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Anais do XIX Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178

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Anais do IV Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420
23 e 24 de setembro de 2014

A experiência religiosa como Mysterium tremendun et fascinans

João Victor Bulle Paulo Sérgio Lopes Gonçalves


Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas Teologia Contemporânea
Centro de Ciências Humanas e Sociais Centro de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas Aplicadas
vitorbulle@hotmail.com paselogo@puc-campinas.edu.br

Resumo: Com base na obra O Sagrado, de Para essa investigação, partiremos da


Rudolf Otto e na fenomenologia hermenêutica compreensão de como a experiência religiosa
da facticidade de Martin Heidegger, a acontece dentro e a partir da vida fática,
compreensão da experiência religiosa se dá salientando o caráter imprescindível e
fundamentalmente na experiência fática de fundamental de significância inerente a tal
vida. A experiência religiosa acontece a partir experiência. Em seguida, perceberemos que
do contato com o numinoso, que se nos essa experiência acontece a partir do
apresenta como mysterium tremendum et sentimento que a criatura tem ao deparar-se
fascinans, que causa naquele que faz a com o numinoso, que se apresenta como
experiência os sentimentos tipicamente mysterium tremendum et fascinans. Depois,
irracionais de distanciamento e atração, refletiremos sobre a irracionalidade própria da
simultaneamente. Da experiência religiosa experiência religiosa do numinoso. Por fim,
brota a mística, que reflete qualitativamente na tornar-se-á evidente que aquilo que brota da
relação com o numinoso. experiência religiosa e dela depende é a
Palavras-chave: mysterium tremendum et mística, imprescindível à religião que não
fascinans, numinoso, experiência religiosa, deseja desvincular-se da experiência com o
experiência fática de vida, mística. numinoso.

Área do Conhecimento: Ciências Humanas - 2. A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA VIDA


Teologia e Ciências da Religião - PIBIC/CNPq. FÁTICA
Primeiramente, devemos compreender
o que é a experiência de vida fática dentro do
1. STATUS QUAESTIONIS pensamento heideggeriano. A experiência
A possibilidade da experiência pode ser compreendida sob dois aspectos: a
religiosa na vida fática compreendida como ocupação de experimentar e o que é
experiência do ser humano em sua própria experimentado. Para Heidegger a experiência
história significativa de vida com aquilo que vai além do simples “tomar conhecimento”,
denominamos sagrado como algo possível se mas experimentar é confrontar-se com o que é
nos apresenta como problema. Justifica-se experimentado, unindo os dois aspectos supra
esta afirmação o fato de que cabe a nós mencionados.
buscar compreender a forma como essa O fático deve ser compreendido a
experiência religiosa se dá e suas principais partir do conceito de “histórico”, embora não
características. Para isso, utilizamos a obra O se reduza a ele, já que não é realidade natural
Sagrado (1917), de Rudolf Otto, e à luz da e não é coisa concreta. A experiência fática se
fenomenologia hermenêutica de Martin dá no mundo, compreendido tripartidamnete:
Heidegger, na obra Fenomenologia da vida mundo circundante, como aquilo que nos
religiosa que consiste na reunião de três cerca e vem ao nosso encontro (coisas
textos: “Introdução à fenomenologia da materiais, ideias, ciências); mundo
religião” (1920/21), “Agostinho e o compartilhado, outros homens com
neoplatonismo” (1921) e “Os fundamentos características fáticas bem determinadas
filosóficos da mística medieval” (1918/19). (estudante, parente, docente...); e mundo
Aqui consideraremos mais especificamente o próprio, constituído pelo “eu mesmo”. Assim, o
terceiro texto, que de esboços de Heidegger que dá o caráter de fático a uma experiência
em vista de uma preleção que ele não chegou de vida no mundo é a significância, ou seja,
a proferir determinada experiência de vida que se dá no
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mundo só torna-se fática se for carregada de (que é tremor até mesmo físico, como a
significado. (HEIDEGGER, 2010, pp. 14-18) experiência de sentir os pêlos arrepiarem e os
Heidegger afirma que um dos joelhos bambearem) que é natural e brota do
elementos de sentido mais significativos na contato com o mysterium, não
vivencia religiosa é a historicidade, e que esse necessariamente da experiência do numinoso.
mundo da vivência religiosa centra-se numa Otto defende que não foi o simples “medo do
configuração histórica única (2010, p. 307). mundo” (comum) que fez nascer a religião,
Assim, a vivência do religioso na história é o embora as primeiras experiências do
que dá o caráter de significância a essa numinoso feitas pelas religiões primitivas
experiência, isto é, a experiência religiosa é apresentassem manifestações primitivas e
sempre fática, uma vez que faz até mesmo da rudimentares do tremor originado pela
história um momento único. Passemos agora à experiência do numinoso. O temor é causado
compreensão daquele que é o “objeto” da pela ira concebida como o próprio tremendum,
experiência religiosa. entendido e expresso mediante a associação
com algo natural da psique humana. O temor é
algo que imprime ao numinoso o caráter
3. EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: MYSTERIUM distanciador, causando o receio e perturbando
TREMENDUM ET FASCINANS o sujeito da experiência religiosa. (OTTO,
O elemento religioso de que fazemos 2007, pp. 44-59)
experiência é chamado por Rudolf Otto de Se por um lado a experiência do
“numinoso” e está presente em todas as numinoso traz um aspecto distanciador
religiões e sem o qual nem existiriam religiões. (tremendum), de outro ele se apresenta como
Faz isso para evitar palavras desgastadas e fascinans (atraente). O aspecto fascinante
que poderiam dar outras conotações, como (fascinans) do numinoso é esquematizado
“sagrado” ou “santo”. pelos conceitos de amor, misericórdia,
A experiência do numinoso na vivência compaixão, caridade; esse aspecto se
gera naquele que faz a experiência o apresenta também nas exageradas exaltações
“sentimento de criatura”, que é ao mesmo dos bens da salvação, sempre presentes em
tempo sentimento de dependência. Esse todas as religiões. Entretanto o elemento
sentimento é subjetivo, como que a sombra de fascinante não se faz presente somente
um outro elemento, que vem em primeiro lugar nesses anseios religiosos, mas se apresenta
e está fora do sujeito e, por isso, é objetivo e já na meditação e na devoção individual, bem
se chama numinoso. Assim, o sentimento de como no culto comunitário celebrado com
criatura é um reflexo da experiência do seriedade e profundidade, preenchendo a
numinoso, que se apresenta como mysterium alma de modo inefável. (OTTO, 2007, pp. 68-
tremendum et fascinans. (OTTO, 2007, pp. 37- 78)
43) Partindo da compreensão da
Mysterium (mistério) pode ser experiência do numinoso como mysterium
entendido como o oculto, não-evidente, não- tremendum et fascinans, Otto nos faz perceber
entendido, não-cotidiano e não-familiar. O a todo momento que a experiência religiosa
mistério, enquanto já inserido no aspecto não pertence especificamente à esfera do
tremendum, se apresenta também como o racional, mas do irracional. Aqui podemos
espantoso, como se o sujeito fosse perguntar: que significa a experiência religiosa
psicologicamente atingido por um milagre como “irracional”?
(mirum); esse estado de espanto é produzido
unicamente pelo numinoso, enquanto o 4. EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO
Mysterium (mais amplo) pode ser produzido IRRACIONAL
por uma série de outras experiências não
religiosas. O mistério religioso (mirum) se Para Otto, a experiência religiosa é
apresenta como o “totalmente outro”. O tipicamente irracional, não na acepção de
numinoso experienciado é inapreensível em pensamento vago e não submetido à razão,
sua plenitude, de modo que não só as mas entendido como um evento que, pela
limitações do sujeito se interpõem entre ele e o profundidade a ele inerente, foge à
mirum, mas a natureza e a interpretação inteligente. O irracional deve ser
incomensurabilidade do “totalmente diferente” compreendido como misterioso e obscuro ao
também são determinantes nesse processo. ponto de não poder ser submetido ao nosso
pensar conceitual, mas acessível apenas ao
O mistério tende já a ser mistério sentir. Nesse sentido, o mirum, que é o
arrepiante, isto é, o tremendum parte do temor
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totalmente outro, é totalmente indizível. (2007, portanto, só pode ser concebida essa
pp. 97-99) experiência própria da religiosidade através da
A sensação provocada pelo numinoso irracionalidade. (HEIDEGGER, 2010, pp. 296-
não pode derivar de nenhum outro sentimento 301)
ou experiência, de modo que é Nesse campo da irracionalidade
qualitativamente peculiar e original. Essa intrínseca à experiência religiosa do mysterium
sensação realiza uma harmonia entre os tremendum et fascinans, passamos à
contrastes: de um lado, faz temer (e tremer) e, compreensão desta como mística tanto por
de outro, faz a pessoa encantar-se e fascinar- Heidegger quanto por Otto.
se. (OTTO, 2007, pp. 82-85)
Assim, a irracionalidade aparece de 5. EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO
alguma forma em ambos os aspectos. O MÍSTICA
tremendum apresenta-se como totalmente
irracional em si mesmo, já que causa naquele A mística enquanto experiência
que faz a experiência religiosa sensações religiosa é entendida por Otto a partir de seus
(temor, horror, medo) que chegam a dois lados. De um lado, a mística tem como
manifestar-se fisicamente (tremor, pêlos um de seus principais traços a depreciação de
arrepiados, joelhos bambos). O fascinans si mesmo, ou seja, da criatura enquanto tal,
mostra seu lado irracional no enlevo beatífico, relacionada ao sentimento de dependência
compreendido como a experiência de um bem oriundo da experiência com o numinoso. Do
que só a religião concede e a que chamamos outro lado existe exatamente a valorização do
salvação, mas pode ser entendida como “reino transcendente como absolutamente superior,
de deus” ou “contemplação de Deus face a frente ao qual a criatura se sente como um
face” (visão beatífica), seja já aqui presente, nada. (2007, pp. 52-53) Desse modo, fica
seja no futuro; a intensidade dessa experiência evidente a mística como um processo de
é algo fascinante por excelência e irracional aprofundamento da relação entre o sujeito
porque “sabe” dessa realidade de salvação religioso e o numinoso.
através de símbolos obscuros e insuficientes, Ao tratar da mística na Idade Média,
não através de conceitos. (OTTO, 2007, pp. Heidegger apresenta a mística como a forma
48-50.74-77) de expressão da vivência religiosa,
Heidegger também defende que a caracterizada pela plenitude concreta no
vivência religiosa não é teórica, de modo que sentido de uma concrescência eidética, de
nenhuma solução em conceitos e nenhuma modo que até mesmo o tempo dessa vivência
melhor fundamentação são motivações ativas não depende da concepção espacial linear.
e igualmente originárias da respectiva (2010, pp. 292-293) Nesse sentido, a mística
vivência. Diante desse problema, ele afirma como experiência religiosa acontece a partir
categoricamente o calar como fenômeno da vivência do numinoso dentro da concretude
religioso, indicando que não faz sentido ligar a da existência, apesar de independer do tempo.
experiência religiosa a conceitos e elementos Heidegger também apresenta um
racionais, mas sugere que esse tipo de caminho processual para a mística, inclusive
vivência está ligado fundamentalmente à muito semelhante ao de Otto (isso se deve ao
fenomenologia da admiração e fato de ambos terem tido contato e citarem a
maravilhamento. obra de Mestre Eckhart). Esse caminho
Aprofundando mais um pouco, propõe, em primeiro lugar, o comportar-se de
Heidegger investiga como Mestre Eckhart modo negativo com o mundo, não no sentido
definiu a irracionalidade da experiência pejorativo, mas na forma de “desprendimento”,
religiosa. O irracional não é aquilo que se o qual é a motivação originária no religioso.
encontra antes de toda a racionalidade, de Esse “desprendimento”, não teórico, mas
modo que não deve ser compreendido como o emocional, leva ao lado positivo que é a
ainda não determinável, mas como o contemplação de Deus. (HEIDEGGER, 2010,
essencialmente destituído de determinação, p. 294)
baseado no princípio fundamental de que Assim, fica evidente que a mística
somente pode ser conhecido o igual pelo igual. depende da experiência religiosa do numinoso
Assim, podemos entender que a experiência como Mysterium tremendum et fascinans ao
religiosa sofre uma dificuldade de mesmo tempo que a aperfeiçoa preparando o
racionalização baseada na premissa que sujeito que faz experiência através do
aquele de quem se faz experiência é o “desprendimento”/depreciação de si.
numinoso, que é o mirum, o totalmente outro;
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS [6]USARSKI, Frank. “Os enganos sobre o


Principalmente nestes tempos em que Sagrado. Uma síntese da crítica ao ramo
se torna tão difícil afirmar a relação entre o ‘clássico’ da Fenomenologia da Religião e
humano e o divino (o qual, segundo alguns, seus conceitos-chave”, in Constituintes da
está até mesmo morto), refletir sobre a Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de
experiência religiosa a partir da experiência uma disciplina autônoma. Paulinas: São Paulo,
fática de vida é de extrema relevância. Otto e 2006, pp. 29-54.
Heidegger nos apresentam vários argumentos
que nos fazem perceber que a experiência de
Deus na concretude de nossas vidas é
possível. Compreender a experiência com
Deus como mysterium tremendum et fascinans
é muito esclarecedor pois pode ser verificado
em diversas culturas e religiões. Entender
essa experiência como irracional também é
importante, pois ao mesmo tempo que afirma
que não se compreende Deus através
unicamente da via racional e conceitual, alerta
sobre o perigo de tentar racionalizar e
dogmatizar excessivamente a experiência
religiosa.
Contudo, somente conceberá como
verdadeira essa experiência religiosa de Deus
na vida fática como mysterium tremendum et
fascinans quem passar pela mesma
experiência; diz Heidegger: “só um homem
religioso pode compreender a vida religiosa,
pois nos outros casos não teria dados
autênticos” (2010, p. 291).

Referencias bibliográficas
[1]BRUSEKE, Franz Josef. “A técnica moderna
e o retorno do Sagrado”, in Tempo Social 11/1
(1999), pp. 209-230.
[2]CRUZ, Raimundo José Barros. “Rudolf Otto
e Edmund Husserl: considerações acerca das
origens do método de Fenomenologia da
Religião”, in Horizonte 7/15 (2009), pp. 122-
141.
[3]HEIDEGGER, Martin. “Fundamentos
filosóficos da mística medieval”, in
Fenomenologia da Vida Religiosa. Tradução
de Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin e
Renato Kirchner. Vozes – São Francisco:
Petrópolis – Bragança Paulista, 2010, pp. 289-
320.
[4]OTTO, Rudolf. O Sagrado. Os aspectos
irracionais na noção do divino e sua relação
com o racional. Tradução brasileira de Walter
O. Schlupp. EST – Sinodal – Vozes: São
Leopoldo – Petrópolis, 2007.
[5]VATTIMO, Gianni (orgs.). A Religião.
Estação Liberdade: São Paulo, 2000, pp. 109-
124.

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