (em alguma forma) precedem a
existência cia própria humanidade. Todos os primatas, nossos primos,
demonstram parcialidade para com sua própria família ou tribo, e de
modo geral não toleram o assassinato e o roubo. Também não gostam,
de modo geral, de trapaça nem de traição sexual. Os chimpanzés, em
especial, demonstram muitas das complexas preocupações sociais que
esperaríamos ver em nossos parentes mais próximos no mundo natural.
Assim, parece bastante improvável que o americano médio receba a
instrução moral necessária ao ver esses preceitos inscritos no mármore
sempre que entra em um tribunal. E o que devemos pensar do fato de
que, ao encerrar seu tratado, o criador do nosso universo não conseguiu
pensar em nenhuma preocupação humana mais premente e duradoura
do que cobiçar escravos e animais domésticos?
Se formos levar a sério o Deus da Bíblia, devemos admitir que Ele
nunca nos dá a liberdade para seguir os mandamentos dos quais
gostamos e negligenciar os demais. Ele tampouco nos diz que podemos
relaxar nas penalidades que Ele impôs por desrespeitá-los.
Se você acha que seria impossível melhorar os Dez Mandamentos
como afirmação de moralidade, você realmente deveria fazer um favor
a si mesmo e ler as escrituras de algu- in.r. outras religiões. Mais uma
vez, não precisamos ir mais lun^e do que os jainistas; Mahavira, o
patriarca jainista, su- I" rou a moralidade da Bíblia como uma única
frase: "Não N MI, abusar, oprimir, escravizar, insultar, atormentar,
tortu- i .ii ou matar nenhuma criatura ou ser vivo". Imagine como "
nosso mundo poderia ser diferente se a Bíblia contivesse
• . .. I IVase como preceito central. Os cristãos abusaram, opri-
I I H I .un, escravizaram, insultaram, atormentaram, tortura- i .mi e
mataram pessoas em nome de Deus durante séculos, «< >111 base em
uma leitura teologicamente defensável da Bíblia. I un possível se
comportar dessa maneira aderindo aos prin-
• Ipios do jainismo. Como, então, você pode argumentar que Bíblia
oferece a expressão mais clara de moralidade que o
inundo já viu?

\ VI KDADEIRA MORALIDADE
Você acredita que, se a Bíblia não for aceita como a pa- l.ivra de
Deus, não pode haver um padrão universal de mo- i alidade. Mas
podemos facilmente pensar em fontes objeti- as (le ordem moral que
não requerem a existência de um Deus legislador. Para que haja
verdades morais objetivas que valha I pena conhecer, é necessário que
haja apenas maneiras melhores e piores de buscar a felicidade neste
mundo. Se exis- lem leis psicológicas que governam o bem-estar
humano, . onhecer essas leis nos proporcionaria uma base duradoura I
»ara uma moralidade objetiva. É verdade que não temos nada que se
assemelhe a uma compreensão final e científica da moralidade humana;
mas parece seguro dizer que estuprar e matar nosso próximo não estão
entre seus elementos básicos. Tudo na experiência humana sugere que
o amor conduz à felicidade mais do que o ódio. Essa é uma afirmação
obje- tiva acerca da mente humana, da dinâmica das relações sociais e
da ordem moral do nosso mundo. Sem dúvida é possível dizer que
alguém como Hitler estava errado em termos morais, sem ser preciso
nos referirmos às escrituras.
Se sentir amor pelos outros é, com certeza, uma das maiores
fontes da nossa própria felicidade, também acarreta uma preocupação
profunda pela felicidade e pelo sofrimento daqueles que amamos.
Assim, nossa própria busca de felicidade nos dá um motivo
fundamental para o auto-sacrifício e a abnegação. Não há dúvida de
que existem ocasiões em que fazer enormes sacrifícios pelo bem dos
outros é essencial para o nosso próprio bem-estar mais profundo. Não é
necessário acreditar em nada, sem provas convincentes, para que as
pessoas formem vínculos desse tipo. Em vários pontos dos evangelhos,
Jesus nos diz claramente que o amor pode transformar a vida humana.
Para assimilar esses ensinamentos em nosso coração, não precisamos
acreditar que ele nasceu de uma virgem, ou que ele voltará para a terra
como um super-herói.
Um dos efeitos mais perniciosos da religião é que ela tende a
divorciar a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos e dos
animais. A religião permite que as pessoas imaginem que suas
preocupações são morais quando não são — isto é, quando elas não têm
nada a ver com o sofrimento ou com o alívio do sofrimento. De fato, a
religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são
morais <|ii.indo, na verdade, são altamente imorais — isto é, quando
insistir nessas preocupações inflige um sofrimento atroz i
desnecessário em seres humanos inocentes. Isso explica por i Hic
cristãos como você gastam mais energia "moral" fazen do oposição ao
aborto do que lutando contra o genocídio. I \plica por que você está
mais preocupado com os embriões h u m an o s do que com a
possibilidade de salvar vidas, o fere -
• ida pela pesquisa com células-tronco. E explica por que vo- < r é
capaz de pregar contra o uso da camisinha na África sub-
.1.11 iana, enquanto milhões de pessoas morrem de aids nessa n giao a
cada ano.
Você acredita que as suas preocupações religiosas a res- IM i lo de
sexo, tão imensas e tão cansativas, têm algo a ver com i moralidade. E,
contudo, seus esforços para reprimir o com- poi lamento sexual de
adultos que agem por livre e espontâ- II < M vontade — e até para
desencorajar seus próprios filhos e Ilibas de fazerem sexo antes do
casamento — quase nunca se > Ir-.li nam ao alívio do sofrimento
humano. Ao que parece, ali- i.iio sofrimento está bem lá embaixo na
sua lista de priori-
• l.i*les. Felo visto, a sua principal preocupação é que o criador
do universo ficará ofendido com algo que as pessoas fazem
• |u,uido estão nuas. E essa sua mentalidade pudica contribui,
di.ii ia mente, para o excesso de infelicidade humana.
(Considere, por exemplo, o papilomavírus humano ( HPV , II .I .ij;la
em inglês). O HPV é hoje a doença sexualmente transmissível mais
comum nos Estados Unidos. Esse vírus infec-
i .1 mais da metade da população americana, causando a mor-
ii de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O 1 ri il ro
para Controle de Doenças (Center for Desease Control
< i X:) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente
dessa doença no mundo inteiro. Hoje temos uma vacina para o HPV que
parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de
100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste
clínico.8 Contudo, os conservadores cristãos no governo americano
opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um
impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e
mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo
para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de
mulheres a cada ano.
Não há nada de errado em incentivar os adolescentes a se abster
de sexo. Mas nós já sabemos, fora de qualquer dúvida, que apenas
ensinar a abstinência não é uma boa maneira de reduzir a gravidez na
adolescência nem a disseminação de doenças sexualmente
transmissíveis. Na verdade, os adolescentes que só recebem lições de
abstinência têm menos probabilidades de usar métodos
anticoncepcionais quando fazem sexo — como muitos deles vão fazer,
inevitavelmente. Um estudo descobriu que as "promessas de
virgindade" promovidas pelo governo americano adiam o ato sexual
por dezoito meses, em média — e que, durante esse período, esses
adolescentes virgens têm mais probabilidade do que os demais de fazer
sexo oral e anal.9 Os adolescentes americanos fazem sexo tanto quanto
os adolescentes do resto do mundo desenvolvido; mas as jovens
americanas têm quatro a cinco vezes mais probabilidade de engravidar,
dar à luz ou fazer aborto. Os jovens americanos também têm muito
mais probabilidade de ser infectados pelo HIV e outras doenças se-
xualmente transmissíveis. O índice de gonorréia entre adolescentes
americanos é setenta vezes maior do que entre os adolescentes da
Holanda e da França.10 O fato de que 30% de nossos programas de
educação sexual ensinam apenas a abstinência (a um custo anual de
mais de 200 milhões de dólares) com certeza tem algo a ver com isso.
O problema é que cristãos como você não estão preocupados com
a gravidez adolescente e a disseminação de doenças. Isto é, você não
está preocupado com o sofrimento causado pelo sexo; você está
preocupado com o sexo. E, como se este fato precisasse ainda mais de
comprovação, o evangélico Reginald Finger, membro do Comité
Consultor de Práticas d e i munização do CDC, anunciou recentemente
que pensa em '.e opor a uma vacina contra o HIV — condenando, assim,
milhões de homens e mulheres a morrer de aids a cada ano, des-
necessariamente —, já que tal vacina incentivaria o sexo antes tio
casamento, por torná-lo menos arriscado.11 Este é um
• l< >s muitos aspectos em que suas crenças religiosas se tornam
I'.enuinamente letais.
Seus escrúpulos acerca da pesquisa com células-tronco ■ao
igualmente obscenos. Aqui estão os fatos: a pesquisa com
• elulas-tronco é um dos avanços mais promissores da mediu na no
último século. Pode oferecer avanços revolucioná- i ios no tratamento
de todas as doenças e processos perni-
• iosos que atingem o ser humano — pela simples razão de que as
células-tronco dos embriões podem se transformar un qualquer tecido
do corpo humano. Essa pesquisa tam- ln in pode ser essencial para a
nossa compreensão do cân- m i e de uma vasta gama de doenças do
desenvolvimento. Em \ isla de tais fatos, é quase impossível exagerar as
perspecti-
,i. promissoras dessa pesquisa. É verdade, claro, que a pesquisa com
células-tronco embrionárias acarreta a destruição de embriões humanos
de três dias de idade. É com isso que você se preocupa.
Vejamos os detalhes. Um embrião humano é um agrupamento de
150 células chamado blastocisto. Existem, para efeito de comparação,
mais de 100 mil células no cérebro de uma mosca. Os embriões
humanos que são destruídos nas pesquisas com células-tronco não têm
cérebro, nem sequer neurónios. Assim, não há razão para acreditar que
eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento com a sua destruição, de
maneira alguma. Nesse contexto, vale lembrar que, quando ocorre a
morte cerebral, atualmente julgamos aceitável extrair os órgãos da
pessoa (desde que ela os tenha doado para esse fim) e enterrá-la. Se é
aceitável tratar uma pessoa cujo cérebro morreu como algo menos que
um ser humano, deveria ser aceitável tratar do mesmo modo um
blastocisto. Se você está preocupado com o sofrimento que ocorre neste
universo, matar uma mosca deveria lhe apresentar dificuldades morais
maiores do que matar um blastocisto humano.
Talvez você ache que a diferença crucial entre uma mosca e um
blastocisto humano está no potencial deste último de tornar-se um ser
humano plenamente desenvolvido. Mas, em vista dos nossos recentes
avanços em engenharia genética, quase toda célula do corpo humano é
um ser humano em potencial. Cada vez que você coça o nariz, já
cometeu um holocausto de seres humanos em potencial. Isso é um fato.
O argumento que fala do potencial das células não leva a absolutamente
nada.
Mas vamos admitir, por enquanto, que cada embrião humano de
três dias de idade tenha uma alma merecedora da nossa preocupação
moral. Os embriões nesse estágio por ve- /.es se dividem, tornando-se
duas pessoas separadas (gémeos idênticos). Será que nesse caso uma só
alma se dividiu em duas? Por outro lado, às vezes dois embriões se
fundem em um único indivíduo, chamado "quimera". Talvez você, ou
alguém que você conhece, tenha se desenvolvido dessa maneira. Não
há dúvida de que em algum lugar, neste momento, há teólogos se
esforçando para decidir o que acontece com a alma humana em um
caso assim.
Será que já não é hora de reconhecermos que essa aritmética de
almas não faz nenhum sentido? A idéia ingénua de que existem almas
em uma placa de Petri é intelectualmente impossível de defender. Ê
também moralmente indefensável, considerando-se que ela está
obstruindo pesquisas entre as mais promissoras da história da
medicina. As suas cren- i,as a respeito da alma humana estão, neste
exato momento, I >i <)longando o sofrimento atroz de dezenas de
milhões de se- ies humanos.
Você acredita que "a vida começa no momento da con- • epção".
Você acredita que existem almas em cada um desses U.istocistos e que
os interesses de uma alma — digamos, a .ilma de uma menininha com
queimaduras em 75% do corpo não podem predominar sobre os
interesses de outra alma, mesmo que essa alma viva dentro de um tubo
de en- .iio. Considerando todas as concessões que já fizemos para a«
omodar a irracionalidade baseada na fé no nosso discur- público,
muitos afirmam — inclusive defensores da pes- qui.sa com
células-tronco — que a posição que você adota nes-
• assunto tem certo grau de legitimidade moral. Mas não tem. aia
resistência à pesquisa com células-tronco embrionárias
• na melhor das hipóteses, mal informada. Na verdade, não existe
nenhuma razão moral para a má vontade do governo federal americano
em financiar esse trabalho. Nós deveríamos investir recursos imensos
em pesquisas com células- tronco, e deveríamos fazê-lo imediatamente.
Mas, por causa das crenças de cristãos como você a respeito de almas,
não estamos fazendo isso. Na verdade, vários estados americanos já
tornaram essa pesquisa ilegal.12 Em Dakota do Sul, por exemplo, quem
fizer experiências com blastocistos se arrisca a passar anos na prisão.13
A verdade moral aqui é óbvia: qualquer pessoa que creia que os
interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre os interesses de
uma criança com uma lesão na espinha dorsal está com seu senso moral
cegado pela metafísica religiosa. O vínculo entre a religião e a "moral"
— tão proclamado e tão poucas vezes demonstrado — fica aqui
totalmente desmascarado, tal como acontece sempre que o dogma
religioso prevalece sobre o raciocínio moral e a compaixão genuína.

FAZENDO O BEM EM NOME DE DEUS

O que dizer de todas as coisas boas que são feitas em nome de


Deus? É inegável que muitas pessoas de fé fazem sacrifícios heróicos
para aliviar o sofrimento de outros seres humanos. Mas será que é
necessário acreditar em qualquer coisa, sem ter provas suficientes, para
agir dessa maneira? Se a compaixão realmente dependesse do
dogmatismo religioso, como explicar o trabalho de médicos
não-religiosos que atuam no mundo em desenvolvimento, nas regiões
mais destroçadas pelas guerras? Há muitos médicos motivados sim-
(desmente pelo desejo de aliviar o sofrimento humano, sem nenhum
pensamento acerca de Deus. Não há dúvida de que missionários
cristãos também são movidos pelo desejo de .ihviar o sofrimento
humano; mas eles abordam essa tarefa
• ,11 regando o pesado fardo de uma mitologia perigosa e cau- nidora
de desavenças. Os missionários no mundo em desen- volvimento
desperdiçam muito tempo e dinheiro (sem falar n.i boa vontade dos
não-cristãos) fazendo proselitismo com i »•. necessitados; eles
divulgam informações inexatas a respeito de métodos
anticoncepcionais e doenças sexualmente 11 ansmissíveis, e se
recusam a divulgar informações precisas. ' .e c verdade que os
missionários fazem muitas coisas nobres,
• om grandes riscos para si mesmos, o fato é que seu dogmatismo
dissemina a ignorância e a morte. Em contraste, voluntários de
organizações seculares, como a Médicos Sem I tonteiras, não
desperdiçam tempo algum falando com as pessoas sobre o nascimento
virginal de Jesus. Tampouco diem à população da África subsaariana
— onde quase 4 milhões de pessoas morrem de aids a cada ano — que
é pecado usar camisinha. Sabe-se de casos em que missionários ■ i
islãos pregaram que usar preservativo é pecado, em localidades onde
não há nenhuma outra informação acerca do assunto. Esse tipo de
crença é genocida.* Também podemos

I difícil acreditar, mas o Vaticano atualmente se opõe ao uso cia camisinha, até l mi ,i
evitar a contaminação por HIV entre marido e mulher. Há rumores de que o I m|m está
reconsiderando essa orientação. O cardeal Javier Lozano Barragán, pre- u li'iite do
Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde, anunciou na Rádio Va- LL < . IMO que
seu departamento está "realizando um estudo científico, técnico e mo- i il muito
profundo" dessa questão (!). Nem é preciso dizer que, se a doutrina da l(»,i<'ja mudar em
consequência dessas piedosas deliberações, isso não será sinal ilr 11tie a fé é sábia, e sim
de que um de seus dogmas se tornou insustentável.
nos perguntar, de passagem, o que é mais moral: ajudar as pessoas
puramente pela preocupação com o sofrimento delas, ou ajudá-las
porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por
isso?
Madre Teresa de Calcutá é um exemplo perfeito da maneira como
uma boa pessoa, impelida a ajudar os outros, pode ter sua intuição
moral perturbada pela fé religiosa. Christopher Hitchens expressa isso
com sua característica franqueza:

[Madre Teresa] não era amiga dos pobres. Era amiga da pobreza. Ela
afirmou que o sofrimento era um presente de Deus. Passou toda a sua
vida se opondo à única cura conhecida para a pobreza, que é dar poder e
emancipação às mulheres, para que elas saiam de uma situação de
animais domésticos com reprodução compulsória.14
Embora em essência eu concorde com Hitchens nesse ponto, não
se pode negar que madre Teresa foi uma grande força pela compaixão.
Sem dúvida foi motivada pelo sofrimento humano, e fez muita coisa
para despertar outras pessoas para a realidade desse sofrimento. O
problema, porém, é que a sua compaixão foi canalizada para o seu
estreito dogmatismo religioso. Em seu discurso ao aceitar o prémio
Nobel, ela disse:

O principal destruidor da paz é o aborto [...]. Muitas pessoas se preo-


cupam muitíssimo com as crianças da índia, com as crianças da África,
onde um grande número morre, talvez de desnutrição, de fome e assim
por diante, mas milhões estão morrendo, deliberadamente, pela vontade
de suas mães. E é esse o maior destruidor da paz hoje em dia. Pois, se uma
mãe é capaz de matar o próprio filho, o que impede que eu mate você e
você me mate? Não há nenhum impedimento.15

Como diagnóstico dos problemas do mundo, essas observações


estão espantosamente equivocadas. Como afirmações de moral, não
são melhores. A compaixão de madre Teresa estava muito mal
calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do
que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra. É verdade que
o aborto é uma feia realidade, e todos nós devemos ter esperança de que
surjam avanços nos métodos anticoncepcionais, reduzindo a
necessidade dessa prática; mesmo assim, é razoável duvidar de que a
maioria dos fetos abortados sofra com sua destruição, em qualquer
nível que seja. Contudo, essa dúvida não seria razoável quando se trata
dos milhões de homens, mulheres e crianças que suportam os
tormentos da guerra, da fome, da tortura política ou da doença menial.
Neste exato momento, milhões de seres sensíveis à dor estão sofrendo
aflições físicas e mentais inimagináveis, em * ircunstâncias em que não
se vê em parte alguma a compaixão divina, e a compaixão humana é
com bastante frequência prejudicada por idéias ridículas a respeito do
pe- < ado e da salvação. Se você se preocupa com o sofrimento
humano, o aborto deveria ficar bem no fim da sua lista de
preocupações.
Enquanto o aborto continua sendo uma questão ridicu- lamente
polémica nos Estados Unidos, a posição "moral" da l)",i eja nesse
assunto está hoje plenamente — e horrivelmente encarnada em El
Salvador. Nesse país, o aborto é hoje ilegal sob quaisquer
circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No
momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero
perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é
algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de
crime. Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres
hoje cumprindo penas de trinta anos de prisão pelo crime de
interromper sua gravidez.16 Imagine tal cenário em um país que
também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um
pecado contra Deus. E, contudo, é exatamente esse tipo de política que
adotaríamos se concordássemos com madre Teresa em sua avaliação
do sofrimento humano. De fato, o arcebispo de San Salvador fez uma
campanha ati- va nesse sentido. Ele foi auxiliado em seus esforços pelo
papa João Paulo li, que declarou, em uma visita à Cidade do México em
1999, que "a Igreja precisa proclamar o evangelho da vida, e falar com
força profética contra a cultura da morte. Possa o continente da
esperança ser também o continente da vida!".
É claro que a posição da Igreja a respeito do aborto não leva em
conta os detalhes da biologia, assim como não leva em conta a
realidade do sofrimento humano. Já foi estimado que 50% de todas as
concepções humanas terminam em aborto espontâneo, em geral sem
que a mulher sequer perceba que estava grávida. Na verdade, 20% de
todos os casos de gravidez reconhecidos terminam em aborto
espontâneo.17 Existe aqui uma verdade óbvia e gritante: se Deus existe,
ele é o mais prolífico de todos os praticantes de abortos.
< R , ATEUS SÃO MAUS ?

Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece .1 li nica


base real para a moralidade, então os ateus deveriam '.cr menos morais
do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus
< leveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será
que os membros das organizações de ateus nos Estados Unidos «o
metem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os
membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não
aceitam a idéia de Deus, mentem, enga- n.un e roubam
deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses
grupos se comportam pelo me- 11< >s tão bem quanto a população em
geral. E, contudo, os ateus
.10 a minoria mais vilipendiada dos Estados Unidos. As pesquisas de
opinião indicam que ser ateu é um impedimento I KT feito para se
candidatar a qualquer alto posto no nosso país (enquanto ser negro,
muçulmano ou homossexual não é). Uecentemente, multidões com
milhares de pessoas se reuni iam em todo o mundo muçulmano —
queimando embaixadas européias, fazendo ameaças, tomando reféns,
até matando pessoas — em protesto contra doze caricaturas re-
presentando o profeta Maomé, publicadas em um jornal dinamarquês.
Quando será que ocorreu o último levante dos ateus? Será que existe
algum jornal neste planeta que hesita-
I ia em publicar car icaturas sobre o ateísmo, temendo que seus •
<litores fossem sequestrados ou assassinados em represália?
Cristãos como você invariavelmente declaram que mons-
II os como Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tse-tung, Pol Pot e I i 111 II
Sung surgem do ventre do ateísmo. É verdade que tais homens por
vezes são inimigos da religião organizada, mas nunca são muito
racionais. 2 De fato, os pronunciamentos públicos desses homens
muitas vezes são totalmente delirantes, nos assuntos mais variados:
raça, economia, identidade nacional, a marcha da história, os perigos
morais do intelectualismo. O problema desses tiranos não é que eles
rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destrui-
dores da vida. A maioria se torna o centro de um culto da personalidade
quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se
manter. Há uma diferença entre a propaganda e a disseminação honesta
de informações que nós (em geral) esperamos de uma democracia
liberal. Tiranos que organizam genocídios, ou que reinam alegremente
enquanto seu povo morre de fome, também costumam ser homens
profundamente idiossincráticos, e não defensores da razão. Kim II
Sung, por exemplo, exigia que suas camas, em suas diversas
residências, fossem situadas exatamente a quinhentos metros acima do
nível do mar. Seus acolchoados tinham de ser feitos com a penugem
mais macia que se possa imaginar. E qual é a penugem mais macia que
se possa imaginar? Segundo i onsta, ela vem do papo do pardal. Era
necessário matar 700 mil pardais para encher um único acolchoado.
Em vista da profundidade de suas preocupações esotéricas, podemos

2E parece que o ateísmo de Hitler foi seriamente exagerado: "Como cristão, meu
sentimento me mostra meu Senhor e Salvador como um combatente. Mostra me aquele
homem de outrora que, sozinho, rodeado por apenas alguns seguido res, reconheceu o
que eram verdadeiramente aqueles judeus e conclamou os homens a lutar contra eles, e
que, pela verdade de Deus!, foi maior não como sofredor, mas como lutador. Em amor
ilimitado como cristão e como homem, leio a passagem que nos conta como o Senhor por
fim se levantou em todo o Seu poder e tomou na mão um chicote para expulsar do templo
a ninhada de víbo ras e serpentes. Como foi terrível a sua luta em prol do mundo, contra o
veneno judaico [...] como cristão, também tenho um dever para com meu próprio povo".
Hitler afirmou isso em um discurso pronunciado em 12 de abril de 1922 (Norman H.
Baynes, ed. The speeches of Adolf Hitler, April 1922-August 1939. Vol. 1 de 2, pp. 19-20.
Oxford University Press, 1942).
nos perguntar até que ponto Kim II Sung era um homem movido pela
razão.
Veja o Holocausto: o anti-semitismo que construiu os campos de
morte dos nazistas foi herança direta do cristianismo medieval. Durante
séculos os europeus cristãos ti- 11 liam considerado os judeus a pior
espécie de heréticos, e atribuído todos os males da sociedade à sua
contínua presença entre os fiéis. Embora o ódio aos judeus na
Alemanha se expressasse de maneira sobretudo secular, suas raízes
eram religiosas, e a demonização explicitamente religiosa dos judeus
da Europa foi contínua durante esse período. O próprio Vaticano
perpetuou a calúnia de sangue em seus jornais até 1914.* E tanto a
Igreja católica como a protestante têm um passado vergonhoso de
cumplicidade com o genocídio nazista.18
Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do
(lumboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se
tornam demasiado adeptas da razão. Ao contrário, esses horrores
atestam os perigos do dogmatismo político e ra- eial. Já é hora de
cristãos como você pararem de fingir que uma rejeição racional da sua
fé acarreta a adoção cega do ateísmo como dogma. Não é necessário
aceitar nada sem ter provas suficientes para concluir que o nascimento
virginal de Jesus e uma idéia absurda. O problema da religião — assim
como

' A "calúnia de sangue" (em relação aos judeus) consiste na falsa acusação de que us
judeus matam não-judeus a fim de obter sangue para rituais religiosos. Essa i u nça
continua muito difundida em todo o mundo muçulmano.
do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária —
é o problema do dogma em si. Não conheço nenhuma sociedade na
história humana que jamais tenha sofrido porque seu povo passou a
ansiar por provas concretas para suas crenças fundamentais.
Embora você acredite que acabar com a religião é um ob- jetivo
impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte
do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia,
Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre
as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do
Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas
sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de
expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional,
igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil.19
Até onde há um problema de crime na Europa ocidental ele é,
sobretudo, produto da imigração. Na França, por exemplo, 70% dos
detentos nas prisões são muçulmanos. Os muçulmanos da Europa
ocidental em geral não são ateus. Inversamente, os cinquenta países
que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de
desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente
religiosos.
Outras análises pintam o mesmo quadro: os Estados Unidos são o
único país, entre as democracias ricas, com alto nível de adesão à
religião; e também o que mais sofre com altos índices de homicídio,
aborto, gravidez adolescente, doenças sexualmente transmissíveis e
mortalidade infantil. A mesma comparação é verdadeira dentro do
próprio país: os estados do Sul e do Meio-Oeste, caracterizados pelos
mais .iltos níveis de literalismo religioso, são especialmente atinados
pelas disfunções sociais, segundo os indicadores acima, .10 passo que
os estados relativamente seculares do Nordeste do país têm uma
situação semelhante à européia.20
Embora nos Estados Unidos a filiação a um partido po- lilico não
seja um indicador perfeito de religiosidade, não é segredo que os
estados "vermelhos" [republicanos] são vermelhos sobretudo devido à
influência política avassaladora «los cristãos conservadores. 21 Se
existisse uma forte correla- <,,10 entre o conservadorismo cristão e a
saúde da sociedade, I »< >deríamos ver algum sinal disso nesses
estados. Mas não vemos. Das 25 cidades americanas com os mais
baixos índices de crimes violentos, 62% ficam em estados "azuis"
[demo- t ratas] e 38% em estados "vermelhos". Das 25 cidades mais I
icrigosas, 76% ficam em estados vermelhos e 24% em estados azuis.22
Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos I st ados Unidos ficam
no piedoso estado do Texas.23 Os doze estados com os mais altos
índices de assaltos a residências ..io vermelhos. Dos 29 estados com os
mais altos índices de loubo, 24 são vermelhos. Dos 22 estados com os
mais altos índices de assassinatos, dezessete são vermelhos.24
É claro que correlações desse tipo não esclarecem questões de
causalidade — a crença em Deus talvez leve à disfun- .,ao social; ou a
disfunção social talvez estimule a crença em I >cus; cada um desses
fatores pode estimular o outro; ou talvez ambos derivem de algum fator
nocivo mais profundo.
< on tudo, deixando de lado a questão de causa e efeito, essas
< balísticas provam que o ateísmo é compatível com as aspi- i açoes
básicas de uma sociedade civil; e também provam, de maneira
conclusiva, que a crença generalizada em Deus não garante a saúde de
uma sociedade.
Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais
caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a
programas internos de bem-estar social e ajuda aos países pobres.25 A
duvidosa relação entre os valores cristãos e a crença literal na Bíblia
cristã é desmentida por outros índices de igualdade social. Considere a
proporção entre a remuneração dos executivos de mais alto escalão e o
salário médio pago aos funcionários das mesmas empresas: na
Grã-Breta- nha, é de 24:1; na França, 15:1; na Suécia, 13:1; e nos
Estados Unidos, onde 80% da população espera ser chamada diante de
Deus no Dia do Juízo Final, é de 475:1.26 Pelo visto, parece que muitos
camelos esperam passar com facilidade pelo buraco de uma agulha.
QUEM COLOCA A BONDADE NO BOM LIVRO ?*

Mesmo que a crença em Deus exercesse um efeito positivo


confiável sobre o comportamento humano, isso não seria motivo para
acreditar em Deus. Uma pessoa só pode crer em Deus se acreditar que
Deus realmente existe. Mesmo que o ateísmo levasse diretamente ao
caos moral, isso não indicaria que a doutrina do cristianismo é
verdadeira. O islã poderia ser verdadeiro, nesse caso. Ou, talvez, todas
as religiões poderiam agir como placebos. Como descrição do universo
po deriam ser totalmente falsas, mas, mesmo assim, úteis. Con

* Em inglês, costuma-se chamar a Bíblia de "the Good Book" ("o Bom Livro"). (N.T.)
tudo, as provas indicam que as religiões são não apenas falsas como
também perigosas.
Quando você fala nas boas consequências que as suas crenças
exercem sobre a moral humana, está seguindo o exemplo dos religiosos
liberais e moderados. Em vez de dizer que acreditam em Deus porque
determinadas profecias bíblicas se realizaram, ou porque os milagres
narrados nos evangelhos são convincentes, os liberais e moderados
costumam falar nas boas consequências de se acreditar, tal como eles
acreditam. Esses crentes muitas vezes dizem que acreditam em Deus
porque isso "dá sentido às suas vidas". Quando um tsunami matou
centenas de milhares de pessoas no dia seguinte ao Natal de 2004,
muitos cristãos conservadores viram nessa catástrofe uma prova da ira
divina. Aparentemente, Deus estava enviando mais uma mensagem em
código sobre os males do aborto, da idolatria e do homossexualismo.
Embora eu con- ádere essa interpretação dos acontecimentos
absolutamente lepugnante, ela tem, pelo menos, a virtude de ser
razoável quando se assume um dado conjunto de hipóteses básicas. Os
liberais e moderados, por outro lado, se recusam a tirar qualquer
conclusão que seja a respeito de Deus a partir das obras dele. Deus
permanece um mistério absoluto, uma mera fon- l< de consolo que é
compatível com todos os males, até os mais devastadores. Logo após o
tsunami na Ásia, liberais e mode- i ad( >s admoestaram uns aos outros
para que procurassem Deus ii.lo no poder que moveu a onda, mas sim
na resposta que i humanidade deu à onda". 27 Creio que podemos
concordar, I 'i i >vavelmente, que é a benevolência humana — e não a
dilua — que fica à mostra a cada vez que os corpos inchados • I' r.
mortos são trazidos do mar para serem enterrados. Se em um único dia
mais de 100 mil crianças foram arrancadas dos braços de suas mães e
afogadas com total displicência, a teologia liberal deve ser vista bem
claramente, tal como ela é: a mais pura falsidade que um mortal possa
conceber. A teologia da ira tem muito mais mérito intelectual. Se Deus
existe e tem um interesse nos assuntos dos seres humanos, sua vontade
não é inescrutável. Aqui a única coisa inescrutável é que tantos homens
e mulheres, que em outros aspectos são racionais, conseguem negar o
horror implacável desses acontecimentos e julgar que esse é o ápice da
sabedoria moral.

Assim como a maioria dos cristãos, você acredita que simples


mortais como nós não podem rejeitar a moralidade da Bíblia. Não
podemos dizer, por exemplo, que Deus estava errado quando afogou a
maior parte da humanidade no dilúvio narrado no Génesis, pois isso é
apenas a maneira como as coisas parecem ser, a partir do nosso
limitado ponto de vista. E, contudo, você se acha com capacidade de
julgar que Jesus é o Filho de Deus, que a Regra de Ouro é o ápice da
sabedoria moral e que a Bíblia não está transbordando de mentiras.
Você usa a sua própria intuição moral para autenticar a sabedoria da
Bíblia — e no, entanto, no momento seguinte você afirma que nós,
seres humanos, não podemos, de forma alguma, confiar na nossa
própria intuição para nos guiar corretamente no mundo; em vez disso,
temos de depender das prescrições da Bíblia. Ou seja, você usa a sua
própria intuição moral para concluir que a Bíblia é a garantia apro-
priada da sua intuição moral. Suas intuições continuam sendo
primárias, e o seu raciocínio é circular.
Nós decidimos o que é bom no "Bom Livro". Lemos a Regra de
Ouro e achamos que ela destila, de maneira brilhante, muitos de nossos
impulsos éticos. E, em seguida, encontramos mais um dos
ensinamentos de Deus sobre a moral: se um homem descobrir, em sua
noite de núpcias, que sua noiva não é virgem, ele deve levá-la até a
soleira da porta do pai dela e apedrejá-la até a morte (Deuteronômio
22,13-21). Se somos civilizados, rejeitaremos isso como o ato mais lu-
nático e mais vil que se possa imaginar. Mas para isso precisamos
exercer nossa própria intuição moral. Acreditar que a Bíblia é a palavra
de Deus não nos ajuda de maneira alguma.
A escolha que temos pela frente é simples: podemos ter uma
conversa do século xxi acerca da moral e do bem-estar humano — uma
conversa na qual recorremos a todas as descobertas científicas e
argumentos filosóficos acumulados nos últimos 2 mil anos de discurso
humano — ou então podemos nos confinar a uma conversa do século i,
tal como preservada na Bíblia. Por que alguém haveria de querer adotar
a segunda opção?

A BONDADE DIVINA

Em algum lugar do mundo, um homem acaba de seques- l rar uma


garotinha. Logo mais ele vai estuprá-la, torturá-la e matá-la. Se uma
atrocidade desse tipo não está ocorrendo neste exato momento, vai
ocorrer dentro de poucas horas, ou no máximo de alguns dias. É essa
certeza que podemos obter a partir das leis estatísticas que governam a
vida de 6 bilhões de seres humanos. Essas mesmas estatísticas também
sugerem que os pais dessa garotinha acreditam — tal como você
acredita — que um Deus todo-poderoso e cheio de amoi infinito está
velando por eles e pela sua família. Eles estão certos ao acreditar nisso?
É bom que eles acreditem nisso?
Não.
O ateísmo em sua totalidade está contido nessa resposta. O
ateísmo não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é
simplesmente o reconhecimento do óbvio. Na verdade, ateísmo é um
termo que nem deveria existir. Ninguém precisa se identificar como
"não-astrólogo", ou "não-alqui- mista". Não temos palavras para definir
pessoas que duvidam de que Elvis Presley continua vivo, ou de que
alienígenas atravessaram a galáxia só para incomodar fazendeiros e seu
gado. O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis
fazem diante de crenças religiosas não justificadas. Um ateu é
simplesmente uma pessoa que acredita que os 260 milhões de
americanos (87% da população) que afirmam "nunca duvidar da
existência de Deus" deveriam ser obrigados a apresentar as provas da
existência dele — e, aliás, também da benevolência desse Deus, em
vista da implacável destruição de seres humanos inocentes que
testemunhamos neste mundo todos os dias. Um ateu é uma pessoa que
acredita que o assassinato de uma única menininha — mesmo que
ocorra uma vez em 1 milhão de anos — lança dúvidas sobre a idéia da
existência de um Deus benevolente.
As provas de que Deus não protege a humanidade estão por toda
parte. A cidade de Nova Orleans, por exemplo, foi recentemente
destruída por um furacão. Mais de mil pessoas morreram; dezenas de
milhares perderam tudo o que tinham; e quase 1 milhão se tornaram
refugiadas. Podemos di- zer com bastante segurança que quase todas as
pessoas que moravam em Nova Orleans no momento em que o furacão
Katrina as atingiu acreditavam, como você, em um Deus oni- potente,
onisciente e misericordioso. Mas o que estava Deus fazendo enquanto o
Katrina devastava a cidade? Com certeza Ele ouviu as orações daqueles
homens e mulheres idosos que fugiram da enchente buscando
segurança no sótão de suas casas, e ali lentamente se afogaram. Eram
gente de fé. Eram boas pessoas, que tinham orado durante toda a vida.
Será que você tem coragem de reconhecer o óbvio? Essa pobre gente
morreu falando com um amigo imaginário.
É claro que houve numerosos alertas de que uma tempestade "de
proporções bíblicas" atingiria Nova Orleans, e a resposta humana ao
desastre que se seguiu foi de uma ineficiência trágica. Mas foi
ineficiente apenas à luz da ciência. A religião não ofereceu
absolutamente nenhuma base para uma reação. Os alertas que foram
dados previamente, traçando a Irajetória do Katrina, foram arrancados
da muda Natureza por meio de cálculos meteorológicos e imagens de
satélite. I )eus não contou seus planos para ninguém. Se os moradores
de Nova Orleans se contentassem em confiar na benevolência divina,
não ficariam sabendo que um furacão assassino viria atacá-los, até
sentirem as primeiras rajadas de vento no rosto. E, contudo, como não
deve ser surpresa para você, uma pesquisa feita pelo The Washington
Post descobriu que 80% dos sobreviventes do Katrina afirmam que
esse acontecimento só serviu para fortalecer sua fé em Deus.
Enquanto o furacão Katrina devorava Nova Orleans, quase mil
peregrinos xiitas foram pisoteados e mortos em uma ponte no Iraque.
Esses peregrinos tinham uma fé poderosa no Deus do Corão. Suas
vidas eram organizadas em torno do fato indiscutível da existência
desse Deus; as mulheres usavam véus diante dele; os homens
regularmente assassinavam uns aos outros devido a interpretações
divergentes da palavra dele. Seria notável se um único sobrevivente
dessa tragédia tivesse perdido a fé. O mais provável é que os
sobreviventes imaginem que foram poupados pela graça divina.
Já é hora de reconhecermos o ilimitado narcisismo e au-
to-engano desses que foram salvos. Já é hora de reconhecermos que é
uma verdadeira desgraça que os sobreviventes de uma catástrofe
acreditem que foram poupados por um Deus amoroso, enquanto esse
mesmo Deus afogava bebés em seus berços. Quando parar de revestir a
realidade do sofrimento do mundo com fantasias religiosas, você
sentirá até os ossos como a vida é preciosa — e que é uma grande
infelicidade que milhões de seres humanos sofram tanto quando sua
felicidade é abruptamente cortada, das maneiras mais horríveis, sem
nenhum bom motivo.

É de se pensar quão vasta e gratuita teria de ser uma catástrofe


para abalar a fé das pessoas. O Holocausto não obteve esse efeito.
Tampouco o genocídio em Ruanda — mesmo contando entre os
assassinos padres católicos brandindo suas machadinhas. No século xx,
nada menos que 500 milhões de pessoas morreram de varíola, em boa
parte crianças. Os caminhos de Deus são, de fato, inescrutáveis. Parece
que qualquer fato, por mais infeliz que seja, pode ser considerado
compatível com a fé religiosa.
É claro que pessoas de todas as religiões sempre garantem umas às
outras que Deus não é responsável pelo sofrimento humano. Mas,
então, como compreender a afirmação de que Deus é, ao mesmo tempo,
onisciente e onipoten- te? Esse é o problema antiquíssimo da
teodicéia,* é claro, e devemos considerá-lo solucionado. Se Deus
existe, ou Ele não pode fazer nada para impedir as mais terríveis
calamidades, ou então Ele não tem interesse nisso. Portanto, ou Deus é
impotente, ou então é mau. Você pode agora ser tentado a executar a
seguinte pirueta: Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de
moral. Mas já vimos que os critérios humanos de moral são exatamente
aqueles que você utiliza para afirmar a bondade de Deus. E qualquer
Deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou
o nome pelo qual Ele deve ser chamado nas orações, não é tão
inescrutável assim.
Existe outra possibilidade, claro, que é ao mesmo tempo a mais
razoável e a menos odiosa: o Deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus
e milhares de outros deuses mortos que a maioria dos seres humanos
mentalmente sãos hoje ignora. Você consegue provar que Zeus não
existe? Claro que não. E, contudo, imagine se nós vivêssemos em uma
sociedade em que as pessoas gastassem dezenas de bilhões de dólares
de sua renda pessoal a cada ano a fim de propiciar os deuses no monte
Olimpo, em que o governo gastasse outros bilhões tirados dos impostos
dos cidadãos para sustentar instituições dedicadas a esses deuses, em
que outros incontáveis bilhões em subsídios fiscais fossem doados para
templos pagãos, em que as autoridades eleitas se esforçassem ao
máximo para impe-
' Tcodicéia: justificativa da crença na onipotência e na bondade de Deus, diante da
dir pesquisas médicas por respeito à
existência do mal no mundo. (N. T.)
Ilíada e à Odisséia, e em que cada debate sobre políticas públicas fosse
subvertido para satisfazer os caprichos de antigos autores que até
escreviam bem, mas não conheciam o suficiente sobre a realidade nem
para separar seus excrementos de sua comida. Isso seria uma aplicação
horrivelmente equivocada dos nossos recursos materiais, morais e
intelectuais. E, contudo, é exatamente essa a sociedade em que estamos
vivendo. É este o mundo tristemente irracional que você e seus
companheiros cristãos trabalham incansavelmente para criar.
É terrível pensar que todos nós morremos e perdemos tudo que
amamos; é duplamente terrível que tantos seres humanos sofram
desnecessariamente enquanto estão vivos. O fato de que uma parte tão
grande desse sofrimento pode ser atribuída diretamente à religião —
aos ódios religiosos, às guerras religiosas, aos tabus religiosos, aos
desvios religiosos de recursos escassos — é o que torna a crítica
honesta da fé religiosa uma necessidade moral e intelectual.
Infelizmente, expressar essa crítica coloca o não-crente nas margens da
sociedade. Só por estar em contato com a realidade, ele parece
vergonhosamente fora de contato com a vida fantasiosa de seus
vizinhos.

O PODER DA PROFECIA

Costuma-se dizer que é razoável acreditar que a Bíblia é a palavra


de Deus porque muitos acontecimentos narrados no Novo Testamento
confirmam profecias do Velho Testamento. Mas faça esta pergunta a
você mesmo: que dificulda-
6o de teriam os autores dos evangelhos em narrar a vida de Jesus
de modo a fazê-la conformar-se às profecias do Velho Testamento?
Não estaria dentro do poder de qualquer mortal escrever um livro que
confirmasse as previsões de um livro anterior? E, de fato, sabemos com
base nas evidências tex- t uais que foi isso que fizeram os autores dos
evangelhos.28
Os autores dos livros de Lucas e de Mateus, por exemplo,
declaram que Maria concebeu virgem, adotando a versão grega de
Isaías 7,14. Contudo, o texto hebraico de Isaías usa a palavra "almá",
que significa simplesmente "uma jovem", sem nenhuma implicação de
virgindade. Parece praticamente certo que o dogma do nascimento
virginal, e boa parte da consequente ansiedade no mundo cristão a
respeito do sexo, é produto de uma tradução errada do texto hebraico.
Outro golpe contra a doutrina do nascimento virginal é que os ou- tros
dois evangelistas não ouviram falar a respeito. Tanto Marcos como
João parecem constrangidos com as acusações da ilegitimidade de
Jesus, mas nunca mencionam sua origem milagrosa. São Paulo afirma
que Jesus "nasceu da semente de I )avi, de acordo com a carne" e "foi
nascido de mulher", sem nenhuma referência à virgindade de Maria.
Os evangelistas também cometeram outros erros em suas
referências ao Velho Testamento. Mateus 27, 9-10, por exemplo, alega
cumprir uma afirmação que atribui a Jeremias. Na verdade, essa
afirmação aparece em Zacarias 11,12- 13. Os evangelhos também
contradizem uns aos outros muitas vezes.29 João nos diz que Jesus foi
crucificado na véspera da ceia de Páscoa; Marcos diz que foi no dia
seguinte. À luz de tais discrepâncias, como é possível que você acredite
que a Bíblia é perfeita em todas as suas partes? O que você acha

6i
dos muçulmanos, mórmons e sikhs, que também ignoram contradições
semelhantes em seus respectivos livros sagrados? Esses fiéis também
dizem coisas como "O Espírito Santo só tem olhos para a substância e
não é limitado pelas palavras" (Martinho Lutero). Será que isso torna
você minimamente mais predisposto a aceitar as escrituras dessas
outras religiões como a palavra perfeita do criador do universo?

Os cristãos costumam afirmar que a Bíblia prevê eventos


históricos futuros. Por exemplo, Deuteronômio 28,64 diz: "O SENHOR
vos espalhará entre todos os povos, de uma até a outra extremidade da
terra". Jesus diz, em Lucas 19,43-44: "Pois sobre ti virão dias em que os
teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te
apertarão o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não
deixarão em ti pedra sobre pedra porque não reconheceste a
oportunidade da tua visitação". Segundo os cristãos, temos de acreditar
que essas afirmações prevêem a história subsequente dos judeus de
uma maneira tão espantosa, tão específica, que só pode admitir uma
explicação sobrenatural.
Mas imagine como seria específica e impressionante uma obra de
profecia, se fosse realmente produto da onisciên- cia. Se a Bíblia fosse
um livro assim, ela faria previsões perfeitamente exatas sobre os
acontecimentos humanos. Poderíamos esperar que ela contivesse uma
passagem tal como: "Na segunda metade do século xx, a humanidade
vai desenvolver um sistema de computadores interligados globalmente
— cujos princípios estabeleci no Levítico — e esse sistema será
chamado internet". A Bíblia não contém nada desse tipo. Na verdade,
ela não contém nem uma única frase que não pudesse ser escrita por um
homem ou mulher que vivesse no século i. Isso deveria perturbar você.
Um livro escrito por um ser onisciente poderia conter, por
exemplo, um capítulo sobre matemática que, depois de 2 mil anos de
uso contínuo, ainda seria a mais rica fonte de sabedoria matemática que
a humanidade já viu. Em vez disso, não há na Bíblia nenhuma
discussão formal da matemática, e ela contém alguns erros
matemáticos. Em dois lugares, por exemplo, o Bom Livro afirma que a
proporção entre a circunferência de um círculo e o seu diâmetro é de
3:1 (1 Reis 7,23-26 e 2 Crónicas 4,2-5). Como aproximação da cons-
tante 7t (pi), não é nada impressionante. A expansão decimal de Tl vai
até o infinito — 3,1415926535... —, e os computadores modernos hoje
nos permitem calculá-la até qualquer grau de exatidão que possamos
desejar. Mas tanto os egípcios como os babilónios aproximaram n em
algumas casas decimais vários séculos antes que os livros mais antigos
da Bíblia fossem escritos. A Bíblia nos oferece uma aproximação
extremamente rudimentar, mesmo pelos padrões da Antiguidade.
Como já podemos imaginar, os fiéis encontraram maneiras de
racionalizar tudo isso; mas essas racionalizações não conseguem
esconder as óbvias deficiências da Bíblia como fonte de conhecimentos
matemáticos. É absolutamente verdadeiro dizer que se o matemático
grego Arquimedes tivesse escrito as passagens relativas ao k em 1 Reis
e 2 Crónicas, o texto apresentaria muito mais provas da "onis- ciência"
do autor.
Por que a Bíblia não diz nada sobre a eletricidade, ou sobre o DNA ,
ou sobre a verdadeira idade e extensão do univer- so? E o que dizer de
uma cura para o câncer? Quando compreendermos plenamente a
biologia do câncer, esses fatos serão facilmente resumidos em algumas
páginas de texto. Por que essas páginas, ou algo remotamente parecido,
não se encontram na Bíblia? Pessoas boas e piedosas estão neste exa- to
momento morrendo de câncer, sofrendo horrivelmente, e muitas delas
são crianças. A Bíblia é um livro muito grande. Deus teve espaço
suficiente para nos instruir em detalhes sobre a maneira de manter
escravos e de sacrificar diversos animais. Para alguém que está fora da
fé cristã, é espantoso como um livro pode ter um conteúdo tão trivial e,
mesmo assim, ser considerado produto da onisciência.

O CHOQUE ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO


Embora hoje seja uma necessidade moral para os cientistas falar
honestamente sobre o conflito entre ciência e religião, até a Academia
Nacional de Ciências dos Estados Unidos declarou que esse conflito é
ilusório:

Na raiz do aparente conflito entre algumas religiões e a evolução está uma


compreensão equivocada da diferença crítica entre o modo de
conhecimento religioso e o científico. As religiões e a ciência respondem
a perguntas diferentes sobre o mundo. Se existe um propósito no universo
ou um propósito para a existência humana, essas não são perguntas para a
ciência. O modo de conhecimento religioso e o científico representaram,
e continuarão a representar, papéis significativos na história humana [...].
A ciência é uma maneira de conhecer o mundo natural. Ela se limita a
explicar o mundo natural através de causas naturais. A ciência não pode
dizer nada acerca do sobrenatural. Se Deus existe ou não é uma questão
sobre a qual a ciência é neutra.30

Esta afirmação é espantosa por sua falta de sinceridade. É claro


que os cientistas vivem com um perpétuo medo de perder as verbas
públicas, de modo que a Academia Nacional de Ciências talvez tenha
expressado apenas seu puro terror da ira dos contribuintes. A verdade,
porém, é que o conflito entre religião e ciência é inevitável. O sucesso
da ciência muitas vezes vem às expensas do dogma religioso; a
manutenção do dogma religioso sempre vem às expensas da ciência.
Nossas religiões não se limitam simplesmente a falar sobre "o pro-
pósito da existência humana". Tal como a ciência, cada religião faz
afirmações específicas sobre o mundo. Essas afirmações alegam tratar
de fatos — o criador do universo pode ouvir (e ocasionalmente atender)
suas preces; a alma entra no zigoto no momento da concepção; quem
não acredita nas coisas certas a respeito de Deus vai passar por
sofrimentos terríveis depois da morte. Essas afirmações estão
intrinsecamente em conflito com as afirmações da ciência, pois são
feitas a partir de provas terrivelmente insatisfatórias.
No sentido mais amplo, a "ciência" (do latim scire, "saber")
representa os nossos melhores esforços para saber o que é verdade
sobre o nosso mundo. Aqui não precisamos distinguir entre ciências
"exatas" e "humanas", ou entre a ciência e um ramo das humanidades
como a história. É um fato histórico, por exemplo, que os japoneses
bombardearam Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941. Em
consequência, este fato faz parte da visão de mundo adotada pela
racionalidade científica. Em vista das abundantes provas que atestam
tal fato, qualquer um que acredite que ele aconteceu em alguma outra
data, ou que na verdade foram os egípcios que lançaram as bombas,
precisaria dar muitas explicações. O cerne da ciência não são as
experiências controladas, nem os modelos matemáticos; é a
honestidade intelectual. Já é hora de reconhecermos uma característica
básica do discurso humano: quando se considera a verdade de uma
afirmação, ou a pessoa está empenhada em avaliar honestamente as
provas e os argumentos lógicos, ou não está. A religião é a única área
da nossa vida na qual as pessoas imaginam que se aplica algum outro
padrão de integridade intelectual.

Considere as recentes deliberações da Igreja católica romana


sobre a doutrina do limbo. Trinta teólogos de alto escalão do mundo
todo se reuniram recentemente no Vaticano para discutir a questão do
que acontece aos bebés que morrem sem ter passado pelo sagrado rito
do batismo. Desde a Idade Média, os católicos acreditam que esses
bebés vão para um estado de limbo, onde desfrutam para todo o sempre
do que santo Tomás de Aquino denominou "felicidade natural". Tal
noção contrastava com as opiniões de santo Agostinho, que acreditava
que essas infelizes almas infantis passariam a eternidade no inferno.
Apesar de o limbo não ter nenhum fundamento real na escritura, e
de nunca ter sido uma doutrina oficial da Igreja, há séculos vem sendo
uma parte importante da tradição católica. Em 1905, o papa Pio X
endossou-a plenamente: "As crianças que morrem sem batismo vão
para o limbo, onde não desfrutam da presença de Deus, mas também
não sofrem".
Agora as grandes mentes da Igreja se reuniram para reconsiderar o
assunto.
É possível conceber algum projeto que seja intelectualmente mais
infeliz e inútil do que este? Imagine como devem ser essas
deliberações. Será que existe a menor possibilidade de que alguém
apresente provas indicando qual o destino eterno das crianças não
batizadas após a morte? Como pode uma pessoa instruída julgar tal
debate se não como uma hilária, aterrorizante e exorbitante perda de
tempo? Quando se considera o fato de que essa mesma instituição
produz e abriga um exército de elite de molestadores de crianças, todo
esse empreendimento começa a exalar uma aura realmente diabólica de
energia humana desperdiçada.

O conflito entre ciência e religião pode reduzir-se a um simples


fato da cognição e do discurso humano: ou uma pessoa tem bons
motivos para acreditar naquilo que acredita, ou não tem. Se houvesse
boas razões para acreditar que Jesus nasceu de uma mulher virgem, ou
que Maomé voou para o céu em um cavalo alado, essas crenças
necessariamente fariam parte da nossa descrição racional do universo.
Todos reconhecem que confiar na "fé" para decidir sobre questões
específicas de fatos históricos é ridículo — isto é, até que a conversa se
volte para a origem de livros como a Bíblia e o Corão, a ressurreição de
Jesus, as conversas de Maomé com o arcanjo Gabriel ou qualquer outro
dogma religioso. Já é hora de reconhecermos que a "fé" não é nada
mais do que a licença que as pessoas religiosas dão umas às outras para
continuar acreditando, quando não há razões para acreditar.
Embora acreditar firmemente em algo, sem ter provas, seja
considerado um sinal de loucura ou estupidez em qualquer outra área
de nossa vida, a fé em Deus continua mantendo imenso prestígio na
nossa sociedade. A religião é a única área do nosso discurso na qual se
considera nobre fingir ter certeza — certeza acerca de coisas das quais
nenhum ser humano pode ter certeza. É significativo que essa aura de
nobreza alcance apenas aquelas religiões que continuam tendo muitos
adeptos. Qualquer pessoa que for surpreendida adorando Posêidon,
mesmo no meio do oceano, será considerada insana.*

OS FATOS DA VIDA

Todas as formas complexas de vida na Terra se desenvolveram a


partir de formas de vida mais simples, ao longo de bilhões de anos. Este
é um fato que não admite mais disputas inteligentes. Se você duvida de
que o ser humano evoluiu a partir de espécies anteriores, também pode
duvidar de que o Sol é uma estrela. É verdade que o Sol não parece uma
estrela, mas nós sabemos que ele é uma estrela que, por acaso, está
relativamente perto da Terra. Imagine como você ficaria envergonhado
se sua fé religiosa dependesse da hipótese de que o Sol não é, de forma
alguma, uma estrela. Imagine milhões de cristãos nos Estados Unidos
gastando centenas de milhões de dólares a cada ano para combater os
astrónomos

* Verdade seja dita, venho recebendo e-mails de protesto de pessoas que afirmam,
aparentemente com toda a sinceridade, acreditar que Posêidon e outros deuses da
mitologia grega são reais.
e astrofísicos descrentes acerca deste ponto. Imagine como eles
trabalhariam com fervor para conseguir que suas idéias acerca do Sol
— idéias sem nenhum fundamento — fossem ensinadas nas escolas do
nosso país. Pois é exatamente essa a situação em que você está agora no
que se refere à evolução.
Os cristãos que duvidam da verdade da evolução costumam dizer
coisas como "A evolução é apenas uma teoria, não um fato". Tal
afirmação revela uma séria falta de compreensão sobre a maneira como
o termo "teoria" é usado no discurso científico. Na ciência, os fatos
devem ser explicados com referência a outros fatos. Esses modelos
explicativos mais amplos são "teorias". As teorias fazem previsões e
podem, em princípio, ser testadas. A expressão "teoria da evolução"
não sugere, de maneira nenhuma, que a evolução não é um fato.
Pode-se falar na "teoria da origem microbiana das doenças" ou na
"teoria da gravidade" sem lançar dúvidas sobre a doença ou a gravidade
como fatos da natureza.
Também vale notar que é possível obter um doutorado em
qualquer ramo da ciência com a única finalidade de fazer um uso cínico
da linguagem científica, no esforço de racionalizar as gritantes
deficiências da Bíblia. Parece que um punhado de cristãos já fez isso;
alguns até conseguiram diplomas de universidades de prestígio. Sem
dúvida, outros seguirão seus passos. Embora essas pessoas sejam,
tecnicamente, "cientistas", não estão se portando como cientistas. Elas
simplesmente não estão empenhadas em uma pesquisa honesta sobre a
natureza do universo. E as suas afirmações acerca de Deus e das falhas
do darwinismo não significam, em absoluto, que haja uma polémica
científica legítima acerca da evolução. Em 2005 foi realizada uma
pesquisa em 34 países, que mediu a porcentagem de adultos que
aceitam a evolução. Os Estados Unidos ficaram na posição número 33,
logo acima da Turquia. Enquanto isso, os estudantes secundaris- tas
nos Estados Unidos se classificam abaixo dos estudantes de tocios os
países europeus e asiáticos em testes de compreensão de matemática e
ciências.31 Esses dados são inequívocos: estamos construindo uma
civilização da ignorância.
Eis aqui o que sabemos. Sabemos que o universo é muito mais
antigo do que a Bíblia sugere. Sabemos que todos os organismos
complexos que há na Terra, inclusive nós mesmos, evoluíram a partir
de organismos mais antigos ao longo de bilhões de anos. As provas são
absolutamente esmagadoras. Não existe nenhuma dúvida de que a
diversidade da vida que vemos ao nosso redor é a expressão de um
código genético escrito na molécula do DNA , que o DNA passa por mu-
tações aleatórias, e que algumas mutações aumentam as chances de um
organismo sobreviver e se reproduzir num dado ambiente. Esse
processo de mutação e seleção natural permitiu que populações isoladas
de indivíduos se reproduzissem e, ao longo de vastas extensões de
tempo, formassem novas espécies. Não há dúvida alguma de que os
seres humanos evoluíram desta maneira a partir de ancestrais
não-humanos. Sabemos, a partir de evidências genéticas, que
compartilhamos um ancestral comum com os símios e os macacos, e
que esse ancestral, por sua vez, tinha um ancestral em comum com os
morcegos e os lêmures voadores. Existe uma árvore da vida
extremamente ramificada, cuja forma e caráter básicos são hoje muito
bem compreendidos. Assim, não há nenhuma razão para acreditar que
cada espécie foi criada em sua forma atual. De que modo começou o
processo da evolução continua sendo um mistério, mas isso não indica,
de forma alguma, que provavelmente existe alguma divindade à
espreita por trás de tudo isso. Qualquer leitura honesta do relato bíblico
da criação sugere que Deus criou todos os animais e plantas tais como
nós os vemos agora. Não há dúvida alguma de que a Bíblia está errada
acerca disso.
Muitos cristãos que desejam lançar dúvidas sobre a verdade da
evolução agora defendem algo chamado "Design Inteligente" ( DI ), OU
"Projeto Inteligente". O problema do DI é que ele não passa de um
programa de defesa de idéias políticas e religiosas, disfarçado de
ciência. Uma vez que a crença no Deus bíblico não encontra nenhuma
sustentação na nossa crescente compreensão científica do mundo, os
teóricos do DL invariavelmente escoram suas afirmações nas áreas
onde há ignorância científica.
A argumentação a favor do DL prossegue em muitas frentes ao
mesmo tempo. Tal como incontáveis teístas que vieram antes, os
adeptos do DI costumam argumentar que o próprio fato de que o
universo existe prova a existência de Deus. Esse argumento se
desenvolve mais ou menos assim: tudo o que existe tem uma causa; o
espaço e o tempo existem; portanto, o espaço e o tempo devem ter sido
causados por alguma coisa que fica fora do espaço e do tempo; e a
única coisa que transcende o espaço e o tempo, e, contudo, mantém o
poder de criar, é Deus. Muitos cristãos como você acham esse
argumento convincente. No entanto, mesmo que concordemos com as
afirmações básicas desse argumento (cada uma das quais exige muito
mais discussão do que os teóricos do DL reconhecem), a conclusão final
não se segue logicamente. Quem pode dizer que a única coisa capaz de
fazer surgir o espaço e o tempo é um ser supremo? Mesmo que acci
tássemos que o nosso universo simplesmente tinha de ser pro jetado por
um "projetista", isso não indicaria que esse proje tista é o Deus bíblico,
nem que Ele aprova o cristianismo. Si nosso universo foi criado por um
projeto inteligente, laIv< . ele esteja sendo executado como uma
simulação em um su percomputador alienígena. Ou talvez seja obra de
um I )cu malvado, ou ainda de dois deuses malvados, jogando cabo
de-guerra em um cosmos ainda maior.
Como muitos críticos da religião já notaram, a noção de um
criador coloca um problema imediato de regressão i 1111 nita. Se Deus
criou o universo, o que criou Deus? Dizer qu< Deus, por definição, não
foi criado, é simplesmente esquivai se da questão. Qualquer ser capaz
de criar um mundo com plexo deve ser, ele próprio, muito complexo.
Como o biólo go Richard Dawkins já observou repetidas vezes, o
único processo natural conhecido que já conseguiu produzir um sei
capaz de projetar coisas é a evolução.
A verdade é que ninguém sabe como ou por que o uni verso
começou a existir. Nem sequer é claro se podemos la lar com coerência
sobre a criação do universo, já que tal la to só pode ser concebido com
referência ao tempo, e aqui estamos falando sobre o nascimento do
próprio espaço-tem po.* Qualquer pessoa dotada de honestidade
intelectual vai reconhecer que não sabe por que o universo existe. Os
cien tistas, é claro, reconhecem prontamente sua ignorância so bre esse
ponto. Não é o que fazem os crentes religiosos. Uma

* O físico Stephen Hawking, por exemplo, imagina o espaço-tempo como uma


superfície fechada, com quatro dimensões, sem começo nem fim (semelhante à
superfície de uma esfera).
das monumentais ironias do discurso religioso aparece 11a frequência
com que as pessoas de fé elogiam a si mesmas por sua humildade, ao
mesmo tempo que condenam os cientistas e outros não-crentes por sua
arrogânc ia intelectual. Na verdade, não existe uma visão do mundo
mais repreensível em sua arrogância do que a visão de um (tente
religioso: o criador do universo se interessa por mim, me aprova, me
ama e vai me recompensar depois da morte; minims crenças aluais,
vindas das escrituras, continuarão sendo a mellioi expressão da
verdade até o fim do mundo; todos os t f u e discordam de mim
passarão a eternidade no inferno... Um ci islão medio, numa igreja
média, ouvindo um sermão dominii al médio, <. Iiega a um nível de
arrogância simplesmente inimaginável no dis curso científico —
mesmo considerando que já houve alguns cientistas extremamente
arrogantes.

Mais de 99% das espécies que já caminharam, voaram ou se


arrastaram sobre este planeta hoje estão extintas. Só esse fato já exclui
o design inteligente. Quando olhamos o mundo natural, vemos uma
complexidade extraordinária, mas não vemos um design perfeito ou
mais vantajoso. O que vemos são redundâncias, regressões e
complicações desnecessárias; vemos ineficiências espantosas, que
resultam em sofrimento e morte. Vemos aves que não voam e cobras
que têm pél- vis. Vemos espécies de peixes, salamandras e crustáceos
que têm olhos não-funcionais, porque continuaram a evoluir na
escuridão durante milhões de anos. Vemos baleias que produzem
dentes durante o desenvolvimento fetal, mas os reabsorvem na idade
adulta. Tais características do nosso mundo são totalmente misteriosas
se Deus criou todas as r.pi cies de vida na terra de maneira
"inteligente"; nenhuma d» las nos deixa perplexos à luz da evolução.
Conta-se que o biólogo J. B. S. Haldane disse que, se e\ r. te um
Deus, "Ele tem uma predileção extraordinária peln besouros". Seria de
se esperar que uma observação tão dc vastadora já tivesse encerrado o
argumento do criacionism» > para todo o sempre. Mas a verdade é que,
embora haja i ei ca de 350 mil espécies conhecidas de besouros, parece
qu< Deus tem uma predileção ainda maior pelos vírus. Os bio logos
avaliam que existem pelo menos dez cepas de vírus | u ra cada espécie
animal da Terra. Muitos vírus são benignos, claro, e alguns vírus
antigos talvez tenham desempenhado um papel importante 110
surgimento de organismos com plexos. Só que os vírus usam
organismos como eu e você co mo seus órgãos reprodutivos. Muitos
deles invadem nossa:, células para destruí-las e, nesse processo, nos
destroem de maneira horrível, implacável e sem tréguas. Vírus como o
Hiv, assim como um amplo espectro de bactérias nocivas, podem ser
vistos em seu processo de evolução bem debaixo do nosso nariz,
desenvolvendo resistência às drogas antivi rais e antibióticas, para
prejuízo de todos nós. A evolução prevê e explica esse fenómeno; já o
livro do Génesis, não. Como você pode imaginar que a fé religiosa
oferece a melhor explicação dessas realidades, ou que estas indicam al-
gum propósito mais profundo e misericordioso de um ser onisciente?
Nosso próprio corpo é testemunha dos caprichos e in-
competências do criador. Na nossa fase de embriões, produzimos
cauda, guelras e toda uma pelagem semelhante à dos macacos.
Felizmente, a maioria de nós perde esses encantadores acessórios antes
de nascer. Essa bizarra sequência morfológica é facilmente
interpretada em termos evolucionários e genéticos; se somos produto
do design inteligente, é um mistério total. Outro exemplo: os homens
têm um canal urinário que corre diretamente através da próstata, e essa
glândula tende a inchar durante toda a vida. Assim, a maioria dos
homens com mais de sessenta anos pode atestai que pelo menos um
design, nesta verdejante terra tie I )eus, deixa muito a desejar. A pélvis
da mulher também nan loi pmjelada com tanta inteligência como
poderia ter sido para lai ililai <> mi lagre do nascimento. Assim, a cada
ano centenas de milha res de mulheres sofrem com um trabalho de
parto prolon gado e difícil, resultando em uma ruptura conhc<ida
<omo fístula obstétrica. No mundo em desenvolvimento, as víti mas
dessa doença passam a sofrer de incontinência urina ria, e com
frequência são abandonadas pelo marido e expulsas de sua
comunidade. O Fundo Populacional das Nações Unidas avalia que
mais de 2 milhões de mulheres sofrem de fístula nos nossos dias.3
Os exemplos de design não-inteligente na natureza s.to tão
numerosos que se poderia escrever um livro inteiro apt nas fazendo

3 A cura da fístula obstétrica é, na verdade, uma simples cirurgia — não a oração. Embora
muitas pessoas de fé pareçam convencidas de que as orações podem curar muitas doenças
(apesar do que dizem as melhores pesquisas científicas), é curioso que só se acredita que a
oração funciona para doenças e ferimentos que podem terminar depois de determinado
período. Ninguém espera seriamente, por exemplo, que a oração faça crescer de novo um
membro amputado. E por que não? As salamandras fazem isso como procedimento de
rotina, presumivelmente sem orações. Se é que Deus de fato atende às preces, por que Ele
não haveria de curar, ocasionalmente, um amputado merecedor dessa graça? E por que as
pessoas de fé não esperam que a oração funcione em casos assim? Há um site muito
inteligente que explora este mistério: www.whydoesgodhateampu- tees.com (Por que
Deus Odeia os Amputados).
uma lista deles. Vou me permitir citar apenas i na r um exemplo. O
aparelho respiratório e o aparelho digestivo do ser humano se
encontram na faringe, onde comparti lham uma pequena parte das suas
tubulações. Só nos Eslad» >•, Unidos, esse design "inteligente" manda
dezenas de mil lia res de crianças para o pronto-socorro todos os anos.
Centenas morrem asfixiadas ao engasgar, e muitas outras sofrem da nos
cerebrais irreparáveis. Isso serve para qual finalidade mi sericordiosa?
É claro que podemos imaginar um propósito misericordioso: talvez os
pais dessas crianças precisem apren der uma lição; ou quem sabe Deus
preparou uma recompen sa especial no céu para cada criança que morre
asfixiada com uma tampinha de garrafa. O problema, porém, é que
essas explicações imaginárias são compatíveis com qualquer esta do
em que o mundo se encontre. Qual horrenda tragédia não poderia ser
racionalizada dessa forma? E por que você se in clinaria a pensar
assim? De que modo essa linha de pensa mento é moral?

RELIGIÃO, VIOLÊNCIA E O FUTURO DA CIVILIZAÇÃO

Bilhões de pessoas acreditam, como você, que o criador do


universo escreveu (ou ditou) um dos nossos livros. Infelizmente, há
muitos livros que alegam ter autoria divina, e fazem afirmações
incompatíveis entre si acerca de como nós todos devemos viver.
Doutrinas religiosas rivais fragmentaram o nosso mundo em
comunidades morais separadas, e essas divisões se tornaram uma causa
incessante de conflitos humanos.
Em resposta a essa situação, muitas pessoas sensatas defendem
algo chamado tolerância religiosa. Nao há dúvida de que a tolerância
religiosa é melhor do que .1 guerra religiosa, mas ela não deixa de ter
seus problemas. Nosso medo de provocar o ódio religioso nos faz
relutai e, assim, deixamos de criticar idéias que são cada vez mais mal
adaptadas à realidade e obviamente ridículas. Esse medo também nos
obriga a mentir para nós mesmos repelidas vezes e nos níveis mais
elevados do discurso — sobre a compatibilidade entre a fé religiosa e a
racionalidade científica. Nossas certezas religiosas, todas rivais umas
das outras, estão impedindo o sui gimento de uma civilização global
viável. A lé religiosa a fé na existência de um I )eus que se importa com
o nome pelo qual é chamado, a fé que proclama que Jesus esta voltando
para a Terra, ou que os mártires muçulmanos vão direto para o Paraíso
— está do lado errado de uma guerra de idéias, hoje em plena escalada.
A religião agrava e exacerba os conflitos humanos muito mais do
que o tribalismo, o racismo ou a política jamais poderiam fazer. É uma
das formas de pensamento que dividem as pessoas entre os de dentro e
os de fora do grupo; mas é a única que coloca essa diferença em termos
de recompensa eterna ou punição eterna. Uma das patologias duradou-
ras da cultura humana é a tendência a criar os filhos ensinan- do-os a
temer e demonizar outros seres humanos com base na fé religiosa. Em
consequência, a fé inspira a violência de duas maneiras, pelo menos.
Primeiro, as pessoas muitas vezes matam outros seres humanos porque
acreditam que o cria- dor do universo deseja que elas façam isso. O
terrorismo islâmico é um exemplo recente desse tipo de comportamen-
to. Segundo, pessoas em número muito maior ainda entram em conflito
umas com as outras porque definem sua comunidade moral com base
em sua filiação religiosa: os muçulmanos tomam partido de outros
muçulmanos, os protestantes de outros protestantes, os católicos de
outros católicos. Esses conflitos nem sempre são explicitamente
religiosos. Mas o sectarismo, a intolerância e o ódio que separam uma
comunidade da outra muitas vezes são produto de suas identidades
religiosas. Assim, muitos conflitos que parecem motivados apenas por
preocupações territoriais são profundamente enraizados na religião.
Vemos exemplos recentes nas lutas que hoje atormentam a Palestina
(judeus contra muçulmanos), os Bálcãs (sérvios ortodoxos contra
croatas católicos; sérvios ortodoxos contra muçulmanos bósnios e
albaneses), Irlanda do Norte (protestantes contra católicos), Cachemira
(muçulmanos contra hindus), Sudão (muçulmanos contra cristãos e
animistas),* Nigéria (muçulmanos contra cristãos), Etiópia e Eritréia
(muçulmanos contra cristãos), Costa do Marfim (muçulmanos contra
cristãos), Sri Lanka (cingaleses budistas contra tâmeis hinduístas),
Filipinas (muçulmanos contra cristãos), Irã e Iraque (muçulmanos
xiitas contra muçulmanos sunitas) e o Cáucaso (russos ortodoxos contra
muçulmanos chechenos; muçulmanos do Azerbaijão contra arménios
católicos e arménios ortodoxos).
E, contudo, embora as divisões religiosas do nosso mundo sejam
claras e evidentes, muitos continuam imaginando
* Essa longa guerra civil é distinta do genocídio que hoje ocorre no Sudão, na região de
Darfur.
que os conflitos religiosos são sempre causados pela falta de instrução,
pela pobreza ou pela política. A maioria dos não- crentes, liberais e
moderados parece não acreditar que realmente existem pessoas que
sacrificam sua vida, ou a vida dos outros, devido às suas crenças
religiosas. Eles não sabem qual é a sensação de ter certeza da existência
do Paraíso; assim, não conseguem acreditar que alguém de fato tenha
certeza da existência do Paraíso. Vale a pena lembrar que os se-
questradores dos aviões de 11 de setembro de 2001 eram homens de
classe média e educação universitária, que não tinham nenhuma
experiência de opressão política. Contudo, passavam um tempo
enorme em sua mesquita, falando sobre a depravação dos infiéis e
sobre os prazeres que aguardam os mártires no Paraíso. Quantos
arquitetos e engenheiros ainda precisam se chocar contra edifícios a
seiscentos quilómetros por hora até que reconheçamos, para nós mes-
mos, que a violência da jihad não é apenas questão de educação,
pobreza ou política? A verdade, a espantosa verdade, é a seguinte: em
pleno ano de 2006, uma pessoa pode ter recursos intelectuais e
materiais suficientes para construir uma bomba nuclear, e mesmo
assim continuar acreditando que vai ganhar 72 virgens como premio no
Paraíso. Aqui no Ocidente os secularistas, liberais e moderados estão
demorando muito para compreender esse fato. A causa da sua confusão
é simples: eles não sabem o que é acreditar, realmente, em Deus.

Vamos considerar brevemente aonde as nossas certezas religiosas


divergentes estão nos levando, em uma escala global. A Terra hoje
abriga cerca de 1,4 bilhão de muçulmanos, muitos dos quais acreditam
que algum dia eu e você vamos ou nos converter ao islamismo, ou viver
subjugados a um califado muçulmano, ou então ser condenados à morte
pela nossa descrença. O islã é hoje a religião que mais cresce na Eu-
ropa. A taxa de natalidade dos muçulmanos europeus é três vezes maior
do que a de seus vizinhos não-muçulmanos. Se continuarem as
tendências atuais, a França será um país de maioria muçulmana dentro
de 25 anos — isso, se a imigração parasse amanhã. Em toda a Europa,
muitas comunidades muçulmanas se mostram pouco inclinadas a
adquirir os valores seculares e cívicos dos países que as recebem; e,
contudo, elas exploram esses valores ao máximo, exigindo tolerância
para a sua misoginia, seu anti-semitismo e o ódio religioso
constantemente pregado em suas mesquitas. Casamentos forçados,
assassinatos em nome da honra, estupros coletivos realizados como
punição e um ódio homicida aos homossexuais hoje são realidades de
uma Europa que em outros aspectos é secular, por obra e graça do islã.*
A mentalidade "politicamente correta" e o medo do racismo fazem com
que muitos europeus relutem em se opor aos aterrorizantes prin-

* Considera-se que uma mulher "desonra" sua família ao recusar um casamento


arranjado, pedir o divórcio, cometer adultério e até por ser estuprada ou sofrer alguma
outra forma de ataque sexual. Mulheres nessas situações com frequência são assassinadas
pelo pai, marido ou irmão, às vezes com a colaboração de outras mulheres. O assassinato
em nome da honra talvez seja mais bem compreendido como um fenómeno cultural (e
não estritamente religioso), e não é exclusivo do mundo muçulmano. Contudo, tal prática
encontra considerável apoio no islã, já que essa religião considera explicitamente a
mulher como propriedade do homem, e vê o adultério como uma ofensa capital. Em todo
o mundo muçulmano, uma mulher que denuncia ter sido estuprada corre o risco de ser
assassinada com "adúltera": afinal, ela reconheceu que fez sexo fora do casamento.

8o
cípios religiosos dos extremistas em seu meio. Com poucas exceções,
as únicas figuras públicas que tiveram a coragem de falar honestamente
sobre a ameaça que o islã hoje apresenta para a sociedade européia
parecem ser fascistas. Isso não é um bom prenúncio para o futuro da
civilização.
A idéia de que o islã é uma "religião de paz que foi dominada por
extremistas" é uma fantasia — e agora uma fantasia especialmente
perigosa. Não é claro, de modo algum, de que forma devemos agir em
nosso diálogo com o mundo muçulmano, mas tentar iludir a nós
mesmos com eufemismos não é a resposta. Hoje é um truísmo nos
círculos de política externa que uma verdadeira reforma do mundo
muçulmano não pode ser imposta de fora. Mas é importante reconhecer
por que isso é assim — isso é assim porque muitos muçulmanos estão
totalmente ensandecidos pela sua fé religiosa. Os muçulmanos tendem
a encarar as questões de política pública e conflitos globais em termos
da sua filiação ao islã. E os muçulmanos que não enxergam o mundo
nesses termos se arriscam a ser tachados de apóstatas e assassinados por
outros muçulmanos.
Mas como podemos ter esperança de dialogar racionalmente com
o mundo muçulmano se nós mesmos não somos racionais? Não leva a
nada simplesmente declarar que "todos nós adoramos o mesmo Deus".
Todos nós não adoramos o mesmo Deus, e nada atesta esse fato com
tanta eloquência como nossa longa história de derramamento de sangue
devido à religião. Mesmo dentro do islã, xiitas e sunitas não conseguem
sequer concordar em adorar o mesmo Deus da mesma maneira, e por
causa disso matam uns aos outros há séculos.
Parece profundamente improvável que consigamos curar as
divisões no nosso mundo através do diálogo inter- religioso. Os
muçulmanos devotos estão convencidos — tanto quanto você — de que
a religião deles é perfeita e que qualquer desvio leva diretamente ao
inferno. É fácil, claro, para os representantes das principais religiões se
reunirem ocasionalmente e concordarem que deveria haver paz na terra,
ou que a compaixão é o fio que une todas as religiões do mundo. Mas
não há como escapar do fato de que as crenças religiosas de uma pessoa
determinam, de modo único, suas opiniões sobre a utilidade da paz, ou
sobre o significado de um termo como "compaixão". Há milhões —
talvez centenas de milhões — de muçulmanos que estariam dispostos a
morrer para não permitir que a versão de compaixão adotada por você
ganhe terreno na península Arábica. Como pode o diálogo
inter-religioso, mesmo no nível mais elevado, reconciliar visões de
mundo que são fundamentalmente incompatíveis e, por princípio,
imunes a revisões? A verdade é que realmente tem muita importância
saber no que acreditam bilhões de seres humanos, e por que eles
acreditam nisso.

CONCLUSÃO

Um dos maiores desafios da civilização no século xxi é que os


seres humanos aprendam a falar sobre suas preocupações pessoais mais
profundas — sobre a ética, a experiência espiritual e a inevitabilidade
do sofrimento humano — de maneiras que não sejam flagrantemente
irracionais. Precisamos desesperadamente de um discurso público que
incentive o pensamento crítico e a honestidade intelectual.
Nada obstrui mais esse projeto do que o respeito que concedemos à fé
religiosa.
Eu seria o primeiro reconhecer que as perspectivas de erradicar a
religião na nossa época não parecem boas. Contudo, o mesmo poderia
ser dito sobre os esforços para abolir a escravidão no final do século
xvm. Qualquer um que falasse com convicção em erradicar a
escravidão nos Estados Unidos no ano de 1775 ciecerto pareceria estar
desperdiçando seu tempo, e também correndo perigo. A analogia não é
perfeita, mas é sugestiva. Se algum dia chegarmos a transcender nossa
confusão religiosa, lembraremos deste período da história humana com
horror e espanto. Como foi possível que as pessoas acreditassem em
coisas assim em pleno século xxi? Como foi possível que deixassem
suas sociedades se tornarem tão perigosamente fragmentadas por idéias
vazias acerca de Deus e do Paraíso? A verdade é que algumas das
crenças que você mais acalenta são tão constrangedoras quanto aquelas
que enviaram o último navio negreiro para a América no ano de 1859
(o mesmo ano em que Darwin publicou A origem das espécies).
Está bem claro que já é hora de aprendermos a satisfazer nossas
necessidades emocionais sem adotar crenças absurdas e ilógicas.
Precisamos encontrar maneiras de invocar o poder do ritual e de marcar
as transições em cada vida humana que exigem profundidade — o
nascimento, o casamento, a morte — sem mentir para nós mesmos a
respeito da realidade. Só então o costume de criar nossos filhos para
que acreditem que são cristãos, muçulmanos ou judeus será
considerado como aquilo que ele realmente é: uma prática obscena e
ridícula. E só então teremos chance de curar as fraturas mais profundas
e mais perigosas do nosso mundo.

Não tenho dúvidas de que sua aceitação de Cristo coincidiu com


algumas mudanças muito positivas na sua vida. Talvez você agora ame
as outras pessoas de uma maneira que nunca imaginou ser possível.
Você pode até experimentar sentimentos de bem-aventurança enquanto
reza. Não desejo denegrir nenhuma dessas experiências. Gostaria de
observar, porém, que bilhões de outros seres humanos, em todas as
épocas e lugares, tiveram experiências semelhantes — mas enquanto
pensavam em Krishna, Alá ou Buda, ou enquanto faziam arte ou
música, ou contemplavam a beleza da natureza. Não há dúvida de que
as pessoas podem passar por experiências profundamente
transformadoras. E não há dúvida de que elas podem interpretar
erradamente essas experiências, e iludir-se mais ainda acerca da
natureza da realidade. Você tem razão, é claro, ao acreditar que existe
algo mais na vida do que simplesmente compreender a estrutura e o
conteúdo do universo. Mas isso não torna mais respeitáveis as
afirmações injustificadas (e injustificáveis) acerca dessa estrutura e
desse conteúdo.
É importante perceber que a distinção entre ciência e religião não
implica excluir nossas intuições éticas e nossas experiências espirituais
da nossa conversa sobre o mundo; implica sermos honestos sobre o que
podemos sensatamente concluir a partir delas. Há boas razões para
acreditar que pessoas como Jesus e Buda não estavam dizendo
bobagens quando falaram sobre nossa capacidade, como seres
humanos, de transformar nossa vida de maneiras raras e belas. Mas
qualquer investigação genuína da ética ou da vida contemplativa exige
o mesmo nível de sensatez e autocrítica que anima todo discurso
intelectual.
Como fenómeno biológico, a religião é produto de processos
cognitivos que têm profundas raízes no nosso passado evolucionário.
Alguns pesquisadores já especularam que a religião pode ter
desempenhado um papel importante ao fazer com que grandes grupos
de seres humanos pré-histó- ricos adquirissem uma coesão social. Se
isso é verdade, podemos dizer que a religião já serviu a um propósito
importante. Isso não indica, porém, que ela sirva a um propósito
importante hoje. Afinal, não existe nada mais natural do que o estupro.
Mas ninguém haveria de argumentar que o estupro é bom, ou
compatível com uma sociedade civilizada, porque talvez tenha dado
vantagens evolucionárias aos nossos antepassados. O fato de que a
religião pode nos ter servido para alguma função necessária no passado
não exclui a possibilidade de que hoje ela seja o maior impedimento pa-
ra a construção de uma civilização global.

Esta carta é o produto do fracasso — o fracasso dos numerosos e


brilhantes ataques à religião que vieram antes, o fracasso das nossas
escolas em anunciar a morte de Deus de um modo que cada nova
geração possa compreendê-la, o fracasso da mídia em criticar as abjetas
certezas religiosas das nossas figuras públicas, fracassos grandes e
pequenos que vêm mantendo quase todas as sociedades deste planeta
imersas nas suas confusões mentais acerca de Deus e desprezando
todos os que têm confusões diferentes.
Não-crentes como eu se postam junto a você, mudos de espanto
diante das hordas muçulmanas que gritam slogans pedindo a morte para
países inteiros, habitados por pessoas vivas. Mas também nos postamos
mudos de espanto diante de você — pela maneira como você nega a
realidade tangível, pelo sofrimento que cria ao servir aos seus mitos
religiosos e pelo seu apego a um Deus imaginário. Esta carta foi uma
manifestação desse espanto — e, talvez, de um pouquinho de
esperança.
Dez livros que recomendo

1. Deus, um delírio, de Richard Dawkins


2. Quebrando o encanto: A religião como fenómeno natural, de Daniel
C. Dennett
3. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: Quem mudou a Bíblia
epor quê, de Bart D. Ehrman
4. Kingdom coming: The rise of Christian nationalism, de Michelle
Goldberg
5. The end of days, de Gershom Gorenberg
6. Freethinkers: A history of American secularism, de Susan Jacoby
7. Ilusões populares e a loucura das massas, de Charles Mackay
u
8. Por que não sou cristão" e outros ensaios sobre religião e assuntos
correlatos, de Bertrand Russell
9. God, the Devil, and Darwin, de Niall Shanks
10. Atheism: The case against God, de George H. Smith
Notas

1. Não faltam dados de pesquisas de opinião que atestam como é


profundo e real o sentimento religioso dos americanos. PEW
(www.people-press.org) e Gallup (www. gallup.com) continuam sendo
excelentes fontes para essas informações.
2. <www.editorandpublisher.com/eandp/news/article_dis
play.jsp?vnu_content_id = 1002154704. >
3. P. Johnson, A history of Christianity (Nova York: Simon 8c
Schuster, 1976), pp. 116-7.
4. Suma teológica, artigo 3 da questão 11 da "Secunda Secundae".
5. W. Manchester, A world lit only by fire: The medieval mind and
the Renaissance (Boston: Little, Brown, 1992), passim.
6. F. G. Wood, The arrogance of faith (Nova York: A. A. Knopf,
1990), p. 59.
7.72% dos americanos aprovam que se coloquem os Dez Mandamentos
em lugares públicos (http://pew forum.org/press/index. php?ReleaseiD=32).
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29. Muitas fontes secundárias apontam essas contradições. Um clássico
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30. National Academy of Sciences, Teaching about evolution and
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PLoS Biol 4( 5): e 167. DOI : 10.1371 /journal, pbio.0040167 (2006);
<http://biology.plosjournals.org/perlserv?request=get document&doi=
10.1371/journal.pbio. 0040167>.

Este livro é uma inestimável contribuição para a aluai batalha de


idéias entre religião e racionalismo científico. Escrito sob a forma de carta
ao leitor, sua argumentação c simples. clara e racional: e sua ambiciosa
proposta é nada iiieno> do que erradicar a religião.

"Sam Harris é um autor corajoso, inteligente e lúcido, cujo brilhante


ensaio deve ser lido por qualquer pessoa adulta que acredita que a fé
religiosa pode resolver os problemas do mundo.
D ESMOND M ORRIS , autor de O macaco nu

''Este livrinho elegante é uma lufada de ar puro. e um maravilhoso


arsenal de munição para aqueles que, como eu. não aderem a nenhuma
doutrina religiosa. Eeia e forme sua pró- pria opinião, mas não ignore sua
mensagem.'
S IR R OGER P ENROSE , Oxford University

"Uma eletrizante defesa da moralidade, da honestidade e da


humildade do ateísmo. Um texto como esse. escrito com tanta franqueza e
paixão e, ao mesmo tempo, com ponderada racionalidade, é um alento
para o leitor.
JANNA E EVI N, Columbia University

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