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Introdução --------------------------------------------------------------------------------------------- 3
1. O período histórico que precede e onde se insere a vida e obra de Almeida Garrett ----- 4
Conclusão -------------------------------------------------------------------------------------------- 32
João Baptista da Silva Leitão que mais tarde viria a acrescentar os dois apelidos com os
quais se notabilizou (Almeida Garrett) nasceu no chamado “século das luzes”, século XVIII, a
4 de Fevereiro de 1799 e desaparece em 1854.
O consagrado autor português, do século XIX, viveu um período de revolução e
transformação política e social sem precedentes na Europa, período esse que originou o atual
estado democrático e livre das nações europeias.
O “renascimento” do ser humano como indivíduo consciente e moderno é colmatado, se
quisermos, “com a passagem das trevas para a luz”, quase uma alusão à mitologia grega, da
fénix que renasce das suas próprias cinzas. As trevas representadas por um período no qual a
Igreja impôs um poder absoluto - desde a Idade Média até ao século XVIII. A luz, depois do
século XVIII, denominado “século das luzes”.
O Iluminismo, movimento cultural histórico da Idade Moderna, caracteriza-se por uma
re-configuração dos valores culturais, crenças e políticas, que teve lugar na histórica cidade de
Paris. França era já o “farol” cultural da Europa e viria a solidificar esse facto com a
Revolução Francesa (1789), um dos principais acontecimentos da civilização ocidental
moderna.
O Iluminismo foi um movimento de reação ao absolutismo europeu, que tinha como
características as estruturas feudais, a influência cultural da Igreja Católica, o monopólio
comercial e a censura das “ideias perigosas”.
Surge a primeira rutura com Deus, com a Igreja, do homem moderno. Deus deixa de ser
o criador. O homem passou a ser o criador do seu destino. O Homem Científico, iluminista,
defendia a liberdade religiosa e a criação de escolas para que o povo fosse educado.
Uma das obras de grande impacto deste movimento foi a Enciclopédia (impressa entre
1751 e 1780), uma obra composta por 35 volumes, na qual estava resumido todo o
conhecimento existente até então. O Iluminismo viria a desencadear o triunfo do Liberalismo
que se instala depois da Revolução Francesa.
1 Silveira, Bárbara (2013). A implementação do liberalismo em Portugal. Internet. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/BarbaraSilveira9/a-implantao-do-liberalismo-em-portugal, (consultado em 19/06/2017)
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• Em 1810, as invasões tinham acabado, porém, a Família Real e a Corte Portuguesa
não tinham desejo de regressar a Portugal;
• O Reino Português ficou mais pobre e desorganizado com as invasões francesas e
com as batalhas para os expulsarem;
• Surgem os movimentos anti-napoleónicos e os levantamentos populares da Península
Ibérica contra Napoleão;
• Constituição de Cádis - Espanha (1812);
• Os Ingleses não saíram de Portugal e controlavam quase todo o comércio com o
Brasil, o que prejudicava muito os comerciantes portugueses;
• Surge o Movimento Revolucionário Liberal com dois objetivos primários:
a) Expulsar os Ingleses de Portugal;
b) Obrigar o rei a regressar do Brasil;
2 Gomes, Maria (2012). Revolução Liberal Portuguesa de 1820. Internet. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/mariafimgomes/revoluo-liberal-portuguesa-de1820, consultado em (19/06/2017)
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‣ O rei D. João VI regressa a Portugal e a 1 de Outubro de 1822 jurou com toda a
solenidade a Constituição Portuguesa, dando lugar em Portugal a uma Monarquia
Constitucional ou Liberal;
A autora, no estudo sobre Viagens na minha Terra, salienta a grande maturidade irónica
de Garrett ao analisar o tempo português, as vicissitudes políticas ou a recuperação do
“espírito nacional”. Centrando-se na charneca ribatejana e no Vale de Santarém, Garrett
centra-se também, a um outro nível, na comparação, ou na distinção, entre o frade e o barão,
com todas as implicações que esta dicotomia acarreta:
Percebendo o que está por detrás desta aparente e, até certo ponto, cómica distinção, o leitor infere, e
Ofélia Paiva Monteiro demonstra-o na perfeição, as consequências e as causas do devir histórico
peninsular e as recomendações que o autor, transversalmente, profere. A minúcia da análise desvenda-
nos a construção narrativa e a elaboração das personagens, que se constituem modelos de paradigmas
românticos (Marinho 2012: 281-282).
A observação é unanime para aqueles que se debruçam sobre a vida e obra de Garrett,
quando afirmam que é um autor pouco estudado ou a quem tem sido dada pouca importância,
relativamente à transformação na sociedade por ele incentivada e implícita:
A acuidade e a excelência dos ensaios trazem a lume pormenores, por vezes, esquecidos, sublinham a
importância da obra de um dos grandes construtores da modernidade em Portugal e ensinam a ler. É
difícil afirmar que sobre um autor nada mais há a dizer, mas de Garrett muito pouco os estudos de
Ofélia Paiva Monteiro deixam em claro (Marinho 2012: 282-283).
O autor português era um acirrado humanista que defendia os direitos humanos com a
sapiência da sua consciência e o tamanho do seu coração. A sua dedicação e devoção, ao
próximo, descreve-o como um “homem do mundo”, acessível a toda a gama de classes
sociais. É através da escrita que ao revelar o seu modo profundamente romântico, verbaliza a
sua identidade, onde pessoa e nação se fundem. Numa auto-observação, das muitas
encontradas, ele revela no “Prólogo” da sua obra Viagens na minha Terra:
[...] ele não faria o que faz se não juntasse [...] o profundo conhecimento dos homens e das coisas, do
coração humano e da razão humana; se não fosse, além de tudo o mais, um verdadeiro homem do
mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no campo com os homens de guerra, no gabinete
com os diplomáticos e homens de Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as
notabilidades de muitos países - e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo, com
as elegâncias e com as fatuidades do século (Monteiro 2006: 55).
O poeta ao ser cidadão também tem por dever debruçar-se sobre a pátria e dar ao seu
povo o espelho da sua identidade cultural, da sua história, da sua situação social e política:
Este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo... ou não se faz.
[...] Os poetas fizeram-se cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua. [...] Os sonetos e os
madrigais eram para as assembleias perfumadas dessas damas que pagavam versos a sorrisos. [...] Os
leitores e espectadores de hoje querem pasto mais forte, menos condimentado e mais substancial; o
povo quer verdade. Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico - no drama e na
novela de atualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe
está por cima, abaixo, ao seu nível - e o povo há-de aplaudir porque entende: é preciso entender para
apreciar e gostar (Garrett II 1966: 1086-87).
Vários são os autores que consideram Garrett como o percursor de um novo rumo da
literatura portuguesa: é “sob a pluma de Garrett que pela primeira vez, e a fundo, Portugal se
interroga, ou melhor, que Portugal se converte em permanente interpelação para todos
nós” (Lourenço 2000: 89). A estruturação digressiva e contrastada, ousada nos poemas lírico-
narrativos Camões (1825) e D. Branca (1826) - as duas obras que marcaram, como assinalou
Herculano em 1834, o inicio de novos rumos da literatura portuguesa (Monteiro 2006: 51).
O autor ao ser um forte defensor dos direitos humanos procurava estabelecer uma
aproximação entre o cidadão comum e a monarquia, desde que esta respeitasse a divisão
tripartida dos poderes, ou seja, o poder judicial deveria ser independente; o poder executivo
assistido por um conselho de estado; o poder legislativo estava subjugado a uma instituição de
um parlamento bicameral, sendo os representantes da nação eleitos pelas câmaras municipais:
O despotismo, ao violentar os direitos naturais do homem e os direitos historicamente adquiridos,
surgia para o autor como uma política sem pátria, ou seja, como uma expatriação. Ora, como, segundo
a máxima da Enciclopédia, sob o jugo da tirania a pátria não poderia existir, Garrett, não perdendo de
vista os excessos de certas interpretações estreitamente republicanas do velho patriotismo cívico,
aceitava que a monarquia poderia ser virtuosa e patriótica – desde que enveredasse por e respeitasse a
divisão tripartida dos poderes. Nestas condições, a destruição do modo absolutista de objetivação da
monarquia seria legítima, mas já não o seria a aniquilação do seu corpo místico, ou daquele que a
encarnava, como tinha acontecido em França. E por esse motivo o monarca – mesmo que fisicamente
fosse o mesmo indivíduo – teria de passar a ser o primeiro dos cidadãos (Bernardes 2011: 134).
Catão
A obra de Garrett evidencia a grandeza da sua vontade, da sua devoção para criar, para
conhecer e para intervir cívica e culturalmente. O herói cívico assume uma consciência quase
militante da ruína, a que o tempo pode levar a sociedade – pelo que à Revolução não foi
necessário esperar nem pelo Romantismo (o social, na melhor das hipóteses), nem pelo
Realismo/Naturalismo anatómico para sair para a rua. Dir-se-ia mesmo que, com Catão e
como Catão, Garrett procurava dar corda à História, sintoma do novíssimo aprendizado da
irreversibilidade do futuro enquanto redenção (Bernardes 2011: 139).
A par do cânone estético da época foram os problemas nacionais (mas não
nacionalistas) que levaram Garrett a ir a Roma, fazer-se Romano e voltar para Portugal,
segundo o prefácio da 3ª edição do Catão, para apresentar a virtude republicana antiga a
portugueses: “No Catão senti outra coisa, fui a Roma; fui, e fiz-me Romano quanto pude,
segundo o ditado manda: mas voltei para Portugal, e pensei de Português para
Portugueses” (Garrett 1904: 6).
O impacto que a História tem na evolução das civilizações é avassalador; cada período
histórico relata uma reação que, geralmente, se alastra às nações, povos e sociedades vizinhas
- veja-se o registo Europeu, numa análise diacrónica e comparativa do período das
Revoluções Liberais:
- Inglaterra das revoluções do século XVII;
- Revolução Francesa (1789), século XVIII;
- Movimentos anti-napoleónicos e os levantamentos populares da Península Ibérica
contra Napoleão, no século XIX;
- Constituição de Cádis - Espanha (1812);
- Constituição Portuguesa (1820-22);
4 5 Arzabe, Patricia e Graciano, Potyguara. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos - 50 anos. Internet. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
bibliotecavirtual/direitos/tratado4.htm, consultado em (20/06/2017)
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Mas há, no entanto, algo a evidenciar: elas diferem em certas propriedades, sobretudo
devido ao seu posicionamento histórico. A observação do historiador Hobsbawm (1996) é
perentória no que toca às diferentes classes sociais, perante a famosa Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789:
este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um
manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e
iguais perante a leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções
sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’. (...) a declaração afirmava (posição
contrária à hierarquia da nobreza ou absolutismo) que ‘todos os cidadãos têm o direito de colaborar na
elaboração das leis pessoalmente ou por meio de seus representantes’. E a assembleia representativa
que ela vislumbrava como órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia
democraticamente eleita. (...) Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora
de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática, que
poderia parecer uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas. De modo geral, o burguês
liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do
constitucionalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e de
um governo de contribuintes e proprietários (Hobsbawm 1996: 19-20).
A filosofia de Garrett, embora ele rejeite essa distinção, defende que sem educação e
liberdade, o indivíduo transforma-se em escravo e um qualquer povo, num rebanho de
escravos. A instrução tornou-se, então, condição indispensável de liberdade, de progresso, de
felicidade, como a ignorância se tornaria condição de tirania, de estagnação ou retrocesso, de
desventura (Garrett 2009: 18).
No século XVIII, Rousseau ao teorizar as conexões entre educação e liberdade,
analfabetismo e absolutismo / tirania, destacou-se como o “pai da educação moderna”:
Pai da antropologia, propusera-se criar o homem novo pela educação; construtor de uma das mais
reconhecidas plataformas da política moderna, intentara preparar através dela os cidadãos para essa
nova sociedade do contrato; amante da paz e perscrutando no horizonte dos tempos um projeto
europeu de unidade dos povos, opusera educação e revolução e indicara a primeira como via
preferencial para regeneração da sociedade conspurcada (Garrett 2009: 18).
Para transformar a sociedade, Garrett teve de ocupar-se das suas raízes, levando-o a
estudar a história de Portugal e conhecer a história da Europa - revolucionária, científica e
moderna. O conhecimento, o desenvolvimento cultural e intelectual elevam-no, em 1838, a
cronista-mor do reino, ficando responsável pela organização e realização de conferências
públicas sobre a História de Portugal. A sua veia de historiador fica também impressa nas suas
peças de teatro, que eram pautadas por temas inspirados no passado nacional.
Falar, escrever sobre Garrett é demarcar a alta distinção que o autor atingiu. Aquilo que
construiu e sustentou encontra-se, perfeitamente, na vertente estética de feição linguístico-
literária e no culto da língua, “reconhecido como um dos maiores génios da nossa literatura e
um dos mais exímios e marcantes cultores e construtores da língua portuguesa (Garrett 2009:
18).
Thiesse nota que as nações nascem “de um postulado e de uma invenção”; para que se
mantenham vivas, devem contar com a “adesão coletiva a essa ficção” (Thiesse 2011: 72).
A autora defende que a invenção da herança da nação portuguesa, não diferente das
outras nações, assenta em certos elementos simbólicos, para se afirmarem como tal:
[…] uma história que estabelece uma continuidade com os ilustres antepassados, uma série de heróis
modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, locais eleitos e uma
paisagem típica, uma determinada mentalidade, representações oficiais - hino e bandeira - e
identificações pitorescas - trajes, especialidades culinárias ou um animal emblemático (Thiesse 2011:
71).
Anthony Smith considera que é possível que o nacionalismo seja o mito identitário mais
persuasivo do mundo moderno (1991: 8), apoiando-se sobretudo no passado como
legitimador do direito territorial e nacional.
Garrett era fascinado pelo princípio democrático de Rousseau. Consagrava, por isso, à
criação literária, o princípio da liberdade, como o fazia em relação à regeneração do país. A
liberdade garantiria a civilização, por intermédio da instrução. O autor fazia parte do partido
da ordem e confessava ser um poeta da ordem:
Hobsbawm defende que a história que se torna a base da ideologia das nações, não é
aquela que é preservada na memória popular, mas a que foi fixada por aqueles a quem
competia esta tarefa (2011: 67). Neste sentido, fixando textos e retocando-os, forjando uma
tradição literária, era escolhido o passado mais conveniente e Garrett, pelo seu papel na
historiografia literária, estava no epicentro desta escolha (Pedrosa 2015: 60-61).
5 Gusmão, Fernando (2014). Almeida Garrett - Discursos Parlamentares - Sessão de 9 de Outubro de 1837, em
S. Bento. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9oFLJSLepRc, consultado em
(14/06/2017)
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Almeida Garrett - Discurso I - 9 de Outubro de 1837
“Três são as diversas posições em que pode colocar-se o homem público, o homem chamado a
pronunciar-se sobre questões de gravidade e importância da que hoje tratamos:
A primeira e a mais fácil é seguramente daquele que nem por si a toma; que levado da torrente das
opiniões e cuidando dirigir as turbas, quando não é senão empurrado por elas, imaginando-se forte só
porque se pôs do lado da força, vai com o poder que reina, está pela potência que impera” (...).
(...) “para certos olhos (ainda bem que não para os meus!) a mais brilhante: os aplausos estão em roda
dela, as recompensas lhe chovem em cima e coroado há-de ser decerto quem a ocupa” (...) (Garrett
1837: 1).
“Quase tão fácil é a segunda posição, (fácil de tomar, entendo) aparentemente mais nobre, nem
sempre mais desinteressada; mas sem dúvida mais lisonjeira para o amor próprio de quem a escolheu
por sua; é a daqueles que aparentando (Deus sabe às vezes com que ânimo) integridades de Catão,
parecem pleitear justiça com os céus, praz-lhes a causa vencida, só porque o é, defendem quanto está
debaixo, só porque o está; e justa ou injusta, é sua sempre a parte dos que se dizem oprimidos” (...)
(Garrett 1837: 2).
“A história de todas as revoluções nos apresenta, sempre e pelo mesmo modo, forte e numerosamente
ocupadas estas duas posições. Ambas são as da ambição; para elas vai, para elas forçosamente há-de ir
a máxima parte dos homens” (Garrett 1837: 2).
“Terceira posição - difícil, desgraçada e árdua, de poucos seguida, de poucos entendida, caluniada dos
muitos; pode quase dizer que desprezada de todos. Raros a ocupam, raros deixaram ainda de morrer
nela (...) os aplausos da vitória não os têm, que não há vitória para eles (...) na boa fortuna... onde há
boa fortuna para os justos e inteiros? (...) os povos têm o entendimento difícil e a memória curta: hão-
de se ir educando à sua custa.
Esta sim, esta última de que falo, é a posição do homem inteiro, e independente deveras. Por esta
posição optei, conhecendo-lhe bem os desaires. (...) Colocado nesta posição não hei-de nunca ser o
homem de ninguém (bem sei), mas hei-de sê-lo de mim mesmo e da minha consciência” (Garrett
1837: 2-3).
A abertura deste discurso demonstra que Garrett pretende separar os íntegros dos pouco
honrados, fáceis e de fraca personalidade. Reconhece que não há vitória nem boa fortuna para
os justos e inteiros, numa nação sedenta de poder a qualquer custo:
“Abnegação que (devo em lealdade dizê-lo) para outros seria grande, mas é insignificante de minha
parte: o único estado e profissão que tenho e prezo, nem de uns nem de outros depende; e a ambição
que ainda pode algum tanto comigo, não são eles que a satisfazem. O pobre homem de letras tem ao
menos esta vantagem. Aceito pois com resignação todas as condições da posição isolada que escolhi;
renuncio até ao direito de me queixar, que minha só é a culpa do que eu só, e por minhas mãos, e bem
sabendo o que fazia, me preparei” (Garrett 1837: 3-4).
A capacidade intelectual de Garrett fica evidente na forma como ele discursa: inicia a
sua intervenção distinguindo aqueles que o rodeiam - os deputados - em categorias bem
diferentes; e apresenta, ao mesmo tempo que esmiúça, os três modos simples de formar um
corpo parlamentar:
“Para escolher (e de escolher se trata agora) é mister examinar, um por um, os diversos pontos da
escolha, que não vamos atordoados e loucamente rejeitar o melhor, e tomar o que menos presta. Farei
por tanto em breve resenha de todos, exporei imparcialmente os prós e os contras de cada um, e
finalmente direi o a que mais me inclino, porque menos inconvenientes me parece ter e mais
vantagens reunir” (Garrett 1837: 5).
(...) “é uma ficção já filha de outra grande ficção, da que admite a delegação da soberania que não é
delegável, assim como não é renunciável; que admite a repartição da soberania que não é repartível. E
por estas asserções citarei um testemunho não suspeito, espero eu, o de Jean Jacques Rousseau, que
bem terminantemente protesta e demonstra não ser a soberania nem alienável nem delegável. Os
fundamentos com que estabelece a primeira impossibilidade, são os mesmos que dá para a segunda...
Sim, é uma ficção a delegação da soberania popular, mas torno a dizê-lo, ficção bela e sublime, ficção
magnifica e salvadora que todos os povos livres adotaram, e sem a qual cai por terra todo o sistema
representativo. E foram esses bárbaros do norte, esses nossos avoengos tão apodados de bárbaros e
ignorantes, contra cujas ideias políticas tanto se tem aqui vociferado, foram esses bárbaros os que
vieram regenerar a liberdade da Europa com este dogma, e torná-lo possível e prático para as grandes
nações; porque a soberania, como ela se exercia em Roma, em Sparta, em Atenas, em todas as antigas
repúblicas, não podia ser exercida pelos nossos povos, que não toleram, nem podem tolerar que os
habitantes da capital queiram sós dar leis, e ter como vassalos seus povos das províncias... Bom é que
ninguém esqueça deste principio: e nós os deputados das províncias temos obrigação de o recordar...
E quem tornou possível a soberania do povo? Quem? A ficção dos povos do norte, a ficção do
feudalismo! Eu admiro esta ficção, adoro-a quase com o respeito de um mistério; mas não posso
deixar de confessar que é uma ficção. E todavia é mister, é forçoso, é indispensável admiti-la. E
admitida ela, e admitindo como parte integrante dela que o rei é o grande eleitor nacional, nenhum
inconveniente há, quanto a direito, que o rei nomeie os membros da câmara revisora.
(...) O rei constitucional, o chefe do Estado representativo, o soberano da monarquia livre recebe a
coroa da mão do povo; é a lei que lha dá, a constituição que lha assegura, e a sublime ficção do
governo representativo que lha continuou em sua dinastia pela inauferível e perpétua delegação
popular.
Mas a câmara ou senado revisor, assim formado pela única eleição da coroa, tem graves
inconvenientes. Convenho; e de tão boa fé o reconheço, que pausadamente os quero ponderar.
Derivada da autoridade real, forçoso é que ela propenda mais para os interesses de quem a elegeu do
que para os do povo, de quem só indiretamente trouxe sua origem” (Garrett 1837: 8-9).
(...) “sou obrigado a rejeitar, como rejeito, o método proposto pela maioria da comissão” (Garrett
1837: 10).
“Nas circunstâncias em que estamos, retalhados de fações, vaga e desvairada a opinião pública,
incerto o conceito dos homens (...) quem ousará, digo, entregar ao mero arbítrio de seis ministros a
escolha dos homens que hão-de representar a prudência e reflexão nacional? Quem se atreverá a
colocar nas mãos destes seis eleitores privilegiados os destinos e as esperanças da nação?” (Garrett
1837: 11).
(...) “nos tempos calamitosos que vivemos” (...) (Garrett 1837: 11).
“Não se tem aqui dito que durante dois anos fomos dominados por uma fação? Que debaixo desse
domínio se arruinou a fazenda pública, se deslocou o país, se desorganizou o Estado, se corrompeu a
moral do cidadão, se confundiram todas as ideias do justo e do injusto? Pois foi pela urna, foi pela
sujeição dela a um partido que nos vieram todas essas calamidades” (Garrett 1837: 12).
“Voltando a considerar a impossibilidade de obter, por via da eleição somente, uma câmara que
preencha os fins de revisora e conservadora, que a esta queremos dar, repetirei o que já aqui foi
ponderado. Se a câmara dos deputados é a verdadeira representante do movimento e da vontade
nacional, como será possível que, pelo mesmo método e elementos com que essa é formada, se forme
aquela outra que representa a reflexão, a prudência e a consideração nacional?” (Garrett 1837: 12-13).
“Nem quero prevalecer-me da vantagem que nesta discussão podia ter sobre todos os meus ilustres
adversários, quando combatesse o método eletivo, apresentado o que ninguém como eu aqui pode
apresentar, a infeliz experiência de sete anos, durante os quais foi ensaiado aquele método em um pais
que habitei dois anos, e que por obrigação estudei” (Garrett 1837: 13).
“Mas uma convicção forte e profunda me faz preferir a todos, para a minha pátria, o sistema da
escolha real sancionada pela nomeação popular.
Com a mão no coração declaro que em todos os métodos propostos vejo grandes inconvenientes, e em
nenhum vejo garantias que indubitavelmente ressalvem esses inconvenientes” (Garrett 1837: 18).
(...) “a classe média não existe sem as extremas; e no instante em que as absorver, deixou ela de ser o
que era. (...) Que nivelada a posição de todos os membros da sociedade, desaparecessem as classes, e
os homens ficassem todos uns diante do homem, assim como o são diante de Deus!
A sua mira, o seu empenho, os seus esforços, todos são para usurpar o lugar das antigas classes
privilegiadas. (...) Esta é sem dúvida a tendência da classe média por toda a Europa, tendência bem
sabida e reconhecida” (Garrett 1837: 19).
“Fraca resposta tem o que eu digo, porque digo só a verdade nua e sincera. Mas bem sei que ou não
me hão-de entender, ou fingir que não me entendem; e abusando do natural sentido de minhas
palavras lisas, farão delas o que eu não disse, para me responder com o que lhes não quadra. Bem o
sei eu; bem sei que se hão-de dizer mais liberais e populares... e que os hão-de crer! porque o povo
ainda não aprendeu, não se desenganou ainda, não conhece o abuso de palavras com que em seu
nome, e a titulo de sua, se advoga uma causa que não é dele” (Garrett 1837: 20).
“Mas que igualdade, e que filantropos os que a podem desejar? Que liberalismo o que a proclame?
Igualdade que tem por base e condição forçosa, a servidão hereditária de muitos homens!
(...) para ser absolutamente impossível que a classe média venha jamais a absorver as classes
populares, basta refletir que o maior número dos habitantes de um país há-de sempre ser condenado,
pelas exigências da sociedade, aos lavores afadigosos e materiais que embrutecem e abatem; que o
gozo desse trabalho há-de sempre ser para o menor número; e que onde não houver escravos, aquele
infeliz maior número há-de ser de cidadãos” (Garrett 1837: 21).
Perdendo a liberdade, ganha-se o controlo. Alguém que abre mão da liberdade, ganha a
servidão: “a tirania subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de
pensar” (De La Boétie 2006).
A servidão pode ser uma zona mais confortável que a liberdade, porque a autonomia
incomoda. Mas de que forma a sociedade se manifesta de acordo com o poder absolutista do
tirano? Segundo ele, é o hábito. O hábito de nos acostumarmos com o que nos foi imposto ao
longo do tempo:
a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio
mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela
acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam (De La Boétie
2006).
Ser livre torna-nos responsáveis diante da escolha: É o povo que se escraviza, que se
decapita, que podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e
prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios:
(...) Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade
que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece
ter perdido não a liberdade mas a servidão (De La Boétie 2006).
Seguindo a análise do discurso de Garrett, entramos na última parte, onde ele repreende
de forma ousada e destemida a classe média, à qual ele pertence, a qual está diante dele e que
tem por dever governar um povo que ele considera ter sido explorado de forma cruel e
abusiva:
“Sejamos verdadeiros, digamos o que é e cumpre que seja; façamos com que a classe média recrute
quanto mais poder das fileiras do infeliz povo para suas privilegiadas cortes; facilitemos quanto é
possível a passagem; mas não mintamos, não vamos embair de falsas esperanças os desgraçados que
podem ter a miséria de nos acreditar;
Estas, repito com a mão no peito, e seguro do que digo: estas é que são verdades, pura e lealmente
ditas pela mais humilde boca certamente, mas pela mais sincera que ainda falou português a
portugueses. São duras de ouvir, certo, e mais ousadas de dizer ainda, porque a maior parte dos que
aqui estamos pertencemos à classe média, porque a máxima parte dos que tomamos interesse em
coisas políticas, dela somos, e amarga-nos fazer reflexões destas. Íamos nosso caminho com os olhos
nas sumidades sociais que desejamos ocupar, e sem olhar para trás, para o povo que nos segue, que
nós instigamos, que nos ajuda, e com quem somos liberais de promessas que não podemos, que não
havemos, que ninguém pode nem há-de cumprir-lhe... Paremos em quanto é tempo, paremos que
ainda é tempo” (Garrett 1837: 21-22).
É através dos seus discursos, intervenções políticas que Garrett identifica e desvaloriza
o medo, que enaltece a virtude cívica, os laços e os pactos sociais, percebendo o seu
posicionamento político diante da herança constitucional dos “antigos” e da inevitável
instalação da “liberdade dos modernos”, não perdendo de vista qual o modelo estético eleito
para esse objetivo. E isto porquê? Porque se conhecia como é que a Revolução Francesa tinha
terminado (dezenas de milhar de mortos e colapso da nação) e, portanto, os revolucionários
sabiam que a revolução não devia nem enveredar por métodos radicais, nem pretender apagar
as lições da história:
(...) “a verdadeira câmara dos representantes é património da classe média, pela necessária, inevitável
e profícua organização da urna, não vamos também entregar à mesma classe o monopólio da segunda
câmara. Seria atribuir-nos a gerência toda dos negócios públicos, declararmo-nos absolutos a nós
mesmos, e fazer de nossa feliz e bem quista classe, uma aristocracia odiosa, e mais impopular do que
nenhuma que ainda houvesse.
O que hoje quase é a classe média para o povo, foi ao principio “a aristocracia”, um protetor, um
abrigo, um escudo contra o poder. Foi-lhe mister lutar com os reis; e o povo a ajudou: venceu, e não
tardou a abusar da vitória; de protetora e aliada tornou-se senhora, usurpou tudo, invadiu tudo, abusou
de tudo. E o ciúme dos reis primeiro, a inveja e o ódio dos povos depois, fez justiça ao usurpador.
Caiu como nós havemos de cair, apedrejada da indignação popular, senão refletirmos e nos não
moderarmos a tempo.
Olhando ao contexto histórico podemos afirmar que os anos que antecederam a vida de
Garrett, sobretudo na Europa, foram de uma enorme revolução social e política. Durante a sua
vida, o autor viveu numa Europa exaltada, onde também Portugal, se revolucionava em busca
de uma igualdade de direitos.
Dizer que Garrett foi um dos melhores autores da literatura portuguesa não chega. O
legado, a transformação e a contribuição do autor marca uma nova etapa da História da Nação
Portuguesa.
A sua capacidade literária e intelectual sobressaíam na aristocracia marcando a literatura
portuguesa com obras de notável reflexão, ainda hoje estudadas no sistema de ensino
pedagógico. Garrett, contudo, foi mais longe e criou o teatro nacional, lutou pelos direitos do
homem “escandalizando” o parlamento com os seus discursos célebres. Ao contrário de quase
todos os outros autores da literatura portuguesa, de tão notável destaque, Almeida Garrett, não
procurava o fácil, não se afundara na boémia, nem se ostentava com o poder que possuía.
Pode dizer-se que o período histórico em que viveu exigia uma intervenção, uma luta
constante pela liberdade, uma façanha revolucionária, mas se tal era o seu poder na sociedade,
o autor poderia enaltecer-se pela opressão ao povo, ao invés da luta pela sua salvação.
Destemido e ousado na sua retórica evidenciou por diversas vezes a problemática
principal da sua nação. A sede de poder, a corrupção e a soberba da aristocracia que explorou
o povo para seu bom proveito.
O Romantismo como veículo de comunicação de Garrett ambicionava destruir os
valores vigentes, exaltar e transformar a pátria, criando um novo modelo de vida. Era essa
ideologia que caracterizava o Romantismo de Garrett. O autor usou o passado para legimitar a
pátria, destacou a sua literatura e, por conseguinte, a sua cultura. As lutas liberais e
nacionalistas fariam, assim, parte do imaginário histórico cultural do século XIX, tendo
reflexos nas construções culturais.
Calibrando a literatura popular portuguesa, o autor forjava uma tradição literária ao
mesmo tempo que erigia princípios nacionalistas. A influência que Garrett vai buscar a
autores europeus do passado demonstra a qualidade de adaptação, renovação que ele impunha
nos seus discursos e literatura. Garrett tentava cortar com o passado, mas tinha-o como
elemento obrigatório da nova literatura, uma vez que ele era necessário à legitimação do
presente.
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