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Referências Bíblicas em Otelo, Mário Amora Ramos

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February 22,
2014

A palavra “ciúme” vem do grego e assumiu em latim a forma \”zelus\” (zelo). O ciúme, o
tema central de Otelo, é um zelo excessivo, manifestado sob a forma de um receio de que o
ente amado dedique seu afeto a outrem.

No Antigo Testamento, ele pode assumir uma forma positiva, como um zelo autêntico, a
exemplo do amor de Deus por seu povo. A expressão clássica do ciúme divino é o
mandamento contra a idolatria (Êxodo 20, 5-6), no qual o Senhor se manifesta como “um
Deus zeloso”.

O ciúme é em geral negativo, como na história de José, vendido por seus irmãos aos
negociantes ismaelitas, que o levaram para o Egito (Gênesis 37, 28).

As referências bíblicas listadas a seguir estão apresentadas na ordem em que aparecem na


peça:

“Não sou o que sou” (I am not what I am) (1.1). Segundo Harold Bloom, em \”Shakespeare: a
invenção do humano\”, no capítulo 24, dedicado a Otelo, esta bravata de Iago contradiz o
apóstolo Paulo: “Com a graça de Deus, sou quem sou” (Primeira Carta de São Paulo aos
Coríntios 11, 14).

“Atormente-o com moscas” (Plague him with flies) (1.1). Iago pede a Rodrigo que insufle o
senador Brabâncio contra Otelo, referindo-se à praga das moscas, a quarta das dez pragas
de Moisés contra o faraó do Egito (Gênesis 8, 20-32).

“Este acidente não difere de meu sonho./ Acreditar que tenha ocorrido já me inquieta” (This
accident is not unlike my dream:/ Belief of it oppresses me already) (1.1). A confirmação do
pressentimento de Brabâncio lembra esta inquietação pessimista de Jó: “Todos os meus
temores se realizam, e aquilo que me dá medo vem atingir-me” (Jó 3, 25).

“O alimento/ que para ele parece agora tão saboroso quanto gafanhotos, será/ em breve
tão amargo quanto a coloquíntida” (The food/ That to him now is as luscious as locusts, shall
be/ To him shortly as bitter as coloquintida) (1.3). Iago tenta convencer Rodrigo a insistir na
conquista de Desdêmona, usando como argumento a vontade inconstante do mouro, que
poderá eventualmente desinteressar-se dela. Conta o Evangelho de São Mateus que João
Batista “alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mateus 3, 4).

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“Agora, por falta desses atrativos requeridos, sua delicada ternura achará que se enganou e
passará a ter náuseas, deixar de gostar do mouro e detestá-lo” (Now, for want of these
required conveniences, her delicate tenderness will find itself abused, begin to heave the
gorge, disrelish and abhor the Moor) (2.1). Iago tenta convencer Rodrigo de que a paixão de
Desdêmona por Otelo é passageira. Frank Kermode, em \”A Linguagem de Shakespeare\”,
curiosamente no capítulo dedicado a Hamlet, atribui a esta fala uma influência desta
passagem: “Desce de teu trono, agacha-te ao solo, virgem filha de Babilônia; assenta-te no
chão, sem trono, filha dos caldeus! Já não serás chamada a delicada e terna” (Isaías 47, 1).

“Reputação, reputação, reputação! Oh, perdi minha reputação! Perdi a parte imortal de mim
mesmo e o que sobra é bestial” (Reputation, reputation, reputation! O, I have lost my
reputation! I have lost the immortal part of myself, and what remains is bestial) (2.3). Cássio
lamenta a perda de sua reputação, numa possível uma referência a: “A boa reputação vale
mais que a prata e o ouro” (Provérbios 22,1).

“Quando os demônios tentam com os piores pecados,/ eles inicialmente insinuam-se com
aparências celestiais,/ como eu faço agora” (When devils will the blackest sins put on,/ They
do suggest at first with heavenly shows,/ As I do now) (2.3). Iago comenta consigo mesmo a
sugestão que deu a Cássio de procurar a intercessão de Desdêmona junto a Otelo, para
recuperar o posto perdido. É uma referência ao alerta de Jesus aos seus discípulos quanto
aos “apóstolos camuflados”, dizendo-lhes que “o próprio Satanás se transfigura em anjo de
luz” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 11, 14).

“Mas aquele que surrupia meu bom nome/ rouba de mim o que não o enriquece/ e me
torna deveras pobre” (But he that filches from me my good name/ Robs me of that which
not enriches him/ And makes me poor indeed) (3.3). Nova alusão a: “A boa reputação vale
mais que a prata e o ouro” (Provérbios 22,1).

“Fogo e enxofre!” (Fire and brimstone!) (4.1). Otelo pronuncia esta frase irada após
Desdêmona referir-se inocentemente à amizade que sente por Cássio. É um símbolo bíblico
freqüente de castigo divino. Sodoma e Gomorra foram destruídas por “uma chuva de
enxofre e de fogo” (Gênesis 19, 24). Esta imagem parece ainda no Salmo 10, 6 (11, 6 na
versão hebraica) e em Lucas 17, 29. Há um “lago de fogo sulfuroso” em Apocalipse 19, 20 e
20, 10 e um “tanque ardente de fogo e enxofre” em 21, 8.

“Se algum miserável meteu isso em sua cabeça,/ que o céu o puna com a maldição da
serpente” (If any wretch have put this in your head,/ Let heaven requite it with the serpent’s
curse!) (4.2). Emília nega para Otelo que Desdêmona seja infiel, esperando que o caluniador
sofra o castigo divino imposto à serpente (Gênesis 3, 14-15), quando da expulsão de Adão e
Eva do jardim do Éden.

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“Não, tão certo quanto eu seja cristã./ Se preservar este vaso para meu senhor/ de qualquer
contato impróprio e ilegítimo/ significa não ser uma prostituta, eu não sou” (No, as I am a
Christian:/ If to preserve this vessel for my lord/ From any other foul unlawful touch/ Be not
to be a strumpet, I am none) (4.2). Otelo chama Desdêmona de prostituta e ela nega
indignada a acusação descabida. A palavra “vaso” (vessel) é uma alusão a muitas passagens
que se referem tanto ao homem quanto à mulher. São exemplos: a) “Mas quem és tu, ó
homem, para contestar a Deus? Porventura o vaso de barro diz ao oleiro: _ Por que me
fizeste assim?” (Carta de São Paulo aos Romanos 9, 20) e b) “Temos este tesouro em vasos
de barro, para que transpareça claramente que este poder extraordinário provém de Deus
e não de nós” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 4, 7). No texto da “Versão do Rei
Jaime” (King James Version), de 1611, a mulher é considerada o “vaso mais fraco” (weaker
vessel) (Primeira Carta de São Pedro 3, 7). Na moderna versão RSV (Revised Standard
Version), a expressão está como “o sexo mais fraco” (the weaker sex).

“Paciência, jovem querubim de lábios rosados” (Patience, thou young and rose-lipp’d
cherubin) (4.2). O querubim pertence à segunda ordem de anjos, logo abaixo do serafim.
Quando Adão e Eva foram expulsos do jardim do Éden, este ficou sob a guarda de
“querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida”
(Gênesis 3, 24). É possível que Otelo veja em Desdêmona, com sua suposta infidelidade, um
querubim armado a expulsá-lo de seu paraíso conjugal. O profeta Ezequiel assim descreve
quatro querubins, cada um deles com quatro faces e quatro asas: “Quanto ao aspecto de
seus rostos, tinham todos eles figura humana, todos os quatro uma face de leão pela
direita, todos os quatro uma face de touro pela esquerda, e todos os quatro uma face de
águia” (Ezequiel 1, 10). Estas faces representam: o homem, o rei da criação; o leão, o rei dos
animais; o touro, o maior dos animais domésticos e a águia, a maior das aves. Neste
contexto, Otelo parece acusar Desdêmona de dissimulada, isto é, dona de muitas faces.

“Você, senhora,/ tem o ofício oposto ao de São Pedro,/ e guarda a porta do inferno!” (You,
mistress,/ That have the office opposite to Saint Peter,/ And keep the gate of hell!) (4.2).
Otelo lembra esta designação de Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos
céus” (Mateus 16, 18-19).

“Canção do salgueiro” (song of willow) (4.3). O salgueiro aparece numa canção entoada por
Desdêmona. O salgueiro cresce ao longo de lagos e rios e, com suas folhas estreitas e
longas e ramos flexíveis, simboliza o luto. É conhecido como salgueiro-do-rio e salgueiro-
chorão (Salix babylonica). O nome científico decorre possivelmente do Salmo 136 (ou 137,
na versão hebraica), que se refere à tristeza do cativeiro dos judeus na Babilônia: “Às
margens dos rios da Babilônia,/ Nos assentávamos chorando,/ Lembrando-nos de Sião./
Nos salgueiros daquela terra,/ Pendurávamos, então, as nossas harpas”. É possível que
Desdêmona tema ser banida por Otelo, por conta de sua suposta infidelidade. A própria

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Desdêmona aventa esta hipótese, ao pedir a Otelo: “Oh, senhor, que eu seja banida, mas
não me mate!” (O, banish me, my lord, but kill me not!) (5.2). Emília, antes de morrer, entoa
a mesma canção, na última cena da peça.

“A pobre alma sentou-se, suspirando, perto de um sicômoro” (The poor soul sat sighing by a
sycamore tree) (4.3). Este é o verso inicial da “canção do salgueiro” mencionada acima. Há
muitas referências bíblicas ao sicômoro, uma árvore de boa sombra (Ficus sycamorus),
muito cultivada no Oriente Médio e que produz um fruto comestível semelhante ao figo. O
profeta Amós revela em seu livro: “Sou pastor e cultivador de sicômoros” (Amós 7, 14),
referindo-se provavelmente à colheita de seus frutos. Zaqueu, um homem rico, chefe dos
recebedores de impostos, subiu a um sicômoro para ver Jesus quando ele passasse pelo
local (Lucas 19, 4). Os egípcios utilizavam sua madeira para a fabricação das urnas
funerárias onde encerravam as múmias, o que reforça o tom sombrio da canção entoada
por Desdêmona.

“E suave como o alabastro dos mausoléus” (And smooth as monumental alabaster) (5.2).
Otelo compara a pele de Desdêmona ao alabastro dos mausoléus, numa imagem nada
romântica. O alabastro, do grego alabastros, é uma rocha branca e translúcida, utilizada na
fabricação de estátuas e recipientes desde antes de Cristo. As referências bíblicas a este
mineral são mais amenas. Num jantar em Betânia, na casa de Simão, uma pecadora
aproximou-se de Jesus “com um vaso de alabastro, cheio de um perfume muito caro, e
derramou-o na sua cabeça” (Mateus 26, 7). Ela foi repreendida pelos discípulos, pelo
aparente desperdício, mas Jesus a defendeu, por sua boa ação. Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987) dedica ao episódio um de seus mais belos poemas: Ceia em Casa de
Simão, do livro \”Discurso da Primavera e Algumas Sombras\”.

“Esta dor é celestial;/ ela fere a quem ama” (this sorrow’s heavenly;/ It strikes where it doth
love) (5.2). Otelo parece referir-se a esta passagem: “Pois o Senhor educa quem ama, e
castiga todo filho que acolhe” (Epístola de São Paulo aos Hebreus 12, 6).

“Pálida como sua roupa de dormir! Quando nos encontrarmos, no ajuste de contas,/ seu
olhar arremessará minha alma do céu,/ e os demônios irão apanhá-la” (Pale as thy smock!
when we shall meet at compt,/ This look of thine will hurl my soul from heaven,/ And fiends
will snatch at it) (5.2). O “ajuste de contas” é o dia do Juízo Final referido em vários livros da
Bíblia, destacando-se dentre estes o livro do Apocalipse.

“Se o céu pudesse fazer para mim um outro mundo,/ de uma crisólita perfeita e inteira,/ eu
não trocaria Desdêmona por ele” (If heaven would make me such another world/ Of one
entire and perfect chrysolite,/ I’ld not have sold her for it) (5.2). Otelo refere-se a uma pedra
preciosa da cor do ouro, designada crisólita, do grego chrysos (ouro) e lithos (pedra). Trata-
se de uma das pedras que adornam os alicerces da muralha da Jerusalém celeste, a cidade
dos eleitos (Apocalipse 21, 19-20).

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“Não me perguntem mais nada: o que vocês sabem, sabem” (Demand me nothing: what
you know, you know) (5.2). Iago resolve calar-se e não dizer mais nada em sua defesa.
Quando sugeriram ao governador Pôncio Pilatos que mudasse a inscrição da cruz de “Jesus
de Nazaré, rei dos judeus” para “Este homem disse ser o rei dos judeus”, Pilatos respondeu:
“O que escrevi, escrevi” (João 19, 22).

“Embora sem o hábito de enternecer-se,/ derramou tantas lágrimas quanto as árvores da


Arábia/ seu bálsamo medicinal” (Albeit unused to the melting mood,/ Drop tears as fast as
the Arabian trees/ Their medicinal gum) (5.2). Otelo refere-se aqui à mirra, um dos três
presentes ofertados pelos Reis Magos ao Menino Jesus: “ouro, incenso e mirra” (Mateus 2,
11). O ouro simboliza a realeza de Jesus; o incenso, sua divindade, e a mirra, sua
humanidade. Era um presente caro, por ser um produto importado da Arábia e da Índia.
Alguns de seus usos estão ilustrados nestas passagens: a) como perfume: “Perfumei meu
leito com mirra, aloés e cinamomo” (Provérbios 7,17); b) como óleo de unção e perfume
sagrado, a exemplo desta instrução do Senhor a Moisés: “Escolhe os mais preciosos
aromas: quinhentos siclos de mirra virgem, a metade, ou seja, duzentos e cinqüenta siclos,
de cinamomo, duzentos e cinqüenta siclos de cana odorífera” (Êxodo 30, 23) e c) como
bálsamo para embeber os panos que viriam a envolver o corpo de Jesus: “uma mistura de
mirra e aloés” (João 19, 39).

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