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É comum nos debates com apologistas católicos ouvirmos o argumento de que eles têm o

magistério infalível, enquanto os protestantes tem apenas a sua própria opinião falível como
fonte de confiança a respeito do depósito da fé. Uma página católica afirmou:

O valor da Tradição, Magistério e Escrituras (instrumentos) provém de Cristo (autoridade). É


nisso que a Igreja crê.

O protestantismo histórico afirma que enquanto a Escritura, por ter sido inspirada pelo Espírito
Santo, é infalível, o magistério e a tradição, por não terem sido inspirados, não são infalíveis. Por
isso, afirmamos que somente a Escritura é uma autoridade infalível. Os católicos retrucam que
a Escritura precisa ser interpretada (o que é verdade) e o cânon precisa ser identificado (o que
é verdade). Dessa forma, precisamos de uma outra autoridade infalível além da Escritura que
nos diga qual é o cânon e qual é a correta interpretação. Os católicos tem esta autoridade, nós
não. Eles podem ter certeza, nós não.

O problema óbvio desse argumento é que ele desconsidera algumas questões básicas:

(1) Como saber qual magistério é verdadeiro, haja vista que há diferentes Igrejas
reivindicado ser a certa? Na verdade, este questionamento começa bem antes ao identificar
qual a religião correta. Porque deveríamos começar com a afirmação arbitrária de que existe um
magistério infalível? É preciso antes empreender uma investigação para saber se o magistério
existe, e em caso afirmativo, qual dos candidatos é o verdadeiro.
(2) O católico pode responder a pergunta acima fazendo um argumento circular (o
magistério romano é verdadeiro porque ele diz que é) ou apelando as outras fontes como a
Escritura e/ou Tradição. O problema é que ele se depara com a mesma pergunta. Como saber
qual tradição é a verdadeira entre todos os candidatos? Como identificar o cânon bíblico? Os
católicos talvez não percebam que ao apelar a tradição ou Escritura, eles estão como intérpretes
falíveis interpretando a Escritura ou a tradição.

A única forma de o católico responder as questões acima é fazendo uma investigação própria
das alegações feitas por diferentes tradições/igrejas/religiões. A menos que ele recorra a um
argumento circular, esta investigação dependerá totalmente do julgamento falível de alguém.
No fim do dia, todos nós somos intérpretes falíveis em busca da verdade.

Ele (Magistério) leva aos fiéis interpretações e decisões infalíveis, tal como o Espírito Santo que
o guia.

Há um problema – todo apelo ao magistério como definidor da verdade é um apelo falível.


Quando os apologistas católicos afirmam “a Igreja disse”, eles estão apenas afirmando aquilo
que eles interpretaram falivelmente. Pegue por exemplo o lema “não há salvação fora da Igreja”.
Qual a interpretação correta? A tradicional que excluía os membros de outras confissões ou a
moderna que inclui estes membros? Não por acaso, há grupos tradicionalistas e modernistas
lutando entre si para definir quem tem a interpretação correta. Esta diversidade interpretativa
do magistério romano é amplamente reconhecida pelos acadêmicos católicos. Cardeal Dulles
afirma que diferentes correntes interpretam os textos do Concílio Vaticano II de formas diversas
(veja AQUI http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/ratzinger_bento/). Raymond Brown
(um dos maiores eruditos católicos do século XX) diz:

Essencial para uma interpretação crítica dos documentos da igreja é a percepção de que a Igreja
Católica Romana não altera sua posição oficial de forma direta. As declarações passadas não são
rejeitadas, mas são citadas com elogios e depois reinterpretadas ao mesmo tempo. (Raymond
Brown, “The Critical Meaning of the Bible” New York, NY: Paulist Press ©1981, Nihil Obstat and
Imprimitur, page 18 footnote 41)

Se a Igreja reinterpreta seus dogmas ao longo do tempo, como fez no caso da salvação fora da
Igreja, que segurança o católico romano pode ter de estar acreditando na interpreta correta?
Há outros problemas. O magistério católico romano é bastante ineficiente. Ele só se manifesta
infalivelmente em ocasiões muito especiais. Ademais, ninguém sabe ao certo qual exatamente
é o cânon das declarações infalíveis do magistério. O leigo católico precisa definir o que é ou não
vinculante para todas as épocas. Os apelos a tradição carecem da mesma definição. Qual o
cânon da tradição? Qual o seu conteúdo exato? A apologética católica, quando apela aos Pais
da Igreja por exemplo, está apenas apelando as suas próprias interpretações falíveis, pois o
magistério nunca definiu infalivelmente como um determinado teólogo antigo deve ser
interpretado. A respeito da Escritura, a coisa não é muito melhor. Há alguma tradução bíblica
infalível? Há um comentário bíblico infalível? Quantos versículos já foram interpretados de
forma definitiva pelo magistério? As respostas variam, mas todos concordam que foram muito
poucos. Até mesmo o conceito correto de tradição está em disputa. Há os que dizem que a
tradição legítima é aquela que foi ensinada pela Igreja em todas épocas, já outros afirmam que
a tradição se desenvolve e que pode assumir diferentes significados nas diferentes eras.

*Então, se nem tudo é infalível na Tradição, somente algumas partículas a serem selecionadas,
o varão que “garimpa” a verdade em meio ao que não tem valor obrigatoriamente deve ser ele
mesmo o agente infalível! Ora, se assim não for, não há como estar certo de que é a Verdade
mesma que se extrai – se ele for falível, poderá errar e assumir como Verdade o que não é.

Se o comentário acima estiver certo, o cristianismo (mesmo católico) acaba de ser refutado. Já
que todos nós partimos de uma investigação falível, o resultado do argumento seria um niilismo
filosófico. Se a infalibilidade é uma condição necessária para se chegar à verdade, segue-se que
é impossível para os fiéis católicos estarem com a verdade. Este argumento também levaria a
uma regressão infinita, na medida em que precisaríamos do intérprete A, depois B que
interpreta A, e C que interpreta B ....... Obviamente, Jesus e os Apóstolos não pensavam assim.
Eles ensinaram a pessoas simples e sem instrução, ainda assim supunha que sua mensagem
poderia ser corretamente compreendida pelo ouvinte. Esta mensagem foi escrita, sendo hoje a
melhor fonte para sabermos o que o filho de Deus pregou no séc. I. Jesus responsabilizou os
fariseus (autoridades falíveis) por interpretarem corretamente a Lei. A implicação é que
podemos compreender corretamente a Palavra de Deus. A página católica argumenta que o
sistema romano não é circular:

*Aqui temos uma inferência grosseira sobre o que vem a ser a crença católica. Não, amigos,
quem confirma a autoridade do Sagrado Magistério, da Sagrada Tradição e das Sagradas
Escrituras não são eles próprios de forma circular...

-É Cristo!-

Cristo enviou os apóstolos para batizar, e ENSINAR TODAS AS NAÇÕES, TODOS OS DIAS ATÉ O
FIM DO MUNDO (Mt 28,19-20).

É impressionante que eles não perceberam que para validar todo o sistema estão apenas
recorrendo a uma interpretação falível de um texto bíblico. Vejam a circularidade. Cristo afirmou
X na Escritura. Mas como se sabe que o X afirmado na Escritura é verdadeiro? Porque o
magistério e/ou tradição disse. Mas como sabemos que o magistério e/ou tradição são
verdadeiros? Porque a Escritura diz X. Eles responderam a uma acusação de circularidade
apelando a outro argumento circular. Além disso, é extremamente pobre num debate
apologético apelar à autoridade de sua própria Igreja, quando esta autoridade não é
reconhecida pelo outro lado. É preciso antes estabelecer a validade desta autoridade para só
então fazer uso dela. Ademais, nenhum estudioso da Escritura afirmaria que é possível
estabelecer a validade da Igreja Romana apelando somente à Bíblia. Existem diversas premissas
ocultas deste argumento que precisariam ser provadas.

Ora, amigos, se a Tradição e o Magistério, inspirados pelo Espírito que receberam do próprio
Cristo, não detém a autoridade necessária para a definição do cânon e a correta interpretação
das Escrituras, os protestantes no ato do livre exame são infalíveis?

Há uma enorme confusão a respeito de autoridade e infalibilidade aqui. Há várias autoridades


instituídas na Escritura que não são infalíveis (a família e o Estado por exemplo). A própria Igreja
Romana está na maior parte do tempo exercendo apenas uma autoridade falível, haja vista a
excepcionalidade do magistério infalível. É neste sentido que a tradição, quando definida como
o ensino histórico da Igreja, é uma autoridade falível. Pegue o exemplo de teólogos importantes
do passado como Aquino e Agostinho. Ao apelarem a eles para validar sua tradição, os católicos
estão apelando a autoridades falíveis.

O argumento católico também sofre de diversos problemas históricos. Mesmo de um ponto de


vista romano, a primeira manifestação infalível do magistério só ocorreu séculos depois dos
apóstolos. Como a Igreja sobreviveu nos séculos II e II, quando os Apóstolos já haviam morrido?
Não havia ninguém ensinando “infalivelmente”. Tenhamos em mente que a infalibilidade da
Igreja romana depende em última instância da infalibilidade do bispo Romano. Contudo,
ninguém no primeiro milênio da Igreja acreditou que o bispo de Roma fosse infalível. O jesuíta
espanhol Luis Bermejo afirma ao comentar a monumental obra de Brian Tierney sobre as origens
da infalibilidade papal:

Que eu saiba, ninguém parece ter desafiado a alegação de Tierney de que todo o primeiro
milênio é totalmente omisso sobre a infalibilidade papal e que, portanto, a alegação do
Vaticano I sobre as raízes iniciais da doutrina é difícil de ser mantida. Praticamente a única
objeção de alguma substância levantada contra Tierney parece ser sua interpretação dos
decretistas do século XII: o dogma futuro do Vaticano I está implicitamente contido neles?
Mesmo depois de admitir, por uma questão de argumento, algo que Tierney não admitiria de
forma alguma, o formidável obstáculo do primeiro milênio permanece intocado. Na minha
opinião, seus críticos dispararam suas armas contra um alvo secundário (os decretistas e
teólogos medievais), deixando de lado o silêncio perturbador do primeiro milênio. Ninguém
parece ter sido capaz de acrescentar qualquer prova documental para mostrar que esse longo
silêncio era ilusório, que a doutrina era - pelo menos implicitamente - já conhecida e mantida
nos primeiros séculos. Não é fácil ver como uma dada doutrina pode ser mantida como sendo
de origem apostólica, quando mil anos de tradição não fazem eco a ela de forma alguma. (Luis
Bermejo, Infallibility on Trial [Westminster: Christian Classics, 1992], pp. 164–165)
Ademais, o Espírito Santos é prometido a todos os cristãos, e isto obviamente não implica em
infalibilidade de todo cristão individualmente. Dessa forma, temos razões lógicas e teológicas
para afirmar que podemos chegar às verdades cristãs sem a necessidade de outras autoridades
infalíveis além da Escritura, que, de fato, levaria a uma regressão infinita de autoridades. Além
disso, se existisse um magistério infalível, este não poderia ser o de Roma, na medida em que é
incapaz de garantir que a Igreja permaneça na doutrina correta. É totalmente estranho ao Novo
Testamento a ideia de que uma Igreja local teria alguma carisma especial de infalibilidade. Pelo
contrário, boa parte das Epístolas foram escrituras para advertir a respeito do processo de
apostasia de Igrejas locais. A nenhum bispo posterior aos Apóstolos foi prometido tal coisa. O
que se vê são severas advertências contra a apostasia, e nenhuma autoridade infalível a ser
seguida é apontada.

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