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Adriano Prosperi é professor emérito da Escola Superior Normal de Pisa.

Leciona, desde
2002, história da Reforma e da Contrarreforma;
Inicia sua atividade de pesquisa nos anos 60. Foi, nos mesmo anos que Carlo Ginzburg,
aluno de Delio Cantimori.
Sua principal obra é “Tribunal da consciência. Inquisidores, confessores, missionários”.
Nela o autor apresenta sua interpretação do processo através do qual a hegemonia católica
teria se afirmado na Itália entre os séculos XVI e XVII; A sua tese e a de que a Igreja teria
se servido não apenas da repressão para essa afirmação, mas sobretudo da persuasão e do
“governo” das consciências, sobretudo através do tribunal da Inquisição. Esse “governo”
das consciências seria, segundo Prosperi, bastante eficiente e capilar, principalmente
graças à subordinação da confissão às exigências da Inquisição. O sucesso desse modelo
de controle das consciências permitiu que o Papado estabelecesse sua soberania sobre a
sociedade italiana;
Atualmente seus interesses de pesquisa se concentram na história cultural e da vida
religiosa no início da época moderna;
***
Considerando que 1) a reflexão que o historiador empreende acerca da história é movida
pelas questões e dilemas de sua própria época; 2) e levando em conta também que o
estudo do passado é determinante para que se possa lançar uma olhar mais crítico a
respeito do presente;
Apresento a vocês a série de obras da artista portuguesa Paula Rego intitulada "Aborto".
Rego buscou com esse trabalho mostrar sua indignação perante a abstenção dos
portugueses ao referendo realizado em 1998 sobre a descriminalização do aborto. Como
vocês podem ver, as obras buscam transmitir o sofrimento de mulheres que praticam o
aborto numa clandestinidade imposta pela proibição legal. Em 2007, o aborto foi
legalizado em Portugal.

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O milagre e a ciência
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O batismo transforma o nascimento em um fato da cultura. A ele é atribuído o poder de
“dar a alma”.
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Percepção da vida como percurso dotado de um início, de um desenvolvimento, e de uma
conclusão natural, que não podia ser antecipada pela violência.
A partir do século XV as crianças sem batismo aparecem ao lado dos justiçados e suicidas,
justamente as categorias de defunto excluídas do sepultamento ritual;
A ameaça de sobrevivência dos espíritos insaciados e vingativos tornou-se ainda mais
grave com o fortalecimento da função protetora do batismo;
Assim, era inevitável que as crianças mortas antes do batismo aparecessem como
presenças maléficas;
O peso dessas presenças negativas somou-se ao sentimento de culpa nos casos dos
infanticídios mais ou menos deliberados;
230
No sistema dos pecados estava previsto o infanticídio como culpa que podia ser absolvida
com penitências mais ou menos pesadas;
Ao lado do sacramento da penitência ministrado segundo as normas canônicas, havia
vestígios, contudo, de outras formas de administração do sentimento de culpa, atuando
simultaneamente com as instituições legítimas;
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A Inquisição não foi suficiente para extirpar totalmente tais práticas, paralelas às
“oficiais”, tão fortes eram suas raízes;
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Trata-se de formas (que Prosperi chama de “arcaicas”...mas não sei se o termo é
adequado, mas de todo modo, formas concorrentes) de eliminação da culpa, interceptadas
pela nova disciplina eclesiástica;
Essas práticas eram exercidas por peregrinos que diziam possuir o poder de garantir o
perdão de pecados ocultos;
A paróquia tridentina e o tribunal da Inquisição romana passaram a perseguir
sistematicamente esses intermediários religiosos não autorizados, e a canalizar as culpas
e os remorsos das famílias para a confissão sacramental;
Voltando à obsessão pela presença ameaçadora e agourenta dos espíritos dos defuntos.
Prosperi afirma que essa obsessão persistiu por longo tempo;
A sua persistência, na cultura da Europa protestante, pode estar relacionada à extinção
luterana do purgatório;
Já nos países católicos, o catolicismo tridentino, regularizando e difundindo a imagem do
mundo dos defuntos ordenada em continentes estáveis, deixou alguns sem residência fixa;
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É interessante constatar que, a experiência corrente das famílias, a expulsão do paraíso,
mencionada pela cultura eclesiástica, assumia concretamente o aspecto de uma exclusão
da terra consagrada no cemitério cristão. A angústia dessas famílias se fazia notar,
portanto, pela pânico causado pela possibilidade de uma exclusão do sepultamento ritual;
Properi dedica muitas das páginas seguintes ao milagre da criança morta que ressuscita
momentaneamente para receber o batismo, e se vê, assim, livre da impiedosa condenação
ao inferno; A prática difundiu-se por toda a Europa e perdurou durante alguns bons longos
séculos; Nas cidades que aderiram à Reforma a prática foi repudiada e proibida; A
Inquisição, por seu lado, não tomou medidas efetivas e sistemáticas para coibir a prática,
que encontrou uma expansão massiva;
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Prosperi afirma que é preciso levar em consideração a importância do sepultamento;
243-4
Havia preferência pelo batismo ministrado pelos padres católicos do que por aqueles
reformados, pois era considerado mais eficaz; A eficácia consistia no exorcismo,
rigorosamente eliminado do rito reformado e, pelo contrário, parte essencial do católico.
A expulsão dos espíritos malignos guardava uma profunda relação com o sentimento de
impureza e com os perigos ligados ao percurso do recém-nascido da não existência para
a vida;
Para as culturas ditas “folclóricas”, segundo Prosperi, o sepultamento em solo consagrado
era a passagem fundamental para transformar o espírito maléfico e insaciado do morto
em integrante da classe protetora e pacificada dos defuntos de família;
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Contudo, denúncias, investigações e condenações pelas autoridades eclesiásticas
anunciavam a intervenção de uma cultura científica e racionalista, que vinha se afirmando
inclusive dentro do clero. O que os fiéis viam como o milagre da ressureição (os bebês
defuntos renasciam para receber o batismo), o clero mais esclarecido suspeitava de
embustes de maliciosos exploradores da superstição ou, no máximo, de casos de morte
aparente;
Há até mesmo registros de intervenções cirúrgicas em mulheres grávidas que morriam
(durante o parto ou não) para “dar a alma à criatura”.
Uma intervenção cirúrgica poderia prevalecer sobre a natureza e impedir que o inferno
tragasse o ser que não tivera sequer tempo de viver.
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Esses precedentes ganharam atualidade no clima do rigor sacramental pós-tridentino.
O que acabou por estimular a prática e torna-la recorrente.

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Foi a técnica da cesariana que obteve maior êxito.
Contribuiu também para a disseminação da prática o fato de que a plena humanidade
jurídica do feto decorria da definição de ser provido de alma – por mais distante que
estivesse o final de sua gestação;
Assim, a cesariana se tornou o meio de extrair as “criaturas” do ventre materno e batizá-
las a tempo, “dando-lhes, portanto, alma”;
248
Exigia-se das mães aceitar prontamente e sem resistências o sacrifício da vida, pois o
matrimônio tinha como justificativa a finalidade de dar filhos ao Céu. Trata-se de uma
doutrina fundada sobre uma ideia precisa da função materna, mas também devedora da
tradicional misoginia eclesiástica e das mais novas noções sobre o desenvolvimento da
vida intrauterina;
O procedimento cirúrgico obteve rápido e amplo sucesso no mundo católico, trazendo a
promulgação de disposições precisas a respeito, e a criação de comissões encarregadas de
controlar sua execução.
Assim se alcançou a união entre teologia e ciência médica sob a égide do Estado.
Consolidada a noção da vida como continuum desde a concepção, a salvação da alma
do feto levava a uma intervenção no corpo da mulher grávida
Em tal contexto, como sustentaria Johann Peter Frank, o fundador da moderna
“polícia médica” (isto é, aquela que se tornaria a colossal construção política da
“saúde pública”), era o Estado que devia assumir a defesa dos “cidadãos que ainda
estão encerrados no útero materno”;
249
Se antes do século XVIII se aceitava a divisão entre os “inocentes” que morriam batizados
e as “criaturas” sem alma como um dado incontestável, devido aos progressos da
medicina e às mudanças no campo da teologia, agora era possível transpor esse limite. A
condição social das “criaturas”, como o filho de Lucia, foi modificada, ao mesmo tempo
em que se acionava um aparato especial de vigilância sobre as mães sem marido. Tudo
girava em torno de uma palavra: a alma;
250
Mas o que era a alma para Lucia e seus contemporâneos?
251
Trata-se, em primeiro lugar, de uma terminologia nascida no pensamento antigo e
assumida pelo cristianismo europeu;
Para o horizonte mental da época em que Lucia viveu a metafisica era o campo de
investigação supremo e decisivo. A teologia continuava a ocupar o ápice do sistema das
ciências e permeava todos os seus níveis.
A natureza da alma humana era objeto de discussão entre teólogos e filósofos.
252
Prosperi se propõe a buscar compreender o modo de pensar que levou os juízes de Lucia
a tomarem sua decisão e Lucia a padecê-la;
O problema da alma fora considerado sob diferentes pontos de vista: como indagação
perplexa sobre as origens da vida do ser humano; como angustia pelo fim, sendo esse o
mais difundido. A alma teve como principal campo de observação a morte;
253
Na Universidade de Bolonha ensinava-se a investigar a alma partindo de textos de
Aristóteles. Ensinava-se que cada homem possuía uma alma destinada a permanecer
individual, mesmo após a separação do corpo. Assim, a alma funcionava como a mais
forte e imediata expressão do sentimento de individualidade;
256
A definição do ser humano considerado sob a perspectiva da morte se estabeleceu no
binômio do corpo em dissolução e da imagem evanescente do ser outrora vivo.
257
Platão estabeleceu para os séculos futuros os termos e conceitos que tornaram possível
pensar a alma como entidade superior ao corpo. A cristandade primitiva se apropriou
dessa tradição platônica. No mundo do final da Antiguidade, a alma foi representada
como um hospede delicado, um habitante temporário do corpo, pronto a se separar dele
para retornar ao mundo superior;
258
Quanto à promessa evangélica de um reino dos céus, trata-se de um argumento,
originalmente ausente no mundo religioso hebraico, que deu base à nova religião;
259
No cristianismo, a vida do além sempre foi o tema central;
260
E nos primórdios encontramos a obra fundadora de são Paulo. Na primeira epístola aos
Coríntios, são Paulo deteve-se longamente na ressurreição de Cristo como fundamento
da fé cristã, e dela extraiu consequências e observações para a futura ressurreição dos
seres humanos;
261
Diante de controvérsias referentes a determinadas passagens do texto de são Paulo,
Orígenes optou pela interpretação que abria o caminho da vida eterna para todos os seres
humanos;
262
Igualmente acolhida pela Igreja foi a tese de são Jerônimo, que oferecia a todos a
esperança do juízo final e a todos a perspectiva da vida eterna;
Os textos de são Paulo deixaram como herança ao cristianismo uma oposição radical entre
corpo e alma que só podia se resolver pela dissolução do corpo. A partir daí a oposição
entre vida do corpo e vida da alma tornou-se o tema fundamental da cultura cristã.
Foi assim que se desenvolveu de forma cada vez mais penetrante um sistema de
instituições e de valores simbólicos centrado no destino individual após a morte;
263
Contudo, no século XVI, a negação da imortalidade da alma conquistou direito de
presença na alta cultura e o conflito se desenrolava nas salas de aula das universidades;
264
Um momento crucial desse embate de ideias foi o decreto aprovado em 1513 pelo
Concílio lateranense V, que obrigou os filósofos a dobrarem seus ensinamentos às
exigências da apologética. O decreto, promulgado em forma de bula papal, ordenava aos
filósofos que, em suas aulas e especulações sobre as hipóteses da eternidade do mundo e
da mortalidade da alma individual, lembrassem de apresentar aos seus ouvintes, com
todos os meios possíveis, a verdade da religião cristã.
A análise da alma como tema de investigação filosófica e cientifica teve de prestar contas
à teologia enquanto ciência dominada pelas Ordens religiosas;
265
Ainda assim, assomavam-se especulações e reflexões sobre a alma, que se tornavam
dominantes na cultura italiana e europeia entre o final do século XV e o início do século
XVI. Surgiu a Academia platônica, reunida em Florença ao redor de Marsílio Ficino, que
definiu o homem como alma racional, sendo o corpo apenas seu instrumento. Na
“Epístola ao gênero humano” Ficino dirige um apelo para que seus leitores
reconhecessem o ente divino que os habitava e se empenhassem em separar a alma do
corpo para poder contemplar sua divindade, ocultada e aviltada pelo invólucro físico;
271
Assim se acentuava a divisão entre a miséria física e moral do corpo humano, escravo do
pecado e da morte, e extrema espiritualização da ideia de alma e de Deus;
273
Contudo, muito brevemente os teólogos e a Igreja tiveram de entrar em acordo com uma
corporação cujo prestígio só crescia, o dos médicos. O saber médico e o saber teológico
não podiam se permitir um conflito. Era inevitável procurar um entendimento no campo
que mais importava, o do conhecimento e cura da alma;
277
Havia porém uma contraposição clara entre a cura dos corpos e a cura das almas. E a
função do médico era regulada por normas eclesiásticas que lhe exigiam antepor a cura
da alma à das afecções do corpo. O ponto fundamental de oposição entre vida terrena e
vida eterna era exatamente o relativo à condição da mulher grávida e ao possível conflito
entre a vida da mulher e a de seu rebento;
279
A legislação canônica da Igreja medieval previa uma graduação variada de penas
espirituais a serem aplicadas nos casos de aborto. Nesse campo se desenvolvia uma
cultura jurídica e médica a serviço de um controle estatal com pesadíssimas sanções;
280
Medicina, direito e teologia participavam simultaneamente da formação de
dispositivos penais e de estruturas de controle;
281
Em 1558 Sisto V promulga a bula Effraenatam, documento que exprimia em seu rigor
toda a intransigência monástica e inquisitorial de seu autor.
282-3
A violenta ofensiva moralizante do papa pareceu excessiva aos sucessores de Sisto V,
que modificaram muitas de suas diretrizes, inclusive a referente ao aborto. Já com o papa
Gregório XIV restabelece-se a distinção entre a fase anterior e a fase posterior à animação
do feto. Mas enquanto isso, persistia o sinal de uma guinada do papado, agora
decidido a legislar com dureza no campo da moral sexual e da prática médica: a
excomunhão para os procurantes abortum iria ressurgir, e passado algum tempo,
afirmar-se-ia definitivamente;
Porém, a presença do poder da Igreja nesse campo já estava confinada a uma zona
marginal, desde que o Estado de apoderara do controle sobre o infanticídio. O tipo de
preparo que os confessores passaram a receber para tratar as práticas abortivas é prova
disso;
284
O que importava para os confessores não era tanto a distinção entre animado e
inanimado, e sim a dimensão interior da intenção. Isso indica o quanto, no campo
do aborto e do infanticídio, o poder de comando moral da autoridade eclesiástica
havia recuado perante a presença invasora do Estado;
Por outro lado, na realidade italiana e católica, os pronunciamentos da autoridade
eclesiástica influíram na cultura científica. A Bula de Sisto V teve um efeito intimidador
sobre os médicos;
A ortodoxia pós-tridentina, valendo-se dos préstimos que o aristotelismo era capaz de
oferecer, argumentou pela alma como sopro vital, suplantando a tese da alma racional
(que alguns supunham ausentes na vida uterina);

285
A cultura médica da época, mesmo considerando os que mais respeitavam as autoridades
eclesiásticas e a disciplina tridentina, mantinha ainda uma firme distinção entre feto
animado e não animado, o que permitia o recurso a práticas abortivas;
286
O médico que realiza sangrias em mulheres grávidas para interromper a gestação é uma
figura que comparece nos autos do processo contra Lucia Cremonini. Havia se passado
mais de um séculos das proibições de Sisto V;
Contudo, no prazo de poucos anos, a intervenção médica para interromper a
gravidez tinha passado do plano da prática corriqueira e defensável para o âmbito
das coisas que se fazem mas não se dizem. Era um resultado da campanha conduzida
pela Igreja contra o aborto e o infanticídio: uma campanha na qual o papel mais
ativo coube aos confessores;
Modificava-se substancialmente a forma de considerar as “criaturas”;
287
O que no decorrer dos séculos XVI e XVII influenciou a ideia que se tinha da
passagem do ser humano desde o embrião informe até o indivíduo completo: a
definição dogmática da imortalidade da alma individual e a luta contra a Reforma
protestante para garantir e impor o batismo às crianças;

***

343-4
Obrigação de se ministrar o batismo às crianças;
Desconforto cultural: situar na classe dos mortos quem não vivera;
Impossibilidade de dar nome e sepultura a um ser que perdera a vida logo ao nascer;
Não lhe era reconhecido o direito de uma identidade individual
345
16 de janeiro de 1710 reuniu-se o conselho criminal. O processo de Lucia havia chegado
ao fim. E em 22 de janeiro é feita a leitura e execução da sentença;
346
Doutor Marco Venturini, incumbido de decidir o processo, condenou Lucia Cremonini à
pena do suplício máximo, a ser aplicada mediante a forca.
A pena capital era infligida para punir um crime capital e dar o exemplo.
347
O corpo de Lucia não foi sepultado, e sim entregue às aulas de anatomia pública. Essas
aulas eram um grande espetáculo para o povo que lotava a praça durante o carnaval.
Prosperi a partir de então se entrega a uma reflexão a respeito da preparação e execução
de um homicídio como ato de justiça.
348
É preciso, antes de tudo, entender as relações de força e as dinâmicas sociais da Justiça.
Compreender qual seria o significado das execuções públicas nas sociedades do Antigo
Regime. Os intelectuais da Ilustração combateram seu uso e discutiram sua legitimidade
com argumentos que levaram os governos esclarecidos a aboli-la;.
Mas afinal o que sustentou sua prática nos séculos de história daquela cultura cristã que
tanto investira na exploração da natureza humana?
E o que se percebe é a força de persuasão dessa forma de punição e sua capacidade de
sustentar as estruturas profundas da vida coletiva
350
Prosperi se serve da folha trazida por um discípulo da Irmandade de Santa Maria da
Morte. Três homens da irmandade visitaram Lucia na véspera de sua execução. E nessa
folha o discípulo teria registrado tudo o que aconteceu. E como os consoladores deviam
interrogá-la sobre seus sentimentos e prepará-la para enfrentar a morte, são
principalmente os indícios e expressões de seu estado de espírito que se encontram
registrados.
352
A principal pergunta a que os consoladores deviam responder referia-se ao estado de
espírito do condenado. Deviam interrogar acerca de suas “maiores tentações”. Todo o
empenho deles consistia em afastar o ânimo do condenado dessas tentações – desespero,
vergonha, desejo de vingança – mostrando-as como diabólicas para impedir a salvação
da alma. Contudo, mesmo no interior da cultura teológica, começava a se firmar a ideia
de serem aqueles sentimentos naturais, sem necessidade de intervenções do demônio.
Pouco tempo depois mandaram imprimir nas fichas o termo “paixões” no lugar de
“tentações”.
353-4
A respeito de Lucia é dito: “não teve tentação alguma, mas totalmente resignada com a
vontade de Deus”. Logo se confessou e comungou. A mulher “se recomendou caridade
aos circunstantes”. Caixinhas para esmolas circularam entre os presentes e o dinheiro
seria destinado a pagar missas a serem celebradas.
Trata-se do sinal de uma ligação que os vivos se empenhavam em manter com Lucia após
sua morte. A privação da vida passava para um segundo plano, simples forma de salvar a
verdadeira vida: a condenação perdia o significado de exclusão da comunidade humana
355
Lucia se mostrava “totalmente resignada com a vontade de Deus”. Indagaram-na sobre
os assuntos da fé e se demonstrara “bem informada sobre o necessário para a confissão e
outras coisas concernentes à saúde das almas”. A candidata que se oferecia à inspeção
dos instrumentos de consolação estava bem preparada e colaborava integralmente. Lucia
revelou uma insuspeitada experiência nos assuntos da devoção ao rezar o terço e
acrescentou uma devoção especial: sete Pai-Nossos e sete Ave-Marias para as dores da
santa Maria Virgem e de são José.
356
Descobriu-se que estava inscrita nas ordens do Carmo e de Rosário, ordens reservadas à
sua idade e à sua condição.
Nas laterais da Piazza Maggiore foram afixados a tempo os cartazes impressos com a
notícia da execução e o convite para o comparecimento da população.
As autoridades queriam que a execução lograsse seu efeito educativo e assustador, e por
isso estimulavam de todas as maneiras a afluência em massa à grande praça- 356;
357
Aos pés do patíbulo dirigiu-se ao povoe o burburinho da multidão demonstrava comoção
e piedade pela vítima.
364
Apesar da ruptura da unidade do cristianismo ocidental na época da Reforma protestante
e da Contrarreforma católica continuava firme e inconteste o postulado da entrega do
destino da alma imortal ao juízo de deus, a última e imperscrutável instância onde buscava
refúgio a necessidade humana de justiça.
366
Na cultura cristã a morte tornou-se um fim a ser almejado, como passagem da existência
terrena à vida eterna. Devia-se aprender a morrer também para legar ao outro um modelo
exemplar de morte cristã.
367
A morte cristã podia representar a verdade da vida de duas maneiras opostas, a revelação
e a revolução. Revelação do decreto da predestinação e revolução como mudança possível
até o último instante. Um traço distintivo que permaneceu no fundo de todas as diferenças
históricas e sociais da maneira cristã de morrer foi a noção da verdade final como algo
capaz de contrariar toda a vida pregressa. Para o cristão até o final havia a possibilidade
de escolher o caminho certo, de se confiar a Deus e gozar os frutos da redenção. Foi assim
que a preparação para a morte passou a ocupar espaços cada vez maiores da experiência.

Os consoladores de Lúcia e a nobreza de sua instituição – 368;


369
Havia razões que sustentavam e garantiam a importância da irmandade na sociedade
citadina: consolidavam-se na função exercida pelos seus membros visando a integrar e
apoiar as ordens políticas e sociais existentes, tendo como efeito a legitimação dos
poderes públicos;
370-1
A irmandade da morte: seu traço distintivo era a prática de acompanhar os condenados
ao patíbulo. Para entender por que o cadafalso foi tomado como um problema específico
e importante entre tantos outros da sociedade da época.
Iniciador desse movimento devocional, frade dominicano Venturino de Bergamo, no
século XIV. Atravessou a Itália e seu séquito portava mantos em que havia o símbolo da
pomba branca carregando folhas de oliveira. Significava uma mensagem de paz. Alegoria
do bom governo de Ambrogio Lorenzetti: uma figura feminina trajando uma túnica alva
e segurando um ramo de oliveira. Três anos depois da passagem de Venturino por Siena.
372
Frei Venturino refletindo sobre o problema da conversão dos pecadores: não era difícil
convertê-los, difícil era torná-los perseverantes e impedir que voltassem a praticar o mal.
Teve a ideia de organizar uma grande peregrinação a Roma, acolhendo todos aqueles
pecadores arrependidos. O frei sonhava com uma espécie de renovação geral da Itália sob
a égide da paz.
373
A peregrinação coletiva foi acolhida com desconfiança.
As palavras do movimento eram três: penitência, paz e misericórdia. A paz e a
misericórdia, aspirações tradicionais no mundo cristão medieval, assumiam uma nova
configuração ao se referirem a realidade dos marginais e perturbadores da vida civil.
374
Eis que surgiu a ideia da cruzada: remover a um só golpe o inimigo da fé que pressionava
as fronteiras da Europa cristã e os inimigos internos, violentos e malfeitores,
transformados em cruzados.
A cruzada de Venturino seria dos criminosos, levados a Terra Santa para morrer por
Cristo.
Removidos os responsáveis pelos distúrbios e pela criminalidade, a vida das cidades
italianas recuperaria a tranquilidade.
Havia no projeto do frei uma preocupação de ordem pública, somada ao anseio de salvar
a alma desses mesmos criminosos.
375
Tal como Cristo, pondo-se no lugar de Cristo, o condenado a morte via-lhe oferecida a
transformação de sua morte vergonhosa e dolorosa em um sacrifício voluntário para si e
para os outros. O convite para lembrar a paixão de Cristo, que frei Venturino dirigia aos
condenados, apoiava-se na sólida base de um dado fundamental e constitutivo do
cristianismo: a crucificação. O deus dos cristãos tinha sido um condenado à morte. Os
ritos da religião não deixavam de repisar constantemente esse dado original: a ideia de
que o sangue do condenado guardava alguma relação com o sangue de Cristo pairava
sobre os ritos de justiça.
Parei aqui!!
Cabia ao sacramento da eucaristia, por meio do rito da missa, segundo Inocêncio III,
restaurar a paz entre Deus e os homens, mas também pacificar os homens entre si; a ele
os homens deviam recorrer para viver pacificamente nas cidades; assim se entende o
esforço, no momento em que a legislação eclesiástica impunha aquele sacramento na
prática social para controlar a custódia mais zelosa não só da hóstia, mas também das
formas rituais de consagração; o monopólio exclusivo do clero dos usos e conhecimentos
nesse âmbito; manter o monopólio sobre os recursos legítimos da missa; [o condenado a
morte] a condenação o expulsara da comunidade, o sangue que ele estava por derramar
era o preço visível daquele rompimento da comunhão e da paz, que devia se recompor ao
preço de sua vida; tentativa de resolver essa ruptura da unidade e da paz...converter o
condenado e proporcionar-lhe uma morte cristã, exemplar, santa; única maneira de
transformar a execução da vingança em ritual de concórdia e perdão- 376;
Catarina de Siena: influente na Itália trecentista e em toda cristandade ocidental; deve-se
a ela uma outra maneira de interpretar a condição do condenado a morte; sua contribuição
para o nascimento de uma devoção dos condenados; a consolação cristã dos condenados
- 377;
O célebre caso de Niccoló de Toldo; jovem nobre de Perugia condenado a morte em Siena
por razões políticas – 379;
Tratava-se de uma condenação injusta, vivida com uma recusa total; há sinais de uma
ousada identificação entre o sangue do justiçado e o sangue do Cristo, condenado inocente
por definição; Niccolò aceita morrer porque naquele momento encarna a pessoa de Cristo,
torna-se Cristo – 380;
Na exaltação mística da transformação da figura do condenado na figura de Cristo estava
presente o risco de uma inversão cristã da realidade mundana. O poder político não podia
tolerar uma ameaça desse gênero. Já a própria contraposição potencial entre condenação
jurídica e absolvição sacramental despertava resistência. É célebre o caso do rei Carlos
VI da França, que negou aos condenados a permissão de confessar os pecados a um
sacerdote; temor de que a absolvição sacramental se afigurasse como uma negação da
sentença do soberano- 381;
Persistiu latente o conflito entre os dois poderes e suas respectivas exigências contrárias,
que levaram, de um lado, a execração do condenado e, de outro, a sua redenção espiritual
e promoção potencial a mártir ou santo; praticava-se a consolação para partilhar dos
méritos daquela "virtude expiadora", ou para aperfeiçoar o próprio preparo para a morte;
nova sensibilidade em relação ao problema da morte que se percebe após a peste negra;
transformação das irmandades "amplas" de tipo popular, em "escolas" ou entidades
"restritas", pequenas associações dedicadas ao exercício da caridade em relação aos
moribundos, e em especial aos condenados, como obra de aprimoramento espiritual - 382;
O que se procurava era a experiência do efeito pacificador da morte cristã do condenado;
as ordens laicas, as quais a religião oficial reservava um papel secundário, passaram a
reivindicar uma nova liberdade de ascensão também religiosa; a irmandade que estava no
centro da religião ideal da caridade transformou-se em instituição; em suas igrejas a
prática da caridade se consolidou e estimulou o corpo social a dar vazão às energias dos
voluntários das novas devoções - 384;
A religião do perdão virava totalmente as costas às formas de controle dos
comportamentos por meio de sanções canônicas no exato momento em que a Justiça como
instrumento do poder estatal avançava naquele campo; de fato, o modelo de irmandade
de assistência aos condenados teve de recortar para si um espaço no quadro da Justiça
como repressão estatal da criminalidade - 385;

A paz que comunidade buscava, eliminando o elemento que a perturbava, devia ser
completada com a reconciliação do membro rebelde; tendo isso em vista o problema
passou a ser entre a justiça terrena e a justiça terrestre; apesar dos esforços em manter a
separação entre o ofício do consolador e o dos juízes e carrascos...resultou em uma
legitimação dos mecanismos mundanos da Justiça- 385;
O vínculo entre justiça e graça encontrou sua verificação e validação no exercício da
caridade como vontade fraterna de perdão e ajuda entre os homens; a invenção do
purgatório projetou no além a estrutura do cárcere como local de correção e regeneração;
o objetivo de uma nova forma de exercício da caridade...transformar o criminoso em um
cordeiro disposto a verter seu sangue pela salvação da própria alma e para o bem da
comunidade; tudo isso resultava no fortalecimento da ordem citadina e no aumento de
prestígio de suas instituições - 386;
Mudanças profundas...memória dos mortos como parte essencial da comunidade tinha
sido, durante séculos, o próprio fundamento da vida social; "memória" é o termo que
identifica o caráter fundamental da cristandade europeia; até que o lugar central da
memória passou a ser ocupado pela historiografia como certificação do verdadeiro - 388;
Surgimento de uma historiografia hebraica moderna e o declínio da memória coletiva;
houve mudanças nas relações entre memória e história no campo mais vasto da cultura
europeia; os processos de deslocamento e controle da memória na época do ressurgimento
da historiografia antiga e da ideia clássica da fama reservada aos homens ilustres
atingiram profundamente a ordem dos poderes e a legitimação de seus fundamentos;
apenas as memórias hagiográficas que passaram pelo crivo da verificação documental
puderam ser acolhidas e ratificadas no novo calendário católico - 389;
A memória indelével, para o cristianismo tradicional, era a divina: dela se esperava o
ressarcimento para os injustiçados e a punição para os maus; mas outro traço fundamental
é também a solicitação a Deus para que esqueça os pecados dos homens; o perdão como
anulação da memória; no rito da execução consolada buscou-se um encontro similar entre
justiça e misericórdia; a garantia do perdão divino concedido à alma do delinquente
justiçado...extinguia o sentimento de medo que cercava sua figura, devido à ameaça
representada por seu espírito vingativo...permitindo que a sombra do justiçado deixasse
de perseguir os vivos; para chegar a tal resultado era preciso converter o condenado;
recomendações presentes na literatura de consolação: era preciso evitar qualquer
referência ao passado - 390;
...impedir o contato com familiares; substituir o confessor convencional por um outro;
evitar tudo que pudesse reconduzi-lo a sua identidade anterior; projetado rumo ao futuro
da vida no além; condenado que resistisse à conversão...era preciso explicar a ele que sua
resistência era uma tentação do demônio; tentação mais recorrente...contra a
sentença...por ser injusta ou iníqua; os consoladores extraiam seus argumentos dos
Evangelhos; como Cristo continuava a ser o modelo do injustamente condenado,
apresentava-se aos condenados a moral do "sermão das montanhas"- 391;
O núcleo originário da obra dos consoladores, o que constituía a essência da alma
caridosa: o enterro dos corpos dos condenados em solo consagrado; a morte na forca, a
exposição do corpo, a falta de sepultura eram infamantes; meticulosas normas sobre os
modos e locais dos sepultamentos ocupam grande parte dos testamentos; modifica o
cânone das obras de misericórdia; surgem os grupos laicos que se associam para garantir
um sepultamento adequado - 392;
O caráter terrivelmente punitivo de um aspecto tradicional da condenação à morte: a falta
de sepultura; foi aí que se inseriu a oferenda caridosa das irmandades a todos os pobres
que corriam o risco de não receber um funeral cristão; e a oferenda foi estendida ao limite
extremo, aos mortos pela Justiça; essa consolação do condenado não deixou de entrar em
atrito com os diferentes desígnios do poder; com o desenvolvimento dos aparatos estatais
e a institucionalização das irmandades de consolação, a oposição entre o mandamento
bíblico e evangélico e a práxis do poder estatal se tornou intolerável - 393;
A justiça do príncipe pediu e obteve o reconhecimento da sanção religiosa; aos
condenados que protestavam porque se considerarem inocentes, tornou-se habitual
responder que a justiça do príncipe era comandada diretamente pela justiça de Deus;
houve reflexos na oferenda fundamental das irmandades: o sepultamento sem infâmia dos
corpos dilacerados; houve o embate com as exigências do poder de uma justiça
terrificante, baseada no "esplendor dos suplícios"; ainda restava um conflito entre a
condenação terrena e a salvação cristã, que se manifestava no modo de tratar o corpo do
condenado - 394;
O caso de Lucia Cremonini comprova o esgotamento quase completo da eficácia do pacto
da morte consolada; de sua parte houve uma adequação espontânea ao modelo do perdão
e à esperança de salvação cristãos, mas o seu corpo, como o da criança que ela matara,
sofreu a vergonha da falta de sepultura – 395;

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