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A importância dos Discursos Parlamentares de Almeida Garrett

Tiago André Moreira Pereira

Docente: Fernando Moreira


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Cultura Portuguesa - 1º ano - 2º semestre
Doutoramento em Ciências da Cultura
Julho 2017
Índice

Introdução --------------------------------------------------------------------------------------------- 3

1. O período histórico que precede e onde se insere a vida e obra de Almeida Garrett ----- 4

1.1 Desenvolvimento histórico na Europa e em Portugal ------------------------------------ 5

1.2 O estudo de Ofélia Paiva Monteiro --------------------------------------------------------- 9

1.3 Garrett - o Homem e o Autor Patriota ----------------------------------------------------- 12

1.4 Direitos Humanos, Liberalismo e Educação --------------------------------------------- 15

1.5 Romantismo e Nação ----------------------------------------------------------------------- 20

1.6 Discursos Parlamentares ------------------------------------------------------------------- 23

Conclusão -------------------------------------------------------------------------------------------- 32

Referências Bibliográficas ------------------------------------------------------------------------- 33

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Introdução

Um trabalho de pesquisa e desenvolvimento teórico apresenta-se, sempre, como um


desafio. O desafio levanta a dúvida que permitirá chegar a uma conclusão.
Este trabalho desenvolve sobre um dos mais distintos autores da História e Cultura
Portuguesa, cuja obra está para além da literatura, ainda que essa, tenha sido a sua notoriedade
mais enfatizada. Por tal, evoca um cariz histórico de enorme profundidade tão importante
numa nova etapa da História da Nação Portuguesa. É então, indissociável a cultura e a história
quando se elabora e apresenta um estudo sobre Almeida Garrett.
Para quem considera que já tudo foi dito em relação ao autor, desengane-se, pois nem
Ofélia Paiva Monteiro partilha dessa opinião. Falar de Garrett é, por si só, um desafio.
Talvez a manchete mais divulgada seja: Garrett - o introdutor do Romantismo em
Portugal, pois assim começa nas coletâneas escolares. Mas que Romantismo está patente na
obra do autor? Qual a importância que o Romantismo garrettiano trouxe à sociedade e
literatura portuguesa?
O objetivo deste trabalho é através de várias reflexões, tentar uma aproximação ao
autor, cada vez mais lúcida, rica e complexa, tal como o seu legado histórico.
Deve ter-se em conta o período histórico que precede o autor. A revolução estrutural,
sobretudo Europeia, serve de mote a tão vincada personalidade, num país muito abalado.
Ao longo do trabalho evidencia-se e relaciona-se qualidades e influências tanto do
período histórico como do revolucionário português que marcou e contribuiu, de forma
inequívoca, para a história de uma das maiores nações mundiais do período moderno, que vai
decaindo até à Revolução Liberal (1820), altura em que recupera novamente.
É na Contemporaneidade, contudo, que Garrett provoca e acompanha a agitação
político-social do século XIX, que estaria na origem da democracia atual.

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1. O período histórico que precede e onde se insere a vida e obra Almeida Garrett

João Baptista da Silva Leitão que mais tarde viria a acrescentar os dois apelidos com os
quais se notabilizou (Almeida Garrett) nasceu no chamado “século das luzes”, século XVIII, a
4 de Fevereiro de 1799 e desaparece em 1854.
O consagrado autor português, do século XIX, viveu um período de revolução e
transformação política e social sem precedentes na Europa, período esse que originou o atual
estado democrático e livre das nações europeias.
O “renascimento” do ser humano como indivíduo consciente e moderno é colmatado, se
quisermos, “com a passagem das trevas para a luz”, quase uma alusão à mitologia grega, da
fénix que renasce das suas próprias cinzas. As trevas representadas por um período no qual a
Igreja impôs um poder absoluto - desde a Idade Média até ao século XVIII. A luz, depois do
século XVIII, denominado “século das luzes”.
O Iluminismo, movimento cultural histórico da Idade Moderna, caracteriza-se por uma
re-configuração dos valores culturais, crenças e políticas, que teve lugar na histórica cidade de
Paris. França era já o “farol” cultural da Europa e viria a solidificar esse facto com a
Revolução Francesa (1789), um dos principais acontecimentos da civilização ocidental
moderna.
O Iluminismo foi um movimento de reação ao absolutismo europeu, que tinha como
características as estruturas feudais, a influência cultural da Igreja Católica, o monopólio
comercial e a censura das “ideias perigosas”.
Surge a primeira rutura com Deus, com a Igreja, do homem moderno. Deus deixa de ser
o criador. O homem passou a ser o criador do seu destino. O Homem Científico, iluminista,
defendia a liberdade religiosa e a criação de escolas para que o povo fosse educado.
Uma das obras de grande impacto deste movimento foi a Enciclopédia (impressa entre
1751 e 1780), uma obra composta por 35 volumes, na qual estava resumido todo o
conhecimento existente até então. O Iluminismo viria a desencadear o triunfo do Liberalismo
que se instala depois da Revolução Francesa.

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1.1 Desenvolvimento histórico na Europa e em Portugal

No sentido de destacar a vida e obra de Almeida Garrett perante o impacto na sociedade


daquele período histórico e posteriormente, deve fazer-se uma enunciação histórica (ainda que
breve), desde o século XVII, até à Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820:
• Inglaterra das revoluções do século XVII - uma nação de forte alvoroço político-social
influenciado por obras e ideais de grandes pensadores renascentistas, como William
Shakespeare e Francis Bacon - o homem que introduziu a tradição empirista e que defendia
que “conhecimento é em si mesmo um poder” (Bacon 1825: 209);
• A Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776;
• A Revolução Francesa (1789 - 1799) foi um período muito conturbado, de intensa
agitação política e social não só na França, mas em todo continente Europeu, com a
sociedade a derrubar os poderes da “elite” absoluta (monarcas; aristocratas e clero);
• Bloqueio Continental - Em 1806, grande parte da Europa estava sob o domínio de
Napoleão Bonaparte, que se tinha tornado imperador Francês, em 1804. A Inglaterra era o
único obstáculo à consolidação do império do Napoleão e, em 1806, este decreta o
encerramento dos portos de todos os países europeus ao comércio inglês. Portugal decidiu
não seguir as ordens de Napoleão, para não quebrar a aliança com a sua velha aliada -
Inglaterra. Como consequência do desrespeito pelo Bloqueio Continental, Portugal foi
invadido pelos franceses que com o apoio e consentimento de Espanha, invadiu o território
luso sem nenhum obstáculo; 1
• Portugal era um país em crise, maioritariamente rural e pobre (manifestando o
analfabetismo), e em 1807, foi invadido pela primeira vez pelas tropas francesas
Napoleónicas. A família real e um número privilegiado do clero e da nobreza refugiam-se
no Brasil;
• As tropas francesas roubaram e queimaram o país. Os ingleses vieram ajudar o povo
português, com algum êxito, mas ficaram a dominar os cargos mais importantes do país nas
trocas com o Brasil, dominadas pela corte real portuguesa;
• A ideologia resultante da revolução francesa “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”
agita os povos Europeus que vivem sob um regime absolutista;

1 Silveira, Bárbara (2013). A implementação do liberalismo em Portugal. Internet. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/BarbaraSilveira9/a-implantao-do-liberalismo-em-portugal, (consultado em 19/06/2017)
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• Em 1810, as invasões tinham acabado, porém, a Família Real e a Corte Portuguesa
não tinham desejo de regressar a Portugal;
• O Reino Português ficou mais pobre e desorganizado com as invasões francesas e
com as batalhas para os expulsarem;
• Surgem os movimentos anti-napoleónicos e os levantamentos populares da Península
Ibérica contra Napoleão;
• Constituição de Cádis - Espanha (1812);
• Os Ingleses não saíram de Portugal e controlavam quase todo o comércio com o
Brasil, o que prejudicava muito os comerciantes portugueses;
• Surge o Movimento Revolucionário Liberal com dois objetivos primários:
a) Expulsar os Ingleses de Portugal;
b) Obrigar o rei a regressar do Brasil;

A sede de justiça e a vontade de estabelecerem direitos iguais para todos na sociedade


desencadeiam os primeiros confrontos:
➡ Em 1817, o General Gomes Freire de Andrade tentou expulsar os Ingleses mas a
estratégia militar foi descoberta e foram mortos;
➡ Em 1818, um grupo de homens do Porto formam uma sociedade secreta - o Sinédrio
- encabeçada por Manuel Fernandes de Tomás, que tinha como objetivo preparar a revolução,
que viria a ser bem sucedida em Agosto de 1820.

Consequências da Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820 2


‣ Os Ingleses foram finalmente afastados de Portugal;
‣ Os Revolucionários criaram um Governo Provisório - a Junta Provisional de Governo
do Reino - que preparou e realizou as primeiras eleições em Portugal (ainda no mesmo ano),
e de onde foram escolhidos os representantes para as Cortes Constituintes de 1821;
‣ O objetivo central das Cortes Constituintes foi elaborar uma Constituição baseada nos
princípios da “igualdade” e “liberdade” dos cidadãos (o “eco” da Revolução Francesa). A
Constituição de 1820 estabelecia que todos eram iguais perante a lei qualquer que fosse a
sua origem e a sua riqueza destituindo, assim, os privilégios da nobreza e do clero;
‣ Extinção da Inquisição e liberdade de imprensa;

2 Gomes, Maria (2012). Revolução Liberal Portuguesa de 1820. Internet. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/mariafimgomes/revoluo-liberal-portuguesa-de1820, consultado em (19/06/2017)
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‣ O rei D. João VI regressa a Portugal e a 1 de Outubro de 1822 jurou com toda a
solenidade a Constituição Portuguesa, dando lugar em Portugal a uma Monarquia
Constitucional ou Liberal;

É nas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes, também chamadas de Soberano


Congresso, cortes que elaboraram a Constituição de 1822, que devemos procurar as raízes
históricas da Assembleia da República. 3
Os representantes da nação foram eleitos através do sistema eleitoral consagrado na
Constituição Liberal Espanhola de Cádis, de 1812, apenas com algumas adaptações à
realidade portuguesa.
Na Constituição de 1822 ficaram consagrados os princípios ligados aos ideais liberais
da época: princípios democrático, representativo, da separação de poderes e da igualdade
jurídica e respeito pelos direitos pessoais.
As Cortes de 1822 eram formadas por uma só câmara, eleita por um período de dois
anos, por sufrágio direto, secreto e sem caráter universal, já que não podiam votar, entre
outros, os menores de 25 anos (com algumas exceções referentes aos militares ou a cidadãos
casados com mais de 20 anos), as mulheres, os "vadios, os regulares e os criados de servir".
Para se ser eleito deputado era necessário poder-se sustentar através de "renda
suficiente, procedida de bens de raiz, comércio, indústria ou emprego".
Os três poderes políticos - legislativo, executivo e judicial - são rigorosamente
independentes e o poder legislativo é atribuído às Cortes, em exclusivo, embora sujeito à
"sanção Real", instituto semelhante ao da promulgação das leis.
Depois da morte de D. João VI, em abril de 1826, D. Pedro IV outorga a Carta
Constitucional, onde ficam instituídas as Cortes Gerais, compostas pela Câmara dos Pares e
pela Câmara dos Deputados; nomeia 72 pares do Reino para constituir a 1.ª Câmara e
determina a realização de eleições nos termos da Carta, vindo a abdicar, pouco tempo depois,
para a sua filha, a futura Rainha D. Maria II.
A Carta Constitucional consagra, como representantes da Nação, o Rei e as Cortes
Gerais e procura um compromisso entre os ideais liberais expressos na anterior Constituição e
as prerrogativas reais.

3 Parlamento Português. A Monarquia Constitucional (1820-1910). Internet. Disponível em: https://


www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/AMonarquiaConstitucional5.aspx, consultado em (23/06/2017)
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O período da legislatura passa para quatro anos, tendo a sessão legislativa a duração de
três meses prorrogáveis pelo Rei.
O poder legislativo continua a pertencer às Cortes mas a Carta Constitucional atribui ao
Rei um poder de veto efetivo, sanção real, com efeito absoluto.
Esta alteração, relativamente ao estatuído na Constituição de 1822, é uma das
consequências da adoção, pela Carta Constitucional, da teoria dos quatro poderes: o
legislativo, o executivo, o moderador e o judicial. O poder moderador, neutro, pertenceria ao
rei enquanto "Chefe Supremo da Nação".
A iniciativa legislativa, direito de proposição, pertencia indistintamente às duas
Câmaras ou ao poder executivo, ainda que indiretamente.
O Rei, no exercício do seu poder moderador, passa a ter o poder de dissolver a Câmara
dos Deputados.
A Carta Constitucional deixou de vigorar em maio de 1828, data em que D. Miguel
convocou os três Estados do Reino que o aclamaram rei absoluto.
O país viria a enfrentar novo sobressalto político-social com a Guerra Civil Portuguesa
[ou Guerras Liberais] travada entre liberais constitucionalistas e absolutistas, sobre a sucessão
real que durou de 1828 a 1834. Em causa estava o respeito pelas regras de sucessão ao trono
português face à decisão tomada pelas Cortes de 1828, que aclaram D. Miguel I - o absolutista
- como rei de Portugal e Algarves.
Após a derrota de D. Miguel I, nas Guerras Liberais, este foi despojado do estatuto de
realeza e as Cortes declararam que o então, já ex-infante D. Miguel e todos os seus
descendentes ficariam para sempre excluídos da sucessão ao trono português e sob pena de
morte caso regressassem a Portugal.
Teria mais dois períodos de vigência: de agosto de 1834 (data da saída de D. Miguel do
país) até à Revolução de Setembro de 1836 (que, como vimos, restaurou a Constituição de
1822 até à aprovação da Constituição de 1838) e de janeiro de 1842 até Outubro de 1910.

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1.2. O estudo de Ofélia Paiva Monteiro

Almeida Garrett (1799-1854), liberal convicto, evolui da “ideologia das Luzes” e da


disciplina formal clássica para o Romantismo através de uma crise favorecida pelas
circunstâncias históricas portuguesas, que lhe exacerba a subjetividade e o faz
progressivamente atentar na complexidade do homem e da sociedade (Monteiro 2006: 45).
O estudo, trabalho e contribuição [ensaios] de Ofélia Paiva Monteiro surgem como a
visão mais aproximada e disponível, ao qual podemos aceder tanto online como em suporte
físico. É, seguramente, a pessoa viva “mais próxima” do autor português.
A professora, investigadora e coordenadora da edição crítica da vida e obra de Almeida
Garrett através da Universidade de Coimbra, coordena uma equipa de vários investigadores
nacionais e estrangeiros, cujo projeto é publicar, até 2020, mais algumas obras no seguimento
das que já foram publicadas, relativas a Garrett.
Este sub-capítulo serve, exatamente, para elucidar isso: - Quem foi Almeida Garrett, aos
“olhos” (escrita, pensamentos) desta investigadora?

Lendo e descobrindo a vasta documentação e dedicação de Ofélia Paiva Monteiro ao


autor Almeida Garrett é como abrir uma “porta de acesso” ao interior de um dos autores mais
distintos na História Portuguesa; distinto, não só pelas obras de literatura e teatro, mas pelo
cunho pessoal que transmitia em cada uma delas e pela intervenção cívica, que tão
destemidamente realizou no período delicado da democracia pós-revolução liberal.
Considerando que as temáticas de Deus, da natureza e do homem constituem um vetor
fundamental no seu percurso, Ofélia Paiva Monteiro acentua a importância que esse vetor
assumirá durante mais de trinta anos em toda a produção de Garrett, refletindo-se em textos
de natureza bem diferente e de alcance díspar (Marinho 2012: 280).
A juventude de Garrett absorve os valores transmitidos pela “ideologia das Luzes” e
pela Revolução Francesa. A herança racionalista do Iluminismo promovem o ímpeto de
Garrett na procura da conciliação entre arte, política e moral, para uma sociedade que lutava
pelo regime liberal a partir da década de 1820, ano da revolução liberal em Portugal.
Garrett um aficcionado das ideias liberais, combateu o absolutismo, dentro e fora do
país, participando na luta e resistência. O exílio, o desempenho de funções diplomáticas e
outras atividades, obrigaram-no a residir alguns anos em Inglaterra, na França e na Bélgica.

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Maduro e algo desiludido pela sequência dos acontecimentos e pela atuação de alguns
homens de Estado, contrapõe um universo mais crítico, mais desassombrado, que se atualiza
na sua produção, instaurando-se um equilíbrio entre o seu percurso pessoal e a construção das
personagens romanescas ou dos seus longos poemas - Camões e D. Branca (Marinho 2012:
280).
Apesar da “imagem” do autor estar associada, pelo sistema educacional contemporâneo,
a obras de grande envergadura literária dramática e romântica, o seu legado é evidente em
áreas distintas como a arte, política, legislativa e social.
Não estava Garrett tão preocupado quanto Herculano em dar uma imagem
aparentemente fidedigna da história, descrevendo o vestuário, os movimentos políticos e
económicos ou a topografia das cidades, estava sim apostado em usar o passado de modo
conveniente, como refere Ofélia quando escreve que o autor, a propósito de Frei Luís de
Sousa, pretende “falar ao povo, no ‘democrático’ século XIX, através de um drama que lhe
oferecesse o espelho útil onde se mirasse a si e ao seu tempo” (Monteiro 2010: 104).
A consciência de que “a ficção histórica não estando obrigada à verdade absoluta
permite ao ficcionista interpretar a existência passada, infletindo-a, com as escolhas que faz,
para significados que têm a ver consigo e com o seu tempo” (Monteiro apud Marinho 2012:
224), permite reler, dinâmica e modernamente, os escritos de Garrett (Marinho 2012: 280).
A análise que Ofélia Paiva Monteiro faz das várias obras, em cada um dos grandes
capítulos em que se divide a coletânea atual do autor é perentória no que concerne à interação
entre o indivíduo e a nação, à crença nos valores de cidadania e da liberdade, à importância
que é conferida à educação e a conciliação do prazer e da virtude. A fluidez do mundo íntimo,
aliada à recusa do seguimento rígido de escolas e ao “à-vontade narrativo com que Garrett se
exibe como autor nas suas ficções” (Monteiro 2010: 49) facilita o exercício de um estilo que
ajuda a construir um universo ímpar (Marinho 2012: 281).
É através dos estudos publicados que se conhecem as qualidades humanistas de Garrett:
alguém que tem uma preocupação social, que é contra a pena de morte e que defende a cultura
como um direito acessível não só à aristocracia, mas ao povo em geral. Um homem que vive e
conhece de perto tanto os agregados aristocratas e nobres, como o mundo rural, onde a
natureza e o analfabetismo se evidenciam pelas suas qualidades simplistas, mas não menos
importantes aos olhos do autor.

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Seguindo os registos da ensaísta fica mais fácil conhecer o homem e o método literário
que está por detrás das grandes obras da literatura portuguesa:
De Frei Luís de Sousa salienta-se a importância da conjuntura política, o nacionalismo, a função
pedagógica, o papel da história, a par de um estudo minucioso e fundamental da peça, através das suas
personagens, diálogos e representações; das peças em um ato, menos conhecidas do público,
sublinham-se os ingredientes que agradam ao gosto popular, numa exaustiva apresentação de todas
elas (Marinho 2012: 281).

A autora, no estudo sobre Viagens na minha Terra, salienta a grande maturidade irónica
de Garrett ao analisar o tempo português, as vicissitudes políticas ou a recuperação do
“espírito nacional”. Centrando-se na charneca ribatejana e no Vale de Santarém, Garrett
centra-se também, a um outro nível, na comparação, ou na distinção, entre o frade e o barão,
com todas as implicações que esta dicotomia acarreta:
Percebendo o que está por detrás desta aparente e, até certo ponto, cómica distinção, o leitor infere, e
Ofélia Paiva Monteiro demonstra-o na perfeição, as consequências e as causas do devir histórico
peninsular e as recomendações que o autor, transversalmente, profere. A minúcia da análise desvenda-
nos a construção narrativa e a elaboração das personagens, que se constituem modelos de paradigmas
românticos (Marinho 2012: 281-282).

Se o cerne do conceito de modernidade está na emancipação do homem num


progressivo esforço inscrito no tempo, de auto-construção e de conhecimento do mundo em
prol da libertação de constrições estabelecidas pela tradição (nos campos religioso, moral,
político, estético), o Romantismo, na pluralidade dos aspetos que assumiu, constitui um
momento fundamental desse intrincado processo histórico, ao promover exuberantemente o
“sujeito” a instância estruturante de si mesmo e do seu contexto.
Ofélia Paiva Monteiro seleciona alguns dos temas que considera fundamentais para
estabelecer os propósitos de Garrett:
a escravatura, a questão religiosa, o capitalismo moderno, a luta pela independência grega, a oposição
entre os valores da natureza, reveladores de uma autenticidade fundamental e os da civilização
indiciadores de uma duplicidade estrutural. A ideologia que os fragmentos existentes deixam entrever
explica muitas das atitudes de Garrett e da sua intervenção enquanto parlamentar e político. As
personagens parecem concorrer para a intensificação e justificação dos dados enunciados nas
explanações do narrador (Marinho 2012: 282).

A observação é unanime para aqueles que se debruçam sobre a vida e obra de Garrett,
quando afirmam que é um autor pouco estudado ou a quem tem sido dada pouca importância,
relativamente à transformação na sociedade por ele incentivada e implícita:
A acuidade e a excelência dos ensaios trazem a lume pormenores, por vezes, esquecidos, sublinham a
importância da obra de um dos grandes construtores da modernidade em Portugal e ensinam a ler. É
difícil afirmar que sobre um autor nada mais há a dizer, mas de Garrett muito pouco os estudos de
Ofélia Paiva Monteiro deixam em claro (Marinho 2012: 282-283).

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1.3 Garrett - o Homem e o Autor Patriota

Uma das características do autor - transversal a todos os investigadores - é o


patriotismo; qualidade que surge do Romantismo e não de Almeida Garrett. A modernidade
poética instaurada pelo Romantismo é vincada na obra de Almeida Garrett:
Se se fizer um levantamento lexical, quer nos artigos garrettianos publicados no jornal coimbrão O
Patriota, quer nos textos que virão a ser incluídos na compilação da obra lírica, encontramos um uso
frequente de substantivos como pátria, liberdade, virtude, patriotismo, cidadão, igualdade, nação, bem
como de outras expressões, de conotação francamente pejorativa, como servo, escravo, tirania, tirano,
despotismo (Bernardes 2011: 123-124).

Victor Hugo enunciou no prefácio do drama Hernâni (1831): “o Romantismo é o


liberalismo na literatura” [e] a um “povo novo” tem de dar-se uma “arte nova” (Monteiro
2006: 46).
Garrett demonstrou ao longo da sua vida que a grande meta do país deveria ser a
autorregeneração, trabalhando e impondo os grandes princípios cívicos: liberdade, igualdade e
fraternidade; princípios esses, herdados e trazidos para Portugal pelas invasões francesas
(como falado anteriormente). É no sustento desses direitos que sempre considerou a sua
criação literária, focada na liberdade que permite o crescimento do homem:
[...] ele vê então na Liberdade a via para a conquista da virtude e do bem-estar pessoal e social, via
“doce” e fácil - julgava - por dar resposta às solicitações inatas da razão e do coração do homem
natural (sonhado “bom” com Rousseau), cuja revitalização esperava do novo regime. Na militância
empenhada a que se entrega, colocando-se em conflito com a opinião maioritária do País, apegada à
ordem velha, a criação literária torna-se uma vertente importante da “praxis” cívica: “O poeta é
também cidadão; e os talentos e ciências inúteis ou porventura prejudiciais seriam ao bem do estado,
se a seu melhoramento e cultura não contribuíssem (Monteiro 2006: 47).

O autor português era um acirrado humanista que defendia os direitos humanos com a
sapiência da sua consciência e o tamanho do seu coração. A sua dedicação e devoção, ao
próximo, descreve-o como um “homem do mundo”, acessível a toda a gama de classes
sociais. É através da escrita que ao revelar o seu modo profundamente romântico, verbaliza a
sua identidade, onde pessoa e nação se fundem. Numa auto-observação, das muitas
encontradas, ele revela no “Prólogo” da sua obra Viagens na minha Terra:
[...] ele não faria o que faz se não juntasse [...] o profundo conhecimento dos homens e das coisas, do
coração humano e da razão humana; se não fosse, além de tudo o mais, um verdadeiro homem do
mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no campo com os homens de guerra, no gabinete
com os diplomáticos e homens de Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as
notabilidades de muitos países - e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo, com
as elegâncias e com as fatuidades do século (Monteiro 2006: 55).

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O autor não abdica, nunca, dos valores da sua formação clássica, nem aceita ser incluído
numa escola; um dos aspetos que mais explorou no Romantismo foi precisamente o
individualismo que foge a regras e prescrições. A singularidade poética no nosso Romantismo
tantas vezes enfático, das grandes obras da maturidade de Garrett provém precisamente do
cumprimento total dado a esse voto:
ao equilíbrio e à simplicidade aliam a agilidade formal requerida pela expressão a dar à visão moderna
do mundo, problemático e instável, mostrando o homem como um ser contraditório, que se esconde
atrás de máscaras, e a sociedade como um suceder imparável de confrontos entre Quixote e Sancho
[...] (Monteiro 2006: 58).

O poeta ao ser cidadão também tem por dever debruçar-se sobre a pátria e dar ao seu
povo o espelho da sua identidade cultural, da sua história, da sua situação social e política:
Este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo... ou não se faz.
[...] Os poetas fizeram-se cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua. [...] Os sonetos e os
madrigais eram para as assembleias perfumadas dessas damas que pagavam versos a sorrisos. [...] Os
leitores e espectadores de hoje querem pasto mais forte, menos condimentado e mais substancial; o
povo quer verdade. Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico - no drama e na
novela de atualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe
está por cima, abaixo, ao seu nível - e o povo há-de aplaudir porque entende: é preciso entender para
apreciar e gostar (Garrett II 1966: 1086-87).

Vários são os autores que consideram Garrett como o percursor de um novo rumo da
literatura portuguesa: é “sob a pluma de Garrett que pela primeira vez, e a fundo, Portugal se
interroga, ou melhor, que Portugal se converte em permanente interpelação para todos
nós” (Lourenço 2000: 89). A estruturação digressiva e contrastada, ousada nos poemas lírico-
narrativos Camões (1825) e D. Branca (1826) - as duas obras que marcaram, como assinalou
Herculano em 1834, o inicio de novos rumos da literatura portuguesa (Monteiro 2006: 51).
O autor ao ser um forte defensor dos direitos humanos procurava estabelecer uma
aproximação entre o cidadão comum e a monarquia, desde que esta respeitasse a divisão
tripartida dos poderes, ou seja, o poder judicial deveria ser independente; o poder executivo
assistido por um conselho de estado; o poder legislativo estava subjugado a uma instituição de
um parlamento bicameral, sendo os representantes da nação eleitos pelas câmaras municipais:
O despotismo, ao violentar os direitos naturais do homem e os direitos historicamente adquiridos,
surgia para o autor como uma política sem pátria, ou seja, como uma expatriação. Ora, como, segundo
a máxima da Enciclopédia, sob o jugo da tirania a pátria não poderia existir, Garrett, não perdendo de
vista os excessos de certas interpretações estreitamente republicanas do velho patriotismo cívico,
aceitava que a monarquia poderia ser virtuosa e patriótica – desde que enveredasse por e respeitasse a
divisão tripartida dos poderes. Nestas condições, a destruição do modo absolutista de objetivação da
monarquia seria legítima, mas já não o seria a aniquilação do seu corpo místico, ou daquele que a
encarnava, como tinha acontecido em França. E por esse motivo o monarca – mesmo que fisicamente
fosse o mesmo indivíduo – teria de passar a ser o primeiro dos cidadãos (Bernardes 2011: 134).

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Por esse motivo, o género de herói cívico eleito por Garrett é Catão, enquanto modelo
de homem de Estado. Catão (1821) - nome da peça e do protagonista da mesma.

Catão

[…] Roma, tu dizes,


Não quer a nossa morte. Não, por certo.
Porém, que ideia formas tu da vida?
Vivem acaso em ferro os Romanos?
Não morre o homem quando vive o escravo? (…)
Que cegueira!
Libras sobre a palavra dum tirano
De liberdade esperanças? Tu confias
Tesouros de valor nas mãos do avaro! (…)
Todo o véu da ilusão se rasga em breve;
Cai-lhe o postiço manto mal seguro,
E em todo o horror da morte se descobre
Da escravidão o lívido esqueleto.
Não, de remédios tais eu não confio;
Ou liberdade, ou morte. Este é o meu voto. (Garrett 1904: 62)

A obra de Garrett evidencia a grandeza da sua vontade, da sua devoção para criar, para
conhecer e para intervir cívica e culturalmente. O herói cívico assume uma consciência quase
militante da ruína, a que o tempo pode levar a sociedade – pelo que à Revolução não foi
necessário esperar nem pelo Romantismo (o social, na melhor das hipóteses), nem pelo
Realismo/Naturalismo anatómico para sair para a rua. Dir-se-ia mesmo que, com Catão e
como Catão, Garrett procurava dar corda à História, sintoma do novíssimo aprendizado da
irreversibilidade do futuro enquanto redenção (Bernardes 2011: 139).
A par do cânone estético da época foram os problemas nacionais (mas não
nacionalistas) que levaram Garrett a ir a Roma, fazer-se Romano e voltar para Portugal,
segundo o prefácio da 3ª edição do Catão, para apresentar a virtude republicana antiga a
portugueses: “No Catão senti outra coisa, fui a Roma; fui, e fiz-me Romano quanto pude,
segundo o ditado manda: mas voltei para Portugal, e pensei de Português para
Portugueses” (Garrett 1904: 6).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 14


Segundo a análise de Joana Bernardes (2011), Catão é de elevada importância para
entender o homem, o autor político e humanista:
O patriotismo revolucionário de Almeida Garrett elege, pois, Catão para defender que a aniquilação
do Eu só é justa perante a necessidade da afirmação da totalidade cívica. E, portanto, a transgressão é
identificada com a tirania. É que o gesto de Catão não só visa desencadear efeitos civicamente
positivos, como sugere o recalcamento do desfecho tiranicídico do drama romano. A morte sacrificial
é aqui rito de regeneração nacional que se quer estender ao rei e à própria instituição monárquica. A
suprema forma do direito de resistir concretiza-se, pois, na auto-imolação como canto à Liberdade
(Bernardes 2011: 137).

É no decorrer da peça que identificamos a capacidade de re-escrever e articular o drama


antigo com o moderno, procurando evidenciar um ideal de pátria cívica nas raízes de uma
velha nação:
[...] a destruição do seu presente libertador mais contribui para a encenação do trágico e para que
somente Catão tivesse feito sentido na escrita patriótica de Garrett [...] a metrópole-pátria, de que o
herói romano será metáfora, assume-se como ator na construção da consciência e da vontade do
Outro, automutilando-se a si e dessa forma garantindo, mais do que a exemplaridade, uma etapa mais
eliminada e, consequentemente, uma História mais célere. Nesse gesto fica gravada, pois, a moderna
sensibilidade política, tal como a Península Ibérica a desenhou nas suas brancas noites liberais. Noites
brancas para que a Revelação não parasse (Bernardes 2011: 142).

Seguindo os diversos estudos garrettianos e para concluir, a obra do homem-autor


patriota é pautada por grande diversidade estilística mas não mistura os tons, fiel ao princípio
clássico da homogeneidade no interior de cada obra; no entanto, surge uma vivacidade própria
de um “revolucionário insatisfeito” de toque moderno, a enervar / agitar as classes sociais que
acompanha o ardor do revolucionarismo “filosófico” que se traduz em diversos campos.

1.4 Direitos Humanos, Liberalismo e Educação

O impacto que a História tem na evolução das civilizações é avassalador; cada período
histórico relata uma reação que, geralmente, se alastra às nações, povos e sociedades vizinhas
- veja-se o registo Europeu, numa análise diacrónica e comparativa do período das
Revoluções Liberais:
- Inglaterra das revoluções do século XVII;
- Revolução Francesa (1789), século XVIII;
- Movimentos anti-napoleónicos e os levantamentos populares da Península Ibérica
contra Napoleão, no século XIX;
- Constituição de Cádis - Espanha (1812);
- Constituição Portuguesa (1820-22);

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 15


Jean-Jacques Rosseau, Montesquieu, Voltaire são autores e pensadores do século XVIII
e defensores do Liberalismo - uma das principais influências do Romantismo.
A Revolução Francesa teve um papel preponderante na construção do corpus temático
do Romantismo. Perante o seu surgimento na Europa, a noção de liberdade criada no seu
âmbito erigiu princípios políticos e sociais sobre os quais o Romantismo se veio a edificar:
os estados passariam a ser soberanos enquanto instituições seculares que se opusessem às
reivindicações da religião, e venceria a conceção de uma sociedade que se baseasse no contrato e não
na posição social atribuída à nascença. (...) A visão da literatura também se alterou: o indivíduo
passaria a ser o potenciador da criação estética e o sentimento nacional passaria a exprimir a ideia de
que a nação era a versão coletiva do individual. Erigia-se, assim, o princípio do nacionalismo literário:
o artista seria fiel a si mesmo e ao país em que se formara (Pedrosa 2015: 50-51).

Os antecedentes remotos da Declaração da ONU (Organização das Nações Unidas) de


1948 encontram-se:
- no direito internacional e no direito humanitário dos séculos XVIII e XIX;
- em dois documentos relacionados: um ao processo histórico de mudança de poder da
França e o outro, à instituição de poder ligada à formação do Estado Norte Americano, a
saber, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e a Declaração de
Independência dos Estados Unidos, de 1776.4

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, acompanha o período da


codificação das normas jurídicas, sendo pouco anterior ao Código de Napoleão Bonaparte. O
fim do século XVIII é um momento histórico - não só para a França, mas de impacto mundial
- onde se debatem, transformam e defendem os direitos naturais, universais e absolutos do
cidadão quer nacionalista, quer europeu. É no seguimento, e manifestamente no século XIX,
que se registam fortes mudanças culturais, sociais e políticas.
Os direitos cívicos integrados na Declaração Francesa de 1789 vigoram até à atualidade,
ao lado da Constituição Francesa. Os traços comuns desta com a Declaração da ONU de
1948, como a afirmação da liberdade, da propriedade e da segurança como direitos inerentes
ao homem, o princípio da legalidade, o princípio da reserva legal e o da presunção de
inocência, a liberdade de opinião e de crença, dentre outros, são, sem dúvida, referências da
linha comum que ligam os dois documentos.5

4 5 Arzabe, Patricia e Graciano, Potyguara. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos - 50 anos. Internet. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
bibliotecavirtual/direitos/tratado4.htm, consultado em (20/06/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 16
Mas há, no entanto, algo a evidenciar: elas diferem em certas propriedades, sobretudo
devido ao seu posicionamento histórico. A observação do historiador Hobsbawm (1996) é
perentória no que toca às diferentes classes sociais, perante a famosa Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789:
este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um
manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e
iguais perante a leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções
sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’. (...) a declaração afirmava (posição
contrária à hierarquia da nobreza ou absolutismo) que ‘todos os cidadãos têm o direito de colaborar na
elaboração das leis pessoalmente ou por meio de seus representantes’. E a assembleia representativa
que ela vislumbrava como órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia
democraticamente eleita. (...) Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora
de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática, que
poderia parecer uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas. De modo geral, o burguês
liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do
constitucionalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e de
um governo de contribuintes e proprietários (Hobsbawm 1996: 19-20).

É fundamental perceber o contexto histórico que originou a revolução estrutural na


civilização ocidental moderna. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão serviu de
inspiração para o lema da República Francesa: "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" que por
sua vez influenciou povos e nações, sobretudo, do mundo ocidental.
Na primeira metade do século XIX, o liberalismo ascendia por toda a Europa. As
mudanças políticas, culturais e sociais que se impunham, impulsionavam e legitimavam
transformações na língua e na literatura, devido, não só, mas acima de tudo, a questões
nacionais identitárias que surgiam em força: “(...) a arte da primeira metade do século XIX
refletiu a vida de quem fazia e vivia os acontecimentos, através de um movimento literário
que teve no seu cerne uma proposta que era tão estética quanto política” (Pedrosa 2015: 50).
O amor pela igualdade perante a lei, sendo o fator de união e coesão social, definiria as
modernas democracias (Montesquieu 1854: 206), nas quais o interesse público deveria estar
acima do indivíduo. E, como esta é a natureza da sociedade civil, seria inata a necessidade de
representação social e de um pacto que congregasse os interesses pátrios. O que justifica a
anomalia de um regime absolutista ou tirânico, no qual o governo de um materializava a
antagónica presença dos valores prejudiciais à republica: a autossuficiência neutralizadora dos
laços sociais e, por conseguinte, a instalação do medo (Bernardes 2011: 127).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 17


O liberalismo e educação são, talvez, as grandes metas alcançadas por Garrett. Seguindo
o legado deixado por Jean-Jacques Rousseau foi através da literatura, teatro e política, que o
autor português democratizou e difundiu o pensamento que todos os cidadãos eram iguais
perante a lei e, por isso, livres para se educarem e exprimirem:
Ainda que fugi quanto pude a toda a alusão política, devo todavia observar aqui que nas mui
particulares circunstâncias em que se acha Portugal, era impossível a qualquer português que de
educação escrevesse, não se lembrar de que o maior e o mais importante negócio de sua pátria era
hoje essa mesma educação […] (Garrett 2009: 15).

A influência em Garrett de notáveis pensadores europeus clássicos como Rousseau


permite ao autor construir uma visão abrangente sobre a situação política e social europeia e
nacional, tanto histórica como no seu período de vida (século XIX); permite-lhe uma
sapiência capaz de “oferecer”, criar e implementar estruturas e obras culturais para um povo
que necessitava de se educar e renovar, para sair da mediocridade; e permite-lhe uma
capacidade de ironizar, criticar e revelar o caminho, a seguir, do povo português.
O natural é que Garrett tenha seguido a obra de pensadores, ensaístas e filósofos, que se
revelaram no florescimento do homem científico, anteriores ao século XIX, sendo o autor
português, um homem muito viajado, muito culto e muito literário.
No final do século XVI, na Inglaterra, é eleito para deputado para o parlamento
Britânico, Francis Bacon, com apenas 23 anos. Considerado um dos fundadores da ciência
moderna e mesmo tendo escrito muito menos do que gostaria, o filósofo deixou um legado
importante sugerindo que devemos seguir um rigoroso método experimental para atingir o
conhecimento - inaugurando, assim, o método empírico.
A sua ambição não era só intelectual, mas também política, tal como Garrett. Uma das
melhores referências a Bacon é: “Conhecimento é em si mesmo um poder” (Bacon 1825:
203-220). O pensamento por “indução”, para o filósofo, leva ao conhecimento. Este é o
caminho para o homem passar a usar as forças da natureza a seu favor.
A referência a Francis Bacon lembra que Garrett era acima de tudo alguém que aprendia
com o passado, ironizava o presente e idealizava o futuro. Não era um homem que procurasse
o poder para ser servido, mas um criador que trabalhava ao serviço da sua nação e do seu
povo:
a sua visão da história quebra o estático e é envolvida por uma dialética que continuamente se desvela
nos cruzamentos dinâmicos da visão do passado, da análise do presente e da prospeção do futuro,
como frequentemente se vislumbra nos seus diferentes géneros de escrita (Garrett 2009: 17).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 18


Garrett era um homem amplamente maduro, experiente e conhecedor, capaz de proferir
discursos dentro de várias áreas, sobretudo humanas. Num texto célebre da “Memória ao
Conservatório Real” a propósito de Frei Luis de Sousa (1843) o autor proferiu:
O estudo do homem é o estudo deste século, a sua anatomia e fisiologia moral as ciências mais
buscadas pelas nossas necessidades atuais. Coligir os factos do homem, emprego para o sábio;
compará-los, achar a lei de suas séries, ocupação para o filósofo, o político; revesti-los de formas mais
populares e derramar assim pelas nações um ensino fácil, uma instrução intelectual e moral que, sem
aparato de sermão ou preleção, surpreenda os ânimos e os corações da multidão, no meio de seus
próprios passatempos - a missão do literato, do poeta. Eis aqui porque esta época literária é a época do
drama e do romance, porque o romance e o drama são, ou devem ser, isto (Garrett II 1966: 1086).

A filosofia de Garrett, embora ele rejeite essa distinção, defende que sem educação e
liberdade, o indivíduo transforma-se em escravo e um qualquer povo, num rebanho de
escravos. A instrução tornou-se, então, condição indispensável de liberdade, de progresso, de
felicidade, como a ignorância se tornaria condição de tirania, de estagnação ou retrocesso, de
desventura (Garrett 2009: 18).
No século XVIII, Rousseau ao teorizar as conexões entre educação e liberdade,
analfabetismo e absolutismo / tirania, destacou-se como o “pai da educação moderna”:
Pai da antropologia, propusera-se criar o homem novo pela educação; construtor de uma das mais
reconhecidas plataformas da política moderna, intentara preparar através dela os cidadãos para essa
nova sociedade do contrato; amante da paz e perscrutando no horizonte dos tempos um projeto
europeu de unidade dos povos, opusera educação e revolução e indicara a primeira como via
preferencial para regeneração da sociedade conspurcada (Garrett 2009: 18).

Para transformar a sociedade, Garrett teve de ocupar-se das suas raízes, levando-o a
estudar a história de Portugal e conhecer a história da Europa - revolucionária, científica e
moderna. O conhecimento, o desenvolvimento cultural e intelectual elevam-no, em 1838, a
cronista-mor do reino, ficando responsável pela organização e realização de conferências
públicas sobre a História de Portugal. A sua veia de historiador fica também impressa nas suas
peças de teatro, que eram pautadas por temas inspirados no passado nacional.
Falar, escrever sobre Garrett é demarcar a alta distinção que o autor atingiu. Aquilo que
construiu e sustentou encontra-se, perfeitamente, na vertente estética de feição linguístico-
literária e no culto da língua, “reconhecido como um dos maiores génios da nossa literatura e
um dos mais exímios e marcantes cultores e construtores da língua portuguesa (Garrett 2009:
18).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 19


1.5 Romantismo e Nação

Almeida Garrett, considerado o introdutor do Romantismo em Portugal, surge como


poeta já aos vinte anos, estudante de Leis em Coimbra. Em 1819, um ano antes da revolução,
já ele incorporava as ideias de exaltação da pátria que viriam a ser das mais identificadoras do
sentimento romântico: “Oh quando te heide eu ver, pátria querida, / Limpa de Inglezes, safa
de conventos” (Garrett 1829: 40).
Em 1824, com 25 anos, já formado em Leis, escreve Camões e Dona Branca, poemas
através dos quais a corrente literária chega a Portugal. Com Camões, Garrett ergueria um
símbolo nacional, exaltando o sentimento patriótico. Nesta obra, o autor disserta sobre a
necessidade da nação recuperar o seu símbolo para se afirmar: “(...) e o nome lusitano / Ao
nome de Camões eterno se une” (Garrett 1984: 143).
A instalação do regime liberal em 1820, só viria a ser definitiva em 1834 e durante esse
período, a nação portuguesa viveu um vaivém político entre absolutismo e liberalismo que
culminou com dois anos de guerra civil.
Quando, em 1834, acabou a guerra civil em Portugal, entre liberais constitucionalistas e
absolutistas, as estruturas sociais do país tinham sido abaladas. O Romantismo, exaltante da
nação, acabou por associar-se ao e fundir-se com o nacionalismo, sendo ambos fundados sob
o mesmo pensamento e o mesmo sentimento. As lutas liberais e nacionalistas fariam, assim,
parte do imaginário histórico cultural do século XIX, tendo reflexos nas construções culturais
(Cunha 2002: 57).
De acordo com alguns historiadores, o termo nação representa uma comunidade
imaginada:
uma vez que os membros das nações nunca se conhecerão todos, havendo todavia a imagem mental de
uma comunhão; limitada, uma vez que cada nação é definida pelas fronteiras; soberana, uma vez que
o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade da ordem
divina e do reino dinástico; será sempre uma comunidade, ainda que imaginada, porque apesar da
desigualdade de classes, é concebida sob a ideia de pertença a um grupo” (Anderson 2005: 27).

Thiesse nota que as nações nascem “de um postulado e de uma invenção”; para que se
mantenham vivas, devem contar com a “adesão coletiva a essa ficção” (Thiesse 2011: 72).
A autora defende que a invenção da herança da nação portuguesa, não diferente das
outras nações, assenta em certos elementos simbólicos, para se afirmarem como tal:
[…] uma história que estabelece uma continuidade com os ilustres antepassados, uma série de heróis
modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, locais eleitos e uma
paisagem típica, uma determinada mentalidade, representações oficiais - hino e bandeira - e
identificações pitorescas - trajes, especialidades culinárias ou um animal emblemático (Thiesse 2011:
71).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 20


O Romantismo veio contribuir para a agitação de um sentimento nacional cuja
identidade era comum dentro dos limites fronteiriços da comunidade imaginada.
As nações não são tão antigas como a História (Hobsbawm 1998: 8), pois esta assume
um papel fundamental para a consolidação das identidades nacionais. É o passado que faz
uma nação, justificando-a em oposição a outras nações, e afirmando os historiadores como
agentes da produção do passado (Hobsbawm 1998: 271). Deste modo, a História pode ser
utilizada para desmontar ou legitimar. Impulsionado pela necessidade de uma legitimação
identitária nacional, Garrett tentou usá-la desta segunda forma, forjando uma tradição literária
portuguesa.
A identidade comum revela-se ao longo do tempo: é o passado que possibilita a tradição
e sobre esta vinga a história. O nacionalismo atribuiu um papel social muito forte à literatura:
[…] o projeto novo de problematizar a relação do escritor, ou, mais genericamente, de cada
consciência individual, com a realidade específica e autónoma que é a Pátria. E como o laço próprio
que une o escritor, enquanto tal, à sua Pátria, é a escrita, a problematização dessas relações é antes de
tudo problematização da escrita, nova ou inovadora maneira de falar a Pátria escrevendo-a em termos
específico [...] A partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral,
constituirá o núcleo da pulsão literária determinante (Lourenço 2000: 86-87).

É no seguimento dos acontecimentos, neste período histórico, que surge a figura do


cidadão-eleitor e nem a religião, nem a classe, definem o lugar social de cada pessoa. Esta
liberdade reflete-se também no trabalho do escritor: o poder de criação de uma obra, deixa a
dependência dos valores absolutos e passa a justificar-se no processo criativo.
Neste sentido, a literatura nacional passou a ser vista como necessária para a auto-
identificação coletiva, tendo sido usada para forjar uma unidade entre elementos de uma
mesma nação, que deviam identificar-se com a herança comum, uma vez que pertenciam a
uma identidade coletiva que era capaz de sobrepor-se a qualquer outra (Pedrosa 2015: 52).
Garrett passou a admitir “um princípio de variabilidade histórica, nacional e subjetiva do
imaginário e do gosto” (Monteiro 2006: 46).
O desenvolvimento do nacionalismo dá-se na Europa, do século XIX, em três fases:
Fase A, verifica-se apenas um movimento literário e cultural, que, em Portugal, foi impulsionado por
Garrett; na fase B, surge a campanha política dominada por grupos de militantes, pioneiros da “ideia
nacional”; a fase C dá-se com o apoio geral da população às ideias difundidas (Hobsbawm 1990: 21).

A “invenção da tradição” de uma comunidade política e imaginada (Anderson 2005: 27)


seria imperativa no momento em que Estado, nação e sociedade convergiam em torno da
figura do cidadão-eleitor, que legitimaria o sistema politicamente (Cunha 2002: 58).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 21


Garrett conseguia ainda completar aquilo a que Even-Zohar chamou “embalagem de
três-em-um”: ao permitir que Portugal tivesse então um passado comum, uma língua
desenvolvida pelos seus membros e uma literatura (Zohar 2011: 92). Estava estabelecida a
base de criação da nação, sobre a qual a identidade nacional podia começar a erigir-se.
Todas estas transformações do sistema social permitem uma transição importante no
sistema escolar: em que o ensino da história da literatura nacional teria um papel de destaque,
substituindo o ensino da Poética, da Retórica e das línguas e literatura greco-latinas,
fundamentando uma tradição literária nacional (Pedrosa 2015: 58).

O autor e político defendia uma constituição estabelecida em bases populares e nele se


reconhecia “uma função social e pragmática que era indissociável da sua relação com a
escrita” (Buescu 2001: 86), uma vez que, das atitudes literárias, passa sempre às atitudes
políticas, já que quase sempre faz política fazendo literatura e vice-versa (Martins 1956: 29).
A criação literária de Garrett nota-se na passagem à prática de um plano político de
regenerar a pátria, fazendo desta a versão coletiva do individual e criando uma tradição
literária portuguesa (Pedrosa 2015: 58).
A veia revolucionária do Romantismo apresentava-se na sua ideologia: ambicionava
destruir os valores vigentes, procurar um novo modelo de vida, exaltar a pátria e transformá-
la. Assim, o Romantismo, baseava-se na necessidade de revoluções sociais e na angústia da
perda do passado. Era nessa ideologia que se encontrava o Romantismo de Garrett. O autor
através da literatura:
usou o passado para legitimar a nação, criando um registo da sua literatura e, portanto, da sua cultura.
Ao mesmo tempo, deu um primeiro passo para que o mito da pátria deixasse de ser um herói dos
romanos ou uma figura divina dos gregos, sendo-o, pelo contrário, o poeta d’Os Lusíadas, permitindo
ao Romantismo dar a sua lição de nacionalismo em Portugal (Pedrosa 2015: 58).

Anthony Smith considera que é possível que o nacionalismo seja o mito identitário mais
persuasivo do mundo moderno (1991: 8), apoiando-se sobretudo no passado como
legitimador do direito territorial e nacional.
Garrett era fascinado pelo princípio democrático de Rousseau. Consagrava, por isso, à
criação literária, o princípio da liberdade, como o fazia em relação à regeneração do país. A
liberdade garantiria a civilização, por intermédio da instrução. O autor fazia parte do partido
da ordem e confessava ser um poeta da ordem:

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 22


[...] havia, por isso, no Romantismo, principalmente no seu Romantismo, uma responsabilidade de
organizar e regenerar, criar uma ligação entre o movimento literário e as novas estruturas políticas do
país. Garrett era, por isso, o agente ideal para esta revolução: enquanto poeta e legislador formado no
quadro mental do Iluminismo, teria todas as condições para levar a cabo esta regeneração cultural
(Pedrosa 2015: 60).

Hobsbawm defende que a história que se torna a base da ideologia das nações, não é
aquela que é preservada na memória popular, mas a que foi fixada por aqueles a quem
competia esta tarefa (2011: 67). Neste sentido, fixando textos e retocando-os, forjando uma
tradição literária, era escolhido o passado mais conveniente e Garrett, pelo seu papel na
historiografia literária, estava no epicentro desta escolha (Pedrosa 2015: 60-61).

1.6 Discursos Parlamentares

O discurso parlamentar proferido a 9 de Outubro de 1837, em São Bento, por Almeida


Garrett, foi transcrito para ser apresentado neste trabalho.5 A análise seguinte demonstra a
qualidade do autor enquanto político que apesar de ser menos reconhecida, hoje não é, de
todo, menos genial.
A importância dos discursos parlamentares de Garrett deve ser medida, essencialmente,
ao longo do século XIX, e no contributo/peso para a sociedade civil que surge no seguimento
do legado deixado por ele. A necessidade de representação social, de um pacto que
congregasse os interesses pátrios, o sentimento de pertença constitucionalizado, está na
natureza da sociedade civil liberal.
Como pode ler-se na transcrição seguinte, Garrett não vivia de aparências, não estava no
parlamento para ser favorecido pelo princípio da corrupção. Dir-se-ia que não estava no poder
político para fazer amigos!
O seu objetivo era outro: exprimir por palavras o “espelho da sociedade” onde ele vivia,
os responsáveis pela nação, eleitos pelo povo, que, infelizmente, era de maioria analfabeta
mas ainda assim, aqueles que pagavam com suor e sangue, a glória de uma nação. O autor
satirizava a sociedade aristocrata e dita nobre, por os achar “atores” sociais, por
demonstrarem fraca personalidade, serem falsos e oferecidos, por seguirem o “caminho do
fácil”: vitórias fáceis, aplausos fáceis e recompensas fáceis.

5 Gusmão, Fernando (2014). Almeida Garrett - Discursos Parlamentares - Sessão de 9 de Outubro de 1837, em
S. Bento. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9oFLJSLepRc, consultado em
(14/06/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 23
Almeida Garrett - Discurso I - 9 de Outubro de 1837

“Três são as diversas posições em que pode colocar-se o homem público, o homem chamado a
pronunciar-se sobre questões de gravidade e importância da que hoje tratamos:
A primeira e a mais fácil é seguramente daquele que nem por si a toma; que levado da torrente das
opiniões e cuidando dirigir as turbas, quando não é senão empurrado por elas, imaginando-se forte só
porque se pôs do lado da força, vai com o poder que reina, está pela potência que impera” (...).
(...) “para certos olhos (ainda bem que não para os meus!) a mais brilhante: os aplausos estão em roda
dela, as recompensas lhe chovem em cima e coroado há-de ser decerto quem a ocupa” (...) (Garrett
1837: 1).

“Quase tão fácil é a segunda posição, (fácil de tomar, entendo) aparentemente mais nobre, nem
sempre mais desinteressada; mas sem dúvida mais lisonjeira para o amor próprio de quem a escolheu
por sua; é a daqueles que aparentando (Deus sabe às vezes com que ânimo) integridades de Catão,
parecem pleitear justiça com os céus, praz-lhes a causa vencida, só porque o é, defendem quanto está
debaixo, só porque o está; e justa ou injusta, é sua sempre a parte dos que se dizem oprimidos” (...)
(Garrett 1837: 2).

“A história de todas as revoluções nos apresenta, sempre e pelo mesmo modo, forte e numerosamente
ocupadas estas duas posições. Ambas são as da ambição; para elas vai, para elas forçosamente há-de ir
a máxima parte dos homens” (Garrett 1837: 2).

“Terceira posição - difícil, desgraçada e árdua, de poucos seguida, de poucos entendida, caluniada dos
muitos; pode quase dizer que desprezada de todos. Raros a ocupam, raros deixaram ainda de morrer
nela (...) os aplausos da vitória não os têm, que não há vitória para eles (...) na boa fortuna... onde há
boa fortuna para os justos e inteiros? (...) os povos têm o entendimento difícil e a memória curta: hão-
de se ir educando à sua custa.
Esta sim, esta última de que falo, é a posição do homem inteiro, e independente deveras. Por esta
posição optei, conhecendo-lhe bem os desaires. (...) Colocado nesta posição não hei-de nunca ser o
homem de ninguém (bem sei), mas hei-de sê-lo de mim mesmo e da minha consciência” (Garrett
1837: 2-3).

A abertura deste discurso demonstra que Garrett pretende separar os íntegros dos pouco
honrados, fáceis e de fraca personalidade. Reconhece que não há vitória nem boa fortuna para
os justos e inteiros, numa nação sedenta de poder a qualquer custo:
“Abnegação que (devo em lealdade dizê-lo) para outros seria grande, mas é insignificante de minha
parte: o único estado e profissão que tenho e prezo, nem de uns nem de outros depende; e a ambição
que ainda pode algum tanto comigo, não são eles que a satisfazem. O pobre homem de letras tem ao
menos esta vantagem. Aceito pois com resignação todas as condições da posição isolada que escolhi;
renuncio até ao direito de me queixar, que minha só é a culpa do que eu só, e por minhas mãos, e bem
sabendo o que fazia, me preparei” (Garrett 1837: 3-4).

A capacidade intelectual de Garrett fica evidente na forma como ele discursa: inicia a
sua intervenção distinguindo aqueles que o rodeiam - os deputados - em categorias bem
diferentes; e apresenta, ao mesmo tempo que esmiúça, os três modos simples de formar um
corpo parlamentar:
“Para escolher (e de escolher se trata agora) é mister examinar, um por um, os diversos pontos da
escolha, que não vamos atordoados e loucamente rejeitar o melhor, e tomar o que menos presta. Farei
por tanto em breve resenha de todos, exporei imparcialmente os prós e os contras de cada um, e
finalmente direi o a que mais me inclino, porque menos inconvenientes me parece ter e mais
vantagens reunir” (Garrett 1837: 5).

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 24


“São bem sabidos os três modos simples de formar um corpo como este de que tratamos: hereditário,
eletivo, de nomeação regia. Combinações que destes se têm feito, aumentam mais dois: de proposição
do rei e eleição do povo, de proposição do povo e escolha real.
A eleição direta ou indireta pode ainda acrescentar uma variedade a estas classes e géneros.
De todos eles é sem dúvida o hereditário o mais antigo, e o que mais natural fica ao sistema
representativo monárquico; porque alheio às intrigas eleitorais, assim como livre da dependência
ministerial, existe por direito próprio, não depende de ninguém, e nenhum corpo coletivo pode mais
do que este dar voto reto e imparcial entre os dois contendores, a vontade nacional que legisla, a força
nacional que executa. Nada que vir a ganhar de uns, nada tem que perder com outros. Esta será a
melhor câmara conservadora, a mais constitucional, a mais livre; todos os outros métodos lhe ficam
por conseguinte inferiores. Mas se tal é a tese, como com efeito é, eu português, deputado português,
obrigado a aplicá-la à hipótese portuguesa, devo lealmente confessar que todas as forças da minha tese
desaparecem diante dos factos, porque em Portugal não há, nem vontade nem suficientes elementos
para formar uma câmara destas. Os poucos que havia, suicidaram-se em 1828, quando estas sombras
da antiga grandeza do reino, essa descendência degenerada de nossas famílias históricas deixou cair
dos ombros raquíticos a capa de arminhos, e cobriu a roupeta de escravo que mais lhe avinha” (Garrett
1837: 6-7).

(...) “A câmara hereditária tinha deixado de existir.


(...) Assim ficou desacreditado este método, reputado impossível, e quase se pode afiançar que o é.
Não trataremos portanto mais dele. Falemos do terceiro, pelo qual a câmara é composta de membros
escolhidos pelo rei.
Este outro modo de formar a segunda câmara tem por base a ficção do direito público, geralmente
recebida em todos os países livres, de que o rei é o grande eleitor nacional. Esta é uma ficção sem
dúvida; mas bela e sublime, e igual a muitas outras ficções em que todo o nosso direito se
funda;” (Garrett 1837: 7).

(...) “é uma ficção já filha de outra grande ficção, da que admite a delegação da soberania que não é
delegável, assim como não é renunciável; que admite a repartição da soberania que não é repartível. E
por estas asserções citarei um testemunho não suspeito, espero eu, o de Jean Jacques Rousseau, que
bem terminantemente protesta e demonstra não ser a soberania nem alienável nem delegável. Os
fundamentos com que estabelece a primeira impossibilidade, são os mesmos que dá para a segunda...
Sim, é uma ficção a delegação da soberania popular, mas torno a dizê-lo, ficção bela e sublime, ficção
magnifica e salvadora que todos os povos livres adotaram, e sem a qual cai por terra todo o sistema
representativo. E foram esses bárbaros do norte, esses nossos avoengos tão apodados de bárbaros e
ignorantes, contra cujas ideias políticas tanto se tem aqui vociferado, foram esses bárbaros os que
vieram regenerar a liberdade da Europa com este dogma, e torná-lo possível e prático para as grandes
nações; porque a soberania, como ela se exercia em Roma, em Sparta, em Atenas, em todas as antigas
repúblicas, não podia ser exercida pelos nossos povos, que não toleram, nem podem tolerar que os
habitantes da capital queiram sós dar leis, e ter como vassalos seus povos das províncias... Bom é que
ninguém esqueça deste principio: e nós os deputados das províncias temos obrigação de o recordar...
E quem tornou possível a soberania do povo? Quem? A ficção dos povos do norte, a ficção do
feudalismo! Eu admiro esta ficção, adoro-a quase com o respeito de um mistério; mas não posso
deixar de confessar que é uma ficção. E todavia é mister, é forçoso, é indispensável admiti-la. E
admitida ela, e admitindo como parte integrante dela que o rei é o grande eleitor nacional, nenhum
inconveniente há, quanto a direito, que o rei nomeie os membros da câmara revisora.
(...) O rei constitucional, o chefe do Estado representativo, o soberano da monarquia livre recebe a
coroa da mão do povo; é a lei que lha dá, a constituição que lha assegura, e a sublime ficção do
governo representativo que lha continuou em sua dinastia pela inauferível e perpétua delegação
popular.
Mas a câmara ou senado revisor, assim formado pela única eleição da coroa, tem graves
inconvenientes. Convenho; e de tão boa fé o reconheço, que pausadamente os quero ponderar.
Derivada da autoridade real, forçoso é que ela propenda mais para os interesses de quem a elegeu do
que para os do povo, de quem só indiretamente trouxe sua origem” (Garrett 1837: 8-9).

(...) “sou obrigado a rejeitar, como rejeito, o método proposto pela maioria da comissão” (Garrett
1837: 10).

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Garrett através dos seus discursos (neste em particular) demonstra, sobriamente, as
vantagens e desvantagens do sistema político implementado. Evidencia de modo aberto e sem
medo todo o método suscetível de corromper o poder político. Fazendo referências ao
passado, aos grandes impérios que dominaram a Europa, aos bárbaros vindos do norte, ao
povo provinciano que se rende aos “cultos e senhores” da política e do poder. Levanta
questões para avançar com perguntas, não adorna os temas mais polémicos e vai direito a eles
[deputados] com intenção de os desmarcar, de os fazer pensar, de os alertar que ele [Garrett]
não queria pertencer a essa corja.

No poema À Espera dos Bárbaros, Kaváfis (1863-1933) apresenta do seu consciente


uma cidade imaginária, de época e decadente. Talvez aproximando à Grécia antiga, Roma dos
imperadores, mas de certo, a uma cidade imperial imóvel na sua civilizada tranquilidade,
emanando a brandura dos cônsules, das leis e dos oradores. É, portanto, um estado pacífico
onde a ordem e a equidade imperam mas onde falta qualquer coisa. Falta-lhe uma alteridade
que, por definição e manifestação, só se encontra fora: com os bárbaros.

À Espera dos Bárbaros


O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

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Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução. (Kaváfis 1970)

Em todos os campos bipolares: civilização e barbárie, heterossexuais e homossexuais,


um depende do outro para elaborar o seu discurso. No contexto político, sem as influencias da
esquerda, não é possível diferenciar a direita.
Saramago referiu em O Evangelho segundo Jesus Cristo [1991] que entre Deus e o
Diabo existe uma dependência muito importante.
Este exemplo complementa todo o estudo, esforço comparativo que Garrett faz nos seus
discursos. Sem dois campos opostos não teríamos escolha. Não poderíamos definir qual o
certo e errado “aos nossos olhos”. Na verdade, é nos outros que nos vemos a nós. Esta velha
máxima vai de encontro à parte final do discurso, onde Garrett compara o povo à classe
média, à antiga aristocracia e enaltece o quanto do seu patriotismo e humanismo, anseia pela
emancipação do homem comum.

“Nas circunstâncias em que estamos, retalhados de fações, vaga e desvairada a opinião pública,
incerto o conceito dos homens (...) quem ousará, digo, entregar ao mero arbítrio de seis ministros a
escolha dos homens que hão-de representar a prudência e reflexão nacional? Quem se atreverá a
colocar nas mãos destes seis eleitores privilegiados os destinos e as esperanças da nação?” (Garrett
1837: 11).

(...) “nos tempos calamitosos que vivemos” (...) (Garrett 1837: 11).

“Não se tem aqui dito que durante dois anos fomos dominados por uma fação? Que debaixo desse
domínio se arruinou a fazenda pública, se deslocou o país, se desorganizou o Estado, se corrompeu a
moral do cidadão, se confundiram todas as ideias do justo e do injusto? Pois foi pela urna, foi pela
sujeição dela a um partido que nos vieram todas essas calamidades” (Garrett 1837: 12).

“Voltando a considerar a impossibilidade de obter, por via da eleição somente, uma câmara que
preencha os fins de revisora e conservadora, que a esta queremos dar, repetirei o que já aqui foi
ponderado. Se a câmara dos deputados é a verdadeira representante do movimento e da vontade
nacional, como será possível que, pelo mesmo método e elementos com que essa é formada, se forme
aquela outra que representa a reflexão, a prudência e a consideração nacional?” (Garrett 1837: 12-13).

“Nem quero prevalecer-me da vantagem que nesta discussão podia ter sobre todos os meus ilustres
adversários, quando combatesse o método eletivo, apresentado o que ninguém como eu aqui pode
apresentar, a infeliz experiência de sete anos, durante os quais foi ensaiado aquele método em um pais
que habitei dois anos, e que por obrigação estudei” (Garrett 1837: 13).

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(...) “os inconvenientes de nomeação régia são iguais aos da nomeação popular. E as razões que tenho
para votar contra um dos métodos são as mesmas que me fazem rejeitar o outro.
Que resta porém fazer? O método hereditário é impossível; o de nomeação regia insuficiente; o eletivo
peca nos mesmos defeitos. Resta aproveitar as conveniências destes dois últimos, converter em
utilidade os seus próprios defeitos, contrabalançando os de um com os de outro; e já que somos
forçados a fazer experiências, intentá-las ao menos com algum reflexo de luz que nos venha da
prática, e com alguma razoável esperança de proveito.
A lembrança não é minha, nem como a tal lhe quero e me revejo nela; vem de cabeças mais profundas
e pensadoras, vem de longas, refletidas e pesadas experiências de publicistas conhecidos, varões
parlamentares, homens que encaneceram na tribuna e no foro popular, e cujo testemunho e autoridade
deve ter peso para legisladores aprendizes como nós aqui somos todos, nem de confessá-lo devemos
envergonhar-nos” (Garrett 1837: 14).

Depois de examinar os vários métodos para a implementação e legislação da monarquia


constitucional que apoiava, não considerando nenhum como o ideal, apresentado
inconvenientes em todos eles, Garrett apresenta exemplos de outras nações (Estados Unidos
América; Bélgica; Espanha; Brasil) para mostrar que o sistema político não deve ser rígido
mas flexível às necessidades da sociedade e do povo, consoante os seus valores culturais e
sociais.

“Mas uma convicção forte e profunda me faz preferir a todos, para a minha pátria, o sistema da
escolha real sancionada pela nomeação popular.
Com a mão no coração declaro que em todos os métodos propostos vejo grandes inconvenientes, e em
nenhum vejo garantias que indubitavelmente ressalvem esses inconvenientes” (Garrett 1837: 18).

(...) “a classe média não existe sem as extremas; e no instante em que as absorver, deixou ela de ser o
que era. (...) Que nivelada a posição de todos os membros da sociedade, desaparecessem as classes, e
os homens ficassem todos uns diante do homem, assim como o são diante de Deus!
A sua mira, o seu empenho, os seus esforços, todos são para usurpar o lugar das antigas classes
privilegiadas. (...) Esta é sem dúvida a tendência da classe média por toda a Europa, tendência bem
sabida e reconhecida” (Garrett 1837: 19).

“Fraca resposta tem o que eu digo, porque digo só a verdade nua e sincera. Mas bem sei que ou não
me hão-de entender, ou fingir que não me entendem; e abusando do natural sentido de minhas
palavras lisas, farão delas o que eu não disse, para me responder com o que lhes não quadra. Bem o
sei eu; bem sei que se hão-de dizer mais liberais e populares... e que os hão-de crer! porque o povo
ainda não aprendeu, não se desenganou ainda, não conhece o abuso de palavras com que em seu
nome, e a titulo de sua, se advoga uma causa que não é dele” (Garrett 1837: 20).

“Mas que igualdade, e que filantropos os que a podem desejar? Que liberalismo o que a proclame?
Igualdade que tem por base e condição forçosa, a servidão hereditária de muitos homens!
(...) para ser absolutamente impossível que a classe média venha jamais a absorver as classes
populares, basta refletir que o maior número dos habitantes de um país há-de sempre ser condenado,
pelas exigências da sociedade, aos lavores afadigosos e materiais que embrutecem e abatem; que o
gozo desse trabalho há-de sempre ser para o menor número; e que onde não houver escravos, aquele
infeliz maior número há-de ser de cidadãos” (Garrett 1837: 21).

Pode dizer-se de Garrett um homem humilde (?); conhecedor, familiar e frequentador de


espaços aristocráticos, em Portugal e não só, encantador de mulheres que lhe reconheciam o
bom coração, coração esse que o traía nos seus discursos políticos, incapacitando-o de um
afastamento e frieza, perante os “abutres” parlamentares.

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Este discurso, particularmente, exacerba a sua relação com a aristocracia. Demarca-o
dos demais e enaltece a sua capacidade intelectual, humana, de alguém que resiste ao
“encanto” do dinheiro! O seu conhecimento, largo, sobre tantos assuntos, que eram
indiferentes à maioria dos deputados, fazem dele um revolucionário por excelência. Um
pedagogo na classe “mais fina” da aristocracia, que se ria de si próprio, que satirizava aqueles
que o achavam inoportuno, que ironizava a história de uma velha e tamanha nação europeia,
incapaz de se erguer a si própria.
A sua pedagogia não incitava à “obediência cega” das regras, ou a servidão voluntária
apresentada por Étienne, mas a uma renovação, re-construção permanente de sistemas e
métodos que acompanhassem a evolução do homem científico, da sociedade liberal e igual,
num continente [Europeu] que caminhava, pela primeira vez, para uma Era Democrática.

Étienne de la Boétie, no seu Discurso da Servidão Voluntária, em 1549, estava


interessado em saber porque é que as pessoas obedecem? Porque é que um manda em
milhões?
Quero para já, se possível, esclarecer tão-somente o fato de tantos homens, tantas vilas, cidades e
nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicá-los enquanto eles
quiserem suportá-lo; que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem aguentá-lo a contrariá-lo (De
La Boétie 2006).

Perdendo a liberdade, ganha-se o controlo. Alguém que abre mão da liberdade, ganha a
servidão: “a tirania subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de
pensar” (De La Boétie 2006).
A servidão pode ser uma zona mais confortável que a liberdade, porque a autonomia
incomoda. Mas de que forma a sociedade se manifesta de acordo com o poder absolutista do
tirano? Segundo ele, é o hábito. O hábito de nos acostumarmos com o que nos foi imposto ao
longo do tempo:
a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio
mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela
acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam (De La Boétie
2006).

Ser livre torna-nos responsáveis diante da escolha: É o povo que se escraviza, que se
decapita, que podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e
prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios:
(...) Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade
que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece
ter perdido não a liberdade mas a servidão (De La Boétie 2006).

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A liberdade traz essa angústia que é a responsabilidade. Hoje, a nossa liberdade permite-
nos fornecer à rede operadora de telecomunicações mais informação do que à qual, Hitler teve
acesso com a ajuda da Gestapo.
Somos o que Étienne temeu - a sociedade com tiranos felizes no controlo - E, pelos
favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem chega-se a isto: “são quase tantas pessoas a
quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade” (De La Boétie 2006).

Seguindo a análise do discurso de Garrett, entramos na última parte, onde ele repreende
de forma ousada e destemida a classe média, à qual ele pertence, a qual está diante dele e que
tem por dever governar um povo que ele considera ter sido explorado de forma cruel e
abusiva:
“Sejamos verdadeiros, digamos o que é e cumpre que seja; façamos com que a classe média recrute
quanto mais poder das fileiras do infeliz povo para suas privilegiadas cortes; facilitemos quanto é
possível a passagem; mas não mintamos, não vamos embair de falsas esperanças os desgraçados que
podem ter a miséria de nos acreditar;
Estas, repito com a mão no peito, e seguro do que digo: estas é que são verdades, pura e lealmente
ditas pela mais humilde boca certamente, mas pela mais sincera que ainda falou português a
portugueses. São duras de ouvir, certo, e mais ousadas de dizer ainda, porque a maior parte dos que
aqui estamos pertencemos à classe média, porque a máxima parte dos que tomamos interesse em
coisas políticas, dela somos, e amarga-nos fazer reflexões destas. Íamos nosso caminho com os olhos
nas sumidades sociais que desejamos ocupar, e sem olhar para trás, para o povo que nos segue, que
nós instigamos, que nos ajuda, e com quem somos liberais de promessas que não podemos, que não
havemos, que ninguém pode nem há-de cumprir-lhe... Paremos em quanto é tempo, paremos que
ainda é tempo” (Garrett 1837: 21-22).

É através dos seus discursos, intervenções políticas que Garrett identifica e desvaloriza
o medo, que enaltece a virtude cívica, os laços e os pactos sociais, percebendo o seu
posicionamento político diante da herança constitucional dos “antigos” e da inevitável
instalação da “liberdade dos modernos”, não perdendo de vista qual o modelo estético eleito
para esse objetivo. E isto porquê? Porque se conhecia como é que a Revolução Francesa tinha
terminado (dezenas de milhar de mortos e colapso da nação) e, portanto, os revolucionários
sabiam que a revolução não devia nem enveredar por métodos radicais, nem pretender apagar
as lições da história:
(...) “a verdadeira câmara dos representantes é património da classe média, pela necessária, inevitável
e profícua organização da urna, não vamos também entregar à mesma classe o monopólio da segunda
câmara. Seria atribuir-nos a gerência toda dos negócios públicos, declararmo-nos absolutos a nós
mesmos, e fazer de nossa feliz e bem quista classe, uma aristocracia odiosa, e mais impopular do que
nenhuma que ainda houvesse.
O que hoje quase é a classe média para o povo, foi ao principio “a aristocracia”, um protetor, um
abrigo, um escudo contra o poder. Foi-lhe mister lutar com os reis; e o povo a ajudou: venceu, e não
tardou a abusar da vitória; de protetora e aliada tornou-se senhora, usurpou tudo, invadiu tudo, abusou
de tudo. E o ciúme dos reis primeiro, a inveja e o ódio dos povos depois, fez justiça ao usurpador.
Caiu como nós havemos de cair, apedrejada da indignação popular, senão refletirmos e nos não
moderarmos a tempo.

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Não podemos, digo, apelar para a gratidão dos povos, porque ainda não fizemos nada a favor dos
povos. Disse e provo: o povo trabalha e produz, a classe média adquire. Dir-me-ão que a classe média
fornece os oficiais aos exércitos, os juízes aos tribunais, os legisladores ao senado, os literatos às
academias. É isto que dizem? Sim.
Assim é: e grande serviço temos feito em verdade! Por cada oficial que a classe média dá ao exército,
quantos soldados dá o povo? (...)
Damos juízes aos tribunais, mas quem lhes paga? Nós ou o povo? Damos legisladores ao senado. Mas
se a rebelião ataca o senado, as baionetas do povo é que o defendem.
Damos-lhe livros e doutores. Mas essa não é produção exclusiva da nossa classe: os sábios saem de
todas, e não pertencem a nenhuma. Assim eles fossem menos e melhores!
Disse pois, e nem me pejo nem me temo de o repisar: o povo devia alguma coisa à antiga aristocracia
e cuidava dever-lhe muito mais: a nós nada nos deve e nada reputa dever-nos. O povo sabe que se há
mister baionetas, lá lhas vamos pedir; se é preciso dinheiro que lá lho vamos buscar; e que por fins de
contas os tributos de dinheiro e de sangue sobre ele vão cair” (Garrett 1837: 23-24).

Para finalizar a sua intervenção, Garrett assume-se como um homem do povo e de


forma sincera faz chegar aos deputados presentes, o seu método principal para o governo de
uma nação, uma nação que ele abraça como sua, mesmo impondo o seu carácter
revolucionário, difícil e ousado de aceitar, num período tão delicado do Liberalismo
português:
“Filho desta classe [povo], filho que muito me honro de minha boa e nobre mãe, para mim não quero,
nem para ela, a perigosa e fatal investidura com que a pretendem elevar acima de seus interesses. Para
longe essa purpura de vaidade com que a cegam...
Em nome do povo, e da liberdade, rejeito um e outro dos métodos propostos pela maioria e pela
minoria da comissão. Voto pelo método misto como o propus, mas não duvidarei adotar qualquer
outro que combine a eleição popular com a intervenção da coroa” (Garrett 1837: 25).

Depois de proferir estes textos, Almeida Garrett, comprovou com documentos


autênticos toda a retórica que não era de notoriedade pública, não controversa e ficou à mercê
da justiça, de cada um, pedindo, apenas, o favor de lhe restituírem os documentos.

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Conclusão

Olhando ao contexto histórico podemos afirmar que os anos que antecederam a vida de
Garrett, sobretudo na Europa, foram de uma enorme revolução social e política. Durante a sua
vida, o autor viveu numa Europa exaltada, onde também Portugal, se revolucionava em busca
de uma igualdade de direitos.
Dizer que Garrett foi um dos melhores autores da literatura portuguesa não chega. O
legado, a transformação e a contribuição do autor marca uma nova etapa da História da Nação
Portuguesa.
A sua capacidade literária e intelectual sobressaíam na aristocracia marcando a literatura
portuguesa com obras de notável reflexão, ainda hoje estudadas no sistema de ensino
pedagógico. Garrett, contudo, foi mais longe e criou o teatro nacional, lutou pelos direitos do
homem “escandalizando” o parlamento com os seus discursos célebres. Ao contrário de quase
todos os outros autores da literatura portuguesa, de tão notável destaque, Almeida Garrett, não
procurava o fácil, não se afundara na boémia, nem se ostentava com o poder que possuía.
Pode dizer-se que o período histórico em que viveu exigia uma intervenção, uma luta
constante pela liberdade, uma façanha revolucionária, mas se tal era o seu poder na sociedade,
o autor poderia enaltecer-se pela opressão ao povo, ao invés da luta pela sua salvação.
Destemido e ousado na sua retórica evidenciou por diversas vezes a problemática
principal da sua nação. A sede de poder, a corrupção e a soberba da aristocracia que explorou
o povo para seu bom proveito.
O Romantismo como veículo de comunicação de Garrett ambicionava destruir os
valores vigentes, exaltar e transformar a pátria, criando um novo modelo de vida. Era essa
ideologia que caracterizava o Romantismo de Garrett. O autor usou o passado para legimitar a
pátria, destacou a sua literatura e, por conseguinte, a sua cultura. As lutas liberais e
nacionalistas fariam, assim, parte do imaginário histórico cultural do século XIX, tendo
reflexos nas construções culturais.
Calibrando a literatura popular portuguesa, o autor forjava uma tradição literária ao
mesmo tempo que erigia princípios nacionalistas. A influência que Garrett vai buscar a
autores europeus do passado demonstra a qualidade de adaptação, renovação que ele impunha
nos seus discursos e literatura. Garrett tentava cortar com o passado, mas tinha-o como
elemento obrigatório da nova literatura, uma vez que ele era necessário à legitimação do
presente.

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