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A ÚLTIMA ENTREVISTA DE FREUD

FREITAS, Adir Freire.

Nesta emocionante entrevista1, vemos a figura extraordinária de Freud já velho,


absolutamente cônscio de sua dignidade humana e, portanto, de suas fraquezas. Um homem acima
do comum e, no entanto, teve que não só lidar com as próprias contradições e ambiguidades ao
longo da vida, mas também combater a vida inteira os preconceitos daqueles que mais facilmente se
adaptaram a uma ordem artificialmente construída mediante a qual pudessem conter suas pulsões
auto-destrutivas, muitas vezes, em detrimento do outro.

Talvez seja esta a razão pela qual ele mesmo mostra pouca satisfação em saber que seu nome
irá mais adiante que ele, que sua fama atingirá o próximo distante que ele jamais conheceu e que,
afinal de contas, nunca o compreenderá, pois como disse o poeta “à mente apavora o que ainda não
é mesmo velho”.

Freud impingiu sobre o homem moderno, juntamente com Rousseau, Marx e Nietzsche, ao
meu sentir, golpes dolorosos contra o homem moderno cheio de fé e razão, inclusive, na sua
autossuficiência. Antes, Freud valoriza as coisas certamente prazerosas que são consideradas
prosaicas como nessas singelas palavras que dizem muito: “Vez ou outra, encontrei um ser humano
que quase me compreendeu”.

O famoso judeu vienense enfrentou dificuldades diversas para chegar onde chegou com a
bagagem inestimável da sabedoria e da serenidade, por isso fala da vida e da morte tão
desassombradamente e discorre sobre esta última de modo gentil e delicado, valendo-se de imagens
e metáforas caras ao homem crente: “Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais
desagradável à medida que envelhecemos”, e: “todo ser vivo...anseia pelo Nirvana” e ainda: “anseia
pelo seio de Abraão”. Um homem que, até onde se sabe, de ciência e não de fé. Um homem,
todavia, esperançosamente sensato.

Freud sabia, talvez, pelo seu profundo conhecimento da cultura judaica, que a ideia de um
homem imortal é tão indesejável quanto a descrença na eternidade para um judeu, isso porque o
homem sofre de um mal-estar que lhe é inerente. Em O mal-estar da civilização afirmou:
“poderemos, talvez, nos familiarizar com a ideia de que algumas das dificuldades existentes [da
civilização em nos tornar felizes] estão intimamente ligadas à sua essência e não se renderiam a

1
Entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. Extraído do texto integral do
volume Psychoanalysis and the Fut número especial do “Journal of Psychology”, de Nova Iorque, em 1957.
nenhuma tentativa de reforma” (p.70).

Se, de fato, habita em nós este impulso para a vida e este impulso para a morte e estes
representam forças que se opõem e se equilibram mutuamente, como Freud crê, seria incompatível
com seu pensamento ou ingênuo supor que seria bom irmos contra a natureza, ou seja, ir contra a
morte!

Para Freud, e nesta entrevista isso está implícito, a própria vida em sociedade, o próprio
mal-estar do homem moderno decorre da luta entre o amor, princípio de vida e criação, e o ódio que
destrói e mata, daí porque, ao meu sentir, a psicanálise é uma forma de levar o homem a enxergar-se
em toda sua beleza e miséria.Usando uma linguagem mais contemporânea, Freud sabia que na
natureza existe ordem e desordem entrelaçados; este é o método da vida, de que nos fala Edgar
Morin.

A ideia de que há em nós um instinto de morte, tão criticada por alguns, parece ser mais uma
ferida no hiperindividalismo romântico do homem moderno, já que, um olhar histórico, nos obriga a
considerar a hipótese freudiana, no mínimo, como plausível. Por outro lado, acredito que seja sim
apenas um modo que Freud encontrou usando um jogo de linguagem específico, para expressar
aquela sábia serenidade diante da morte que demonstram os mais vividos, para onde estamos todos
inevitavelmente indo.

É este homem, eminente, famoso e respeitado em todo o mundo, que fala com absoluta
clareza dos percalços que teve que enfrentar ao longo de sua vida, seja como profissional da
medicina, seja como o grande crítico do homem moderno. Como poderia, então, não defender a
psicanálise de uma apropriação institucionalizante por parte daqueles contra os quais teve que lutar
para estabelecê-la e dignificá-la como um saber rigoroso e metódico, apesar de heterodoxo em
relação ao paradigma de ciência da época?

E mais: como poderia ele, conhecendo, ainda que em parte, as ilimitadas potencialidades do
ser humano, negar aos interessados em tornar-se analista, colocando sobre eles, as fôrmas com que
tentaram emoldurá-lo e ele mesmo as recusou? Ora, a posição de Freud a este respeito era única:
“Alguns dos meus melhores discípulos são leigos”.

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