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Ricardo Leon Lopes

Doutor em Letras Clássicas pela USP (Tese sobre Platão). Mestre em Filosofia pela USP/UFPB
(Dissertação sobre Sartre). Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela USP. Professor de Filosofia do
Curso de Filosofia da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), Paraíba. Líder do Grupo de Pesquisa da UFCG/CNPQ “Existencialismo, Fenomenologia
e Hermenêutica”. E-mail: ricardoleon@uol.com.br.

* Nota dos Editores: Artigo Científico referente à Palestra ministrada pelo Professor Dr. Ricardo Leon
Lopes no I Colóquio de Filosofia Contemporânea Francesa da UFCG, na data de 19.10.2011, organizados
pelo Grupo de Pesquisa “Existencialismo, Fenomenologia e Hermenêutica” da UFCG/CNPq e a
Coordenação do Curso de Fillosofia da UFCG.

CONFLUÊNCIAS ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA NA PEÇA DE TEATRO “ENTRE


QUATRO PAREDES” DE JEAN-PAUL SARTRE

Resumo

Nossa pretensão, neste artigo, é realizar uma breve análise da peça teatral de Jean-Paul Sartre, de título
Entre quatro paredes, destacando as passagens mais significativas da obra e comentando-as à luz dos conceitos
teóricos da ontologia fenomenológica constantes na obra O ser e o nada, notadamente as categorias do Ser (Em-
si; Para-si e Para-outro), e, enfatizando o conflito entre as consciências por meio do olhar.

Palavras-chave: Teatro de situação. Filosofia. Categorias do ser. Para-outro. Conflito.

Abstract

Our intention, in this paper, is to perform a brief analysis of the play by Jean-Paul Sartre, entitled Inside
four walls, highlighting the most significant passages of the work and commenting on them in the light of the
theoretical concepts of phenomenological ontology contained in the work to Be and nothing, especially the
categories of being (In-itself; For-itself and For-other), and emphasizing the conflict between consciences
through the eyes.

Keywords: Theatre of situation. Philosophy. Categories of being. For-others. Conflict.

VEREDAS FAVIP - Revista Eletrônica de Ciências - v. 4, n. 2 - julho a dezembro de 2011


CONFLUÊNCIAS ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA NA PEÇA DE TEATRO “ENTRE QUATRO PAREDES” DE JEAN-PAUL SARTRE

1 INTRODUÇÃO

Numa entrevista a Michel Siscard, Revista Obliques, 1978, Sartre diz que as suas obras filosóficas têm
conteúdo literário e suas obras literárias têm conteúdo filosófico. Sendo assim, creio que a peça de teatro Entre
quatro paredes, em francês Huis Clos, seja uma das mais significativas para podermos enfatizar, através dos
diálogos dos personagens, as categorias fundamentais presentes na obra O ser e o nada, de 1943, de Sartre. Antes
de nos dedicarmos a tal análise, vale a pena precisarmos a importância do teatro na obra sartreana. Segundo
Sartre "O verdadeiro teatro é um apelo a um público ao qual se está ligado por uma comunidade de 'situação'"
(SARTRE, 1977, p. XII). Portanto, através das várias peças escritas por Sartre, como exemplos: As Moscas (Les
mouches) em 1943 e Mortos sem sepultura em 1946, o autor criava o Teatro de Situação. Citamos: "Se é verdade
que o homem é livre em uma situação dada e que se escolhe livre nesta e por esta situação, então é preciso mostrar
no teatro situações simples e humanas e liberdades que se escolhem nestas e por estas situações” (SARTRE,
1977, p. XIV). Ou seja, o teatro deveria mostrar o movimento do homem em direção a sua livre escolha.
A peça Entre quatro paredes, inicialmente, chamava-se Os outros (Les autres). Ela foi concebida, por
Sartre, para a interpretação de duas amigas que estavam se iniciando na carreira teatral: Olga Barbezat e Marie
Olivier. O marido de Olga, Marc Barbezat, diretor da Revista L'Arbalete (A besta), seria o produtor. A direção do
espetáculo e o personagem Garcin, estavam a encargo de Albert Camus. Os ensaios já tinham começado quando,
numa manhã de fevereiro de 1944, Sartre foi informado da prisão de Olga Barbezat numa casa de amigos da
Resistência. Tal fato levou-o a desistir do projeto.
A revista L'Arbalete, em março do mesmo ano, publica a peça e atrai a atenção de Badel, Diretor do
Théâtre Le Vieux-Colombier (O velho Pombal). Para que a peça fosse montada, Badel preferiu um elenco de
profissionais, fazendo com que Camus, não querendo dirigir profissionais, desistisse do projeto.
Em 10.06.44, a peça fazia sua estréia dirigida por Raymond Rouleau e interpretada pelos atores: Gaby
Silvia (Estelle), Tania Belachova (Inês), Michel Vitold (Garcin) e Chauffard (o criado), este último ex-aluno de
Sartre.
No Brasil, foi encenada pela primeira vez em 1950, no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), com a
direção de Adolfo Celli e o seguinte elenco: Cacilda Becker (Inês), Sérgio Cardoso (Garcin), Nídia Lycia
(Estelle) e Carlos Vergueiro (o criado).
A peça de um ato desenrola-se no inferno (não o da mitologia cristã), mas, simbolicamente, num salão
decorado do II Império, com três poltronas e una estátua de bronze sobre uma lareira.
Na peça, os personagens, por ordem de entrada, são:

- O criado que acompanha, uma por uma, as personagens à cena;


- Joseph Garcin (publicista e homem de letras. Pretende passar a ideia de ter sido um herói, quando na verdade foi
um covarde, tanto em vida, e, agora, na nova condição de morto-vivo);
- Inês Serrano (funcionária pública dos Correios e lésbica. A única que não procura álibis que a justifiquem. É
movida pelo ódio e sente prazer no sofrimento dos outros. É sadomasoquista);
- Estelle Rigault (burguesa, coquete, vaidosa. Tem uma filha com um amante. A criança ao nascer é eliminada por

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ela, para que o seu marido não venha a descobrir o seu caso extraconjugal. Diz que o infanticídio foi obra do
destino).

Vamos, ao desenrolar da peça, ressaltando os diálogos mais pertinentes às teses existencialistas de Sartre:

2 CENA I

O criado acompanha Garcin até o quarto onde este ficará. Este, ao entrar, olha ao redor, contempla o
espaço e a mobília e diz que com o tempo deverá se acostumar com os móveis. Posteriormente, pergunta ao criado
se todos os quartos são iguais, obtendo como resposta um não, haja vista que no inferno recebem pessoas de todas
as nacionalidades e nem todas, como os chineses e hindus, teriam o que fazer com uma poltrona do II Império.
Garcin, assustado diz ao criado:

E eu? Que quer que eu faça? Sabe quem era eu? Ora! Isso não tem importância. O que é fato é que sempre
vivi no meio de móveis de que não gostava, e de situações falsas; achava isso adorável. Que tal uma
situação falsa numa sala de jantar Luis Filipe? (SARTRE, 1977, p. 8).

Neste trecho fica clara a existência de Garcin. Enquanto vivo, ao invés de assumir a sua liberdade,
revoltando-se contra essas situações que não lhe convinham, aceitava-as mesmo não se sentindo bem pela
postura adotada, talvez, por buscar agradar os outros, isto é, às outras consciências distintas da sua. Assim temos a
chamada existência inautêntica sartreana, na qual o indivíduo não escolhe o que deseja. Para fugir da escolha que
lhe angustia refugia-se na má-fé. Nesta, finge escolher sem escolher, colocando a culpa em alguém ou no destino.
Essa é a postura típica de alguém que mente para si mesmo como forma de escapar às escolhas que terá de fazer,
diferentemente da mentira que é enganar o outro para se tirar qualquer benefício daquilo que se mente.
Depois, Garcin questiona o criado sobre as estacas, as grelhas, os funis de couro, objetos, supostamente,
presentes no inferno conforme o imaginário dos homens que estão vivos no mundo temporal. O criado lhe diz que
ele deve estar brincando, uma vez que no inferno não há nada disso. Garcin, olhando em torno, percebe que não há
espelhos, cama, e, finalmente, depara-se com uma estátua de bronze. Lá está ela em toda a sua plenitude como é a
do ser Em-si: determinada, fechada, sendo o que é, sem qualquer possibilidade de ser algo distinto. Como
exemplo: uma pedra. Ela é o que é. Ela é em-si, determinada.
Garcin, novamente, atenta para a sua real situação ao afirmar:

Já sei: é a vida sem interrupção... Ai está o que explica a indiscrição grosseira e insustentável do seu olhar.
De fato, estão atrofiados [...] Das suas pálpebras. Nós outros, nós batíamos as pálpebras. Chama-se isso
piscar. Um pequeno relâmpago negro, uma cortina que cai e se ergue: deu-se a interrupção. Os olhos se
umedecem, o mundo se aniquila. Você não pode imaginar como era refrescante [...] Então vou viver sem
pálpebras? Não se faça de bobo. Nunca mais hei de dormir [...] Como poderei me tolerar? (SARTRE, 1977,
p. 11-12).

Nesta passagem, Garcin mostra todo o seu pavor de não poder mais fechar os olhos diante dos medos, das
angústias, do pavor da existência e poder se aliviar por um determinado momento, pequeno que seja. Agora,
resta-lhe permanecer com os olhos sempre abertos, vendo sempre e sendo sempre visto, sem possibilidade de
qualquer refrigério. Não há mais como aniquilar o mundo e seus fantasmas. Não há mais como aniquilar o seu

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oponente, seja quem for. Simbolicamente, é como numa luta de boxe, na qual um lutador ferozmente golpeado
pelo seu oponente, busca fechar os olhos para tentar apagar a imagem dele de sua frente, numa tentativa de fuga
da situação em jogo. Teses filosóficas bem expressas por Sartre na Terceira parte: O Para-outro, na obra O ser e
o nada, como veremos mais à frente.
Garcin apavora-se com a constatação de que fora do quarto, onde está encerrado, só existem corredores, e
nesses, outros quartos que também ficam fechados; além disso, a comunicação com o criado dá-se, quando
necessário, por uma campainha. Porém, o criado lhe adverte: ela é caprichosa e nem sempre poderá ser atendido
no seu chamado. Afora isso, o quarto permanece constantemente iluminado por uma lâmpada, sem que haja
qualquer interruptor para apagá-la. Assim, Garcin percebe: "Muito bem. Quer dizer que a gente tem que viver de
olhos abertos [...] Para sempre. Será pleno dia nos meus olhos. E na minha cabeça" (IBID, 1977, p. 14). Isto é, não
poderá furtar-se de ver e ser visto, sempre.
Garcin observa também a existência no quarto de um cortapapel, sem que o criado lhe explique o motivo
de sua existência naquele ambiente.
Finalmente, o criado sai.

3 CENA II

Garcin fica só. Levanta-se, alisa o bronze, vai até a campainha e aperta-a por três vezes, em vão, nada
acontece. Dirige-se à porta e tenta abri-la, porém, sem qualquer resultado. Chama o criado, mas não obtém
resposta. Depois, ao sentar-se, a porta se abre e entra Inês, acompanhada pelo criado.

4 CENA III

Inês é deixada no quarto juntamente com Garcin. Antes, de sair, o criado diz-lhe que, qualquer dúvida
sobre o local, pergunte a Garcin.
Garcin, em silêncio, não olha para Inês. De repente, Inês pergunta-lhe sobre o paradeiro de Florence (a
sua amante que acabou morrendo juntamente com Inês. Florence provocou um vazamento de gás por estar
chocada com a situação do relacionamento entre elas, ainda mais pelo remorso de ter enganado o seu namorado).
Garcin, desculpando-se diz que não sabe de nada e pergunta a Inês se ela sabe com quem está falando. Inês diz:
“O senhor? O senhor é o carrasco” (SARTRE, 1977, p. 20). Garcin, sobressaltado e rindo nervosamente lhe diz:
"É um equívoco engraçadíssimo. O carrasco: é boa! A senhora entrou, olhou para mim, e pensou: é o carrasco.
Que extravagância! O criado é um ridículo: deveria ter-nos apresentado [...]” (IBID, p. 20).
Esse diálogo é muito elucidativo para a compreensão da relação entre as categorias do ser em Sartre: o
Para-si (o homem, a consciência) e o Para-Outro (o outro, a outra consciência). O encontro entre esses dois seres
é um encontro conflituoso, como enfatizaremos posteriormente, haja vista que uma consciência ao deparar-se
com a outra, a julga, faz juízo de valores acerca de sua existência, mede o seu poder em relação à outra. Portanto, é
um choque de duas transcendências distintas, cada uma querendo ser mais livre em relação à outra. Por isso,
também, através do olhar, ao vermos outra consciência, fazemos uma série de suposições sobre ela,
objectivando-a, isto é, tornando-a objeto pelo meu olhar, coisificando-a. Esse é o sentido da frase de Inês. Entrou,

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o viu e o julgou como carrasco, sem ainda ter conhecimento de quem ele é ou foi.
Após esse primeiro contato, Garcin diz a Inês que entende perfeitamente a situação, ou seja, de ficarem
hospedados juntos naquele espaço, lamentando o fato de sua presença aborrecê-la. Propõe-lhe, então,
conservarem entre eles um relacionamento polido, haja vista que ele pretende pôr a sua vida em ordem.
Nesse sentido, parece que Garcin novamente está alheio a sua devida situação (recaiu na inautenticidade),
já que morto não pode pôr mais a sua vida em ordem, pois o que está feito não pode ser mais mudado.
À proposta de Garcin, Inês responde-lhe que não é uma pessoa bem-educada.
Garcin insiste que fará todo o possível para se relacionarem o melhor possível. Depois de um breve silêncio,
Garcin está sentado em seu sofá; cada uma das personagens tem o seu. Inês olha para ele e, volta a criticá-lo
acidamente:
Essa boca [...] Não é capaz de fazer parar a sua boca? Ela gira como um pião debaixo do nariz [...] Pretende
ser bem-educado e deixa sua cara assim à toa. O senhor não está sozinho e não tem o direito de me impor o
espetáculo do seu medo. (SARTRE, 1977, p. 22-23).

Novamente, Inês através de seu olhar inquisidor, julga os atos de Garcin e reprova-o. É o choque das duas
categorias do ser tão recorrentes nesta peça, fazendo com que o conflito irrompa entre eles.
Garcin, surpreso, pede desculpa a Inês, perguntando-lhe se esta não tem medo. Inês responde-lhe "[...] o
medo era bom antes, quando tínhamos esperança" (IBID, p. 23).
Isto é, o medo só existe quando estamos vivos, vivendo nossa historicidade, nossa temporalidade,
deparando-nos, conforme Sartre, com temores que podemos identificar objetivamente. Como exemplos: tenho
medo de ser assaltado; tenho medo de viajar de avião; tenho medo de sofrer uma queda de um penhasco. Portanto,
o medo é tudo aquilo que podemos identificar como prejudicial à nossa existência, e, que, afronta as nossas
possibilidades rumo à concretização de nosso projeto, através de nossos atos. Agora, mortos, tudo já está
consumado.
Ao contrário de Garcin, Inês entende plenamente a situação que está vivendo no momento. É mais
autêntica do que ele.
Depois desse diálogo, Garcin vai sentar-se em seu sofá. É, novamente, assomado por um tique nervoso na
boca que procura esconder de Inês. Esta caminha pelo espaço, colocando o rosto entre as mãos.
Aqui, outra característica da relação entre o Para-si e o Para-outro: a questão da vergonha. Esta só existe
porque existe o outro para testemunhar os meus atos. Caso estivesse só no mundo não teria vergonha de nada.
Poderia fazer o que bem entendesse. É famoso o exemplo que Sartre cita na obra O ser e o Nada: um homem no
quarto de um hotel. No quarto, ao lado do seu, a sua vizinha é uma bela mulher. Ele deixa o seu quarto, observando
que o corredor, que dá acesso aos demais quartos, está vazio. Ele sente-se só, livre para fazer o que quiser.
Resolve, portanto, olhar pelo buraco da fechadura do quarto de sua vizinha. E ao olhar descobre um belo
espetáculo: a sua vizinha trocando de roupa. De repente, percebe que alguém que caminha pelo corredor o está
vendo, e, dessa forma, julga o seu ato. Assim, o observador do quarto da vizinha, que tinha toda a liberdade do
mundo para fazê-lo, sente a sua liberdade diminuída. Ele se sente ruborizar pelo olhar do outro. Descobre-se
envergonhado pelo olhar do outro.

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O olhar do outro faz com que eu me veja como o outro me vê, por isso ruborizo-me. Como diz Sartre: "O
olhar do outro me tira do meu mundo, me leva para o mundo dele que é o meu mundo e mais além". Isto é, ao ser-
visto o outro me julga sobre os meus atos, porém eu não tenho acesso ao seu julgamento, mesmo que seja eu e os
meus atos que estejam em causa. Assim, ao julgar-me o "olhar do outro me faz com que seja uma transcendência-
transcendida". A saber, eu, enquanto Para-si, ontologicamente, sou o que não sou e não sou o que sou, ou seja,
continuamente estou sempre me transcendendo, transformando-me em busca de minha essência, e ao ser visto e
julgado pelo Para-outro sou petrificado naquele ato. Vale à pena citar o personagem Paul Hilbert do conto
Erostrato, de Sartre, na obra O Muro (1965). Hilbert, num quarto de um prostíbulo, pede para que uma prostituta
se dispa diante dele, que está sentado em uma poltrona, com um revólver apontado para a mulher, olhando-a
despudoradamente à busca de prazer. A prostituta sente aversão pela situação (vergonha), embora acostumada
aos diversos pedidos dos fregueses, só se despe após as reiteradas ameaças de Paul Hilbert em usar a arma de
fogo.

5 CENA IV

À medida que Garcin esconde seu rosto, entram o criado e Estelle no quarto. Estelle tensiona o ambiente
ao dirigir-se com as seguintes palavras a um Garcin cabisbaixo e surpreso, julgando-o através do olhar: "Não!
Não erga a cabeça. Eu sei que você está escondendo nas mãos, eu sei que você não tem cara" (SARTRE, 1977, p.
25).
Após essas palavras, Estelle percebe que os três terão de viver juntos e põe-se a reclamar da cor de seu
sofá que é verde-espinafre por não combinar com o seu vestido azul-claro. Inês lhe oferece o seu sofá bordô,
mas Estelle se interessa pelo de Garcin, que, gentilmente, acaba lhe cedendo com a aquiescência de Estelle. Os
personagens se apresentam um ao outro e o criado deixa o quarto.

6 CENA V

Agora o círculo fechou-se. Todos os personagens estão em situação. Agora o conflito vai generalizar-se
definitivamente, aumentando a cada momento os focos de tensão.
Inês fala que seu passamento, vítima de gás, deu-se na semana passada, enquanto Estelle diz que foi
ontem, vitimada pela pneumonia. Estelle, como que projetando numa tela de cinema o seu funeral, conta os
detalhes do mesmo: o sofrimento de sua melhor amiga, de sua irmã e o pesar de seu marido. Ao ser perguntado
por Estelle, Garcin diz que o motivo de seu passamento, um mês atrás, aproximadamente, deveu-se a doze balas
no peito. Chocada, Estelle diz que quando se referirem à morte que utilizem o termo de "ausentes".
Nova personagem que procura assumir uma postura de inautencidade.
Garcin aproveita para falar do seu infausto: a ida de sua mulher, vestida de preto, à prisão. Todavia, já não
o encontra, pois ele já havia morrido. Garcin, aproveita para criticá-la, ao afirmar que os olhos dela, de vítima, lhe
irritavam. Distraidamente, Garcin, senta-se no sofá de Estelle que o reprova. Garcin, desculpando-se, diz: "Estou
pondo minha vida em ordem (Inês começa a rir). Os que riem fariam melhor se me imitassem" (SARTRE, 1977,
p. 32). Garcin, novamente, esquece-se que não há mais como pôr sua vida em ordem, uma vez que ele já está

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morto, aniquilado, transcendido pela morte, que é a aniquilação das possibilidades humanas. Inês, ao contrário,
diz: "Minha vida está em ordem. Perfeitamente em ordem. Ela mesma se pôs em ordem por lá; não tenho que me
preocupar com isso” (SARTRE, 1977, p. 32).
Os interesses em jogo são variados: Inês, lésbica, tenta conquistar com insistência a única mulher no
quarto, Estelle, dizendo-lhe que ela é muito bonita e que gostaria de ter flores para recepcioná-la. Perguntada por
Estelle se gosta de homens em mangas de camisa, uma referência a Garcin que ameaçou tirar o seu paletó, Inês
responde-lhe que não gosta muito de homens. Estelle espantada com tantas diferenças entre eles pergunta-lhes,
então, porque os colocaram juntos. À resposta de Garcin ao afirmar que foi o acaso que os reuniu, Inês, rindo,
responde prontamente:
Porque o senhor me diverte com essa história de acaso. Será que o senhor tem tanta necessidade de ter
certeza? Eles não fazem nada por acaso [...] O acaso! Então, é por acaso que estes móveis estão aqui? É por
acaso que o sofá da direita é verde-espinafre e o da esquerda é bordô? Por acaso, não é? Pois experimentem
trocá-los de lugar, e vão ver o que acontece. E esse bronze, também é um acaso? E este calor? Este calor?
(Um silêncio.) O que lhes digo é que tudo isto foi preparado com carinho, nos mínimos detalhes. Este
aposento estava à nossa espera. (SARTRE, 1977, p. 34, 36).

Ela percebe que foram colocados juntos, premeditadamente, para que cada um deles fosse o carrasco do
outro. Portanto, uma forma de mostrar o conflito existente no relacionamento humano, que está próximo de seu
auge no desenrolar desta última cena.
Os personagens, buscando compreender o possível motivo de serem colocados juntos, passam a expor
como morreram, obviamente, alguns deformando a verdadeira situação dos fatos ocorridos: Estelle dizendo que
se recusou a fugir com o seu amante, quando na verdade cometeu um infanticídio; Garcin, diretor de um jornal
pacifista, diz que foi fuzilado por ter tido a coragem de se recusar a ir à guerra, quando, na verdade, para não ter se
engajado no exército, por medo, procurou fugir. Inês percebe claramente a manobra deles ao mentirem, e,
veementemente, diz:

Entre assassinos. Estamos no inferno, minha filha; e aí não pode haver erros, e não se condena ninguém à
toa [...] No inferno! Condenados! Condenados! [...] Condenada, a santinha. Condenado, o herói sem
mácula. Tivemos nossos momentos de prazer, não é verdade? Houve pessoas que sofreram por nós até a
morte, e isso nos divertia bastante. Agora, temos que pagar. (IBID, p. 40-41).

Inês, mesmo com o grito de cale-se de Estelle, e, a mão erguida de Garcin para ameaçar golpeá-la, no
sentido de fazê-la silenciar, continua:

Vão ver como é tolo. Tolo como tudo. Não existe tortura física, não é mesmo? E, no entanto, estamos no
inferno. E ninguém mais chegará. Ninguém. Temos que ficar juntos, sozinhos, até o fim. Não é isso? Quer
dizer que há alguém que faz falta aqui: o carrasco [...] Cada um de nós é o carrasco para os outros dois,
(IBID, p. 41-42).

As palavras de Inês repercutem com força. Eles param para refletir sobre elas. Depois de um tempo,
Garcin propõe um pacto entre eles para um relacionamento ameno, ou seja, que cada um deles olhe-se para si
mesmo, sem levantar a cabeça. Após a concordância de Estelle, Garcin dirige-se ao seu sofá e esconde o seu rosto
entre as mãos. Passado um tempo, em que Inês canta e Estelle procura empoar o seu rosto e pintar os seus lábios,
voltam ao diálogo, quando do pedido de Estelle de um espelho para ver a sua maquiagem. Inês aproveita-se do
fato para fazer nova corte a Estelle, dizendo-lhe que pode servir-lhe de espelho, aliás, refletindo de maneira fiel à

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imagem de Estelle pintada. Esta muito constrangida volta-se para Garcin, como que pedindo auxílio, porém em
vão. Inês diz que é melhor que Estelle retoque a pintura dos lábios, oferecendo-se para auxiliá-la nessa tarefa. Ao
terminarem, Inês diz a Estelle: "Melhor. Mais pesado, mais cruel. Essa boca de inferno [...]” (SARTRE, p. 47).
Em seguida, Estelle manifesta toda a sua impotência diante do acontecido:

Hum! Está bem mesmo? Como é desagradável; não poder julgar-se por si mesma [...] Não sei a senhora me
intimida, Minha imagem, nos espelhos era domesticada. Eu a conhecia tão bem! [...] Eu vou sorrir; meu
sorriso irá até o fundo das suas pupilas, e Deus sabe o que será dele! (IBID, p. 48).

A insistência amorosa de Inês incomoda Estelle, notadamente, por esta não poder ver-se completamente
através de seu olhar, de sua consciência, de acordo com a imagem que faz de si e ter de depender do olhar do outro
para ver-se e sentir-se, sem qualquer possibilidade de controle do julgamento de quem a vê. Vale ressaltar,
portanto, que a relação de uma consciência para outra consciência nunca é de conhecimento, pois não sei o que o
outro está pensando sobre mim ou como me vê, mas sim de ser.
Estelle, com medo de Inês, tenta conquistar o único homem que está disponível no aposento, esperando
que ele também olhasse para ela com desejo. Porém, Garcin, nesse momento, diz não se interessar por Estelle,
por estar preocupado com as suas questões pessoais. Todos estão de pé, uns diante dos outros, e continuam a
discutir acaloradamente. Garcin propõe que voltem a ficar em silêncio, cada um em seu lugar, para evitarem a
tensão. Inês não aceita, e, bruscamente, diz-lhe:

Ah! Esquecer! Que infantilidade! Eu o sinto até nos meus ossos. Seu silêncio grita em minhas orelhas.
Pode soldar a boca, pode cortar a língua, será que por isso o senhor deixaria de existir? [...] O senhor
roubou até meu próprio rosto, o senhor conhece o meu rosto e eu não o conheço. E ela? Ela? O senhor
roubou-a de mim, se estivéssemos sozinhas, pensa que ela me trataria como me trata? [...] Nada disso!
Quero escolher meu inferno, olhar para o senhor de olhos abertos e de rosto nu. (IBID, p. 52).

Além da questão do olhar, ser-visto sem se ver, Inês afirma a sua liberdade, mesmo diante dessa situação-
limite, isto é, na qual a liberdade humana tem o seu espaço de ação bem limitado, enfatizando que ela quer
escolher as suas ações. Na obra sartreana, a questão da escolha é fundamental. Uma vez que o homem não é, mas
existe, é através da escolha de um projeto para si que constrói a sua essência. Mesmo que essa escolha provoque
nele a angústia, diante das várias possibilidades de opções para realizar o seu projeto.
Garcin, irritado com as palavras de Inês, numa atitude provocativa, para atormentá-la, aproxima-se de
Estelle e lhe acaricia o queixo, convidando-a a se despojarem da polidez e da cerimônia a fim de ficarem
"nuzinhos como minhocas” (SARTRE, 1977, p. 53). Diante da recusa de Estelle, vai mais além e propõe que
todos fiquem nus, ou seja, que todos digam uns aos outros porque foram condenados ao inferno. Ele começa
falando do mal que fazia à sua mulher ao chegar bêbado em casa, dos murmúrios que ela escutava quando ele
dormia com uma mulata que trouxe para casa como empregada, e, quando a sua esposa, ao levar para ele e sua
amante o café com leite na cama, nada dizia. No entanto, os seus olhos observam tudo: "apenas seus olhos. Seus
grandes olhos” (IBID, p. 54).
A esposa de Garcin assume a típica postura de masoquista para que a relação amorosa seja capaz de durar
por um determinado período. Mas, segundo Sartre, ela está fadada ao fracasso, pois, nem mesmo o amor é capaz
de eliminar o conflito existente entre as pessoas. O masoquista, embora seja uma consciência, um sujeito, adota
uma postura de objeto, acreditando poder salvar o relacionamento amoroso. Todavia, como é uma consciência,
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num momento qualquer ela volta, novamente, a aflorar. Quando isso ocorre, o relacionamento amoroso fracassa.
Chega o momento de Inês falar de sua condenação: a sua moradia na casa de seu primo e sua companheira
Florence. Aos poucos foi seduzindo Florence, mostrando-lhe os defeitos de seu primo. Depois o abandono de
Florence do seu companheiro, levando-as a se mudarem para outro quarto no outro lado da cidade. Como
primeira conseqüência, a morte do primo debaixo de um bonde. Posteriormente, depois de seis meses de união
com Florence, esta, numa noite, abre a torneira de gás levando-as à morte. Inês dá o seu veridito pelos seus atos:
"Eu, sim, sou má, quer dizer que preciso do sofrimento dos outros para existir. Uma tocha. Uma tocha nos
corações. Quando eu estou sozinha, apago-me [...]” (IBID, p. 59).
De novo a dificuldade da relação amorosa em resolver o conflito humano, na qual o sádico, resguardando
a sua liberdade, embora querendo amar o amado como sujeito, faz com que ele se torne um objeto em suas mãos.
Isso ocorre até o momento que o amado reassuma a sua liberdade, negando-se, enquanto sujeito, a continuar
sendo um objeto.
É chegada a vez de Estelle falar do motivo de sua condenação ao inferno. Assustada, pretende negar-se a
falar, tenta evadir-se pela porta de entrada do aposento, sacudindo-a, sem qualquer resultado. Aperta o botão da
campainha, mas esta não toca.
Garcin e Inês riem. Não encontrado alternativa, resolve contar: fala de seu amante, Roger, que deu um tiro
em seu rosto, porque a filha nascida do relacionamento deles, que ele tanto queria, foi jogada num lago por
Estelle, atada a uma pedra, para que seu marido nada desconfiasse. Ao final do relato, Estelle chora
convulsivamente.
Todos, agora, estão "nus como minhocas", como queria Garcin, mas para Inês, talvez, nada tenha
adiantado. Garcin propõe que se ajudem uns aos outros. Inês recusa. Garcin pondera que "[...] nenhum de nós
pode se salvar sozinho. Temos que nos perder juntos ou nos desvencilhar juntos. Escolha [...]” (SARTRE, 1977,
p. 65). Inês diz-lhe que não pode ajudá-lo e dirige o seu olhar para Estelle. Garcin adverte-a que a sua preocupação
para com Estelle trará a infelicidade para os três. Esta será o carrasco dela. Inês afirma que não desiste facilmente
de seu intento e alerta Garcin que o quarto também tem muitas armadilhas para ele. Pede-lhe que se afaste do
relacionamento entre as duas, evitando assim qualquer tipo de aborrecimento. Garcin concorda.
Estelle, diante das memórias da vida passada que ainda a atormentam, pede socorro a Garcin. Inês tenta
convencê-la que "[...] não há mais nada de você sobre a terra, tudo quanto você tem está aqui. Quer a faca de cortar
papel? O bronze [...]? O sofá azul é seu. E eu, meu bem, eu sou sua, para sempre”. (IBID, p. 71). Estelle percebe a
sua real situação. Solicita a Garcin que a olhe e a abrace. Inês interfere e o afasta de Estelle. Esta se agarra a Garcin
para mantê-lo ao seu lado, mas ele a repele, pedindo que se entenda com Inês. Estelle nada quer com esta, por ser
mulher. Inês insiste, dirige-lhe doces palavras, mas Estelle cospe-lhe no rosto. Inês rebela-se contra Garcin por
atrapalhar o seu assédio a Estelle. Garcin, então, resolve atender ao convite de Estelle, mesmo diante dos
impropérios lançados por Inês: "Ah! Cadela! De rastros! De rastros! E ele nem mesmo é bonito!” (IBID, p. 76).
Garcin faz menção de beijar Estelle e aprofundar as carícias, mesmo diante da ira de Inês:
Deixa-a! Deixa-a! Não a toque com essas mãos sujas de homem! [...] Não tirarei os olhos de vocês, Garcin;
você terá que beijá-Ia sob o meu olhar. Que ódio tenho de vocês dois! [...]. Estamos no inferno e minha vez
chegará. (IBID, p. 78).

Quando Garcin se debruça sobre Estelle para beijá-la, interrompe seu gesto para escutar, como se pudesse
ver do inferno o que se passava na Terra, o que os amigos do Jornal, no qual trabalhou, diziam ao seu respeito.

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Antes, porém, imaginando o que poderia surgir sobre a sua vida, pede a Estelle que confie nele independente
daquilo que for revelado: o seu fuzilamento por ter desertado. Inês mostra-lhes a verdade, dirigindo-se a Estelle:
"Meu tesouro, você deve dizer que ele fugiu como um leão. Porque ele fugiu, o seu queridinho. E é isso que o
atormenta” (SARTRE, 1977, p. 81).
Garcin não quer passar para Estelle a sensação de ser covarde, porém não engana Inês que o instigava a
responder sobre os seus atos. Garcin procura defender-se de Inês:
Cale-se! Pensa que eu preciso de seus conselhos? Eu andava, na minha cela, noite e dia, da porta à janela,
da janela à porta. Eu era o espião de mim mesmo. Fui seguindo meu próprio rastro. Tenho a impressão de
que passei toda uma vida a interrogar-me [...]. (IBID, p. 83).

A frase enfatiza a angústia do Para-si, de Garcin, diante da escolha que deverá tomar. É expressiva a frase
de Sartre "o homem é angústia". Garcin interroga-se sobre os seus motivos e suas decisões. Assim, a angústia,
longe de levar-nos à inação, à prostração, tem como finalidade levar-nos a agir, a escolher, a tomar posição.
Angustio-me porque desprovido de essência cabe-me construí-la através dos meus atos; porque a minha decisão,
além de me afetar, atinge também aos outros: aqueles que me conhecem, e, que, através de minha escolha, farão
um juízo sobre o meu ato. Eu nada sou além dos meus atos. Assim, a angústia difere-se do medo, que está ligado a
um objeto determinado que me amedronta. Ela está ligada a um objeto indefinido que é minha reação diante
daquilo que temo, por exemplo, o medo de ser assaltado. Eu tenho medo disso, mas não sei, à medida que tal fato
ocorrer, qual será a minha reação. Portanto, a angústia é o medo do medo.
Inês, provocativamente, pergunta a Estelle se gosta de covarde. Esta, responde-lhe não se importar, desde
que ele saiba beijar. Garcin, por seu lado, continua preocupado com a opinião dos seus companheiros de Jornal.
Principalmente, quando imagina o que eles estão pensando a seu respeito:

Garcin é um covarde, eis o que ficou decidido entre eles, os meus companheiros [...]. Não, eles não me
esquecem. Vão morrer, sim, mas virão outros que hão de repetir a senha, Deixei minha vida em suas mãos
[...] Ah! poder voltar a estar entre eles, um dia só! Que reviravolta! Mas eu estou fora do jogo. Dão o
balanço sem contar comigo e têm razão, pois que estou morto. Morto como um rato. (Ri.) Caí no domínio
público. (IBID, p. 84-86).

Trecho dramático no qual a tensão entre a existência e a liberdade é significativa. Garcin, enquanto vivo,
agiu como covarde. Seus atos o qualificaram como tal, porque foram resultados de sua escolha, de sua liberdade
de agir. Se, ainda, tivesse vivo, por ser uma transcendência, sempre em contínua modificação, poderia alterar os
seus atos e dar a si uma nova qualificação, pois enquanto “vivo existe, nada é”. Agora, morto já é, não pode mais
alterar o seu passado, pois os seus amigos, aqueles que o conheceram são os guardiões dele. Ele caiu no domínio
público, não há mais o que fazer. Tornou-se um Em-si.
Garcin pede a Estelle que faça um esforço para não vê-lo como covarde, pois assim seria salvo, e, em
contrapartida, ficaria gostando imensamente dela. Inês quer fazer Garcin acreditar que Estelle esteja mentindo,
mas esta pede a Garcin que confie nela, para que ela possa, também, confiar nele. Inês continua açodando Garcin,
até que este, em dúvida, diz às duas mulheres que tem nojo delas e tenta evadir-se porta afora. Aciona a
campainha, mas ela não toca. Esmurra a porta e ela não abre. Estelle tenta dissuadi-lo a ficar, mas Garcin diz que a
odeia mais que a própria Inês e a compara a um polvo (pegajoso e mole).

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Interessante essa comparação, haja vista que um dos temores pessoais de Sartre era ser arrastado por um
polvo para as profundezas do mar, quando fosse tomar banho.
Estelle chama-o, então, de covarde. Garcin, continuando a esmurrar a porta, dizendo:

Abram! Vamos, abram! Aceitarei tudo: todos os suplícios, as tenazes, o chumbo derretido, as pinças, o
garrote, tudo o que queimam tudo o que rasga; quero sofrer de verdade. Prefiro cem dentadas, prefiro a
chibata, o vitríolo a este sofrimento cerebral, esse fantasma de sofrimento, que roça, que acaricia e que
nunca dói bastante. (Agarra o trinco da porta e o sacode.) Abre ou não? (A porta se abre bruscamente, ele
quase cai.) Ah! (SARTRE, 1977, p. 90).

Seria preferível o sofrimento do inferno judaico-cristão, se houver, do que o sofrimento gerado pelas lutas
das consciências em jogo, cada uma sendo o carrasco para a outra.
Inês incita Garcin a ir. Este não consegue entender porque a porta se abriu. Garcin recusa-se a ir. Estelle,
atirando-se sobre Inês pelas costas, pede para que Garcin a ajude a arrastar Inês para fora e fechar a porta,
deixando-a de fora. Inês sente medo, pedindo que não lhe atirem no corredor. Garcin ordena a Estelle para soltá-
la. Garcin revela que ficou no aposento por causa de Inês. Estelle, soltando Inês, olha Garcin com assombro. Este
explica a sua decisão:

Você, Inês, sabe o que é um covarde [...]. Você sabe o que é o mal, a vergonha, o medo [...]. É você que eu
devo convencer: você é de minha laia. Pensou então que eu iria embora? Eu não poderia deixar você aqui,
triunfante, como todos esses pensamentos na cabeça; esses pensamentos que me dizem respeito.
(SARTRE, 1977, p. 92-93).

Inês lhe diz que tem a cabeça dura e que custa a ser convencida. Entretanto, eles sabem que terão todo o
tempo que for necessário para tal; estão na eternidade. Garcin, tomando Inês pelo ombro, desabafa: “Morri cedo
demais. Não me deram tempo de praticar os meus atos". Porém, Inês retruca: "Morre-se sempre cedo demais - ou
tarde demais. No entanto, a vida aí está: liquidada. Já foi passado o traço debaixo das parcelas, resta fazer a soma.
Você nada mais é do que a sua vida” (IBID, p. 94).
Há uma ética ao defender uma moral de autenticidade e denunciar a toda a ilusão de isolamento e
irresponsabilidade. O homem tem que se inventar: o homem é aquilo que ele faz dele.
Garcin diz a Inês que ela é uma víbora por sempre ter resposta para tudo. Ele caminha para ela com as
mãos abertas. Inês, não se assusta, pede-lhe que a convença de que não é covarde, mas sem se utilizar de qualquer
violência uma vez que não se agarram "pensamentos com as mãos” (IBID, p. 95).
Estelle pede a Garcin que a beije para se vingar de Inês. Ele aceita o jogo e quando se debruça sobre
Estelle, escuta as censuras que Inês dirige a eles:

Então? O que é que você está esperando? Faça o que mandam! Garcin, o covarde, tem nos seus braços a
Estelle, a infanticida. Façam as apostas! Garcin, o covarde, conseguirá beijá-la? E eu estou vendo vocês!
Eu sozinha, sou toda uma multidão, a multidão, Garcin, a multidão, compreende? (Murmurando)
Covarde! Covarde! Covarde! Covarde! É inútil fugir de mim, não deixarei você. Que é que está procurando
nos lábios dela? O esquecimento? Mas eu, eu não esquecerei você. E é a mim que você tem que convencer.
A mim! Venha, venha! Espero por você. Veja, Estelle, ele já desaperta o seu abraço, é obediente como um
cachorro [...] Você não há de tê-lo! (IBID, p. 97).

Garcin abandona Estelle e percorre o aposento parando diante do bronze. Suas palavras são dramáticas:

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O bronze... (Apalpa-o.) Pois bem! É agora. O bronze ai está, eu o contemplo e compreendo que estou no
inferno. Digo a vocês que tudo estava previsto. Eles previram que eu havia de parar diante desta lareira,
tocando com minhas mãos esse bronze, com todos esses olhares sobre mim. Todos esses olhares que me
comem. (Volta-se bruscamente.) Ah! Vocês são só duas? Pensei que eram muito mais numerosas. (Ri.)
Então, isso é que é o inferno? Nunca imaginei [...] Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha [...]
Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno [...] são os Outros. (IBID, p. 98).

A estátua de bronze no cenário da peça é bem interessante. Talvez, tenha o sentido de causar desconforto
às personagens que, enquanto categoria do ser Para-si, consciências (uma fissura introduzida no ser),
interrogam-se, angustiam-se pelo Nada (secreção que brota da consciência), nadificam as coisas em sua volta,
ao contrário do Em-si, incólume aos assédios da Náusea, da existência, da liberdade, da angústia. Talvez, o
desejo de Garcin é ser um Em-si, fugindo do avassalador poder do olhar do Para-outro, que tanto o incomoda no
aposento. Olhar que nos surpreende sempre. Estejamos em qualquer ambiente, como bem sentiu o personagem
Daniel no romance de Sartre Le Sursis:

Certamente já experimentaste no metrô, no saguão de um teatro, no trem, a impressão súbita e insuportável


de ser espiado por trás. Tu te voltas mas o curioso mergulhou o nariz em seu livro; nem chegas a saber
quem te observava. Retomas tua primeira posição, mas sabes que o desconhecido reergue seus olhos [...]
Eis o que senti pela primeira vez, no dia 26 de setembro, às três horas da tarde, no parque do hotel. E não
havia ninguém, compreendes Mateus, ninguém. Mas o olhar estava lá. Compreende-me bem: eu não o
apreendi, como se capta de relance um perfil que passa, um rosto ou um par de olhos; pois o seu caráter
próprio é de ser inapreensível. Mas eu me contrai e, prêso a mim, sentia-me ao mesmo tempo transpassado
e opaco, eu existia em presença de um olhar. Desde então, não cessei de ser testemunha [...] O ser-visto
pertence, portanto, à própria condição humana, como a presença invisível de uma testemunha sempre
presente [...]. (BORHEIN, 1984, P. 89-90).

Olhares de Inês e Estelle que incomodam da mesma forma como se fosse de uma multidão. Garcin
percebe, portanto, a condição dos três: ficarem expostos uns aos outros sem remissão, eternamente, num conflito
constante.
Aprenderam a lição com muita angústia: o inferno é a existência da outra consciência que nos julga, que
disputa conosco o espaço de ação, que se choca com a nossa liberdade, diminuindo-a. É como Sartre afirmou: "O
conflito é o sentido original do ser-para-outro".
Estelle tenta beijar Garcin, mas este a repele dizendo que não pode fazê-lo diante do olhar de Inês. Estelle
pega o cortapapel e se dirigindo para Inês desfere-lhe vários golpes. Inês ri, mostrando a Estelle que está morta,
não havendo possibilidade da faca, do veneno, da forca, fazer-lhe qualquer mal. Estão juntos para sempre,
indefinidamente.
É interessante a tentativa de Estelle de golpear Inês com o cortapapel. Lembra-nos as cenas finais das
obras de: Tirso de Molina, El Burlador de Sevilla, quando Don Juan servindo-se de sua adaga começa a golpear,
em vão, à estátua de pedra de Don Gonzalo, pai de Ana, mulher que havia burlado, e, de Molière, Don Juan e O
Convidado de Pedra, quando D. Juan, utilizando-se de sua espada, tenta desferir golpes contra um espectro (na
forma de mulher velada que depois se transforma no tempo, com a foice na mão), que vem alertá-lo para que se
arrependa dos males que praticou (burla de mulheres e gozos aos assuntos sagrados), mas só encontra o espaço
vazio, nas suas estocadas. Representam, pois, tanto para Estelle quanto para Don Juan, a descoberta da real
condição que constatam, da real situação que enfrentarão daí por diante: para este a morte que chegou; para

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aquela a descoberta que já está morta, no inferno do sentido original do ser-para-outro.

REFERÊNCIAS

BORHEIN, Gerd A. Sartre. 2a. edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1984.

MOLIÈRE. Don Juan - o convidado de pedra. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1997.

MOLINA, Tirso de. El burlador de Sevilla. PML Ediciones, 1995.

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Teatro ao vivo. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

_______. L´être et le néant. Paris: Gallimard, 1994.

_______. O existencialismo é um humanismo. 4ª. edição. Lisboa: Editorial Presença, Livraria Martins
Fontes, 1978.

_______. O muro. Tradução de H. Alcântara Silveira. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S. A., 1965.

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